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O Enigma Gilberto Freyre: ensaios de imersão
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O Enigma Gilberto Freyre: ensaios de imersão
E-book302 páginas8 horas

O Enigma Gilberto Freyre: ensaios de imersão

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Sobre este e-book

O pensamento de Gilberto Freyre continua a suscitar discussões nos mais diversos campos de estudo, como mostram os ensaios deste livro, pensado para celebrar o legado dos 120 anos do autor de Casa-grande e senzala. Tratando de vários temas e aspectos do pensamento freyreano, eles se apresentam com diferentes graus de concordância e discordância do mestre. Os dois organizadores mergulham na complexidade da obra de Freyre procurando produzir aproximações e dissensos, em continuidade ao seu modelo de ensaísmo e reflexão, baseado na concepção epistemológica de que a realidade é demasiado complexa e contraditória para se deixar enfeixar em definições sucintas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de dez. de 2022
ISBN9786554390682
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    O Enigma Gilberto Freyre - Josias de Paula Jr.

    Apresentação

    Josias de Paula Jr.

    Roberto Azoubel

    Em 2020, completaram-se 120 anos do nascimento de Gilberto Freyre. Propiciada pela efeméride, a oportunidade de uma vez mais retornar ao clássico pensador brasileiro, a fim de reatualizá-lo — seja por um viés crítico, a reparar-lhe lacunas, faltas e equívocos, seja de maneira positiva, encontrando no autor senhas, pistas e insights para interpretar o presente e prospectar o futuro —, sofreu o golpe fatal e intempestivo da pandemia do novo coronavírus. A desorganização da rotina que sobreveio à peste naturalmente fez minguar os eventos, publicações, debates e seminários esperados.

    Contudo, no dia 19 de novembro daquele ano, a Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco, por intermédio da sua Coordenadoria de Literatura, organizou uma palestra virtual proferida pelo professor Anco Márcio Tenório Vieira (UFPE),¹ intitulada Gilberto Freyre — 120 Anos: sua prosa científica e seu pioneirismo,² no intuito de honrar essa importante data para a cultura e as ciências sociais brasileiras. A riqueza da exposição do palestrante e o manancial de ideias e discussões suscitadas por ela foi o germe da ideia de elaboração deste volume. A partir de então, um diagnóstico e várias balizas orientaram o projeto de organizar um livro de ensaios sobre o legado do intelectual de Santo Antônio de Apipucos. O diagnóstico: desde a publicação de O imperador das ideias: Gilberto Freyre em questão, organizado por Joaquim Falcão e Rosa Maria Barboza de Araújo, em 2001, não tínhamos uma obra que reunisse ensaios e artigos de variadas autorias, com contribuições de destacados pesquisadores e pesquisadoras. O imperador das ideias conta com textos de pessoas que já se foram, como Nicolau Sevcenko e Edson Nery da Fonseca, além das que colaboraram naquele e neste O enigma Gilberto Freyre: ensaios de imersão, intelectuais da dimensão de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, Antonio Dimas e João Cezar de Castro Rocha.

    Cerca de vinte anos, portanto, já separam uma iniciativa da outra, tempo suficiente para exigir nova empreitada de aproximação com a obra do sociólogo pernambucano. Na seleção das contribuições, nosso intuito foi alcançar a maior diversidade possível: regional, de gênero, geracional, ideológica;³ e essa diversidade esteve atrelada à liberdade concedida para cada autor/autora. Logo, O enigma Gilberto Freyre não foi concebido a partir de um eixo comum ou por temáticas específicas. Os ensaios a seguir tratam de assuntos e aspectos vários do pensamento freyreano, com graduações também distintas de concordância ou discordância em relação ao autor de Casa-grande & senzala.

    Por consequência, os editores e os organizadores deste volume também não pretenderam em nenhum momento concordar com o conjunto dos argumentos e posicionamentos desdobrados. Na verdade, existem posições opostas, algumas vezes, a depender dos pendores daquele que escreve, de maneira que a concordância integral seria, a bem dizer, impossível. Assim, há mesmo raciocínios e afirmações que distam, em muito, com as nossas leituras e opiniões particulares.

