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Mistérios em tempos de vendavais
Mistérios em tempos de vendavais
Mistérios em tempos de vendavais
E-book384 páginas5 horas

Mistérios em tempos de vendavais

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Sobre este e-book

A vida aventurosa e misteriosa de João Pedro Boaventura é um reflexo no baço espelho da História de um Portugal cinzento, governado por um ditador.
Aos nove e aos catorze anos de idade, vê o pai partir para a Guerra Colonial. Vai ao seu encontro, ficando apaixonado pela beleza das terras e das gentes.
Aos dezasseis anos, sozinho, numa caçada em plena selva africana, por decisão do pai, cumpre o precoce rito de passagem para a vida adulta.
Regressa a África como oficial ranger, e, na formidável floresta tropical do Mayombe-Congo enfrenta tormentos, conflitos espirituais e éticos.
A esperança renasce com a "Revolução dos Cravos", um raio de luz que promete iluminar o futuro dos povos que falam a língua de Camões.
Depois do cessar-fogo, retorna a uma Luanda em polvorosa e insegura, onde confirma que é um homem abençoado.
Na turbulência de vivências limite, no confronto com enigmas visíveis e invisíveis, descobre a essência da vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de fev. de 2023
ISBN9791222078243
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    Pré-visualização do livro

    Mistérios em tempos de vendavais - Joaquim Pires Bento

    Agradecimentos

    Agradeço à vida, aos que amo, aos que me amam e amaram.

    Agradeço a todos com quem me cruzei, com quem aprendi: aos meus pais César Bento e Tereza da Fonseca; aos meus irmãos José Bento e Manuel Bento; aos meus avós Joaquim Vicente, Amélia da Fonseca, António Bento e Delfina Rosa; aos meus filhos Duarte e Dinis; à mãe dos meus filhos Leonor Silva; à restante família; aos amigos que nunca se esquecem.

    De todos os amigos, sinto o particular dever de agradecimento a dois escritores amigos, o Fernando José Rodrigues e a Irene Simões que me empurraram do alto da falésia. Projectado no espaço vazio e inseguro, apenas me restava bater as asas e voar. Do voo que me libertou resultou o que irão ler, espero que com o mesmo prazer de uma viagem inesquecível.

    O Fernando muitas vezes me disse, Tens tantas histórias, que cada uma delas dava para escrever um livro. Algumas foram vividas em momentos tocantes da nossa História Contemporânea. É tua obrigação deixar esses testemunhos aos mais novos, permitir que eles conheçam e sintam as dores físicas, mentais e espirituais suportadas pelos pais e avós.

    Timidamente, comecei por publicar breves histórias nas redes sociais. O Fernando comentou, Gosto muito da tua escrita e da forma poética como o fazes. A Irene, Quando passas isto a livro? Uma noite, antes de uma peça de teatro, encontrei a Irene à porta do Teatro José Lúcio da Silva. Ao despedir-se, abraçou-me e sussurrou, Tens que escrever o livro que tens dentro de ti.

    1

    A águia voa sozinha, os corvos voam em bandos. O tolo necessita de companhia, o sábio necessita de solidão! 

    Friedrich Rückert

    Uma majestática águia Coroada patrulha o seu território de caça, a elevada altitude.    Avalia, curiosa, o movimento de três viaturas Mercedes-Unimog que serpenteiam por picadas penosas, sempre emolduradas pela grandiosa e densa vegetação da floresta tropical húmida do Mayombe-Congo, a segunda maior do planeta.

    A rainha dos céus sabe que aquela massa descomunal de vida vegetal e animal, se assim o desejar, engolirá os profanadores até ao fim dos tempos. São militares do Exército Português.

    Viajam sentados, costas com costas, em bancos de travessas de madeira verde-tropa, a todo o comprimento da caixa, desprovida de qualquer blindagem. A única armadura é a enorme coragem destes homens invulgares.

