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Direito e Justiça na Amazônia: A Força dos Movimentos Sociais
Direito e Justiça na Amazônia: A Força dos Movimentos Sociais
Direito e Justiça na Amazônia: A Força dos Movimentos Sociais
E-book473 páginas6 horas

Direito e Justiça na Amazônia: A Força dos Movimentos Sociais

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Sobre este e-book

A inspiração de Terezinha Feitosa ao escolher como tema desua pesquisa de doutorado a saga da Família Canuto em sua marcha, em grande parte semelhante à de milhões de brasileiros e brasileiras identificados com o trabalho na terra, ao longo de muitos séculos de nossa história, nasceu da observação, implicada e sensível, da realidade que conheceu desde seus anos de meninice, vivida por vizinhos, amigos, gente próxima e querida. A migração faz parte da luta pela sobrevivência e são motivadas pela busca de melhores condições de vida. Tudo isso fazem parte de uma experiência comum ao Brasil dos latifúndios, do agronegócio onde se pratica a ilegalidade e nega-se direitos. Adonia Prado
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de mar. de 2018
ISBN9788546209774
Direito e Justiça na Amazônia: A Força dos Movimentos Sociais

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    Direito e Justiça na Amazônia - Terezinha Cavalcante Feitosa

    final

    PREFÁCIO

    Sólon de Atenas comparou as leis a teias de aranhas, que se mantêm intactas quando qualquer objeto leve e flexível cai nelas, enquanto qualquer objeto maior as rompe e vai adiante.¹

    Não é fácil e ao mesmo tempo não se torna difícil produzir o prelúdio de uma obra. No caso que nos toca, torna-se fácil elaborar este prefácio porque, juntamente com a autora Terezinha Cavalcante Feitosa, compartilho da mesma realidade contraditória e violenta, de modo que somente aqueles impulsionados por uma acurada consciência política e cientes do contexto social por que passa a produção do livro conseguem uma boa leitura da conjuntura agrária e legal do Sul e Sudeste do Pará; isso porque, em face de toda a propaganda ideológica contra os sem terra e sem direitos, certamente a realidade se apresenta adulterada pela ideologia dominante em favor de interesses de classe.

    Terezinha, assim como tantos, depois de experimentar a jornada de família retirante do Piauí migrando para o Velho Goiás, onde vivenciara a experiência de cultivar terras ainda sem donos, chegou até mesmo a conviver com a moral cabocla de se relacionar com a terra sem pretender tomá-la como propriedade (coisa que jamais poderá ser vista nos tempos atuais). Dessa experiência de migrantes sem terra, seguiram a vocação de sonhadores da terra prometida, parecendo cumprir iminentemente a profecia do Beato do sertão de buscar as Bandeiras verdes do Araguaia. Quem quiser que acredite! Pois também o mesmo Santo cearense ainda profetizava que "o Araguaia iria ferver".

    E foi justamente nessa fervura do Araguaia que João Canuto e os tantos que lutaram como ele também se fizeram Beatos que profetizavam em nome das causas justas: a necessidade da posse da terra em nome da vida digna de milhares; vindo das Minas Gerais, se instalou em Rio Maria motivado pelo sonho de construir uma família nas terras sem homens, engrossando ainda mais o rebanho dos homens sem terra. Terezinha, assim como eu e outros tantos, engrossamos os cordões de migrantes, cada qual com seus sonhos e unidos na fé comum dos quem saem da terra natal; chegamos na década de 1980 ao sul do Pará, quando era bastante comum ouvir expressões de que a lei se resolvia na bala.

    João Canuto foi o protagonista e, ao mesmo tempo, vítima; seu heroísmo consistiu na renúncia da covardia e no franco abraço à causa da justiça, Terezinha foi quem conseguiu transformar a epopeia de Canuto em problema acadêmico e trazê-la para a pesquisa científica transformando-a em tese de doutorado e, por consequência natural, no presente livro.

    A pesquisadora Terezinha não faz discurso de fora, mas sua fala é própria de militante e seu amplexo à causa científica é o mesmo de mulher sonhadora com um mundo justo, onde nem Canuto, nem seus irmãos e nem seus filhos pudessem mais ser vítimas da ambição de poderosos; quando se cessasse de vez a violência por todos aqueles que inescrupulosamente se apropriam da terra. O sonho de Canuto é o mesmo de cada agricultor sem terra e que oxalá um dia se pudesse cumprir o diz a Bíblia: "A terra não será vendida perpetuamente, pois que a terra me pertence ...Também não se venderá a terra em perpetuidade, porque a terra é minha";² e, sobretudo, a preço de fome, suor e sangue.

