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Diante da morte na ficção: a salvação e a queda em Grande sertão: veredas e O risco do bordado
Diante da morte na ficção: a salvação e a queda em Grande sertão: veredas e O risco do bordado
Diante da morte na ficção: a salvação e a queda em Grande sertão: veredas e O risco do bordado
E-book282 páginas4 horas

Diante da morte na ficção: a salvação e a queda em Grande sertão: veredas e O risco do bordado

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Sobre este e-book

Na narrativa ficcional, a salvação e a queda estão relacionadas à morte, tanto como tema, da vida de um indivíduo que chega ao fim, quanto estrutura, já que toda narrativa, para que tenha sentido, precisa de um fim. Neste livro, Carlos Palacios parte de uma análise da "pulsão de morte" de Freud para chegar à teoria da narrativa de Peter Brooks em torno da relação entre ficção e morte, buscando amparo em teóricos como György Lukács, Walter Benjamin, Maurice Blanchot, Octavio Paz, Northrop Frye, entre outros, e com referências a diferentes obras literárias. A partir daí, o autor realiza um estudo comparativo entre Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e O risco do bordado, de Autran Dourado, por meio do seguinte caminho: a queda primordial do protagonista que sai de casa rumo ao aprendizado; a morte do pai e seus múltiplos sentidos; a experiência frustrante com o amor; o pacto necessário para se manter viva a narrativa; e, por último, o acontecimento final nos dois romances, a morte de Diadorim, em Grande sertão: veredas, e a morte de Xambá, em O risco do bordado, cada uma com seu significado próprio e intimamente relacionado à salvação e à queda.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de mar. de 2022
ISBN9786525227504
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    Diante da morte na ficção - Carlos Palacios

    1. INTRODUÇÃO

    O tema da salvação e da queda está invariavelmente associado às limitações da condição humana. Só cai ou se salva aquilo que é imperfeito, que se encontra sob alguma ameaça. Na literatura, em forma de metáfora, a salvação e a queda se materializarão nas ações das personagens e nas relações que estabelecem entre si diante da finitude da vida, na capacidade ou incapacidade de levarem a cabo algum papel que elas mesmas determinaram ou que foi determinado para si. Ao mesmo tempo, as duas metáforas estarão presentes na própria estrutura da narrativa ficcional, que também é dotada de limitações enquanto representação da realidade, bem como precisará, em algum momento, tal qual o curso de nossas vidas, desembocar em seu ato final.

    Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e O risco do bordado, de Autran Dourado, são romances capazes de gerar uma rica discussão em torno desse tema. Em primeiro lugar, ambas as obras têm no centro de sua narrativa protagonistas um tanto desajustados, que buscam de alguma forma encontrar um lugar no mundo, em suma, se salvarem em meio às adversidades da vida. Em segundo lugar, o sucesso ou não da empreitada de cada um – salvar-se ou cair – se associará diretamente à imagem final do romance, que de um lado se mostrará sólida e aparentemente livre de algumas ambiguidades, enquanto do outro, restará o vazio daquilo que fora arruinado. Portanto, tem-se em Grande sertão: veredas uma narrativa que conseguiu vencer suas intempéries e conciliar as forças antagônicas que agem em torno de si; em O risco do bordado, uma luta cega para resgatar aquilo que já se encontra perdido, uma derrota que se avizinhava desde o início.

    Se já estamos adiantando que uma narrativa termina como salvação e a outra como queda, o que verdadeiramente importa é o significado de cada uma nos dois romances e o caminho percorrido para atingi-las. As duas metáforas não fazem parte só do final, mas estão presentes em todo o curso da narrativa, sendo apropriadas e subvertidas de modos e com propósitos sempre particulares; da mesma maneira, a forma como se concretizarão ao fim do romance, tanto em Rosa quanto em Autran, será igualmente única.

