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Bioética Espírita
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E-book547 páginas5 horas

Bioética Espírita

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Sobre este e-book

A AME-Brasil vem, por intermédio desta obra, apresentar uma nova proposta de modelo de bioética, que tem como base a bioética personalista espírita. Essa proposta é inspirada nos ensinamentos da Dra. Marlene Nobre, fundadora da AME-Brasil, pelo seu exemplo de luta na defesa intransigente da vida.
Este livro foi escrito pelos membros do Departamento de Bioética da AME-Brasil e por alguns convidados, escolhidos pelo seu saber nos temas específicos e pelo conhecimento da Doutrina Espírita. Os vários temas foram ordenados de uma forma sequencial, abordando inicialmente os conceitos de ética, moral e bioética; a bioética do contínuo feto-idoso; as possibilidades de atuação que a biotecnologia permitiu; os dilemas éticos mais desafiadores; um olhar do direito sobre a bioética numa perspectiva espírita e a parte filosófica que aborda a ética de Jesus; encerrando com uma proposta de um modelo de bioética espírita.
Nossa luta, portanto, é pela união definitiva entre ciência e religião e, sobretudo, para que façamos ciência que tenha como objetivo a glória de Deus, pois é a única maneira de haver paz duradoura entre os homens.

Este livro foi organizado por José Roberto Pereira Santos, coordenador do Departamento de Bioética da AME-Brasil. Os objetivos desse Departamento são:
- dar assistência à Diretoria da AME-Brasil, aos departamentos e às AMEs regionais sobre assuntos pertinentes à Bioética;
- responder às questões de Bioética provenientes de outras entidades ou do público em geral, conforme demandadas pela diretoria da AME-Brasil;
- participar de eventos da AME-Brasil e das AMEs regionais para divulgação e discussão de temas de Bioética (palestras, conferências, seminários, mesas-redondas etc.);
- divulgar a Bioética espírita para o movimento espírita, para os profissionais da saúde não espíritas e o público em geral, no intuito de dar subsídios científicos e espirituais para consolidação do paradigma espiritualista que valoriza a vida desde a concepção até a velhice;
- participar de eventos que promovam a valorização da vida;
- elaborar e/ou atualizar a cada MEDNESP ou por solicitação da diretoria a Carta de Princípios da AME-Brasil.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mai. de 2022
ISBN9786586740103
Bioética Espírita

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    Bioética Espírita - José Roberto Pereira Santos

    PARTE 1 | ConceitosConceitos1

    Ética, moral e bioética

    Angélica Bogatzy

    A bioética, como movimento científico-filosófico, surgiu, de forma conceitual, na segunda metade do século XX, como uma proposta ética de avaliar as consequências e superar os conflitos causados a partir do acelerado desenvolvimento científico-tecnológico e sua repercussão sobre a vida humana e a do planeta (Potter, 1970).

    Esse movimento foi precedido por uma série de acontecimentos sociais e históricos, moralmente questionáveis, ocorridos desde meados do século XIX, dos primórdios da Revolução Industrial, perpassando pelas grandes guerras até chegar no mundo contemporâneo. Episódios estes que, rapidamente, demonstraram a inabilidade do homem em lidar não somente com sua ânsia pelo poder, mas também com seu próprio egoísmo. A nosso ver, colocaram em xeque a maturidade ética proposta por Kant, ainda no século XVIII, que partia do pressuposto ético de que a natureza racional humana existe como fim de si mesma. O imperativo de Kant implicava o entendimento filosófico de ser, ao homem, de uma forma categórica, necessariamente imperativa a mais pura racionalidade na ação ética. Conforme suas palavras:

    Age de modo que a máxima de tua vontade possa valer ao mesmo tempo como princípio de legislação universal. [...] Age de modo a considerar a humanidade, seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro, sempre também como objeto e nunca simples meio. [...] Age de modo que a vontade, com a sua máxima, possa ser considerada como universalmente legisladora em relação a si mesma (Kant, 2002, p. 51; 141; 211).

    Assim foi que a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) marcou, de forma indelével, os rumos éticos de nossa história, ao tornar evidente que o avanço tecnológico seria utilizado pelos homens não para o bem da humanidade, mas, sim, para fomentar a ganância e a sede de poder entre os homens e as nações.