    Eis a condição libertária possibilitada pelo ensaio, gênero bastante apreciado, diga-se, pelo próprio Freyre.⁴ O professor Eduardo Cesar Maia (UFPE), em mesa intitulada O ensaio crítico como gênero literário, que integrou a programação do Fórum das Letras⁵ na edição de 2021, construiu o seguinte esboço sobre essa forma de escrita:

    O ensaio é um gênero polimorfo e difícil de capturar em qualquer definição essencialista. Podemos dizer, de maneira geral, que se trata de um tipo de prosa de ideias marcada por uma vontade de estilo; uma escrita de interpretação, de reflexão franca e não dogmática, que nos oferece não uma promessa de Verdade última, mas uma perspectiva personalíssima, e convida o leitor a participar dela dialogicamente. Como dizia José Ortega y Gasset, o ensaio é a ciência sem a prova explícita, que nos convida a novas maneiras de ver as coisas. Em consequência da radical dissolução de fronteiras e mesmo de certas fusões entre os gêneros literários, em inícios do século XX, consagrados ficcionistas e grandes poetas passaram, ainda mais, a praticar o ensaísmo. Ensaio, essa forma literária, híbrida por excelência, que, desde Montaigne (re)visita aos antigos, mescla reflexão, memória, poesia, análise e ficção.

    Uns mais memorialísticos, outros mais analíticos, os nove textos que compõem O enigma Gilberto Freyre: ensaios de imersão confirmam o delineamento anterior. É preciso voltar-se agora para a palavra enigma.

    O arquétipo mais remoto e emblemático da noção de enigma é o dos oráculos, entre os quais destacou-se o de Delfos, consagrado ao deus Apolo. A mensagem oracular, enigmática, era decifrada por sacerdotisa especialmente preparada para o ofício, a pitonisa. A relevância dos enigmas no mundo grego é evidenciada por obras como Édipo Rei, do renomado tragediógrafo Sófocles. No mito, enigma e destino são essencialmente imbricados. A decifração enigmática durante séculos envolveu profecias e antecipações do porvir, assim como interpretações e conselhos do momento presente. Sigmund Freud, quando resolve esmiuçar cientificamente a natureza dos sonhos (FREUD, 2018), fere outra corda importantíssima desse universo e alude à milenar compreensão da realidade onírica como recados enviados pelos deuses, cuja função residia no prognóstico e vaticínio. O exercício da adivinhação onírica constitui-se, assim, em tema controverso, pelas dificuldades evidentes da lida com a substância dos sonhos, aparentemente sempre disparatada, absurda, múltipla, obscura.

    Há formas diversas de enfrentar o desafio enigmático, dado seu inescapável traço oblíquo, esquivo, polivalente. Existem aqueles que o julgam somente uma burla, ou um passatempo para ociosos, ou uma maneira de enganar a tontos, sendo a decifração oracular nada mais que perda de tempo para um vazio de sentido. Contudo, para alguns, diante dele só se encontra satisfação ao obter-se a resposta única e definitiva de seus códigos e significados — carregando o enigma, segundo estes, o peso da verdade una, consagrada por Platão. Para outros, porém, da circunstância mesma da abertura enigmática, do seu constitutivo não fechamento, em outras palavras, do seu contínuo acolhimento polissêmico e multi-interpretativo, o enigma é símbolo profundo e contundente da relação com a verdade como relação aproximativa, perspectivista e, mesmo, vária.

    Não à toa, a melhor tradição filosófica ensaísta aconselha estilo recatado, sem deixar-se sucumbir ao explícito.⁷ Afirmava Baltasar Gracián:

    Jogar com o jogo a descoberto nem é útil, nem elegante… Ainda quando se desvele, há de se fugir da excessiva clareza, assim como não se deve expor a intimidade a todos. [...] É o recatado silêncio sagrado da sensatez. Imite-se, pois, o proceder divino, para que alcances atenção e desvelo (1993, p. 193-194).