    Assim como a tese se transformou em livro, seu escrito também se torna analogicamente migrante: sai dos circuitos da Academia para o público em geral que carece conhecer a saga de Canuto e família, munindo-se dos óculos que possibilitem a visão da consciência para compreender um pouco mais a lógica capitalista aplicada ao campo. Assim, conhecerá as regras que determinam as relações sociais e legais e ditam as ordenações morais, as dinâmicas econômicas, definindo o destino de milhões que viverão carentes de condições dignas de vida e fazendo da justiça um peso de medida única e cega aos sofrimentos de desfavorecidos da terra.

    Por tudo isso, a produção de Terezinha não deixa passar despercebido o fato de que a Lei, enquanto expressão do Estado legal, violento e injusto, quando convocada, sempre tende contrariamente aos interesses de pequenos grupos que se alvoram a possuir a terra com todos os viventes que nela habitam. Na verdade, o livro representa um convite à tomada de consciência cidadã.

    A capa do livro já se institui o melhor prefácio: apresenta a deusa Themis da Justiça com os mesmos olhos sempre vedados, conquanto, vestida de camponesa, chapéu de palha como proteção e, em vez de espada, empunhando a velha enxada. A espada mata, fere e mete medo; a enxada limpa, planta, cultiva, colhe e ainda, com ela, faz-se a cova que acolhe no seio da terra aqueles que morreram pela inexorável violência da espada do latifúndio. A justiça da enxada deveria ser assumida por qualquer nação que se inscreva como país cristão e mesmo que pretenda proteger os mais fracos, empobrecidos, desprotegidos e agredidos pela legalidade extremamente injusta quando se trata de direito agrário.

    O título do livro, que naturalmente segue a lógica da bela capa, se apresenta ao leitor como: Direito e Justiça na Amazônia: a força dos movimentos sociais. Lembremos que João Canuto, assim como Chico Mendes e tantos outros, clamava justamente por esta Justiça e foram fatalmente vítimas da injustiça que, pela ironia que marca a tragicidade da história, se estabelece como dinâmica da ocupação amazônica há séculos e há décadas no sul do Pará. Mas como dizia Platão: entre sofrer a injustiça e cometê-la preferível sofrer, por que quem é vítima não o é injusto e não se torna mau para si mesmo.

    A pesquisa narra a saga não somente de um militante vitimado pela violência intolerante de poderosos, mas de todos os que não se curvaram e optaram pela militância justa, seguindo os conselhos de William Shakespeare, que, poético e profeticamente, proscrevia: Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez.

    O livro, além de se instituir registro histórico de fundamental importância, trata, portanto, da temática agrária de maneira científica e empolgante: investe na fala da sociologia do campo e convoca a utopia da terra para todos; analisa a legalidade pela sociologia do direito e invoca a verdadeira justiça social; critica a falsa justiça obtusa e tendenciosa e aclama a força da justiça inerente às causas sociais.

    A autora, tanto com sensibilidade quanto agudez de espírito e com a apropriada maestria acadêmica, transita pelo mundo da fé, da experiência de mulher militante e da vivência de longos anos de educadora; age impulsionada pelo sonho de quem nunca perdeu a esperança e, com tudo isso, pisa no solo firme de uma metodologia com o socorro dos grandes teóricos clássicos do mundo científico, tais como: Weber, Marx e Engels, Von Ihering, Thompson, Foucault, e dos intelectuais brasileiros(as): Bruno, Barreira Hébette, Loureiro, Martins, Iani, Fonteles, Medeiros e outros.

    E fertilizando o solo da pesquisa social, além do auxílio dos clássicos, Terezinha chama em seu socorro as autoridades no assunto que têm dedicado suas vidas na causa da justiça no campo e, nesse caso, merecem ser destacados os depoimentos de Padre Ricardo, Frei Henri e tantos militantes da paz, ativistas sindicais e ainda os próprios familiares de Canuto.

    Além das obras acadêmicas, a autora faz bom uso de inúmeros relatórios policiais, entrevistas com delegados, policiais, agentes do ministério público e juízes, sempre procurando interpretá-los segundo os princípios da pesquisa científica. Faz ainda uso de documentos e entrevistas frutos de produção de militantes da Comissão Pastoral da Terra, Comitê Rio Maria e outros órgãos relacionados ao trabalho de direitos humanos e justiça social.

