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Frei Galvão: a construção processual da santidade
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Frei Galvão: a construção processual da santidade
E-book393 páginas5 horas

Frei Galvão: a construção processual da santidade

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Sobre este e-book

A santidade está presente na história da Igreja Católica desde seus primórdios, quando os primeiros seguidores de Cristo procuravam imitá-lo através do martírio. Gradativamente, a representação deste conceito se modificou, ganhando elementos políticos elaborados pela Igreja como forma de controle e aprofundamento das relações institucionais com cada localidade. Nesse sentido, o processo de canonização de Antônio Galvão de França representa importante marco para a introdução do Brasil no cenário católico universal. Portanto, o objetivo principal desta obra é analisar o ato de beatificação e de canonização do primeiro santo brasileiro como um processo histórico e, através dele, identificar, por meio de suas virtudes heroicas descritas no documento (processo de canonização), uma nova abordagem possível para esta documentação e, ao mesmo tempo, demonstrar a ocorrência de um processo de construção simbólica da memória de santidade, que envolveu grupos sociais interessados em sua promoção à condição de santo, possibilitando o sucesso desta canonização e, assim, promover a “construção processual da santidade”.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de abr. de 2022
ISBN9786589465249
Frei Galvão: a construção processual da santidade
Autor

Leandro Faria de Souza

Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade de São Paulo (2018), Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2014). Possui graduação em História (Bacharelado e Licenciatura) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010), com foco na colonização e religiosidade na América Espanhola.

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    Frei Galvão - Leandro Faria de Souza

    titulo

    Sumário

    Agradecimentos

    Prefácio

    Introdução

    Capítulo I - A santidade e suas implicações no contexto católico apostólico romano

    Introdução

    1.1 A santidade e a Igreja Católica

    1.2 A cronologia da santidade e suas interpretações

    1.3 Considerações sobre a evolução da lei canônica e suas implicações para a santidade: o uso do milagre

    1.3.1 Concílio Vaticano II: confirmando a tradição

    1.3.2 Divinus Perfectionis Magister

    1.4 Santidade e mobilização popular

    Conclusões

    Capítulo II - A análise processual da causa de Antônio de Sant’Anna Galvão: desconstruindo discursos

    Introdução

    2.1 Estrutura primordial do processo

    2.1.1 Apresentando as chaves de leitura

    Ordem processual cumulativa.

    2.2 Quem fala no processo? Virtudes teologais

    2.3 A quem é dirigida essa fala? Virtudes cardeais

    2.4 Quais as consequências dessa fala

    Conclusões

    Capítulo III - A fama de santidade presente no texto processual: construindo uma memória

    Introdução

    3.1 O que é fama de santidade?

    3.2 Fama de santidade em vida e após a morte e suas implicações na elaboração da santidade de Frei Galvão

    3.3 Abordagem e interpretação da fama de santidade de Frei Galvão em seu processo de canonização

    3.3.1 Breve nota sobre as pílulas de Frei Galvão

    3.4 Existe uma memória de santidade no processo?

    Conclusões

    Capítulo IV - A construção processual da santidade: uma nova abordagem

    Introdução

    4.1 O processo de canonização como ferramenta historiográfica na compreensão de uma santidade

    4.2 Ordenação processual cumulativa: retomando seus elementos

    4.3 O que é, de fato, construção processual da santidade

    Conclusões

    Considerações finais

    Anexo

    Constituição apostólica divinus perfectionis magister, do sumo Pontífice João Paulo II, sobre a nova legislação relativa às causas dos santos

    CONGREGAÇÃO PARA AS CAUSAS DOS SANTOS

    OS NOVOS PROCEDIMENTOS PARA OS RITOS DE BEATIFICAÇÃO

    O rosto da Igreja que se renova na continuidade

    Referências bibliográficas

    Fontes

    Biografias de Frei Galvão

    Leandro Faria de Souza

    Frei Galvão

    A construção processual da santidade

    São Paulo, 2022.

    Copyright © Editora Pluralidades, 2022.

    Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998.

    É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito, da editora.