    A remissão aqui à forma do ensaio carrega a seguinte constatação: é, sim, o ensaísmo o modelo maior da modéstia e ponderação argumentativa. Abarcando um repertório sofisticado e plástico, com sua estilística e suas dobras retóricas próprias, constitui-se na maneira menos arrogante de tatear a realidade. E é exatamente nesse ponto que assoma o aspecto mais importante da relação entre enigma, ensaio, realidade e verdade — aspecto tão caro e tão meditado por Gilberto Freyre: a forma, o estilo, seu modo de exposição do tema, nunca foi uma mera veleidade, um traje exagerado e extravagante de idiossincrático a convocar à força algum prestígio. Não. O ensaísmo plural de Freyre respondia a uma concepção epistemológica clara: a realidade é demasiado complexa e contraditória para se deixar enfeixar em definições sucintas e esquemáticas.

    Houve, desde o começo, estranhamentos em relação à sua obra, porque não se curvava ao cientificismo e, por conseguinte, às grandes generalizações. Em prefácio a Sobrados e mucambos, dizia:

    O que João Ribeiro estranhou na primeira parte do trabalho — a já publicada — também estranharia nesta: não conclui. Ou conclui pouco. Procura interpretar e esclarecer o material reunido e tem, talvez, um rumo ou sentido novo de interpretação; mas quase não conclui. Sugere mais do que afirma. Revela mais do que sentencia. A quase ausência de conclusões, a pobreza de afirmações, não significa, porém, repúdio de responsabilidade intelectual pelo que possa haver de pouco ortodoxo nestas páginas. De contrário ao estabelecido, ao aceito, ao consagrado. Porque essa qualidade revolucionária vem da própria evidência do material reunido e aqui revelado e interpretado dentro da maior objetividade possível, de método e de técnica (FREYRE, 2013, p. 34, grifo nosso).

    Como destacado na citação, é o próprio material — a realidade histórica, social, psicológica — que renega a completa transparência das verdades cabais e das afirmações finais. Em resumo, para que não perdure qualquer mal-entendido: o enigma não se encontra essencialmente em Gilberto Freyre, mas na vida e no humano. O que caracterizou o sociólogo pernambucano — sendo fonte de tantas críticas e diatribes — foi que ele nunca se esqueceu ou se afastou dessa perspectiva, desse entendimento acerca do conhecimento. E fez mais. Fez de seu próprio texto e reflexão um atestado do grande e fascinante enigma que é a reunião de nossa espécime em sociedades.

    Decorrido todo esse tempo, urge fazermos um balanço dos impactos atuais de suas ideias e de seus conceitos, uma vez que não se passa indiferente às suas interpelações ainda hoje, seja consciente ou inconscientemente. Quem há de negar a importância da preservação do patrimônio material, com destaque ao arquitetônico? E quem há de negar ao autor celebrado o pioneirismo nessa matéria entre nós brasileiros? E em relação à questão ecológica — completamente ausente do debate nacional por décadas, quando imperava o furor desenvolvimentista e a perspectiva de progresso cega à natureza —, como esquecer a relevância de seu livro Nordeste, já em 1937? Um trabalho também desbravador e antecipador.

    A emergência do pós-colonialismo — corrente teórica de grande relevância nas últimas duas décadas — também vislumbra em Freyre um autor incontornável. Incontornável e ambíguo, uma vez paradoxal, já que ele, em sua obra, encerra simultaneamente o elogio ao colonizador português com a exacerbada paixão pela civilização tropical brasileira, singular, única, e portadora otimista (talvez utópica) da possibilidade de uma sociedade sem preconceitos, sem discriminações. Aliás, nestes tempos de forte radicalismo, de muitas maneiras permeados pela intolerância sectária de alguns identitarismos, Gilberto Freyre, por ventura, constitui-se em patamar reflexivo necessário para superarmos os posicionamentos meramente excludentes e lograrmos novos horizontes de diálogo.

    Por fim, é importante dizer que a publicação de O enigma Gilberto Freyre: ensaios de imersão no ano do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 torna este livro ainda mais oportuno. Em meio às guerras de narrativas sobre o Modernismo brasileiro, estimuladas pela referida efeméride, trazer reflexões deste pernambucano, um autor com ideias próprias e instigantes daquele período, é, sem dúvida, trazê-lo também ao debate, colaborando, assim, com a defesa de que vivemos em um país cuja pluralidade de concepções e manifestações histórico-artístico-culturais é sintoma da sua vitalidade humanista.