    A fim de que a análise siga um caminho coerente e possamos realizar comparações bem-sucedidas, partimos de um apanhado teórico geral para, depois, percorrermos uma trajetória comum a ambos os romances, que englobará todos os capítulos de O risco do bordado e cenas-chaves de Grande sertão: veredas. Sendo assim, iniciamos uma discussão sobre a relação da ficção com a morte para chegar às metáforas da salvação e da queda, com menções a diferentes obras literárias. Depois, aprofundamos esse debate por meio especificamente dos romances de Autran e Rosa, compreendendo as seguintes etapas: a saída de casa a partir da queda do pai e os reencontros com as múltiplas figuras paternas que fazem parte da vida dos protagonistas; o contato com as leis do amor e do desejo sexual; a necessidade de se firmar um acordo entre forças antagônicas para que a narrativa mantenha-se viva, representado principalmente pelo pacto de Riobaldo nas Veredas-Mortas; e, por fim, as duas mortes que acometem as cenas finais dos dois romances, a de Diadorim e a de Xambá, relacionadas respectivamente à salvação e à queda.

    Como se pode ver, embora as metáforas bíblicas estejam no cerne de nosso debate, não há interesse em desenvolver algum tipo de discussão teológica. Por isso, é sempre importante ressaltar que a questão religiosa não será objeto de estudo aprofundado, empreitada que estaria inclusive longe de minhas capacidades. Por sempre ter me considerado ateu – e continuar com essa mesma convicção –, religião não é um assunto que chegou a ocupar posição de destaque em minha vida, enquanto no âmbito desta pesquisa, tampouco foi objeto de estudo aprofundado. Afinal, salvação e queda surgem neste trabalho a partir de uma inspiração acerca da condição humana retratada nas narrativas do Antigo Testamento e do Novo Testamento, mas cuja base pertence essencialmente à literatura. Logo, não se trata de trabalhar a religiosidade nos dois romances, o que seria até possível, já que ambos abordam a questão religiosa – Autran, ao destacar o lado mais repressor e resgatar os velhos mitos por meio de personagens incapazes de perpetuá-los, a partir da tradição católica de Minas Gerais, e Rosa, por outro caminho, ao apresentar uma visão mais democrática e sincretista, alçando o indivíduo a uma posição menos passiva em relação aos dogmas religiosos. Inclusive, a análise da religiosidade nesse segundo caso já foi feita de forma bastante ampla por Francis Utéza (1994) e de modo mais pontual em outras obras do escritor por Walnice Galvão (2008). Essas são, contudo, empreitadas que se distanciam deste trabalho.

    Também importa dizer que não há intenção de definir duas espécies de fórmulas narrativas que abarcariam toda a literatura. Defenderemos que salvação e queda são duas metáforas presentes em ambos os romances selecionados, valiosas para a estrutura de suas narrativas e que encontram ressonâncias em diversas outras ficções. Além disso, acreditamos que trabalhar o famoso romance de Guimarães Rosa de um ponto de vista comparativo como este traz um diferencial, já que se trata de uma obra que costuma figurar mais em análises monográficas sem que seja traçada uma correspondência tão ampla como a que propomos aqui, estabelecida do início ao fim com o romance de Autran. E embora não seja raro encontrar trabalhos que tratem da essência dessas duas metáforas em análises a respeito de Rosa ou de Autran, mesmo que não relacionadas diretamente aos termos salvação e queda, na maioria dos casos costumam ser abordadas apenas na superfície do romance, funcionando mais como metáforas para a construção de sentidos da trama da obra. A ideia de que as narrativas ficcionais de Grande sertão e de O risco do bordado articulam-se justamente por meio da salvação e da queda, que não só as personagens se salvam ou caem, mas também a própria estrutura da narrativa, talvez faça com que esta pesquisa se diferencie de outras já desenvolvidas.

    Se abandonamos a perspectiva religiosa para a análise proposta, por outro lado, a Bíblia como literatura terá função importante em diversos momentos, com destaque aos livros de Gênesis, , Apocalipse e os Evangelhos do Novo Testamento¹. Outras obras de Autran Dourado e Guimarães Rosa, junto às duas selecionadas, também serão citadas ao longo do trabalho, além de ficções de demais autores que consideramos relevantes, como Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, devido à importância do romance de formação para a discussão do livro; Moby Dick, de Herman Melville, sobre o tema da missão e da conquista impossíveis; Madame Bovary, de Gustave Flaubert, principalmente por conta da já famosa questão do bovarismo de fracassar-se ao tentar se realizar por meio da vida dos outros; a tragédia de Édipo Rei, de Sófocles, como uma das grandes narrativas de queda fora da Bíblia; e diversas outras.