    O meio ambiente, extraordinariamente biodiverso, é fustigado por ondas de calor e humidade extrema que comprimem os pulmões dos militares dificultando a respiração quando caminham sobrecarregados e sofridos de tanto cansaço. Para homens vindos da Europa é devastador! Suam contínua e abundantemente, em risco de desidratação. São necessárias semanas de adaptação orgânica e psicológica. Para agravar o desconforto, os camuflados são feitos de um tecido inadequado ao clima tropical, colando-se ao corpo como uma desconfortável segunda pele. 

    Como se não fosse suficiente, a floresta reivindica o seu domínio imperial açoitando os corpos dos humanos e das viaturas com os seus longos braços em forma de ramos de árvores e hastes de arbustos. Uma mortífera serpente surucucu larga-se de uma árvore e cai na viatura que abre caminho. Os homens bradem injúrias, levantam-se lestos, impulsionados pela mola do medo ancestral, e pontapeiam-na para fora da caixa. Bandos de macacos saltam de árvore em árvore acompanhando o movimento dos intrusos que invadem o seu território de caça, gritando estridentes insultos e ameaças de morte. Nuvens densas de mosquitos atormentam-nos constantemente a existência, nunca desistindo de sugar-nos a maior quantidade possível do nosso precioso sangue.

    Gotas de suor deslizam pela testa e perturbam o olhar que se quer atento. Os combatentes, rostos fechados, olhos perscrutadores - como quem procura agulha perdida em palheiro - agarram com mãos firmes a G3 pousada sobre as coxas. O dedo indicador sobre o guarda mato, sempre pronto a deslizar para o gatilho. Ao sinal de perigo de morte saltarão da viatura e lutarão pela sua vida e pela dos camaradas.

    Os estóicos jovens não denotam qualquer emoção especial, embora, em alguns, o medo lhes perturbe a mente. Só aparentemente não pensam na morte.

    Suspeito que uma minoria sente a presença do anjo da morte, mas dominam o medo porque acreditam que o seu anjo da guarda os salvará. Não acreditam que quando olharem o arcanjo Azrael(1), olhos nos olhos, se poderão transformar em estátuas de sal, como aconteceu à mulher de Ló(2).

    Outra minoria suspeita que vai morrer como os gladiadores que antecipadamente se sentiam derrotados. Mesmo assim, corajosos, disfarçam como podem o medo que, por vezes, lhes tolhe o raciocínio e os movimentos.

    A maioria só pensa na morte quando a floresta se torna mais impenetrável e os seus habitantes se calam. Sinal de que há mouro na costa.

    O medo só regressa à consciência, agora de todos, quando nos aproximamos das temíveis e míticas curvas da morte, perigosamente situadas em desfiladeiros apertados, locais, por excelência, propícios a emboscadas. As bermas da estrada, pontualmente ensopadas de sangue, estão cobertas por milhares de cartuchos, uns ainda brilhantes, outros já meio comidos pela humidade e pelos raios de Sol, sempre implacáveis. São lugares onde reina um ambiente indecifrável, de tão estranho e misterioso, habitado por almas perdidas que ainda procuram a paz, e por outras entidades diáfanas que apelido de anjos, fantasmas, ninfas e monstros.

    O terror, devastador, aflora na mente de todos ao som das explosões e disparos das armas inimigas. Durante e após os combates tenho dificuldade em descrever os olhares e as atitudes dos soldados, com especial significância quando na presença dos camaradas feridos e mortos. A mim, ocorre-me sempre o mesmo pensamento: Como é possível? Isto está mesmo a acontecer? Então, afundo-me num profundo sentimento de incredibilidade, mas não de desânimo ou falta de liderança. Nesses momentos, quando observo os homens verifico que ficam com o olhar vazio, como se flutuassem em transe - perdidos no tempo e no espaço -, e nem conseguem chorar. Só chorarão, com o cérebro encharcado em álcool, no silêncio e na escuridão da caserna. Sem um soluço, sem um gemido, pois aprenderam com os pais e avós que os homens não choram.