    1   A palestra teve como debatedor o professor Josias de Paula Jr. (UFRPE) e como mediador o antropólogo e gestor cultural Roberto Azoubel (naquele momento responsável pela citada Coordenadoria de Literatura), ambos organizadores deste livro.

    2   Ver: https://www.youtube.com/watch?v=vl_e700etbc

    3   Os organizadores lamentam apenas o declínio de convites (devidamente justificados) que poderiam alargar ainda mais essa diversidade.

    4   "A importância da descoberta do gênero ensaístico pelo futuro autor de Casa-grande & senzala deve ser aqui enfatizada. O entusiasmo para com as potencialidades desse gênero pode ser avaliado, desde cedo, pelas inúmeras citações de ensaístas que faz nos artigos que escreve para o Diario de Pernambuco e pela biblioteca de ensaios que acumula ao longo dos anos. Matthew Arnold, A. C. Benson, Edward Thomas, Lafcadio Hearn, Edward Muir, George Santayana, Havelock Ellis, G. K. Chesterton, Arnold Bennett, W. B. Yeats e Charles Lamb são alguns dos ensaístas cujas obras Freyre adquire (ou ganha) nesse período inicial de sua formação, ao que se somam ricas antologias de ensaios, que, ao menos desde 1922, passam a ampliar sua biblioteca." (PALLARES-BURKE, 2005, p. 105-106).

    5   Evento literário realizado pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) desde 2005.

    6   Para ver a mesa na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=E1lFO4sC63c.

    7   El jugar a juego descubierto ni es de utilidad, ni de gusto [...] Aun en el darse a entender se ha de huir la llaneza, así como ni en el trato se ha de permitir el interior a todos. Es el recatado silencio sagrado de la cordu­ra. Imítese, pues, el proceder divino para hacer estar a la mira y al desvelo. (GRACIÁN, 1993, p. 193-194). Tradução dos organizadores.

    Referências

    FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos [recurso eletrônico] / Sigmund Freud; tradução Walderedo Ismael de Oliveira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

    FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global. 1ª edição digital, 2013.

    GRACIÁN, Baltasar. Obras completas, II. Madrid: Turner Libros, 1993.

    PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

    A mão direita e a mão esquerda

    de Gilberto Freyre

    Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke

    Gilberto Freyre nasceu há 121 anos, somente 12 anos após a abolição da escravatura. Sua grande obra, Casa-grande & senzala, que o tornou conhecido e lhe garantiu fama desde então, foi publicada há 88 anos, em 1933 — numa época em que o Brasil tinha pouco mais de 30 milhões de habitantes, ainda era essencialmente agrícola e exportador de matéria-prima, em que os analfabetos, os mendigos e as mulheres, sem a autorização do marido, não tinham direito a voto e, como disse Antonio Candido, numa época em que era considerado comunista quem dizia, como seu irmão, que no Brasil tinha miséria. No entanto, Freyre continua vivo, provocando controvérsias apaixonadas, admiração e até fúria, pois, ao abordar questões ainda hoje polêmicas, como ecologia, racismo, multiculturalismo, patrimônio cultural e homossexualidade, muitas de suas ideias não perderam relevância com o tempo.

    As questões que mais causaram controvérsias e lhe atraíram ataques foram as que, direta ou indiretamente, dizem respeito à política. Este ensaio busca fazer uma retrospectiva das incursões de Freyre na política, tomada no sentido estrito e amplo, procurando contribuir para o estudo da complexa (e não suficientemente tratada) questão de suas variáveis atitudes políticas e das implicações políticas de suas ideias.¹ Pois, parafraseando o que foi dito sobre Tolstói, pode-se dizer que havia em Freyre uma mão direita e uma mão esquerda e que sua história não foi uma simples e usual trajetória da esquerda para a direita, já que a ortodoxia nunca foi a sua marca, quer quando pendia para a esquerda, quer quando, a partir dos anos 1950, pendeu gradativa e definitivamente para a direita.²

    Freyre frequentemente expressou atitudes antifascistas, mas também revelava uma tácita simpatia por figuras fascistas. Era capaz de louvar, ao mesmo tempo, o marxismo no estilo inglês, na figura de Stafford Cripps, o chanceler trabalhista, e Charles Maurras, o monarquista e líder do partido protofascista Action française; de referir-se ao líder comunista Luís Carlos Prestes como um homem lúcido e honrado, que lutava bravamente contra o fascismo emergente, ao mesmo tempo que, seduzido pela inteligência e simplicidade do ditador português António Salazar, calava-se sobre a perversidade de seu regime.