    Em seu livro Uma poética do romance, Autran Dourado faz referência a comparações entre a sua escrita e a de Guimarães Rosa por parte de alguns críticos, as quais se concentram mais no cenário do interior de Minas Gerais, onde as narrativas de ambos costumam realizar-se. Autran chega a demonstrar incômodo com tal paralelo: Se não reconheço no meu estilo, a não ser no que nos é subterraneamente comum, marcas de Guimarães Rosa, muito menos vejo na sua temática, que se distancia da minha ao infinito, a sua presença terrível. (Dourado, 2000, p. 56). A rejeição do escritor torna o trabalho ainda mais instigante e interessante: o conflito entre duas formas costuma render conteúdos mais ricos do que uma aproximação que parece encaixar-se perfeitamente. E se a literatura, na maior parte das vezes, estrutura-se por meio do conflito, talvez a sua análise também deva pautar-se por um caminho semelhante.


    1 Para os livros do Novo Testamento, foi escolhida a versão traduzida do grego para o português por Frederico Lourenço. Quanto ao Antigo, foi tomada a antiga e famosa tradução dos textos originais de João Ferreira de Almeida.

    2. VELHOS CAMINHOS PARA UM MESMO FIM?

    O gosto apaixonado de Gus em repetir as piadas havia levado Sabbath, tempos atrás, a entender que eram elas que davam unidade à visão de mundo de Gus, que só elas correspondiam à sua necessidade espiritual de uma narrativa esclarecedora, graças à qual era capaz de encarar um dia depois do outro trabalhando na bomba de gasolina. (O teatro de Sabbath, Philip Roth)

    2.1.

    FICÇÃO, REPETIÇÃO E MORTE

    Não é novidade o nosso apreço pelo ato de contar estórias. Também não é novo o fato de que muito mais que criando estórias, estamos recontando outras mais antigas, seja literalmente ou por meio de novas imagens e tramas. Não é raro, quando lemos ou assistimos a uma ficção, identificarmos em seu resumo um esquema de ações que remete a alguma narrativa antiga. E tal característica não estaria reservada apenas às narrativas recentes, pois mesmo retrocedendo ao passado essa percepção se manteria até o momento em que chegássemos à mais antiga de todas as estórias – destino que sabemos ser inatingível.

    Há um tempo revi, por acaso, Um corpo que cai, filme de Alfred Hitchcock lançado em 1958. Desta vez notei algo que até então havia passado despercebido, a extrema semelhança da estória do filme com o Orfeu e Eurídice de Ovídio: um homem que perde o seu objeto de desejo e recebe uma segunda chance de possuí-lo, até que, próximo de atingir seu objetivo, deixa-o novamente escapar de suas mãos, restando apenas para si a experiência do vazio. É interessante repararmos, nesse breve resumo, como é forte a ideia de repetição: em ambas as narrativas os protagonistas, o músico Orfeu e o policial Scott, repetem um mesmo trauma, que é a perda daquilo que se deseja; além disso, teríamos também, ao tomar os dois casos, um mesmo modelo de estória sendo repetido.

    Tanto Orfeu quanto Scott experimentam aquilo que Chris Marker (1994) tão bem definiu como a maior alegria que um indivíduo pode imaginar: uma segunda vida, em troca da maior tragédia: uma segunda morte. E nós, leitores e espectadores, não estaríamos também experimentando repetições semelhantes? Não apenas com essas narrativas, mas em qualquer outra ficção ocorreria também uma repetição de ações, imagens, metáforas e significados que já existiram em algum outro lugar – em alguma outra estória, experiência, pensamento – e foram atualizadas no instante em que as recebemos e deciframos. Toda narrativa, seja ficcional ou não, seja realista, fantástica, experimental, precisará referir-se de alguma forma a elementos relacionados ao nosso mundo e, a partir dos mesmos, produzir algum significado. Como diz Luiz Costa Lima, "referindo-se ao que passou, a narrativa aponta para o tempo originário da matéria do relato. Interpretativa do que passou, inscreve-o em um tempo que não é outro senão o de sua própria organização narrativa" (Lima, 1991, p. 144).