    Como se não bastassem as atrocidades e os abusos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as pesquisas biomédicas hediondamente ilícitas desenvolvidas pela Alemanha nazista (e não somente por ela) e julgadas conjuntamente com os crimes de guerra pelo Processo de Nuremberg (1947-1948), a sociedade mundial se viu escandalizada com a descoberta de que pesquisas eticamente ilícitas foram iniciadas ou desenvolvidas no período pós-guerra, entre as décadas de 50 e 70 do século XX, nos Estados Unidos e em outros países, como, dentre outros, o clássico e condenável Estudo de Tuskegee. Nessa época, já existiam Códigos Éticos Normativos que objetivavam justamente coibir os excessos em pesquisas científicas, como o Código de Nuremberg (1947) e a Declaração de Helsinque (1964) (Hossne; Vieira, 1987). Com o tempo, a própria história demonstrou que esses Códigos Normativos seriam insuficientes para adequar as regras que norteavam a conduta humana e brecar a ilicitude diante do descontrolado avanço científico-tecnológico (Hossne; Vieira, 1987).

    É interessante ressaltar que, muito antes da década de 1970, alguns setores da sociedade mundial já se preocupavam com a falta de critérios para a exploração dos recursos naturais e com as questões acerca de sua insustentabilidade inerente ao avanço científico-tecnológico. Isso culminou num movimento de conscientização ecológica, de repercussão mundial, com a manifestação expressa de ambientalistas importantes que propuseram, em momentos e formas diferentes, a contemplação da natureza e de todos os seres viventes como objeto de aplicação ética.

    O alemão Fritz Jahr, em 1927, cunhou pela primeira vez o neologismo Bio-Ethic, ao escrever um artigo intitulado: Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas, propondo àquele tempo, de forma audaciosa e genuína, um novo imperativo ético, objetivando ampliar aquele formulado por Kant, no século XVIII, de forma a incluir todas as formas de vida como merecedoras de consideração ética (Pessini; Hossne, 2008).

    Albert Schweitzer, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1952, por esse tempo, havia redigido o artigo Ethics of Reverence for Life, em 1923 (publicado somente em 1936), chamando a atenção para a necessidade daquilo que considerava uma ética universal, cuja alçada abarcasse não só o homem e a sociedade, mas todos os seres viventes (Martin, 2007).

    Por sua vez, o engenheiro florestal estadunidense Aldo Leopold, em 1949, formulou um documento intitulado A ética da Terra, propondo a ampliação conceitual do que seriam as fronteiras de uma comunidade, de forma a incluir, a ela: o solo, a água, as plantas e os animais (Potter, 1988).

    Foi na década de 1970 que a questão do meio ambiente passou a preocupar de forma mais ostensiva a sociedade global, ganhando especial repercussão em 1973, com a fundação de uma Escola Filosófica conhecida como Ecologia Profunda, pelo filósofo norueguês Arne Naess. Essa escola surgiu com uma proposta efetiva de se reconhecer o valor intrínseco de todos os seres vivos, passando a considerar o homem apenas como um fio particular na teia da vida (Capra, 2006).

    Foi nesse contexto histórico que o ilustre pesquisador da área de Oncologia da Universidade de Wisconsin, em Madison, nos Estados Unidos, Van Rensselaer Potter, publicou, em 1970, um artigo intitulado Bioethics: The Science of Survival¹, chamando a atenção para as possíveis consequências catastróficas que o avanço científico ilimitado poderia ter sobre o planeta. Suas reflexões eram advindas do desenvolvimento da genética, fazendo ressurgir o neologismo cunhado por Jahr em 1927 (Potter, 1970).

    No ano seguinte (1971), Potter publicou o livro: Bioethics: Bridge to the Future², propondo, como necessária à sobrevivência do homem ou da vida no planeta, uma nova disciplina que objetivasse associar ou incorporar a ética e a reflexão filosófica ao desenvolvimento científico, tendo em vista a necessidade de um equilíbrio entre a participação humana em sua evolução biológica e a harmonia universal (Potter, 1971).

    Segundo Potter (1971, p. 203)³:

    Há duas culturas, ciências e humanas, que parecem incapazes de falar uma com a outra e, se esta é parte da razão de o futuro da humanidade ser incerto, então possivelmente poderíamos fabricar uma ponte para o futuro, construindo a disciplina da Bioética como uma ponte entre essas duas culturas. Os valores éticos não podem ser separados dos fatos biológicos. A humanidade necessita, urgentemente, de uma nova sabedoria que lhe proporcione o conhecimento de como usar o conhecimento para a sobrevivência do homem e a melhoria da qualidade de vida.

    Assim, a construção metafórica de uma ponte que pudesse unir o conhecimento científico ao saber valoroso humano seria o pano de fundo para o desenvolvimento da bioética.

