Registros, fatos, escritos: memórias e histórias da reforma psiquiátrica
De Clarice Eliane Duarte da Silva, Ana Paula Müller de Andrade, Carmen Terezinha Leal Argiles e Denise Gullo de Matos
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Sobre este e-book
Este livro trata da reconstituição de histórias com um cenário sociocultural e político comum, que dão sustentação à política pública de saúde mental no Brasil e à constituição de um Centro de Atenção Psicossocial na cidade de Pelotas – RS. É um texto-imagem construído a partir de fragmentos de histórias registradas em um acervo de fotografias, recortes de jornais, folhetos e outros artefatos armazenados por uma das autoras, ao longo de 23 anos.
Ao conjugar histórias de vida - de usuários, familiares, trabalhadores, gestores, estudantes, professores universitários e de outras pessoas envolvidas de diferentes maneiras com a reorientação da assistência psiquiátrica em âmbito nacional, estadual e local – busca, na fixação desses indivíduos, contribuir para a compreensão ampliada da realidade atual e futura do campo da saúde/saúde mental.
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Registros, fatos, escritos - Clarice Eliane Duarte da Silva
2016.
Sumário
APRESENTAÇÃO
PREFÁCIO
CAPÍTULO 1
A CONSTITUIÇÃO DE UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
CAPÍTULO 2
CLARICE E AS MUITAS HISTÓRIAS DO CAPS FRAGATA
CAPÍTULO 3
OUTRAS HISTÓRIAS E A PRODUÇÃO DE SABERES NO CAPS FRAGATA
CAPÍTULO 4
PARA ONDE VÃO AS FRAGATAS
REFERÊNCIAS
APRESENTAÇÃO
DE ONDE PARTEM AS FRAGATAS
FIGURA 1 − QUADRO EXPOSTO EM UMA DAS PAREDES DO PRÉDIO ONDE O CAPS FRAGATA FOI INAUGURADO
FONTE − Acervo de Clarice Eliane Duarte da Silva
Iniciamos aqui uma viagem. O ponto de partida é o nosso encontro e o reconhecimento da importância de fixar algumas histórias e memórias que fizeram parte do processo de construção e consolidação da reforma psiquiátrica brasileira e de um Centro de Atenção Psicossocial, o CAPS Fragata. Temos uma mala − porque são sempre necessárias nas viagens − com registros, memórias e outros artefatos que permitirão vários aportamentos. O destino final é indefinido. Sabemos apenas que durante o trajeto faremos algumas paradas que interessam dar a conhecer a quem embarcar.
Nosso trajeto trata da reconstituição de histórias com um cenário sociocultural e político comum e que deram sustentação à política pública de saúde e saúde mental no Brasil. Buscamos, ao longo das histórias, memórias e discussões apresentadas, registrar diferentes aspectos relacionados à execução das políticas públicas, que instituíram o Sistema Único de Saúde e reorientaram a assistência psiquiátrica no país e, assim, possibilitaram a constituição do CAPS Fragata, onde muitas histórias foram construídas.
A trajetória percorrida nos mostrou a necessidade de articular as diferentes histórias apresentadas. Entendemos que não seria possível contar a história de diferentes atores sociais envolvidos no processo da reforma psiquiátrica brasileira sem registrar o momento sociocultural, político e econômico em que se encontravam. Além disso, não teria sido possível contar histórias singulares sem que lhe dispensássemos a devida seriedade e importância. Por isso, o que fizemos aqui foi reconhecer o caráter dialético entre os níveis macro e micro presentes nas políticas públicas apresentadas, destacando que aqui usamos micro não no sentido de menor, mas indicando uma outra dimensão da luta política [...]
, como nos ensinou Baptista (1999, p. 117).