    Direção Geral:

    Iago Freitas Gonçalves

    Equipe editorial:

    Flávio Santana

    Iago Freitas Gonçalves

    Priscila Gonçalves

    Revisão e preparação de texto:

    Darli Alves de Souza

    Traduções (do italiano para o português)

    Edilaine Correa

    Capa, diagramação e projeto gráfico:

    Talita Almeida

    Conselho Editorial:

    Dra. Cleusa Caldeira (FAJE-MG)

    Dr. Ênio José da Costa Brito (PUC-SP)

    Dr. Gedeon Freire de Alencar (FTB-SP)

    Dr. Sidney Sanches (FLAM-SP)

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Aos meus amados pais, Hamilton Roberto de Souza e Cleonice Maria de Faria Souza, porque, se hoje sou Doutor, é porque vocês são doutores da vida.

    Agradecimentos

    Um livro envolve inúmeras dimensões e pessoas, que ocupam um espaço essencial para a conclusão deste projeto tão complexo na vida de um escritor.

    Eu, quero mencionar o programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, por sua importância na construção e consolidação desta pesquisa, ao qual sou imensamente grato por esses anos de participação. Ao mesmo tempo, não posso deixar de expor minha gratidão pelo Prof. Dr. Fernando Torres Londoño, por sua década de paciência e dedicação para com o meu desenvolvimento profissional e pessoal. Além dele, agradeço de maneira afetuosa a todos os professores que colaboraram durante todos estes anos para que eu pudesse evoluir no meio acadêmico.

    Para realização de minha pesquisa, contei, com uma sustentação importantíssima para levar a cabo minha reflexão: o arquivo memória de Guaratinguetá e o arquivo histórico da província Franciscana de Nossa Senhora da Conceição do Brasil, na cidade de São Paulo, que forneceram as ferramentas documentais necessárias para o aprofundamento da temática, permitindo o acesso a documentos históricos essenciais para a fundamentação deste trabalho. Ainda nas referidas instituições, gostaria de agradecer de maneira especial aos responsáveis pelos seus arquivos históricos, respectivamente: Dra. Teresa Maia (arquivo memória de Guaratinguetá e casa Frei Galvão) e Elizabete Barbeiro (Província Franciscana), pelo auxílio e compreensão na exploração das fontes históricas, fundamentais para esta tese.

    Um ser humano não é nada sem amigos e família para compartilhar a sua jornada. Gostaria de agradecer a todos que participaram direta e indiretamente durante todos estes anos a meu lado e me fizeram uma pessoa melhor para representar todos, mencionarei alguns, pois não existiriam páginas suficientes para agradecer todos os amigos e familiares que me deram a mão em meu caminho. Primeiramente gostaria de agradecer à Patrícia Alves de Oliveira, pela sugestão do tema e pela paciência em ouvir e pela curiosidade por Frei Galvão.

    À Karina Alméri agradeço a dedicação, carinho e paciência no auxílio com a escrita. Sem essa amizade e amor, esta jornada seria muito mais difícil.

    À Valéria Aparecida Rocha Torres (mãe postiça), pela amizade, companheirismo e ensinamentos, que contribuíram muito para minha evolução profissional e pessoal. Agradeço também a Eliane Litting, pela ternura e afeto durante este período de convivência, à Darli Alves, pela solidariedade e disposição contínua em auxiliar no que fosse preciso. Meu muito obrigado amigo aos demais colegas de programa que compartilharam as angústias e alegrias deste mundo louco da academia.

    À Edna Aparecida da Costa, pela imprescindível ajuda com a língua italiana e conversas fundamentais sobre teologia, meu muito obrigado.

    Às minhas irmãs, Rafaela Cristina Faria de Souza, Márcia Cristina Barreto de Souza e Aline Cristina Barreto de Souza, pela preocupação e disponibilidade em ouvir e muitas vezes ajudar no necessário. A todos os familiares que durante todos esses anos me deram apoio e alicerce para que eu concluísse este meu objetivo.

    De maneira especial quero agradecer a equipe da editora Recriar na pessoa de Iago Freitas Gonçalves, pela confiança em meu trabalho e a atitude de humanidade na condução deste projeto.

    Uma frase que sintetiza tudo aquilo que aprendi durante esses anos é: Minha mente é minha asa.