    A obra resulta, portanto, de uma opção clara, tal qual, resultante de uma postura ideológico-política em favor dos oprimidos na luta pela terra; uma definição intelectual pela compreensão de que o direito à terra se constitui numa prerrogativa sagrada inalienável e numa necessidade social emergente, sobretudo num país gigantesco de tantas terras férteis e agricultáveis como o Brasil e, contraditoriamente, com uma multidão de famílias sem direito à sua posse.

    A autora não deixa que a famosa neutralidade científica se confunda com a neutralidade política, escondendo-se numa posição de pesquisadora que finge olhar os dois lados com os olhos científicos da miopia ideológica; sua opção é transparente: o olhar sobre a violência às famílias camponesas do sul do Pará; para ela isso é resultante da estrutura desigual e injusta que marcou a história fundiária no Brasil desde a chegada dos europeus. Sobre isso nada melhor que ouvir as palavras da própria autora, que observa: No Brasil, o sistema agrário desde os seus primórdios esteve alicerçado no grande latifúndio. O grande latifundiário foi uma figura construída pelo poder público que lhe atribuía terras e poderes, enquanto os pobres marginalizados estiveram sempre à mercê dos favores. De tal modo: das Capitanias às Sesmarias, os coronéis da terra dominavam a política, e o Estado conferia as migalhas da terra àqueles que a cultivavam.

    Outro traço marcante do livro consiste em sua visão social classista sobre a qual se assenta toda a costura epistemológica da obra, articulando suas interpretações, comentários e conclusões. Nessa visão dialética de sociedade, longe de se buscar a neutralidade da lei, a autora conclui que a lei que absolve é a mesma que condena, dependendo dos interesses que estiverem em jogo. As observações empíricas neste caso demonstraram que o dispositivo da violência na Amazônia quase sempre foi exercido em favor de uma classe. De tal modo, a escritora, além da boa fundamentação teórica que garante a consistência da obra, justifica-a com as observações empíricas extraídas de relatórios oficiais, entrevistas e relatos que cercam o objeto em investigação.

    A relação justiça e legalidade perpassa toda a textura da obra; seu discurso sistemático-descritivo, seus encaixes com contribuições textuais de autores afins, sua fundamentação epistemológica, seu método hermenêutico-interpretativo: tudo isso está articulado na dialética social que envolve a justiça no seu sentido rigoroso e a legalidade sob a forma de justiça institucionalizada.

    Esse aspecto é tão valorizado pela pesquisadora que ela própria chega a concluir: Ao longo desta tese ficou evidenciado que, em alguns casos, eram a própria lei e o direito que definiam o dispositivo da violência a ser aplicada como ato de justiça. Esse é o triste fato que tem marcado a atividade policial e judicial na Amazônia Oriental e, em particular, no sul do Pará, que, por sua vez, envolve a família Canuto de Rio Maria. Desse caso, Terezinha traduz a história da luta pela terra como uma sequência de tomadas da justiça pela legalidade injusta.

    A investigação empreendida pela autora possui alcance universal na medida em que aponta para o fatídico fato de que, do ponto de vista jurídico/institucional, a própria legalidade ou ilegalidade de cada sociedade estaria representada por uma instituição soberana e responsável pelo controle moral dos indivíduos, que vem a ser o chamado "Estado legal. Nessa perspectiva, conforme observa a autora O contexto indicou uma prática na qual estava envolvido um conjunto de fatores e a ilegalidade era praticada pelo viés da legalidade. Nesse sentido, Terezinha faz a seguinte observação: Ao perceberem que o estado do Pará se furtava às investigações dos casos de violência e assassinatos contra os camponeses por estar comprometido com a elite agrária, os movimentos sociais adotaram as práticas da mobilização e da denúncia coletiva".

    E, desse modo, tratando-se da forma com que o Estado aborda a questão agrária na região, a autora conclui que A omissão do poder público pode ser compreendida como proposital com a finalidade de proteger os que se utilizam da prática da violência. O que constata a autora se enquadra numa análise do Estado enquanto representação de interesses de classe e no estabelecimento da ideologia da neutralidade do poder e da própria lei. De tal modo, no livro aparecem claramente as contradições de uma sociedade de classe, tendo como resultante o Estado como aparelho ideológico e repressor.

    Ademais, a obra aponta para o fato inquestionável de que aquilo que é tido como legal com base nas leis constituídas contradiz o que é moralmente ou eticamente justo e injusto; isso se remeteria a ocorrências marcantes, como foi o caso do assassinato de Jesus, a execução de Tiradentes e a condenação de Sócrates: todos eles foram julgados de acordo com as respectivas leis vigentes de sua época e, portanto, nos padrões legais vigentes. Com efeito, todos foram julgados pela moralidade jurídica dentro da legalidade, porém completamente injustiçados do ponto de vista da verdadeira justiça fundada na ideia do bem, da justiça e da verdade. Todos estes e tantos outros casos exemplares foram vítimas de julgamento legal, contudo, imoral e antiético.

