O Princípio da Reserva do Possível e a Ponderação: uma proposta de critérios para análise da confiabilidade epistêmica de premissas empíricas e normativas de decisões judiciais
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O Princípio da Reserva do Possível e a Ponderação - Isabel Campos Nascimento
PARTE I
ELEMENTOS TEÓRICOS DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
Capítulo I O CONCEITO DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
É condição necessária para o desenvolvimento de uma pesquisa a conceituação do objeto de sua análise. Embora amplamente recepcionado pela jurisprudência brasileira e doutrina pátria, inúmeras apropriações têm sido feitas sobre o tema Reserva do Possível
, o que torna a delimitação deste objeto uma tarefa mais complexa do que em relação a tópicos cujos conceitos já estão consolidados na doutrina. Por tal razão, neste capítulo inaugural, serão investigadas as origens do princípio da reserva do possível para a delimitação de seu conteúdo, e será proposto conceito apto a orientar a sua aplicação mais racional pelos tribunais brasileiros.
1.1 O CONTEXTO JURÍDICO DE SURGIMENTO DA RESERVA DO POSSÍVEL
O princípio da reserva do possível é um instituto jurídico cujo nascedouro ocorre externamente ao sistema jurídico-constitucional brasileiro. Para a melhor compreensão da racionalidade subjacente a essa construção jurídica, bem como para uma análise de sua importação e aplicação ao sistema jurídico-constitucional brasileiro, é importante o conhecimento dos fundamentos jurídicos que iniciaram essa discussão.
A noção de reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) tem sua origem comumente apontada pela doutrina constitucional nas decisões do Tribunal Constitucional alemão, sendo construção jurisprudencial iniciada, em especial, a partir do caso paradigmático denominado "decisão numerus clausus I"³ - BverfGE 33, 303, 1972 - ⁴, que versava sobre o direito a vagas em universidades. Ela foi invocada, posteriormente, em outros cinco casos de destaque (PERLINGEIRO, 2013, p.7; GAIER, 2011, p. 13).
Na decisão de 1972, o Tribunal Constitucional Federal alemão analisou a constitucionalidade de leis estaduais que instituíam critérios para o ingresso de estudantes nas Universidades de Hamburgo e da Baviera. O número de candidatos havia crescido em proporção maior do que a oferta de vagas. As leis estaduais foram editadas instituindo alguns parâmetros para a seleção dos candidatos – denominados numerus clausus⁵ – acarretando restrição ao acesso ao ensino superior. A constitucionalidade das respectivas leis foi questionada com base no direito à livre escolha de profissão e do local de formação, o qual era assegurado no art. 12 da Lei Fundamental (LF) alemã, de 1949 (SGARBOSSA, 2010, p. 134-135). Destaca-se um importante trecho da decisão:
Mesmo na medida em que os direitos sociais de participação em benefícios estatais não são desde o início restringidos àquilo existente em cada caso, eles se encontram sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade. Isso deve ser avaliado em primeira linha pelo legislador em sua própria responsabilidade. Ele deve atender, na administração de seu orçamento, também a outros interesses da coletividade, considerando, conforme a prescrição expressa do Art. 109 II GG, as exigências da harmonização econômica geral. A ele compete também a decisão sobre a extensão e as prioridades da expansão do ensino superior, devendo se atentar para o fato de que ampliação e novas construções de instituições de ensino superior fazem parte, consoante o Art. 91a GG, das tarefas em prol da coletividade a serem cumpridas em atuação conjunta da União e dos Estados-membros. Junto a tais decisões, os órgãos estatais competentes deverão se orientar, de um lado, pelas reconhecíveis tendências de demanda por vagas no ensino superior, pois uma orientação exclusiva por investigações de necessidade, de qualquer forma difíceis de serem realizadas, poderia provocar direcionamento profissional e exame de necessidade não permitidos, e na qual restaria reduzido o significado da livre autodeterminação enquanto elemento constitutivo de um ordenamento de liberdade. Por outro lado, um tal mandamento constitucional não obriga, contudo, a prover a cada candidato, em qualquer momento, a vaga do ensino superior por ele desejada, tornando, desse modo, os dispendiosos investimentos na área do ensino superior dependentes exclusivamente da demanda individual frequentemente flutuante e influenciável por variados fatores. Isso levaria a um entendimento errôneo da liberdade, junto ao qual teria sido ignorado que a liberdade pessoal, em longo prazo, não pode ser realizada alijada da capacidade funcional e do balanceamento do todo, e que o pensamento das pretensões subjetivas ilimitadas às custas da coletividade é incompatível com a ideia do Estado social (SCHWABE, 2005, p. 663-664).
O Tribunal Constitucional Federal alemão rejeitou a pretensão dos demandantes à criação imediata de novas vagas para o ingresso dos candidatos, não reconhecendo um direito subjetivo à uma vaga no ensino superior, mas ao direito de concorrer de forma isonômica à vaga⁶. O tribunal reconheceu que a distribuição planificada tornar-se-ia inevitável após o esgotamento da totalidade da capacidade de formação. A decisão afirma que os direitos de tomar parte
(Teilhaberechte)⁷ são limitados e não existentes a priori (SGARBOSSA, 2010, p. 136). Assim, segundo o acórdão os direitos sociais de participação em benefícios estatais encontram-se sob a reserva do possível, que deve ser avaliada, em primeira instância pelo legislador e, em certa medida, tolerada pelo particular
(MOREIRA, 2011, p. 54). Para Perlingeiro (2013, p. 169), o argumento principal da decisão repousaria na ideia de que o legislador, no exercício de suas atribuições, também deve observar outros interesses da comunidade
. Seria, ainda, uma incompreensão do significado de liberdade, se houvesse contínua precedência da liberdade pessoal em detrimento da capacidade funcional e do equilíbrio da sociedade como um todo
(PERLINGEIRO, 2013, p. 169).