    Prefácio

    O primeiro santo brasileiro é o franciscano Antônio de Sant´Anna Galvão, canonizado em 2007 pelo papa Bento XVI. Anteriormente, foi canonizada Amabile Lúcia Visintainer, nascida em Vigolo Vattaro, Itália, que emigrou para o Brasil em 1875 e aqui viveu até sua morte, em 1942, sendo conhecida na vida religiosa como Paulina do Coração Agonizante de Jesus; Santa Paulina, depois de sua canonização em 2002 pelo papa João Paulo II. Quinhentos anos para se ter uma santa descarregando sobre o Brasil suas graças. Mesmo figuras que conseguiram fama de santidade como José Anchieta na sua vida do século XVI, e que tinham nascido em Canarias, não emplacaram como santos por séculos.

    Pode-se pensar que as terras tupiniquins não propiciariam a santidade. Muito calor. Ou muitas outras coisas nada santas. Mas o resto do continente também não teria merecido essa graça em abundância. De forma rápida se contavam até faz um tempo entre outros, três santos para o Peru, uma consagrada da ordem terceira de Santo Domingo, um missionário espanhol e um afro-americano, Martin de Porres. Dois santos e uma santa para a Colômbia. Dois padres santos para o Chile. Uma santa para o Equador. Um para o Paraguai. México com sete santos se sai melhor que toda América, mas graças a mártires dos primeiros anos da cristandade, a alguns espanhóis e a Juan Diego Cuauhtlatoatzin. Aliás, em matéria de mártires (indígenas ou missionários que teriam dado suas vidas em defesa da fé) do Canadá ao Paraguai, a América estaria melhor. Resumindo, fosse qual fosse a colonização do Novo Mundo, espanhola, portuguesa, francesa, inglesa, Deus teria reservado a santidade para a Europa cristã.

    Existiria na América uma condição que, além do pecado original, nos colocasse distantes da santidade a qual, segundo o magistério da Igreja, devem aspirar todos os católicos? Nos debates no marco do império espanhol na América pela natureza dos índios acreditou-se que sim, que em diversos âmbitos os indígenas seriam inferiores aos espanhóis, particularmente em relação as virtudes. Nos séculos XVII e XVIII, filósofos europeus acreditaram também que os americanos seriam inferiores, ainda mais que a natureza do novo mundo seria também inferior como tinha concluído o cronista Fernandez de Oviedo no século XVI. Os aqui nascidos seriam inferiores de todos os pontos de vista. Condenados a ser portadores de muitas faltas, nos faltaria também as setes características definidas pela Igreja para a identificação da santidade: Fé, Esperança, Caridade, Temperança, Fortaleza, Justiça e Prudência. Estaria explicado. Não estaríamos habilitados, natural e moralmente, a ficar no mesmo nível da Europa onde se concentravam o maior número de santos. Nos sobrava a obediente conversão e a disciplinada imitação das virtudes europeias. Um dia chegaríamos lá. E quem diria, esse dia tardou, mas chegou.

    Desde o pontificado do papa João Paulo II, começaram a chover santos em nossa horta pagã. O que aconteceu? Precisamos de um papa vindo da cortina de ferro para reconhecer que, de fato, alguns de nós, mulheres e homens poderiam ser tão virtuosos como São Francisco, Santo Domingo, Santo Ignácio de Loyola, Santa Tereza de Jesus para ir pelo caminho da santidade?

    Obviamente a explicação é mais complexa e extrapola a figura de Karol Wojtyla. O papa missionário que visitou todos os continentes e os mais apartados e difíceis países em termos políticos para anunciar a Fé, tinha convicção de que havia que aumentar de forma expressiva o número de santos fora da Europa e colocar dentro da santidade homens laicos, mulheres laicas, indígenas, africanos, asiáticos, numa Igreja que deveria ser efetivamente universal e inclusiva. Como se mostra neste trabalho de Leandro Faria, a partir do pontificado de Joao Paulo Segundo foi facilitada pela Congregação das Causas dos Santos as exigências para dar entrada a um processo de santidade. Por sua parte, Joao Paulo Segundo celebrou que esses santos estivessem fora da Europa, sendo nativos de América e África. Juan Diego Cuauhtlatoatzin será o primeiro santo indígena, embora alguns (como quem escreve este prefácio) duvidem de sua santa existência. Irmã Josefina da congregação de Santa Madalena de Canossa, que entrou na congregação e viveu em Veneza até sua morte em 1947, nasceu no Sudão, onde os traficantes de escravos a tinham chamado de Bakhita, que com sua santificação passou a ser o nome da primeira santa africana. Nos dois casos o interesse que predominou em estender a qualidade de santo ao americano e santa à africana foi marcar que América e África geravam santos nativos. Definitivamente, nem tudo estava perdido para nossos continentes em termos de santidade. Deus mostrava-se generoso ao distribuir melhor a graça da santidade fora da Europa e o mundo Mediterrâneo.