    Um aspecto que perpassa toda a obra consiste na visão e compreensão da pesquisadora sobre os movimentos sociais em sua relação com a justiça. Não se trata somente da justiça enquanto direito sagrado da posse da terra, mas também de direito de se ter julgamentos devidamente justos pelos respectivos crimes que atentem contra a vida dos milhares de desprotegidos que sub-vivem à margem do Estado de direito. A esse respeito, a concepção que norteia todo o tratamento dado pela autora aos movimentos sociais organizados consiste em seu caráter reivindicativo, exigente e cobrador de justiça; na verdade, nem chegaria a se instituir um apoderamento da justiça e tampouco de fazer justiça em favor da categoria social dos expropriados de posse da terra, mas simplesmente de garantir a tão apregoada neutralidade da Lei pelo pensamento liberal sobre o Estado de direito democrático.

    Nesse sentido, por toda a obra e em todas as referências da autora abordam-se os movimentos sociais, os quais são compreendidos, apresentados e interpretados como mais que instituições populares, como forças reais que tencionam o Estado objetivado nos órgãos policiais e jurídicos, a romper com a prática dos julgamentos injustos; ademais, cobram interpretações, procedimentos lícitos e aplicações sensatas segundo a neutralidade da Lei garantida pelo Estado de direito; há, portanto, por parte destes movimentos, uma justa consciência de cidadania e da iminente necessidade da inclusão social e jurídica de todos os que se achem marginalizados e ainda penalizados pelo direito à terra e, acima de tudo, à verdadeira justiça.

    Enfim, partindo do princípio de que, do ponto de vista moral, em cada cultura e a cada instante há contradições, surgem novos desafios e problemas proporcionando um novo momento com novas experiências; e, ainda, que os novos valores e conhecimentos com soluções trazem suas contradições com mais problemas e desafios novos, exigindo, assim, novos posicionamentos morais e novas respostas sociais. O livro de Terezinha se impõe como necessidade de que a sociedade brasileira se reavalie e reinterprete os conceitos relacionados à justiça social, legalidade e propriedade. E que, para que se rompa a rotina dos assassinatos de Canutos, Josimos, Francisos, Adelaides, Dorotys, Fonteles e outros tantos. Obras como esta deveriam sempre ocupar destaques nas estantes de livrarias e bibliotecas, sendo lidas e relidas pelos jovens que, amanhã, oxalá, poderiam compor a força dos movimentos sociais que certamente contribuirão para uma efetiva JUSTIÇA NA AMAZÔNIA.

    Prof. Dr. José Davi Passos

    Mestre em Filosofia pela PUC-SP

    Notas

    1. Diôgenes Laêrtios, Vidas e Doutrinas, I, 58. Sólon governou democraticamente Atenas no século VI a.C. e sofreu impeachment por um golpe de Estado. Era poeta, legislador e ficou conhecido como um dos grandes entre os Sete Sábios da Grécia.

    2. Levítico, 25, 26.

    APRESENTAÇÃO

    Cheguei à cidade de Rio Maria, no sul do Pará, em 1984. Estava em curso a transição da ditadura militar para a democracia. Era um momento de muitas tensões no campo político. O debate sobre a reforma agrária havia sido retomado pelos políticos que aspiravam ao governo central e, também, pelas organizações sociais no campo. Os trabalhares rurais nessa região, que também pode ser denominada de território, começavam a tomar os sindicatos, até então, atrelados ao governo. Marcavam posição política no campo da esquerda. Esses trabalhadores, também, ocupavam terras consideradas devolutas ou de documentos duvidosos. Os confrontos e as mortes eram constantes entre fazendeiros e camponeses.

    Rio Maria era recém-emancipada e tinha um ritmo frenético. Percebia-se nitidamente que determinados valores morais que fazem parte do cotidiano nas relações sociais não eram observados nesse contexto social. Observava-se que prevalecia a prática de levar vantagem em tudo pela esperteza ou pela violência. Destacavam-se, entre os que a adotavam tais práticas, alguns compradores e vendedores de ouro, gado e terras. Era a lei daquele que tinha maior poder de manipulação e/ou o que tinha mais habilidade para impor o medo e o terror.