    Gilberto Freyre, não há como negar, era um animal altamente político, não obstante suas ideias políticas serem difíceis de definir. Quer como político strictu sensu, em carreiras que seguiu brevemente, quer como jornalista, gestor cultural, intelectual público ou acadêmico, nota-se a marca de um desejo que Freyre manifestou desde cedo: o de ser um intellectuel engagé a serviço do Brasil. Mesmo antes da tão almejada viagem para além de sua aldeia recifense, ele expôs sua ambição com clareza e determinação. No discurso que deu ao terminar o curso secundário, Freyre admitiu que — ao contrário dos afetados e pedantes graduados brasileiros, essa praga de gafanhotos que só quer brilhar, mas é inútil para o país — sua ambição era a ação. Sem um fim social, anunciara o adolescente de 17 anos, o saber será a maior das futilidades [...]; nada, se o não soubermos dissolver em ação.³

    Sua experiência no exterior, entre 1918 e 1923 — na Universidade Baylor e na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, além da viagem à Europa e de um período curto, mas fundamental, em que esteve na Universidade de Oxford —, era considerada por ele e sua família como preparação para seu futuro papel na reforma do Brasil, essencial para que o país tomasse o rumo do desenvolvimento.⁴ Anos mais tarde, respondendo aos que o criticavam por não se confinar a questões acadêmicas, ele insistia que a pura dignidade acadêmica não valia um caracol e que não lhe era aceitável ser um intelectual chamado puro. Participar das lutas do meu tempo e da minha gente era, como disse, um dever.⁵

    O interesse de Freyre em política iniciou-se cedo, mas sua carreira propriamente política foi passageira. Primeiramente, ocupou o cargo de assistente do governador de Pernambuco (1926–1930) e vinte anos mais tarde foi deputado na Assembleia Constituinte (1946–1950), quando destacou-se como porta-voz dos interesses do Nordeste. Além disso, pode-se dizer que esteve indiretamente envolvido na política durante parte de sua vida, incluindo o período pós-1964, em que suas alardeadas posições ideológicas — então bem distantes das de seu passado radical — tornaram-se poderosas armas políticas. Freyre também teve, como ele chama, uma carreira quase-política, na qualidade de jornalista e gestor cultural, fundando ou apoiando instituições que disseminavam as ideias que ele defendia.

    Mais importante ainda, seus interesses e suas ideias centrais tinham importantes implicações políticas que geravam, muitas vezes, reações das autoridades. Foi acusado, por exemplo, de bolchevismo, pela ênfase que dava ao elemento africano na cultura brasileira. Seu regionalismo incorporava um protesto contra a centralização, e seu contínuo interesse por arquitetura incluía a preocupação com a moradia dos pobres, o que provocava conflito político no Recife.

    Como um scholar, Freyre apoiava o que chamou de tropicalização das ciências sociais, livrando-as das generalizações baseadas nas experiências europeias e norte-americanas. Não é científico, argumentava ele, aplicar ao Brasil o que se baseia em experiências tão distintas. Ou seja, sem abrasileirar ou tropicalizar noções oriundas de outras latitudes, as interpretações feitas serão sempre postiças e, no limite, inúteis.

    Da visão de Freyre sobre o Brasil em termos de cultura — em vez de raça —, decorria que o governo deveria se preocupar com a saúde e a educação dos pobres, e não com o branqueamento do país, encorajando a imigração europeia . Sua ideia de que a mistura era o núcleo da identidade brasileira foi apropriada pelos governos de Vargas a Lula, enquanto sua visão de luso-tropicalismo, argumentando que os portugueses eram mais flexíveis e benevolentes do que os colonizadores de outras nações, foi usada como defesa contra os críticos do colonialismo pelo regime de Salazar.