    Leandro Faria Souza, o autor deste livro, ao expor sua tese da construção processual da santidade verificada na sua produção histórica para Frei Galvão, avança entre nós para responder de forma estrutural: como, em termos de Direito Canônico, se faz um santo ou uma santa? De passo, responde porque durante séculos tivemos na América muitos poucos santos e como essa ausência se interrompeu no final do século XX. Como veremos aqui tanto o martírio como a santidade são construções ligadas a épocas específicas da Igreja e a significados e sentidos particulares carregados de historicidade. Depois do Concilio de Trento e a manutenção da celebração da memória dos santos na Igreja Católica, foram adotados parâmetros para discernir entre as diversas demandas por reconhecimento da santidade, passaram a ser requeridos e conferidos inúmeros informes sobre a virtude de candidatas e candidatos, além da exigência de milagres inquestionáveis. No fim do século XIX e no XX, a condição de fato extraordinária para os milagres, em particular as curas comprovadas, passaram a ser atestadas por médicos que apontariam a luz da ciência médica uma clara intervenção divina.

    Corresponde à Congregação das Causas dos Santos acompanhar o cumprimento de todas as exigências que finalmente conduzem à beatificação e à canonização. O conjunto de materiais e documentos que dão conta do cumprimento de exigências e procedimentos compõem o processo que constitui a matéria sobre a qual a Congregação das Causas dos Santos se pronuncia. Não existe beatificação ou canonização sem processo.

    Antecipando de forma sintética o que será tratado por extenso neste livro, podemos dizer que em matéria de consagração da santidade para uma mulher ou um homem segundo a Congregação das Causas dos Santos não bastava ser virtuoso, era necessário ter fama de virtuoso. E como já foi dito, ainda, havia que fazer milagres. Também a postulação da santidade ao ser constituída em cima do processo tinha que entrar e se desenrolar no tempo certo. Quer dizer, que deveria aparecer a santidade que em termos de marketing católico, tanto as igrejas locais e nacionais como a Igreja universal, precisavam para afirmar-se no oferecimento de bens de salvação. Depois estava a capacidade do postulador da causa de formatar ela na Congregação das Causas dos Santos, na forma dos protocolos canônicos. Toda uma engenharia sustentava e dava articulação ao processo para que este conseguira seu propósito: a canonização. Falhando a engenharia, a causa não iria para frente. No caso do que trata este livro, desde que foram registrados em 1798, os sinais de santidade de Frei Galvão até sua canonização duzentos anos mais tarde, várias tentativas foram feitas para montar um processo que vencera escrutínios locais e fosse aceito pela Congregação das Causas dos Santos. Dom Paulo Evaristo Arns, franciscano como Frei Galvão e arcebispo de São Paulo, que entre muitas virtudes sabia das coisas da política canônica e de seus procedimentos, percebeu o caminho das pedras e chamou para ajudar a mesma engenheira da causa de madre Paulina. A competente irmã entendia do assunto, quer dizer, sabia como fazer processualmente um santo. Faturou dois, uma santa e um santo.

    Na configuração de um processo consistente e finalmente bem-sucedido, como o examinado aqui com minucia por Leandro Faria de Souza, deve-se cantar a justa a cada passo, num movimento de espiral onde a cada testemunho, informação, milagre ou verificação, candidata ou o candidato fiquem mais santos. Por fim, estaria o timing, o papa certo, o encaixe no momento histórico. Acha determinação, habilidade dos postuladores da causa e claro, virtudes heroicas para que finalmente possa ser dito havemos santo ou santa.