    Simultaneamente, André Hellegers fundou, em julho de 1971, na cidade de Washington, o primeiro instituto universitário dedicado ao estudo da bioética: The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics. A visão bioética desenvolvida em Georgetown, diferentemente da de Potter, deu especial atenção às questões biomédicas e orientou-se filosófica e teologicamente segundo a tradição Ocidental pragmática, concentrando sua atenção exclusivamente aos problemas mais próximos da vida cotidiana (Ferrer; Álvarez, 2005).

    Fica evidente, pelo que foi exposto, que, a partir de 1970, surgiram pelo menos três propostas ético-científicas que, embora contenham especificidades diferentes e aparentemente distintas, foram altamente sensíveis em relação à necessidade da incorporação do pensamento filosófico e de seus saberes, incluindo-se todas as ciências que tratam da humanidade, e ao questionamento sobre a licitude da intervenção das ciências de alto impacto tecnológico na vida em geral: ecológica, segundo Naess; planetária, segundo Potter; e biomédica, segundo Hellegers.

    A bioética, como um movimento específico e com objetivos bem traçados, ao se propor abranger todos os saberes, tornou-se um movimento exponencial, multidisciplinar, que tende a universalizar-se e abarcar de forma integral todo e qualquer tipo de vida, aqui entendida como uma manifestação biofísico-psicossocioespiritual-planetária e cósmica da vida.

    Ética e moral

    A palavra ética provém do grego ethos. Segundo Ferrer e Álvarez (2005, p. 25-26), ethos, em grego, opõe-se a páthos, palavra que significa aquilo que foi dado pela natureza; natural; cuja existência não está subordinada nem à liberdade nem ao esforço humano. É o que foi recebido passivamente, à margem da autonomia e do trabalho, como, por exemplo, patrimônio genético, posição social e lugar de nascimento; heranças naturais que contribuirão com o determinismo cultural e civil de certo indivíduo, em determinada época.

    Segundo a interpretação de Ferrer e Álvarez (2005), o ethos se refere ao esforço ativo e dinâmico da pessoa que, ao elaborar as suas condições de vida, transforma aquilo que foi herdado naturalmente, cunhando-lhe forma humana, no sentido próprio do termo. É assim que, segundo o livre-arbítrio e a capacidade autônoma, o homem poderá esculpir, diante daquilo que é material e que lhe foi concedido pela natureza, a própria identidade pessoal. Com o ethos, o homem adentra-se ao âmbito da liberdade e, por conseguinte, ao âmbito do biográfico e do estritamente moral. Ou seja, o ethos encerra o poder transformador e criativo do homem, cuja ação está fundamentada, sobretudo, na liberdade de escolha, e não em alguma espécie de necessidade.

    Segundo Chauí (2002), páthos opõe-se a práxis, e não a ethos. Por práxis entende-se ação, ato (por oposição à fabricação, poíesis); atividade (por oposição à paixão, passividade, páthos); realização; maneira de agir e maneira de ser. O verbo prátto (no infinitivo: práttein) significa: percorrer um caminho até o fim, terminar, alcançar o objetivo, executar, cumprir, realizar, agir, conseguir, fazer acontecer alguma coisa, fazer por si mesmo. Trata-se da ação no campo ético e político. A práxis difere da poíesis e se opõe ao páthos. Já o ethos, de acordo com Chauí (2002, p. 501), é tratado pela ética, que estuda as ações e paixões humanas segundo o caráter ou a índole dos seres humanos. Conclui-se que o ethos escolhe e determina a práxis, estando direta ou indiretamente relacionados.

    Quanto ao derivado ethos, da palavra ética, em grego, teria duas grafias. Pode ser escrito com eta (η) ou com épsilon (ε), duplicidade gráfica que reúne uma diversidade de significados (Ferrer; Álvarez, 2005, p. 25-26; Comparato, 2006, p. 96; Chauí, 2002, p. 501):

    • ηθοζ – ethos escrito com eta – originalmente significava morada ou lugar de residência. Em determinada época, o termo era usado na poesia grega antiga indicando pastos e abrigos onde os animais habitavam. Com o tempo, passou a ser aplicado também para designar lugar ou residência dos seres humanos, chegando até mesmo a indicar país. Por último, assumiu o significado de caráter, maneira de ser de uma pessoa, índole, temperamento, disposições naturais de uma pessoa segundo o seu corpo e a sua alma, os costumes de alguém (animal, homem, cidade) conforme a sua natureza. Refere-se ao que se faz e ao que se é por características naturais próprias de alguém ou de alguma coisa, o seu caráter. Para Ferrer e Álvarez (2005, p. 26), o caráter representa a disposição fundamental de uma pessoa diante da vida, devendo-se entender o caráter em sua concepção moral, e não psicológica: configuração estável escolhida por uma pessoa em relação à vida; aquilo que determinará o tipo de pessoa escolhido para se ser. O caráter, segundo esses autores, é tido como fundamental para a vida moral, pois configura a própria personalidade, a índole, o que determinará as opções e escolhas diante das intempéries e oportunidades da vida num determinado ser humano.