    A narrativa ficcional repete uma cadeia de elementos que, atualizados em um outro tempo, receberão novos sentidos. Repete porque esses elementos já existiam: não foi Melville quem inventou a imagem do indivíduo obsedado e louco por uma vingança que é muito maior do que ele próprio – outros Ahabs, alguns de carne e osso, já habitaram este mundo anteriormente ao de Moby Dick. Nathalia Wrigh (1940) chegou a traçar semelhanças entre a personagem de Melville e o Rei Ahab do Antigo Testamento, mas não precisaríamos ir tão longe para encontrar algum paralelo. Pouco antes de Moby Dick, Victor Frankenstein, nos momentos finais do romance mais famoso de Mary Shelley, já iniciava uma perseguição malfadada àquilo que considerava o Mal absoluto, que ele próprio criou e cuja força também era totalmente desproporcional à sua.

    Que Melville inspirou-se diretamente na Bíblia para escrever seu romance, isto é evidente, mas não saberíamos dizer se chegou a conhecer o romance de Shelley. A questão é que isso tampouco importa, pois nosso raciocínio aqui – um tanto óbvio, inclusive – é apenas que os elementos de um texto ficcional, como a loucura e a vingança de Ahab e Frankenstein, assim como a busca fracassada pelo objeto de desejo de Scott e Orfeu, não são inventados por nenhuma literatura. Eles existem nas nossas vidas, no nosso cotidiano, fazem parte da história da humanidade e estarão sempre presentes na literatura e em qualquer outra forma de arte, como se transitassem incessantemente de um lugar ao outro. Northrop Frye dizia que o Aquiles de Homero não era o retrato de um herói individual, mas a força ardente do desejo, da frustração e do descontentamento humanos, algo presente em cada um de nós, parte da humanidade inteira (Frye, 2017, p. 56). Afinal, se fossem apenas características restritas a uma única personagem, que interesse teríamos em conhecer a sua estória?

    Mas mesmo que nada seja essencialmente novo, que compartilhemos os mesmos sentimentos em cenas que sempre remetem a outras anteriores, de dentro e de fora do universo ficcional, essa repetição não é um simples retorno ou mera referência, mas interpretativa, atualizadora, recriadora: Frankenstein e Ahab, seja o de Israel ou o de Nantucket, o Scott de Hitchcock e o Orfeu de Ovídio são todos únicos e irrepetíveis. Como já nos disse Octavio Paz (1979), mesmo sabendo que certos termos constituem a comum preocupação de todos os homens e mulheres de todas as sociedades, não podemos reduzir seus significados a um padrão unívoco. É preciso compreender que não estamos nos deparando propriamente com uma diversidade de realidades mas com uma pluralidade de significados (Paz, 1979, p. 40). Na ficção, as realidades podem ser limitadas, mas não os sentidos extraídos. A experiência ficcional se dá um pouco como a que Orfeu e Scott vivenciaram respectivamente com Eurídice e Madeleine/Judy: ocorre em outro plano, fora do campo do real, fruto de um espaço-tempo único e particular, por isso condicionadas a infinitas significações e ressignificações. Quando Orfeu deixa sua mulher escapar de suas mãos na fuga do Hades, ou quando Scott presencia sua amada caindo novamente da mesma torre, ambas as cenas trazem um sentido que anteriormente não existia. Como no Quixote de Pierre Menard², a repetição sempre carrega algo novo, nunca um simples retorno do mesmo.