    De madrugada, ao toque do clarim, acordam em sobressalto, exaustos de corpo e alma, e já são outros homens. Deitaram-se como inocentes crisálidas e, durante a noite de pesadelos, acabaram por se metamorfosear em borboletas descoloridas e sem brilho. Asas imprestáveis para o voo. Agora estão meio mortos. Todos morremos um pouco quando parte a alma de um familiar, de um amor, de um amigo, de um camarada.

    ————————

    (1) Anjo da Morte na tradição judaico-cristã. O islâmico Arcanjo da Justiça.

    (2) Segundo o Antigo Testamento, era casada com Ló, sobrinho do patriarca Abraão. Quando fugiam de Gomorra, ao contrário do ordenado pelos dois anjos, desobedeceu, olhou para trás, e transformou-se numa coluna de sal.

    No entanto, nos momentos de folga a maioria destes rapazes, com uma naturalidade deveras curiosa, mergulha no mundo sedutor dos bares que servem cerveja bem fresquinha e onde as mulheres são calorosas e prazenteiras. Parece que não fizeram outra coisa na sua dura vida na agricultura, no pastoreio e nas fábricas cinzentas.

    É assim a incrível natureza destes soldados que, ainda recentemente, desceram, alguns pela primeira vez, das serras transmontanas e beirãs. A rocha granítica, o vento inclemente, a chuva furiosa, o nevoeiro inescrutável, a neve que tudo congela, o Sol cruel dos verões ardentes, e a dureza sensível das gentes das montanhas ajudaram a moldar o carácter destes bravos.

    Como comandante do meu grupo de combate (GC), o trabalho diário consiste em torná-los uma equipa confiante, determinada e vencedora. Torná-los intimidantes. Se o conseguir, o comandante inimigo também fará essa leitura e será menor a probabilidade de dar a temida e mortífera ordem de Fogo!

    Acredito, e tenho de fazê-los acreditar, que é possível passar entre os pingos da chuva sem nos molharmos, assim como entre a metralha incandescente sem sermos mortos. Se acreditarem, genuinamente, que são indestrutíveis, serão indestrutíveis!

    Uma tarefa muito exigente para um jovem oficial ranger, das Operações Especiais, a quem foi atribuída a complexa missão de defender uma parcela do imenso Império Ultramarino Português. A quem foi entregue a responsabilidade de comandar e proteger homens, da mesma idade, alguns pais de crianças que não quero órfãs; de esposas que não quero viúvas; de pais que não quero dilacerados por um sofrimento atroz que lhes destruirá a vida, que levará alguns à loucura, e mesmo à morte quando o desgosto se tornar insuportável.

    Este é o desafio definitivo que tenho de carregar, custe o que custar.

    De muito procurar, só encontrei um amigo - invisível aos olhos - a quem gosto de chamar Deus, o insondável. Elegi-o como o meu privilegiado amparo. Só com Ele posso dialogar sobre as minhas dúvidas e as minhas fraquezas. O mesmo Deus cuja existência questionei a partir da adolescência. Ainda hoje vacilo entre a dúvida e a certeza, dependendo do grau de misticismo que envolve as situações de introspeção e dúvida existencial. A minha sedenta alma sempre na procura da verdade, a minha verdade. Verdade é que encontro a plena paz quando sinto que estou na Sua presença.

    Numa esplêndida e mística noite tropical, pelas três horas da madrugada, deitado sobre a terra cálida, vivi uma epifania, um mistério incrível: um anjo enviado por Deus, invisível, aproximou-se do meu ouvido direito, e num doce sopro, profetizou, Nada temas! Vais conseguir, sempre que acreditares.

    De imediato, adormeci numa tranquilidade absoluta e única. Só acordei no momento em que o Sol despertou para esta parte do planeta e os seus quentes raios acariciaram o meu rosto. Abençoado pela energia do Universo, agradeci a bênção recebida através do Sinal da Cruz.