Outro aspecto que consideramos com seriedade foi a necessidade de registrar tais histórias e memórias a fim de garantir sua fixação escrita e, consequentemente, maiores possibilidades de circulação e contribuição para os estudos e debates sobre reforma psiquiátrica no Brasil e, quiçá, fora dele. Nossa intenção também foi construir um material que pudesse ser acessado por diferentes atores sociais envolvidos nos processos de desinstitucionalização desencadeados pela reforma psiquiátrica brasileira. Pensamos ser importante que este material esteja acessível para as pessoas que possam vir a se envolver com tais processos já que, como disse Clarice, ele poderá ser um bom conselheiro para aquelas pessoas que ainda virão a acessar a rede de saúde mental, seja pelo exercício de suas profissões ou formações, seja por buscarem auxílio para o alívio de seus sofrimentos e/ou de seus familiares.
Ao conjugar histórias de vida de usuários/as, familiares, trabalhadores/as, gestores/as, estudantes, professores/as universitários/as e de outras pessoas envolvidas de diferentes maneiras com a reorientação da assistência psiquiátrica em âmbito nacional, estadual e local, buscamos atender a complexidade presente na constituição do CAPS Fragata e na consolidação das políticas públicas em questão.
A preparação dessa viagem começou durante o trabalho de campo etnográfico realizado junto aos/às usuários/as do CAPS Fragata, no âmbito da pesquisa de pós-doutoramento intitulada Entre reformas e revoluções: tensionamentos no campo da saúde/saúde mental no Brasil
, desenvolvida por Ana Paula Müller de Andrade. A pesquisa, financiada pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e aprovada em Comitê de Ética sob parecer no 1.104.267, tem como objetivo analisar os desdobramentos da transformação cultural em relação à loucura na produção de subjetividades de usuários e usuárias dos serviços de saúde mental.
Como bem lembra Clarice, quando a pesquisa foi apresentada na assembleia realizada semanalmente no CAPS Fragata, ela se apresentou e ali mesmo marcamos um encontro para a semana seguinte. Bastaram alguns encontros e conversas intensas, sempre mediadas por uma mala repleta de materiais interessantíssimos, para a ideia de escrever o livro estar presente entre nós, como registrado em meu diário de campo: Ao final de nossa conversa, que durou aproximadamente uma hora, Clarice sai e já quase de costas para mim diz: ‘Tem que fazer alguma coisa com isso tudo aí’. Digo que sim, que concordo que algo precisa ser feito e que vou pensar em alguma coisa. E lhe digo: ‘Pensa tu também em alguma coisa que possa ser feita’
(fragmento do diário de campo, 18/08/2015).
Alguns encontros depois, quando lhe fiz a proposta de escrever um livro utilizando os materiais de seu acervo pessoal, questionou-me sobre como seria possível escrever um livro sem conhecer as letras. Propus-lhe uma parceria, um livro com múltipla autoria, o que ela prontamente aceitou. Cientes da complexidade da proposta, convidamos Carmen e Denise, que também aceitaram participar do desafio de escrever um livro sobre a história de consolidação do CAPS Fragata, as histórias que nele tiveram lugar e sua inter-relação com o processo da reforma psiquiátrica brasileira. Nossa primeira reunião para a apresentação da sugestão de estrutura do livro foi realizada no dia dezessete de novembro de 2015.
Foi assim que compomos uma autoria múltipla. Tal multiplicidade foi guiada pela singularidade das autoras e, sobretudo, por Clarice, que, não sabendo ler as letras, tem na sua memória e no seu acervo pessoal as ferramentas que permitiram a reconstituição das histórias apresentadas ao longo do texto. Ainda que Clarice não tenha conseguido aprender a ler as palavras, sua leitura de mundo é ampliada e crítica e lhe permitiu reconhecer a importância de construir um acervo pessoal com o registro das transformações ocorridas na realidade na qual está inserida. Lembramos aqui dos ensinamentos de Freire (1989, p. 40), sobretudo de que desde muito pequenos aprendemos a entender o mundo que nos rodeia. Por isso, antes mesmo de aprender a ler e a escrever palavras e frases, já estamos
lendo, bem ou mal, o mundo que nos cerca." A construção do acervo pessoal de Clarice está apresentada e discutida no segundo capítulo.