    Freyre na política strictu sensu

    As posições políticas de Gilberto Freyre, como já aludimos, estavam longe de ser inequívocas. Ele próprio descreveu-se, em momentos diferentes, como não partidário, anarquista, conservador e até mesmo revolucionário conservador. Freyre também foi descrito nos anos 1940 como comunista, um rótulo que confessou não o ofender. O que ele era, argumentava, era um antianticomunista, pois admirava os homens de inteligência e caráter que haviam se filiado a um partido que lutava por um Brasil melhor e contra o avanço do nazifascismo.

    O suposto marxismo de Freyre foi tomado a sério, e isso é revelado pelos esforços do Partido Comunista, no início dos anos 1950, em desmontá-lo. Para tanto, o partido contou com a colaboração do jovem e culto marxista Gláucio Veiga, que se tornaria, mais tarde, um renomado jurista. O trabalho de desmonte foi feito na imprensa, usando uma variedade de argumentos para desacreditar as ideias pretensamente marxistas de Freyre.⁶ Fora do Brasil, o presidente do Partido Comunista argentino publicou um panfleto contra Freyre, em 1951, acusando-o de escapismo histórico, de ser niilista teórico e nostálgico do feudalismo.⁷ A primeira biografia de Freyre o apresentava como um homem da esquerda, apesar de não ortodoxo, e jovens cultos e socialistas, como o crítico Antonio Candido, admiravam sua oposição à ditadora do Estado Novo, vendo-o como um mestre do radicalismo.⁸

    É, evidentemente, impossível negar que Freyre se tornou mais conservador, ou mesmo reacionário, com o passar do tempo, considerando sua crítica aos protestos contra a discriminação racial nos anos 1940, seu elogio ao regime colonial português nos anos 1950, sua crítica ao que chamou de racismo-afro nos anos 1960 e o apoio total e imediato que deu ao golpe militar de 1964.⁹ Ao mesmo tempo, temos de admitir que as atitudes políticas do escritor pernambucano nunca foram simples, especialmente, mas não só, na sua juventude, quando ele combinava elementos da direita e da esquerda. Já na maturidade, suas referências aos perigos do comunismo revelam que este, antes visto por ele até com declarada simpatia, havia se tornado antibrasileiro, representando uma ameaça à independência econômica, política e ideológica do país.

    O otimismo de Freyre sobre o golpe militar de 1964, deve-se insistir, não foi duradouro. Em 1981, ele admitiu que o estado ultracentralizado do Brasil poderia ser comparado ao totalitarismo soviético e que o regime militar havia sucumbido às pressões dos tecnocratas econômicos, perdendo, portanto, de vista os interesses do país como um todo. Foi então que ele claramente afirmou que 1964 foi uma grande revolução fracassada. Os líderes do movimento tiveram a oportunidade de fazer uma revolução verdadeira, mas falharam [...] porque lhes faltou sensibilidade social e sobrou economismo.¹⁰

    Bem antes, no entanto, em 1972, quando fez sugestões à Aliança Renovadora Nacional (Arena), Freyre desconcertou aqueles que esperavam ver um partidário do golpe militar apresentando ideias puramente reacionárias. Ele instava o governo a atenuar o atual desnível socioeconômico entre populações regionais do país, realizando reformas agrárias que buscassem harmonizar desequilíbrios de caráter socioeconômico e impedir a crescente marginalização de populações rurais.¹¹

    Em ocasiões diferentes, dos anos 1930 aos 1960, houve rumores de que Gilberto Freyre seria nomeado embaixador na França ou no México, prefeito do Recife ou ministro da Educação. No entanto, quer ele tenha ou não flertado com essas posições de poder, nenhuma delas se materializou. Na prática, pois, seu papel na política strictu sensu acabou sendo bem modesto.

    A primeira nomeação de Freyre como assistente de Estácio Coimbra, governador de Pernambuco, em 1926, foi aceita com hesitação e somente após vencer a resistência de amigos próximos que tentavam dissuadi-lo de

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