    O comandante militar, em tempo de guerra, é a pessoa mais solitária que se possa imaginar. Nos sonhos das noites e dias calmos, nos pesadelos das noites e dias de vendavais, tem de vasculhar e encontrar as respostas corretas, as respostas que permitirão salvar ou sacrificar vidas sem assassinar a própria alma. Sem perder a honra. Sem trair os valores sagrados dos antepassados. Sem perder um palmo de terreno. Estarei à altura do cargo? Tenho os conhecimentos e a preparação suficiente para conduzir estes homens à sobrevivência e à vitória? Ensino-lhes o realmente importante? Sou justo na exigência? Não ofendi quando repreendi? Dei a ordem correta? Resolvi bem o problema disciplinar?

    Será que fui bom pedagogo quando me aproximei do Rui, e segredei, Porra, homem! Controlas-te ou tenho de te adormecer com uma coronhada na tromba?

    Tinha caído a noite, já na espera de Morfeu, o deus do sono, junto à fronteira com o Zaire, em pleno território controlado pelos guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que procuravam com ajuda de Azrael o sítio exacto da nossa frágil posição. E ele sem conseguir controlar o riso nervoso. É verdade que resultou, mas a que preço?

    Terei dado a resposta certa quando, passado um mês, o mesmo Rui arranjou coragem para me confrontar, Meu alferes, desculpe, mas estava a falar a sério quando disse que me dava uma coronhada? Fiquei magoado, porque sou um soldado que o respeita. Olhos nos olhos, lendo o que lhe ia na alma, e sem demonstrar no meu olhar qualquer sombra de insegurança, num tom seguro e assertivo, Claro que sim! Se me respeitas, é tua obrigação obedecer de imediato. O exército não é uma democracia, muito menos no campo de batalha. Todos os dias luto para ser um líder justo e competente. Há quanto tempo caminhas e combates ao meu lado? Ainda tens dúvidas? Estamos em guerra, homem! Nunca permitirei que alguém ponha em risco a vida dos meus soldados, nem mesmo um entre vós. Nunca o esqueças! Não voltes a pôr-me à prova! Agora vai à tua vida.

    Por este episódio invulgar, terei ganho um inimigo que me abaterá quando surgir a oportunidade? É pouco provável, pois estou convencido que o Rui não é um cobarde. Se decidir acabar com a minha vida não será à traição. Suponho que não me enviará uma bala na confusão do combate, nem me espetará uma baioneta no baço, na noite escura, quando passo revista aos postos de sentinela.

    Não seria o primeiro oficial a ser abatido pelos próprios homens, na confusão do combate ou na pusilanimidade da traição. Nesta e em todas as guerras. As razões estão inscritas num vasto leque: desde a futilidade; à incompetência no comando; passando pela loucura momentânea, motivada pela cabeça cacimbada(3) de tanto perigo, incomodidade e falta de afetos; por esta vida ao Deus dará.

    De facto, o homem será sempre a pessoa e a sua circunstância.

    Estranhamente, apesar deste inusitado ambiente de meia loucura individual e coletiva, raramente o medo aflora à minha consciência. Não sei se alguma vez perceberei o facto de sentir um certo fascínio pelo estado psicológico e fisiológico desencadeado pelo medo, na mesma medida que me atraía o risco quando, ainda criança, me internava sozinho na floresta, temida até por alguns adultos.

    A atração pelo perigo é uma interessante pulsão. Porém, tenho perfeita consciência que só serei imortal - como as promessas de amor eterno - até chocar de frente com a bala ou o estilhaço com o meu nome gravado; com a doença sem saída; quando me esquecer de respirar, já muito velhinho. Até esse momento, de libertação da alma, tentarei viver sem medo, com dignidade e honra. Assim, nunca a coragem me abandone e os enviados de Deus, invisíveis e visíveis, o permitam.

    ——————-

    (3) Termo que circulava entre as tropas no mato quando alguém se referia a um militar que demonstrava estar perturbado psicologicamente, apresentando comportamentos descompensados.