Alinie da Matta Moreira (2011, p. 55) relata que o tribunal alemão reconheceu, entretanto, que a imposição de limitações absolutas para o ingresso de estudantes somente seria constitucional quando (1) fosse prescrito nos limites do estritamente necessário, sob a utilização exaustiva das capacidades criadas com recursos públicos já existentes de formação e quando (2) a escolha e a distribuição ocorrerem segundo critérios racionais, com uma chance para todo candidato em si qualificado ao ensino superior e com o maior atendimento possível à escolha individual do local de formação. As limitações estabelecidas ao ingresso dos estudantes deveriam, portanto, ser proporcionais e objetivar a manutenção de um bom nível de ensino, proibindo a discriminação na admissão dos candidatos (SGARBOSSA, 2010, p. 136).
Ana Carolina Lopes Olsen (2006, p. 232), ao examinar o julgado do Tribunal Constitucional Federal alemão, identifica outro aspecto importante para o entendimento da fundamentação da decisão. Segundo Olsen:
[...] verificou-se que o Estado Alemão estava fazendo ou tinha feito tudo que estava ao seu alcance a fim de tornar o ensino superior acessível. Exigir mais, para o fim de satisfação individual de cada cidadão, obrigando o Estado a negligenciar outros programas sociais, ou mesmo comprometer suas políticas públicas, não se mostrava razoável (OLSEN, 2006, p. 232).
No caso apreciado, o Tribunal Constitucional Federal alemão não reconheceu o direito subjetivo à criação de novas vagas de forma imediata, uma vez constatado que o núcleo essencial do direito não tinha sido atingido pelas restrições estatais estabelecidas. Importante destacar que, na medida em que o tribunal reconheceu que o Estado Alemão envidou todos os esforços ao seu alcance para propiciar acesso ao ensino superior, verifica-se que o reconhecimento da exigência de razoabilidade da prestação pleiteada pelos autores das reclamações não se deu em um contexto de omissão estatal injustificada no atendimento às prestações relativas ao direito social pleiteado. Sgarbossa (2010, p. 138) chama a atenção para o fato de que esse estabelecimento de limites às demandas baseadas na cláusula do Estado Social pode ser entendido como um teto do exigível
.⁸ Entendeu-se que, naquele caso, não seria razoável comprometer outros bens jurídicos relevantes para o atendimento àquela demanda específica.
Olsen (2006, p. 233) destaca que essa teria sido a dimensão principal a ser extraída da decisão que iniciou as discussões sobre a reserva do possível e não a questão financeira estatal, no sentido de escassez absoluta de recursos
⁹. A autora fundamenta sua posição afirmando que:
Mesmo que o Estado dispusesse dos recursos, segundo a reserva do possível instituída pelo tribunal alemão, não se poderia impor a ele uma obrigação que fugisse aos limites do razoável, tendo em vista os fins eleitos como relevantes pela Lei Fundamental. Não se poderia exigir o comprometimento de programas vinculados à satisfação de outros interesses fundamentalmente protegidos, para o fim de tornar o acesso ao ensino superior possível a absolutamente todos os indivíduos que assim o quisessem (OLSEN, 2006, p. 233).
Não obstante, a decisão acima ser considerada o paradigma para o entendimento da reserva do possível, não foi a única que tratou do tema no âmbito do Tribunal Constitucional Federal alemão. Em 1973, esse Tribunal decidiu outra lide que versava sobre a participação de diversos setores do ambiente universitário em órgãos colegiados das universidades, fazendo referência expressa ao precedente da decisão numerus clausus I - BVerfGE 33, 303 - e ao condicionamento dos direitos de participação (Teilhaberechte) à reserva do possível, novamente compreendida como o que se revela razoável o indivíduo esperar da sociedade. O contexto em que a decisão foi proferida estava marcado por uma tendência à hipertrofia das demandas dos cidadãos em face do Estado e, buscando limitá-la, o Tribunal se valeu novamente do recurso à razoabilidade, à proporcionalidade, à racionalidade como balizas dos referidos pleitos (SGARBOSSA, 2010, p. 141-142).
Em 1977, o Tribunal Constitucional Federal alemão julgou questão semelhante, precedente este alcunhado decisão numerus clausus II - BVerfGE 43, 291 -, no qual questionava-se a compatibilidade do art. 32, parágrafo 3º, item 1, alínea 6, da Lei sobre o ensino superior com a Lei de Bonn, bem como a constitucionalidade da distribuição de vagas de estudos. Neste caso, foram tratados diversos aspectos dos referidos diplomas normativos regulamentadores das condições de acesso ao ensino superior, a exemplo da adoção de cotas para a seleção de candidatos. O Tribunal reiterou o entendimento do caso numerus clausus I (SGARBOSSA, 2010, p.