    Em 1985, comecei a trabalhar numa escola pública e, em uma reunião pedagógica, a diretora da escola alertou aos professores que tomassem cuidados, pois havia filhos de pistoleiros na escola. Ser valente, cruel, era uma forma de impor respeito. Outro fator que chamava a atenção era a forma como aqueles que prestavam serviços escusos eram identificados. Muitos eram conhecidos pelo nome da fazenda ou pelo nome do fazendeiro a quem eram submetidos, numa relação de poder entre o que possui e o que é possuído.

    A grilagem e as ocupações de terra davam o tom das relações entre os pretendentes de grandes áreas para especulação ou negócio e os grupos de trabalhadores rurais que buscavam terra para subsistência. A opressão sobre os trabalhadores rurais recém-chegados sobre os posseiros antigos era explícita, concretizada por todos os meios violentos: intimidações, expulsões, ameaças e eliminação física.

    Nesse contexto, pistoleiros e jagunços eram vistos circulando com fazendeiros sem nenhum constrangimento. Tomavam cerveja com a polícia e demais autoridades como nos velhos tempos dos coronéis. Possuir jagunços era sinônimo de poder e garantia de que as terras não seriam ocupadas e, se fossem, os ocupantes seriam reprimidos à bala.

    Meu ex-marido, fotógrafo amador, ganhava a vida fotografando casamentos, batizados, aniversários e muitos mortos por assassinatos. Os assassinatos por encomenda, se o mandante morar longe, é necessário que o executor apresente uma prova de que o trabalho foi feito. Certa vez, um taxista o chamou para fotografar um morto que havia acabado de ser assassinado. Quando entrou no carro para retornar para casa, o motorista³ puxou o revólver, encostou-o na perna do fotógrafo e disse sorrindo: Olha aí, ainda está quente!.

    De outra feita, para fotografar um despejo de pequenos posseiros a pedido do secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, teve de esconder a máquina fotográfica para que ninguém percebesse, ante o risco de ter seu instrumento de trabalho confiscado pelos capangas dos fazendeiros. O secretário do sindicato, Valdério dos Santos, ainda pediu que ele fosse de bicicleta para não despertar atenção, visto que os posseiros estavam sendo vigiados pela polícia, pelos capangas dos fazendeiros envolvidos na questão e proibidos de ter contato com qualquer pessoa. Outra vez, ao fotografar um despejo de trabalhadores rurais realizado pela polícia e capangas de um fazendeiro, os policiais ameaçaram-no de morte e tomaram o filme de sua máquina.

    Além do mais, quase toda semana meu marido era requisitado pelo sargento de polícia para fotografar corpos de trabalhadores rurais mortos nas áreas de conflitos. Parte do trabalho da polícia no município era recolher corpos de trabalhadores rurais nas fazendas e levá-los ao necrotério do hospital público. O necrotério se resumia a uma pequena sala com uma mesa de cimento no centro. Ali, naquele lugar inóspito, os corpos ficavam expostos para visitação pública. Eram muitos os assassinatos, não apenas por disputa de terra, mas, também, por disputa de garimpos e de madeira; porém, as mortes pela posse da terra ocorriam em maior número. Os trabalhadores rurais e posseiros eram considerados invasores de terra, por isso tinham que morrer; comentários dessa natureza eram recorrentes. Alguns corpos eram recolhidos pelas famílias, todavia, a maioria era enterrada como indigente; de modo geral, eram homens que haviam migrado de outros estados sem a família, vindos principalmente do Nordeste.

    Em algumas áreas, a polícia se recusava a buscar os corpos, ora por medo, ora porque não dava importância. Isso se deu no caso do posseiro Belchior Bringel, assassinado pelo fazendeiro Valter Valente em março de 1983, com 144 tiros, enquanto colhia arroz em sua pequena roça. Nesse caso, o assassinato ocorreu por volta de uma hora da tarde e a polícia só foi buscar o corpo no dia seguinte.

    A percepção que se tinha era que trabalhadores rurais nada valiam para o poder público local. Para a polícia, eram bandidos, desordeiros, vagabundos que invadiam a terra alheia. Esta concepção era compartilhada por parte da população local. Tinham que morrer!, diziam alguns policiais. Qualquer pessoa que porventura questionasse ou criticasse as ações da polícia e dos fazendeiros, passava a ser vista como subversiva, comunista, por isso muitos servidores públicos foram exonerados dos cargos. Quando demonstrava simpatia à luta dos trabalhadores rurais, passavam a ser perseguidos pelo prefeito municipal, na época, Adilson Laranjeiras.