    2

    Há maior presente que o amor de um gato?

    Charles Dickens

    No início da década de cinquenta do século XX, no ano do Dragão(4), nasce em casa, com ajuda da parteira Sibila - mulher misteriosa, sem idade definida - o primogénito de um jovem casal, ele oficial do exército, ela professora do magistério primário.

    Sibila é a segunda mãe de centenas de crianças, que ajudou a libertar, a resgatar para a nossa dimensão. Tem o corpo e a alma marcados pelo tempo. São visíveis rugas e tatuagens que contam estórias sem fim. Mistérios insondáveis que se adivinham guardados numa caverna inundada de magia, envolta por uma luz inacessível aos simples mortais; enormes e magníficas formações de estalactites e estalagmites da idade dos primeiros seres vivos; cristais descomunais que refletem milhares de cores, que influenciam milhares de vidas; lagoas sem fundo, de uma sobrenatural água cristalina. Que seres misteriosos terão o privilégio de se banharem nas suas águas regeneradoras de energia e vida?

    A velha Sibila é um ser esotérico, deste e de outros tempos. É uma sensitiva que conhece bem segredos só acessíveis a iniciados nos assuntos do supra-sensível e do ultranatural. Uma dimensão não detetável por meios físicos, pois transcende a natureza observável e possível de ser medida. No entanto, não escapa à epistemologia sempre que esta se permite deitar um olhar sobre a metafísica.

    Sibila, desde que me libertou do útero de minha mãe - águas de mares passados - mantém-me prisioneiro nas suas mãos fortes e na sua magia. Ainda coberto de líquido amniótico, segura-me pelas axilas e leva-me até à enorme janela por onde passa a luz do Sol refletida no corpo da Lua - pedaço extraído à Terra por um meteorito de dimensões apocalípticas. Eleva-me no sentido da Lua Cheia e faz a apresentação, Este menino de ouro será batizado em água benta como João Pedro Boaventura. Está escrito nas estrelas que trará muita alegria a quem o saiba amar; terá amigos fiéis; e, em tempos de vendavais terríveis, em lugares longínquos, salvará muitas vidas inocentes.

    (4)  No Zodíaco da Astrologia chinesa, tal como todos os outros, só acontece de doze em doze anos.

    Símbolo de autoconfiança, os regidos por ele estão sempre muito certos de si e sentindo-se sempre prontos para a batalha. Isso traz-lhes um carisma natural, o que garante que muitas pessoas queiram estar próximas dele. São carregados de energia, pois quando traçam um objetivo, usam de toda a sua vitalidade e força para atingi-lo. São honrados. São líderes sólidos sabendo instintivamente o que deve ser feito. Cruzar o caminho do Dragão nunca é uma boa ideia – ele pode soltar fogo! Apesar de toda essa autoridade, o Dragão é sensível. Muito fiel. Não é emocionalmente dependente de ninguém.

    Ainda criança comecei a sentir que era um ser fervilhante de uma energia, por vezes perturbadora, vivendo o dia a dia numa clara dicotomia corpo material/corpo diáfano. Durante muitos anos, estive convencido que todos se sentiam assim. Que todos tinham consciência que tudo o que fizermos interferirá com tudo o que nos rodeia, e vice-versa. Vivo convencido, ao contrário da maioria esmagadora das pessoas, que no Universo o acaso não existe, muito menos a sorte ou o azar. Para mim, o que existe são causas e efeitos. Causas que nos escapam porque não percecionamos, ou não entendemos, os indícios. Depois, atribuímos a responsabilidade à sorte, ao azar, aos santos e ao diabo. Assim, vivemos mais tranquilos, mais fatalistas, menos responsáveis. Vivemos enganados pela ignorância, pela preguiça intelectual, pelo medo da realidade - o resultado da representação mental dos dados fornecidos pelos nossos sentidos, portanto, cada cérebro cria a sua realidade -, e pela praxis irresponsável.