    Dissemos que nossa experiência com a ficção é sempre um pouco como aquilo que Orfeu e Scott conquistaram em suas buscas frustradas: um prazer incompleto, por se tratar justamente de um evento fora do campo do real, ou seja, irrealizável, fruto de experiências impossíveis. Ambas as personagens vivem um amor impossível, mas que parece ser o único objetivo, a única empreitada que faz algum sentido em toda a narrativa, a ação que precisa ser levada a cabo e que é o motor de toda a estória. Como o Satã de Milton, consciente da iminência da derrota – Vain war with heaven – e de experimentar outra queda, mas que sabe não haver alternativa a não ser seguir adiante. René Girard sintetizou essa questão com uma bela metáfora ao falar do herói de Stendhal, cuja vida giraria em torno de uma busca que o levaria a uma pedra pesada demais para ser levantada: é nessa pedra que vai investir toda a esperança, é junto dela que vai desperdiçar as forças que lhe restam (Girard, 2009, p. 205). A experiência ficcional, que se insere naquilo que é irrealizável, não nos levaria a um caminho semelhante, não nos faria abraçar alegrias e dores que ao fim nos escapariam das mãos como o gás de um balão que estoura (Girard, 2009, p. 114), pois desde sempre nunca houve nada de fato em nosso poder?

    Se formos concordar, então ao fim da trajetória tudo aquilo de nada valeu? Satã luta uma guerra desigual com Deus, mas planta a semente da desobediência em Eva. Não só em Milton e na cultura cristã, mas em diversos outros momentos da literatura – como em Goethe, Mann, Rosa –, o Diabo só consegue algum êxito pela via do humano. As ações e os fracassos se repetem, mas o indivíduo é aquele que está sempre apto a se transformar: se Deus não pode ser derrotado, pode ao menos ser desobedecido – e a desobediência é metáfora para as infinitas metamorfoses às quais estamos sujeitos, como Riobaldo em suas travessias de menino a professor, de Tatarana a Urutu-Branco, e as transformações de João e do mundo ao seu redor nas passagens de menino a adolescente e a adulto. Deve-se entender que, na literatura, o irrealizável é diferente do nulo, pois ao fim de um romance nossas mãos podem continuar de fato vazias, mas não somos mais os mesmos do início. Não porque necessariamente alguma estória impactante nos transformou, ou porque uma valiosa mensagem mudou nossa forma de pensar, mas porque pudemos experimentar o irrealizável. Para Maurice Blanchot, entrar no mundo do ficcional é entrar em uma realidade que nos é dada depois de ter sido arruinada; é a vida que só pode ser gozada após a morte (Blanchot, 2011, p. 325). No ficcional adentramos o impossível pois partimos de uma experiência irrealizável, que é a morte. Essa é uma questão crucial para todo o nosso debate e que guardará uma relação especial com a ideia de repetição. Sem morte e sem repetição não seria possível o ato da criação narrativa, mas para entendermos isso melhor será necessário realizarmos algumas digressões.

    No campo político, tem sido bastante citada a famosa frase de Marx na abertura do 18 de brumário de Luís Bonaparte, que seria uma referência a Hegel, que todos os grandes fatos e personagens da história foram encenados duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Similarmente, Euclides nos diz em Os sertões que A história repete-se, bem no momento de introduzir a figura de Antônio Conselheiro, buscando paralelos da insanidade religiosa que o profeta de Canudos representava a partir de uma regressão a exemplos desde a antiguidade, que inclusive ultrapassariam o número estipulado por Marx. Mas é bem possível que Marx pretendesse ser mais poético que assertivo com a afirmação, pois além de observamos ao longo da história uma cadeia de repetições muito maiores, é questionável a separação precisa entre tragédia e farsa, sendo que em certos casos ambas poderiam estar concorrendo juntas ou a primeira até dependendo da segunda para ser concretizada.