    Em 2002, quando fiz a pesquisa de campo para minha dissertação de mestrado⁵, ouvi muitas histórias de pequenos produtores de leite do município de Rio Maria, onde morava João Canuto. Alguns deles haviam sido seus companheiros no sindicato. Esses camponeses faziam questão de contar a história de ocupação, resistência e aquisição da terra. Durante a conversa, surgiam palavras como justiça, morosidade, impunidade, conflito, violência, resistência ou, simplesmente, afirmações como esta: isso aqui era uma guerra, não tinha lei. Outros diziam ter adquirido o lote quando a terra já estava mansa, mas não tinham documento algum.⁶

    Assim, quando comecei a esboçar este trabalho, em 2005, para concorrer a uma bolsa de doutorado da Fundação Ford, ele tinha outra direção. O objetivo inicial era estudar as ações da justiça e do direito: polícias, juízes de direito, promotores de justiça, Secretaria de Segurança Pública, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos no sul e no sudeste do Pará. Era notório que a prática desses agentes, na maioria das vezes, era definida por afinidades pessoais, políticas e econômicas, e não pela observância das leis.

    Isso, porém, não estava claro no projeto. Em nenhum momento eu me referia a estas instituições ou às ações de seus agentes. Era um projeto tão amplo quanto a minha indignação. Eu falava de justiça e direito apenas nos debates e rodas de conversas. Toda a minha discussão teórica girava em torno da violência, questão agrária, ações dos fazendeiros e políticos, disputas por terra, sem, contudo, ter um eixo definido.

    Eu queria trazer para o debate a aplicação da lei pelos agentes da justiça, do direito, que atuam no sul do Pará, em relação aos crimes agrários. Esse interesse se justificava em razão dos constantes conflitos seguidos de violência no eixo Marabá-Conceição do Araguaia. O enfretamento entre fazendeiros, grileiros de grandes áreas, trabalhadores sem-terra, antigos posseiros, empresas agropecuárias e madeireiras era recorrente e, além disso, pouco se ouvia falar em inquérito, processo ou julgamento. Além do mais, havia a disputa por garimpo de ouro que, na época, fermentava os mecanismos de violência e, também, a violação dos direitos humanos.

    O que mais chamava a atenção era o fato de que, quando ocorria um crime, várias pessoas comentavam as decisões que haviam sido tomadas pela polícia; sabiam, por exemplo, até a quantia de dinheiro que os agentes haviam recebido. Isso fazia com que os infratores ou criminosos não respondessem a processos judiciais. A prática da violência e eliminação era rotineira e, na maioria das vezes, retratada de maneira irônica e debochada, normalmente com uma justificativa. A vítima era a culpada. Ser violento é uma forma de se impor socialmente. Alguns fazendeiros até hoje ainda são temidos pelas ações violentas praticadas contra peões e trabalhadores rurais.

    É, de fato, uma região muito violenta. E na minha imaginação sociológica, tais práticas têm a conivência do poder público. O título do trabalho era sugestivo: A institucionalização e naturalização da violência agrária na Amazônia. No meu entendimento, as ações desses agentes da justiça e do direito eram, e ainda são, responsáveis por grande parte da violência instituída, uma vez que são poucos os crimes investigados, pois até mesmo aqueles praticados contra a vida ficam no rol dos não sabidos, sem solução. Assassinatos de trabalhadores rurais e posseiros, na maioria dos casos, não são investigados, como, também, mandantes e executores não são punidos. Mesmo quando denunciados e julgados, se condenados, permanecem em liberdade ou têm fugas facilitadas nos presídios. Outros usam os artifícios da lei para mantê-los em liberdade, como no caso do massacre de Carajás, na curva do S, em 1997, e dos mandantes do assassinato da Irmã Dorothy em 2005.

    Além do mais, não se aplica nenhum mecanismo de coerção para conter os ânimos daqueles que optam pela violação dos direitos humanos. O exercício da violência pura e simples contra os trabalhadores rurais e posseiros é banalizado e pouca importância tem para os agentes da justiça e do direito, responsáveis pela aplicação da lei nesta região.