    No ponto fulcral das virtudes, que têm que ser transparentes e incontestáveis, nenhuma dúvida deve pairar sobre uma vida santa. Personagens que tenham suscitado polêmicas ou controvérsias, mesmo carregados de virtudes, não têm perfil de santo, a não ser que sejam papas. Nesse sentido, punido com uma excomunhão, mesmo que relativamente sigilosa, padre Cícero, o Padim de milhões de devotos, deverá permanecer por anos naquele limbo de santo de grande apelo popular, mas que não consegue ser enquadrado nos parâmetros processuais a não ser que situações incômodas não sejam levadas em conta ou sejam devidamente circunscritas a seu tempo. Provavelmente, num momento em que seja necessário o reconhecimento de sua santidade, Cícero Romão Batista será incluído em alguma leva de santos controversos ou polêmicos, mas finalmente úteis para manutenção da santidade como constante do catolicismo.

    Foi mencionado antes que o processo que apresenta a causa deve cantar a justa a cada movimento. Junto com as virtudes, a presença de milagres realizados em vida ou posteriormente foi, durante séculos (já não é mais), determinante para beatificação e canonização. Sem milagre não tinha nem beata ou beato, santa ou santo. Devotos costumam produzir ou testemunhar milagres desde discretos até espetaculares, que reforçam o que Faria Souza chama aqui de pleitos da santidade, mas no caso dos processos que correram no final do XIX, durante tudo o XX e os primeiros anos do XX, somente aos peritos médicos é reconhecida a competência para apontar a existência de uma cura que só pode ser explicada como um milagre. Deles emana o reconhecimento que foi constatado o desaparecimento de uma doença grave cientificamente inexplicável para os conhecimentos médicos do momento. Depois um conselho de teólogos produz seu parecer, e não ficando nenhuma dúvida registra que há ali um milagre. Ciência e teologia rendem-se, assim, a constatar evidência de uma intervenção divina que teria interrompido o fluxo normal da vida em direção a morte. Igreja e devotos encontram-se e acontece o que me permito chamar de edição canônica da santidade. Foi o que aconteceu em 2006 quando foi atribuído a Frei Galvão o milagre da cura de Sandra Grossi de Almeida Gallafassi e de seu filho Enzo de Almeida Gallafassi. Com essa dupla chancela o destino da canonização fica sem nenhuma obstrução. Faltam só os finalmente.

    Amabile Lúcia Visintainer, nascida na Itália, a partir de sua virtuosa vida religiosa viria a ser no Brasil, em 2002, Santa Paulina. Frei Antônio de Sant´Anna Galvão que dava exemplo com sua vida virtuosa e recolhendo esmolas mantinha um mosteiro feminino, tendo sua santidade reconhecida em 2007. Jose de Anchieta que em vão esperaria por séculos a aceitação de uma santidade apontada em vida sendo finalmente canonizado em 2014. Santos brasileiros esperados por anos e digamos séculos, numa terra onde a santidade pareceria esquiva e Deus estaria distante. Mas, que como mostra Leandro Faria Souza neste incisivo texto, seria uma santidade pacientemente identificada e construída, numa engenharia de virtudes e autópsias de milagres. Operações processuais destinadas a gerar capital simbólico na expectativa de multiplicar a Fé e santificar uma Igreja presente no que em seu momento foi chamado Terra de Santa Cruz.

    Fernando Torres Londoño

    PUC-SP

    Introdução

    O ano de 2017 marcou o décimo aniversário de canonização de Antônio Galvão de França (Frei Galvão), celebrada no dia 11 de maio de 2007 em uma missa campal no Campo de Marte, na cidade de São Paulo. Tal evento foi importantíssimo para a história da Igreja Católica no Brasil e para todo o continente latino-americano. Na ocasião, o Papa Bento XVI, pela primeira vez na história, abriu uma exceção e canonizou o primeiro santo brasileiro em sua terra natal, ato extremamente simbólico que sinalizou a função política de tal santificação.

    Esse dia histórico é o produto de um longo processo de construção simbólica e legislativa que levou 69 anos e 4 processos abertos para ser concluído. Por essa razão, considero importante nesta introdução, além de apresentar a trajetória teórica que estruturou a presente tese, descrever a cronologia, mesmo que sucintamente, do percurso da causa de Antônio Galvão de França, desde seu início no ano de 1938 até 2007:¹

    1938 - 5 de junho – Padre Frei Adalberto Ortmann é nomeado postulador por Dom Duarte Leopoldo e Silva.