    Em The myths we live by, de um ponto de vista mais ficcional que histórico, Mary Midgley (2004) ocupa-se por algumas páginas do tema da repetição, dos mitos que resistem em nos abandonar ou insistem em retornar, sejam com novas roupagens ou sem grandes disfarces. Um fato que a autora aponta é que grandes questões ou grandes narrativas não podem simplesmente desaparecer enquanto os problemas que as sustentam não forem resolvidos. Afinal, o nazismo foi derrotado em 1945, a escravidão abolida há mais de cem anos, mas os temas continuam a ser revisitados em narrativas atuais, não apenas pelo discurso de jamais esquecer, mas porque questões que permitiram e deram base a essas tragédias, além de suas consequências, ainda persistem nos tempos de hoje.

    Paul Ricoeur (1979) lembra que quando uma estória já é muito conhecida – como os contos populares e os eventos fundadores de alguma comunidade –, as ações que a compõem nos despertam menos interesse que os episódios finais. Isso porque esse fim já estaria implícito lá no início da narrativa, pois neste caso a repetição é só um reforço daquilo que já está tão inserido em nosso imaginário, como aquele leitor que busca uma reportagem só para reforçar suas posições e não precisa ir além do lead ou até mesmo do título – afinal, o interesse não é buscar algo novo, tampouco se surpreender, apenas reviver e reforçar um sentimento que já possui. Mas Ricoeur ressalta – e nesse momento apoiando-se em Heidegger – que a repetição vai além desse reforço do que já existe e significa mais do que as potencialidades ou os dramas mal resolvidos herdados de nosso passado. Repetição relaciona-se diretamente com narrativa, cuja função – ou pelo menos uma das – seria estabilizar a ação humana ao nível da historicidade, ou seja, inseri-la em uma cadeia de repetições (Ricoeur, 1979, p. 28).

    Tal relação entre narrativa e repetição nos força a retroceder um pouco até uma das mais famosas teses de Freud. No início do século passado, em Além do princípio do prazer, Freud (2010) levantou o problema da repetição do trauma, que ocorre não somente em estórias como as de Orfeu e Scott, nos fatos históricos, ou em questões que insistem em voltar à cena do debate. O trauma repete-se no nosso dia a dia, desde o veterano de guerra que revê a imagem da morte em cada canto até aquela lembrança mais simples e trivial, porém inevitável, de nossos fracassos cotidianos. Afinal, questiona Freud, por que retornar à desagradável cena traumática se a vida é guiada pelo princípio do prazer, por uma força que busca diminuir o sofrimento e a excitação de modo a trazer estabilidade ao sujeito? Por que a mente insistiria em relembrar e repetir no presente fatos passados que causam sofrimento e ansiedade? Para Freud, há outros princípios que regem as condutas humanas, sendo um deles o da realidade.

    O princípio da realidade é o primeiro caso que Freud apresenta de inibição do prazer e que terá importância no desenvolvimento de outro famoso ensaio, O mal-estar na civilização. Trata-se de uma espécie de resignação do organismo, ciente de sua incapacidade de garantir de imediato tudo aquilo que deseja: sem abandonar a intenção de obter afinal o prazer, exige e consegue o adiamento da satisfação, a renúncia a várias possibilidades desta e a temporária aceitação do desprazer, num longo rodeio para chegar ao prazer (Freud, 2010, p. 123-124). Aqui, o desprazer seria aceito na condição de, posteriormente, ser convertido em prazer; mas em O mal-estar, Freud (1996) afirma que o princípio do prazer, sob influência das limitações do nosso corpo, do mundo externo e dos relacionamentos decepcionantes com outros indivíduos, transformou-se no mais modesto princípio da realidade, a partir do qual o homem contenta-se simplesmente em ter escapado do sofrimento e da infelicidade (Freud, 1996, p. 85). O indivíduo coloca a cautela acima do gozo e pode, por exemplo, em vez de procurar alguém para realizar-se amorosamente, optar pela reclusão e não correr o risco de decepcionar-se. Assim, a realidade é este local de incompletude, destino dos fracos cautelosos e dos frustrados: já disse o narrador Bertram de Noite na Taverna, de Alvares Azevedo, que tudo o que há de mais divino no homem, de mais santo e perfumado na alma se infunde no lodo da realidade.

    Porém, o princípio da realidade, embora nos dê

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