    A casa da família, de um só piso, telha portuguesa, paredes brancas, janelas protegidas por portadas de madeira pintadas de vermelho, coroadas por um coração recortado, situa-se numa enorme Base Militar, em pleno Ribatejo. A Base tem a particularidade de estar limitada a sul pelo rio Tejo, uma fronteira natural, no lugar onde se destaca uma pequena ilha granítica ocupada por um muito antigo guardião, o castelo Templário do Almourol. A ilha e as construções nela erguidas estão envoltas num imaginário de lendas, mistérios e magia, tantos foram os seus ocupantes: lusitanos, romanos, alanos, visigodos, muçulmanos e, por fim, portugueses – os monges cavaleiros, sargentos e pajens da Ordem do Templo, e da sua sucessora, a Ordem de Cristo.

    O jardim e a horta da casa estão virados a norte, a menos de cinquenta metros do arame farpado que protege a Base Aérea nº 3.

    Foi neste agradável e acolhedor espaço que aprendi a gatinhar e a dar os primeiros passos, ensinado pelo enorme gato preto da família.

    O Tareco adora fazer-me companhia, como se fosse essa a sua missão na Terra. Sempre que o tempo permite, ficamos horas sentados ou deitados sobre uma manta estendida no pátio de cimento, à sombra de uma latada revestida a ramos e folhas de videiras que, na época certa, frutificarão em enormes cachos de uvas brancas. Enquanto brinco com os meus objetos preferidos o Tareco observa todos os movimentos, sempre vigilante.

    A mamã costuma ficar sentada numa espreguiçadeira de lona branca, ocupada a ler, a escrever, ou a tricotar casaquinhos que um dia me protegerão do frio. A lida da casa é feita por uma ou duas criadas, raparigas trazidas da terra natal a pedido de suas famílias porque mal as conseguiam alimentar, tantas eram as bocas e tão poucas as vitualhas.

    Num ameno dia soalheiro, sob um imaculado céu azul, o Tareco decidiu que estava na altura de eu começar a gatinhar. Espalmou-se junto ao solo e começou a gatinhar. Eu, fascinado, sorriso radioso como o Sol, por imitação, começo a fazer o mesmo. Sigo-o por todo o espaço acessível. Trocamos, amiúde, gargalhadas. Sim, os gatos e cães domésticos sabem muito bem gargalhar, fazem-no através do olhar, da postura e de sons engraçados. Pelo menos, assim o sentem as crianças na sua imensa sabedoria ancestral. Depois, por falta de oportunidades e estímulos adequados, esquecemos esta e outras capacidades herdadas através da nossa incrível genética.

    Aos oito meses de idade, precoce, já consigo pôr-me de pé e andar, ainda que agarrado às paredes e aos móveis da casa. O professor Tareco conclui que estão reunidos os pré-requisitos para passar à fase seguinte, a marcha autónoma. Como estratégia, sempre que estou de pé, dá-me uma patada na perna e começa a rebolar à minha frente. Para, lança olhares desafiadores e emite sons de estímulo. Na tentativa de o apanhar, começo a dar os primeiros passos, ainda que vacilantes, seguidos de quedas que me fazem doer os joelhos - já esfoladitos - e as mãos frágeis, de tão pequeninas. Falhar, falhar mais, falhar melhor.

    Num longo processo, por tentativa e erro, com o decorrer dos dias e das aulas exigentes, os passos tornam-se seguros e, por fim, assumem uma sequência rápida. Foi assim que ganhei o direito a entrar noutros espaços, noutros mundos, sempre em correrias animadíssimas atrás do Tareco, de belas borboletas, e de aves que me visitam e saúdam com belas melodias de saudação e amor.