Nessa composição de múltipla autoria, Carmen e Denise contribuíram com suas memórias, reflexões e histórias de processos de desinstitucionalização acompanhados em suas práticas assistenciais ao longo da história de consolidação do CAPS Fragata. Já a mim, coube a tarefa de escrever, ou seja, refletir e arranjar as palavras de modo a construir um texto à altura do que foi vivido e revivido durante nosso trabalho.
Como escrever é um ato bastante singular e singularizado, o texto construído passou por revisões críticas feitas em reuniões semanais entre todas as autoras. Durante as reuniões, eu lia em voz alta o que havia escrito e Clarice, Carmen e Denise iam fazendo suas críticas, comentários e sugestões, o que justifica o uso da terceira pessoa na construção do texto. Carmen e Denise também fizeram leituras individuais do texto. Mantive o uso da terceira pessoa nessa apresentação uma vez que, ainda que me tenha sido confiada pelas demais autoras a tarefa de construí-la, não é possível apresentar nosso trabalho de outra maneira.
Para a construção do conjunto do trabalho, mantivemos encontros semanais realizados nas manhãs de terça-feira, nas dependências do CAPS Fragata, onde a mala/acervo da Clarice fica guardada. Nossas reuniões de trabalho, em geral regadas com boas doses de café, inicialmente tinham como objetivo revisitar todos os materiais armazenados na mala de Clarice. É preciso destacar aqui que a mala contava, no início do trabalho, com mais de trezentas fotografias (dedicamos um encontro a contabilizá-las), muitos recortes de jornal com notícias diversas sobre temas relacionados à saúde mental (estes ainda não foram contabilizados, já que nosso objetivo não foi inventariar os materiais), livros, encartes, certificados e outros materiais de eventos científicos, da luta antimanicomial, dentre outros. Contém outros artefatos, como convites e lembrancinhas de festas, formaturas, livros e relatórios de estágio. Durante o tempo em que estivemos trabalhando, Clarice armazenou novos materiais.
Diante do volume e complexidade dos materiais, decidimos iniciar pela seleção das fotos e recortes de jornal que poderiam compor o livro. Quando escolhíamos os materiais, eu os fotografava e passava a trabalhar sobre eles, no sentido de transformá-lo em preto e branco e fazer outros ajustes necessários. Muitas fotos apresentadas ao longo dos capítulos não tinham a qualidade esperada para a finalidade do livro, contudo, esse não foi um critério para excluí-las. Durante o processo de trabalho fizemos outras fotografias, dentro e fora do CAPS. Em um dos nossos encontros, percorremos os prédios em que haviam ocorrido atividades relacionadas ao CAPS Fragata. Essas fotos estão apresentadas no primeiro capítulo.
Marcávamos a localização das fotos e os recortes de jornal selecionados nas suas respectivas pastas e/ou álbuns e envelopes. A cada foto e recorte de jornal marcados, muitas histórias vinham à tona através das memórias disparadas por elas. Muitas vezes, Clarice saía da sala para mostrar a foto ou o jornal para alguém que, ao ver o registro e recordar o momento e as pessoas, juntava-se a nós para contar outras histórias sobre o que estava registrado. As histórias iam se multiplicando, tal como um hipertexto, que conduzem a viagens longas, intensas e cheias de conexões.
Em determinado momento, entendemos que seria importante registrar tais narrativas em áudio. A ideia inicial da gravação era que, depois de transcritas, eu as lesse para Clarice para, na sequência, escolhermos os fragmentos que iriam compor o livro. Fizemos algumas tentativas nesse sentido, mas não tivemos êxito, seja por que a leitura não era tão motivadora quanto continuar a olhar as fotografias, jornais e outros materiais e, assim, recordar e contar as histórias vividas, seja porque nos tomava muito do tempo