    1949 - 23 de abril – Por sugestão do Cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, Dom Paulo Rolim Loureiro aprova a constituição do Tribunal Eclesiástico para o processo de Beatificação de Frei Galvão. Postulador: Padre Frei Dagoberto Romag.

    1954 - Maristella publica seu livro Frei Galvão, Bandeirante de Cristo.

    1972 - 23 de dezembro – Solene Comemoração do Sesquicentenário de morte de Frei Galvão.

    1978 - A Autoridade Eclesiástica de São Paulo encarrega Frei Zacarias Machado de continuar os trabalhos de canonização.

    1978 - Segunda edição ampliada do livro de Maristella.

    1987 - O Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, ofm, reabre solenemente o processo de beatificação. Postulador: Padre Frei Desidério Kalverkamp.

    1987 - O Cardeal de São Paulo passa a residir ao lado do Mosteiro da Luz, dando à sua morada o nome de Residência Arquiepiscopal Frei Galvão.

    1990 - O processo de beatificação é assumido pela Irmã Célia B. Cadorin, das Irmãzinhas da Imaculada, sendo postulador Pe. Antonius Ricciardi, ofmconv, em Roma, e vice-postulador Pe. Arnaldo Vicente Belli, no Brasil.

    1990 - 12 de dezembro – O processo é introduzido na Congregação para a Causa dos Santos, em Roma, e recebe o Nihil Obstat.

    1991 - 5 de fevereiro – Solene exumação dos restos mortais do Servo de Deus, na Igreja do Mosteiro da Luz, em São Paulo, com a presença de Sr. Cardeal Arns, ofm, Pe. Arnaldo Vicente Belli, Cônego Antônio Munari Santos e, pela Província da Imaculada-SP, Frei Paulo Avelino de Assis Schmitz, ofm, bem como dos senhores médicos do IML.

    1996 - Em Roma, aprovação, com louvores, da vulnerabilidade de Frei Galvão, que assim se tornou venerável.

    1997 - 8 de abril – Em Roma, na sala do Consistório, perante membros da Congregação da Causa dos Santos, postuladores e membros da Cúria Romana, o Santo Padre promulga o decreto da heroicidade de virtudes do Servo de Deus Frei Galvão. Com este ato solene, falta somente a cerimônia litúrgica para Frei Galvão tornar-se beato.

    1997 - Em Roma, já está em curso o processo sobre um dos milagres atribuídos a Frei Galvão.

    1998 - Aprovação do milagre de Frei Galvão que curou a menina Daniella Cristina da Silva, 4 anos, de São Paulo. O médico pediatra que acompanhou suas graves moléstias afirmou, perante o Tribunal Eclesiástico: Eu atribuo à intervenção divina não só a cura da doença, mas a recuperação total dela.

    1998 - 25 de outubro – Em Roma, acontece a Beatificação de Frei Antônio de Sant’Ana Galvão pelo Papa João Paulo II, durante missa em frente à Basílica de São Pedro, com a presença de uma multidão de devotos brasileiros.

    1998 - O Papa João Paulo II, no ato da Beatificação, declara 25 de outubro como o Dia Litúrgico do Beato Frei Galvão, dando-lhe o título de Homem da Paz e da Caridade.

    2000 - O Papa João Paulo II dá um novo título ao Beato Frei Galvão, o de Patrono da Construção Civil no Brasil.

    2004 - Realização, junto à Cúria de São Paulo, de um processo diocesano sobre milagre atribuído ao Beato Antônio de Sant’Ana Galvão, cuja validade jurídica foi reconhecida em novembro do mesmo ano pela Congregação das Causas dos Santos, no Vaticano.

    2006 - 18 de janeiro – Os Peritos Médicos da Congregação das Causas dos Santos aprovam, no Vaticano, por unanimidade, o milagre atribuído ao Beato Frei Antônio de Sant’Ana Galvão.

    2006 - 13 de julho – O Congresso dos Teólogos reconhece o caso como miraculoso.