    O amigo inseparável, por duas vezes correu em meu socorro para me salvar do ataque de outros animais. A primeira foi quando eu corria alegremente junto ao riacho, que deslizava sereno, nos limites do jardim e da horta. Um cão vadio, que caçava na zona, ao ver-me correr deixou o rasto que farejava e desatou a correr na minha direção. Eu, curioso, fiquei parado a olhar, sem me aperceber do real perigo. A menos de um metro do ataque eminente, o Tareco, que vinha embalado, num voo admirável interceptou o malandro, que fugiu cobardemente, sem dar luta. Depois de tamanha façanha, o Tareco veio roçar a cabeça e o corpo nas minhas pernas ao som de um ronronar bem audível. Eu agachei-me, abracei-o e beijei-lhe repetidamente o focinho. Os olhos do meu amigo assumiram um brilho especial, de tão feliz.

    Outra vez, estava na horta a semear um alicate, que o papá tinha deixado esquecido junto ao enorme tanque de água. Vejo o meu adorável amigo numa correria louca na minha direção. Preparei-me para o embate, que já me tinha derrubado noutras circunstâncias. Mas, para meu espanto, falhou o voo - pensava eu - e enrolou-se em luta feroz com uma enorme cobra, que se preparava para me atacar pelas costas. A cobarde acabou por desertar escapando por debaixo de um amontoado de pedras.

    De todas as nossas brincadeiras, adorava particularmente o jogo das escondidas. Era à vez. Quando era a vez de me esconder, assumia posição fetal atrás dos vasos e arbustos do jardim e fechava os olhos na esperança, ingénua, de que assim ninguém me veria. Ele, imensamente feliz, saltava para cima de mim. Por vezes, derrubava-me e então, rebolávamos pelo solo em lutas animadíssimas, como fazem os grandes amigos.

    Éramos muito felizes, e sabíamos!

    3

    Deus povoou este mundo de enigmas e de mistérios. 

    Fiódor Dostoiewski

    O papá quando chega do quartel gosta de tirar a farda e vestir uma roupa informal para se poder dedicar a um dos seus hóbis preferidos: o plantio de legumes e ervas aromáticas para as suas famosas saladas.

    Vá-se lá saber do porquê, num belo dia de primavera decidiu que as pequenas alfaces deviam ser enterradas exatamente na minha parcela da horta. Inevitavelmente, para minha profunda tristeza, descobriu a minha sementeira: o alicate e outras ferramentas que nunca iriam florir. Sorrateiramente, prevendo o desastre iminente, abandono o local, mas ainda a tempo de ouvir o papá exclamar, virando-se para a mamã, Pois claro, como não pensei nisto? Só podia ser o teu filho!

    Quando fazia algum disparate, e eram muitos, num passe de magia, passava a ser filho só da mamã. Quando fazia algo de grandioso, o meu querido papá exultava, de tanta felicidade, Meu filho! Meu João Pedro, sais mesmo ao teu pai.

    E eu, igualmente feliz, inchado de orgulho por sair ao melhor pai do mundo.

    Grande parte da minha infância foi vivida num mundo de aventura e encanto, em lugares aprazíveis, rodeado de acontecimentos incomuns para a maioria esmagadora das crianças. Uma bênção!

    Por vezes, as coisas corriam para o torto por incompreensão e intolerância da mamã que sempre me acusou, por vezes injustamente, de ser um tremendo traquinas, e de lhe perturbar a paz, seja lá o que isso fosse. Até posso concordar que eu - um pequeno e amoroso ser - era ligeiramente rebelde, mas na medida precisa de uma criança saudável.

    A minha fama era tal que o papá sempre que chegava do quartel tinha o redundante e irritante hábito de perguntar, Que disparates fez hoje o Joãozinho?

    Intrigado, pensava, Mas este homem não tem mais nada com que se preocupar? 

    Quando tinha consciência de ter exagerado na maroteira, mal ouvia o som do motor do carro, ou da campainha da bicicleta, refugiava-me no meu quarto e simulava que dormia. Resultava sempre. Desconfio que o papá acabou por achar piada à minha estratégia. Menos um castigo, menos uma palmada no rabo, ria eu, baixinho, com a cabeça debaixo dos lençóis.