    Essa luta desigual pela posse da terra só veio a ter maior visibilidade política e social quando a sociedade começou a se organizar em associações de bairros, entrando em cena os movimentos populares: Sindicatos de Trabalhadores Rurais; Comissão Pastoral da Terra (CPT); representantes de partidos políticos, destacando-se, nesse contexto, o Partido Comunista do Brasil (PC do B), o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e, posteriormente, o Partido dos Trabalhadores (PT). Outra referência nesta luta foi o Comitê Rio Maria, fundado pelo Pe. Ricardo Rezende Figueira, em 1991, e assessorado pelo advogado Frei Henri des Roziers. Esses, por meio de relações de amizade com outros defensores dos direitos humanos do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e outros estados, conseguiram chamar a atenção da mídia brasileira e, também, de outros países para a situação dos trabalhadores rurais e posseiros daquelas regiões, que se encontravam à margem da justiça e do direito.

    O apoio aos trabalhadores e as denúncias de Pe. Ricardo Rezende Figueira⁸ e Frei Henri des Roziers⁹, despertaram a hostilidade dos latifundiários e políticos locais. Esses religiosos passaram a ser vistos com desconfiança por grande parte dos fazendeiros católicos que os acusavam de comunistas. Durante sua permanência na região, Pe. Ricardo Rezende Figueira foi hostilizado por seus opositores, por meio da imprensa regional, e ameaçado de morte; o mesmo ocorreu com Frei Henri ao assumir a assessoria jurídica da CPT, no início dos anos 1990. Seu nome ainda consta na lista dos marcados para morrer¹⁰ e tem sofrido ataques morais por parte de delegados, juízes e do Sindicato dos Produtores Rurais de Redenção. Na etapa da pesquisa de campo para a produção desta tese, Frei Henri contava com segurança permanente do Estado em virtude de ameaças recentes.

    Esta tese só ganhou uma direção definitiva depois de haver cursado todas as disciplinas, participado de vários seminários, realizado boa parte da pesquisa de campo e, também, depois de contar com muita orientação. Foi um longo período de construção, desconstrução e reconstrução, compartilhado não apenas com minha orientadora, professora Regina Bruno, mas, também, com outros(as) professores(as) e colegas de turma que muito contribuíram para a desconstrução de uma concepção que estava arraigada em mim, intrinsecamente, apenas pelo desejo de justiça, e não pela razão.

    Todo esse contexto violento estava internalizado, não sabendo como e nem por onde começar para dar-lhe um tratamento científico. No decorrer do curso, aos poucos, as ideias foram se organizando. Além do acompanhamento, das discussões constantes com minha orientadora, dos almoços em sua residência regados a sobremesa teórica, contei, também, com as indicações, sugestões bibliográficas dos(as) professores(as) Ricardo Resende Figueira (UFRJ), Adonia Prado (UFRJ) e Leonilde Medeiros (UFRRJ/CPDA). As disciplinas que cursei com esta última – Sociologia Política e Movimentos Sociais: luta política, direito e Lei – foram fundamentais para o delineamento desta tese, pois, além das discussões teóricas em sala de aula, pude contar com a preciosidade dos debates sobre lei, direito e justiça que os(as) colegas de turma, advogados(as) Mariana Trotta, Emmanoel Ogury e Fernanda Vieira, proporcionaram-nos. Esses debates, além de contribuir para a escolha teórica, também contribuíram para a compreensão dos próprios conceitos de justiça e direito no contexto social.

    Depois dessa longa trajetória, das observações da banca de qualificação, optei por uma análise sobre questão agrária, violência no campo, morosidade, impunidade, cumplicidade dos agentes da justiça e do direito, relacionados aos assassinatos no campo, tendo como objeto empírico o assassinato por encomenda do líder sindical João Canuto de Oliveira, conhecido nacionalmente como Caso Canuto. Esse assassinato teve grande repercussão nacional, internacional, causando grande comoção entre os camponeses da região.

    Como militante dos direitos humanos, o esforço foi sobre-humano para tratá-los com imparcialidade. O distanciamento era necessário para compreender que existiam, neste processo, diferentes forças que se enfrentavam nos campos político, econômico e jurídico. Não era uma brincadeira de mocinhos e bandidos. Era uma luta política e ideológica que revelava forças antagônicas, alinhadas com as discussões políticas da época.

    Notas

    3. O motorista do táxi mencionado foi o mesmo acusado de agenciar o crime de João Canuto de Oliveira. O fotógrafo desconfia que o taxista mandava fotografar os mortos para provar ao mandante que havia feito o serviço encomendado.

    4. Depoimento de Adélia Bringel à Delegacia de Polícia, em 1991, quando da abertura do inquérito policial para apurar a morte do trabalhador.