    2006 - 12 de dezembro – Confirmação do milagre em Reunião Plenária dos Cardeais e Bispos, no Vaticano. O Santo Padre Bento XVI autoriza a Congregação das Causas dos Santos a promulgar o Decreto a respeito do milagre atribuído à intercessão do Beato Antônio de Sant’Ana Galvão.

    2006 - 12 dezembro – Promulgação do Decreto da Congregação da Causa dos Santos do milagre do Beato Antônio de Sant’Ana Galvão.

    2006 - 17 de dezembro – Publicação, no jornal L’Osservatore Romano, do Vaticano, do milagre de Sandra Grossi de Almeida Gallafassi e de seu filho Enzo de Almeida Gallafassi, reconhecido como cientificamente inexplicável no seu conjunto, segundo os atuais conhecimentos científicos.

    2007 - 11 de maio – sexta-feira, 9h30 – Campo de Marte, em São Paulo, Brasil. Celebração Eucarística e Canonização do Beato Frei Antônio de Sant’Ana Galvão, Presbítero, pelo Santo Padre Papa Bento XVI, em sua Viagem Apostólica ao Brasil.

    Analisando esta linha do tempo, é possível notar que a causa de Frei Galvão como objeto de estudo oferece várias perspectivas para um cientista da religião e para as mais diversas disciplinas das ciências humanas. Apresento-lhes, então, a razão pela escolha desta temática.

    Como se diz popularmente, as grandes descobertas são feitas às vezes por acidente e foi este o caso em meu primeiro contato com a devoção de Frei Galvão como objeto de estudo.

    Em agosto de 2014, quando me preparava para o processo seletivo do programa de estudos pós-graduados em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e procurava um novo objeto de pesquisa para uma futura tese de doutorado, durante uma sessão de fisioterapia, minha amiga e fisioterapeuta Patrícia Alves de Oliveira me sugeriu esta temática.

    Do ponto de vista prático, essa escolha teve como fundamento a manutenção da linha de pesquisa desenvolvida durante minha trajetória acadêmica, concentrada na historicização das devoções populares e seu impacto no desenvolvimento institucional da Igreja Católica Apostólica Romana. Um segundo fator, que favoreceu a seleção do tema, é a baixa produção intelectual voltada para essa devoção no âmbito universitário, colocando-a como importante elemento de discussão para as ciências humanas.

    Ao buscar essa inovação, construí uma linha de pesquisa que iniciou pelo mapeamento das principais fontes históricas relacionadas a este religioso brasileiro e de tudo aquilo que até então havia sido produzido sobre ele. Nesse momento era fundamental para a investigação localizar se o processo de canonização de Antônio Galvão de França estava disponível e em quais condições.

    Nessa perspectiva, o arquivo memória de Guaratinguetá e a casa Frei Galvão foram de grande auxílio ao conceder-me acesso ao Verossímil do documento produzido em Roma com o objetivo de canonizar o franciscano. Com essa fonte histórica em mãos, a ajuda de meu orientador, Professor Doutor Fernando Torres Londoño, foi essencial para o primeiro contato com esse tipo de documentação e para consolidar gradativamente o processo de construção discursiva deste texto, a fim de formular o objeto e objetivo de pesquisa.

    Nessa direção, a santidade é o elemento central na confecção do objetivo geral da presente reflexão, que se constitui da seguinte forma: discutir as etapas de construção do conceito de santidade, explicitando sua fundamentação e interpretação, tendo presente os valores defendidos pela Igreja Católica.

    Analisando este aspecto universal do conceito de santidade, o objetivo específico que fundamentou a presente pesquisa caracteriza-se por observar como os grupos sociais mencionados no processo de canonização de Antônio Galvão de França constroem um discurso sobre a santidade dele. Portanto, após a delimitação do objetivo, era importante esclarecer uma nova etapa do desenvolvimento da tese, ou seja, elucidar qual o objeto a ser desenvolvido, resultando no seguinte: a santidade representada e interpretada pela memória religiosa desenvolvida na devoção a Frei Galvão permite compreender o desenvolvimento simbólico e as consequências dessa canonização para o âmbito translocal² no universo católico apostólico romano e na igreja brasileira. Tal formulação tem como consequência a busca pelo entendimento do impacto que a canonização de Antônio Galvão de França possui na consolidação de uma memória específica

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