    Só saltava da cama quando ouvia o chamamento da mamã, João Pedro, acorda, filho! Penteia esse cabelo, lava as mãos, e vem jantar. Ufa! Já estamos todos mais calmos. Mais um dia ganho. Amanhã vou portar-me melhor! Pois...

    Quanto às mãos, geralmente fazia batota.

    Num dia cinzento e chuvoso, de muito triste memória, o corpo do Tareco finou no seu sítio preferido - a alcofa com a manta fofinha. A sua alma tinha partido sem se despedir. Regressou a casa. A sua missão na Terra tinha terminado.

    Choroso, coração despedaçado, envolvi na manta fofinha o corpo do meu querido amigo e coloquei-o numa bela caixa de cartão. Abri, com ajuda da mamã, uma cova junto ao tronco da velha figueira, perto da horta onde ele me tinha salvo do ataque da cobra traiçoeira. Antes de lançar terra sobre o caixão rezei, pedi a Deus que o acolhesse e lhe destinasse uma manta macia num canto acolhedor para ele poder dormir as suas longas sestas.

    Para me consolar, pensei que o adorável Tareco, após umas breves férias, iria regressar no corpo de um outro adorável gatinho, para assim poder cuidar de outra criança. Ajudá-la a gatinhar, a andar e protegê-la das cobras desta vida, principalmente das que atacam pelas costas.

    Embora muito novo, talvez sugestionado pelas conversas dos adultos, intuí que nesta realidade maravilhosa, repleta de mistérios, todas as almas têm uma missão. A do Tareco era cuidar de crianças. Numa despedida pungente, por telepatia, Até sempre, velho amigo! Nunca te irei esquecer. Será que um dia nos voltaremos a ver? Quem sabe?

    Assim, sem aviso, impreparado, fiquei órfão do melhor amigo. Foi a primeira de muitas separações. Filho de militar não para de viajar, de povoação em povoação, de realidade em realidade, de cultura em cultura, de amigos em amigos, de amores em amores. Como todas as mães, a minha lia facilmente o meu estado de alma, neste caso a minha melancolia. Como o luto já ia demasiado longo, propôs que me dedicasse aos cães de caça de meu pai, que até agora tinha negligenciado. Assim fiz. Passei a ir todos os dias ao canil, e soltava o perdigueiro e os dois podengos portugueses que, loucos de felicidade, corriam à minha volta, depois uns atrás dos outros. Quando acalmavam saía com eles, inchado de importância, no meu papel de destemido caçador.

    A duas centenas de metros da residência havia resquícios de uma primitiva floresta ibérica. Era de difícil penetração. O matagal estava alto e a densidade florestal era enorme. Tinha ouvido que até os adultos temiam aventurar-se no seu interior, pelo menos, nunca o faziam depois do pôr do sol.

    Ao serão, no aconchego da lareira e do afeto da família e dos amigos, adorava ouvir os adultos relatarem estórias de reuniões de bruxas, e dos feitiços que realizavam no interior da floresta proibida. No centro, há uma clareira, num entroncamento de trilhos, que se chama cruzamento das quatro bruxas.

    Nada que temesse, pois ia sempre armado de uma fisga carinhosamente feita pelo soldado impedido de meu pai. Os bolsos iam sempre cheios de pedras redondinhas, selecionadas nas margens do riacho. A partir do momento da oferta estupenda, todos os dias ia para a carreira de tiro privada, afinar a pontaria. Adorava estilhaçar frascos e garrafas de vidro. Garrafas que o papá procuraria em vão, sempre que queria engarrafar vinho ou aguardente, que comprava diretamente ao produtor.

    O papá, expressão estupefacta, Joãozinho, o monte de garrafas está a diminuir. Sabes de alguma coisa?

    Eu, meio atrapalhado, Papá, porque haveria de saber? Raramente venho a esta zona da

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