    5. Pesquisa realizada pela autora para dissertação de mestrado defendida em 2003. Atualmente, a área que abrange o município de Rio Maria tem 18 assentamentos, nenhum deles feito pelo Incra. As terras foram ocupadas, anos depois revendidas, e só em 1996 é que aquele órgão começou fazer a regularização. Em 2002, durante a pesquisa de campo, constatou-se que menos da metade dos pequenos produtores pesquisados ainda não tinha a Relação de Benefício (RB), documento expedido pelo Incra para que o camponês tenha acesso aos financiamentos.

    6. Informações obtidas por meio de conversas informais com camponeses que ocuparam terras no início de 1980 e resistiram até que elas fossem legalizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

    7. Irmã Dorothy Stang foi assassinada em 12 de fevereiro de 2005, na cidade de Anapu, oeste do Pará, por um indivíduo de pré-nome Raifranso, encomenda do fazendeiro Valtomiro Bastos e outros.

    8. Padre Ricardo Rezende Figueira atuou como agente da CPT Araguaia/Tocantins e foi pároco de Rio Maria no período de 1986 a 1996.

    9. Frei Henri des Roziers faleceu em 26 de novembro de 2107, na mesma Paris onde nascera 87 anos antes. Advogado de formação e dominicano por vocação, tornou-se um dos maiores defensores dos direitos dos trabalhadores rurais e do campo. Disponível em: . Acesso em: 04 dez. 2017.

    10. A cabeça de Frei Henri des Roziers vale R$100 mil na região, o dobro do que os fazendeiros pagaram, em 2005, para matar a missionária Dorothy Stang. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2012.

    INTRODUÇÃO

    Uma das características da sociedade brasileira tem sido a concentração da propriedade fundiária, que constitui a base do poder dos grandes proprietários de terra e empresários rurais. Tal característica consiste em uma das principais razões da violência, da desigualdade social, da exclusão de camponeses e trabalhadores rurais sem-terra. Concentração e monopólio estão na origem da questão agrária e de seus desdobramentos sociais, políticos, econômicos e institucionais.

    Para José de Souza Martins (1999, p. 12),

    [...] a propriedade latifundista da terra no, Brasil se propõe como sólida base de uma orientação social e política que freia, firmemente, as possibilidades de transformação social profunda e de democratização do País.

    Para esse autor, é errado supor que questão fundiária esteja deslocada do conjunto dos processos sociais, históricos de que é mediação, para que no fragmento de um isolamento postiço seja analisada como mero problema social, circunscrito algumas regiões do país, alguns grupos sociais. A questão agrária envolve todos e tudo. O autor ressalta que:

    A propriedade da terra é o centro histórico de um sistema político persistente. Associado ao capital moderno deu a esse sistema político uma força renovada, que bloqueia tanto a constituição da verdadeira sociedade civil quanto da cidadania de seus membros. A sociedade civil não é senão o esboço num sistema político em que, de muitos modos, a sociedade está dominada pelo Estado e foi transformada em instrumento do Estado. E Estado baseado em relações políticas extremamente atrasadas, como as do clientelismo e da dominação tradicional de base patrimonial, do oligarquismo. No Brasil o atraso é instrumento de poder (Martins, 1999, p. 13).

    Entende-se que o problema agrário brasileiro constituído, ainda está inserido numa teia de relações em que grupos, historicamente conservadores, expandem-se por todo o país difundindo suas práticas de mando e sujeição.

    Martins (1999) chama a atenção para uma sociedade civil bloqueada, em grande medida dominada pelo Estado e que atua segundo a sua lógica. Um Estado fortemente atrelado a concepções tradicionais, patrimonialistas e clientelistas. Isso tem dificultado a realização de transformações sociais e políticas mais profundas na superestrutura da sociedade brasileira, como, por exemplo, democratização da propriedade da terra – motivo que gerou disputa e violência no campo.

    Lutar pela terra tornou-se um processo conflitante que desencadeou outras configurações sociais tanto por parte dos possuidores, quanto dos despossuídos. As disputas engendraram formas de resistência, enfrentamento e luta por direitos; contribuíram para a formação de lideranças, consciência da injustiça social provocada pela concentração monopólio da terra. Nesse contexto, emergiram muitas lideranças sindicais e políticas, constituindo-se em representantes, mediadores entre camponeses e poder público. Aqueles que adquiriam maior visibilidade social, coragem para o enfrentamento das lutas tornavam-se alvo da violência extremada, tanto moral, quanto física, exercida por muitos fazendeiros, grileiros de grandes áreas e, também, pelo poder público para conter o avanço da luta.

    Inserido nesse processo de enfrentamento, concentração e monopólio da terra (nas décadas de 1970 e 1980, na região amazônica), estava o

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