    • εθοζ – ethos escrito com epsilon – refere-se aos usos e costumes vigentes numa sociedade; secundariamente pode ser interpretado por hábitos individuais. Refere-se ao costumeiro. Segundo Ferrer e Álvarez (2005, p. 26), significa os atos concretos e particulares, por meio do qual a pessoa realiza o seu projeto de vida. Para eles, o caráter moral vai se formando, precisamente, mediante as opções particulares diante do cotidiano. Do ponto de vista moral, somos aquilo que escolhemos. Os autores parecem desvincular o ethos do páthos, forças consideradas diametralmente opostas por eles.

    De uma forma mais prática, aqui vamos considerar por ético a excelência das ações segundo o bem universal; e, por moral, a permissibilidade ou não do que é mais conveniente para uma determinada sociedade

    Modelos bioéticos

    Bioética principialista

    Em 1979, os autores Tom L. Beauchamps e James F. Childress publicaram a primeira edição da obra Principles of Biomedical Ethics⁴, desenvolvida a partir da revisão e do desenvolvimento dos princípios enunciados pela Comissão Nacional do Relatório Belmont (The Belmont Report: Ethical Principles abd Guidelines for the Protection of Human Subjects of Research). Esse relatório foi formulado e publicado em 1978 por determinação de uma lei aprovada em 1974 pelo Congresso dos Estados Unidos (National Research Act) que criava uma comissão encarregada de estudar as questões éticas relativas à pesquisa científica, basicamente nos campos da biomedicina e das ciências do comportamento. Os princípios éticos então enunciados naquele relatório foram: 1) respeito pelas pessoas; 2) beneficência; e 3) justiça.

    A partir do estudo do Relatório Belmont, Beauchamps e Childress (2001, p. 57-112) elegeram e propuseram quatro princípios considerados, por eles, princípios primordiais ou prioritários na reflexão ética do agir, que imediatamente foram aceitos pela comunidade americana e médica mundial. Apesar das críticas, seus conceitos deram corpo a um modelo bioético pragmático até hoje respeitado e muito utilizado em todo o mundo, conhecido por bioética principialista. São eles: 1) respeito pela autonomia; 2) beneficência; 3) não maleficência e; 4) justiça (Beauchamp; Childress, 2001).

    Respeito pela autonomia

    Segundo Beauchamps e Childress (2001, p. 57-58), uma ação é autônoma quando o agente moral age intencionalmente, tendo, ao mesmo tempo, total compreensão das consequências de seus atos, sem permitir que influências externas determinem ou controlem suas ações. Essa intencionalidade, predisposição de se fazer algo, é condição fundamental, sine qua non, necessariamente presente para caracterizar a ação autônoma. A autonomia seria, assim, uma certeza interna absoluta de algo, uma escolha que não admite influências ou interferências, de foro unicamente íntimo, que não permite sequer questionamentos.

    A autonomia lograria, em si, portanto, a crença absoluta em algo, insofismável, que não admite especulação; uma característica íntima dogmática, uma verdade relativa, porém tida, por aqueles que a têm, como absoluta.

    Beneficência

    De acordo com Beauchamps e Childress (2001), beneficência refere-se à realização de atos de misericórdia, bondade e caridade. É qualquer ação humana levada a cabo para beneficiar outra pessoa. Dessa forma, existiria uma obrigação moral, um dever ético intrínseco ao homem que o levaria, por uma disposição natural, a agir e a intervir pelo bem ou a fim de beneficiar os demais.

    No entanto, como uma ação beneficente implicaria custos, riscos e possíveis complicações, a beneficência só poderia galgar-se como princípio bioético se abarcasse, em si mesma, a resolução desses custos, riscos e implicações quaisquer a ela inerentes. Em razão disso, os autores resolveram condicionar o princípio da beneficência ao princípio da utilidade ou da proporcionalidade, alterando pragmaticamente os fins daquela proposição, exigindo concretamente da beneficência uma quantidade tal de benefícios, previamente estabelecidos, àquele que foi objeto do benefício e que compensaria eventual(is) risco(s) (Beauchamps; Childress, 2001).

    Não maleficência

    Esse princípio afirma, no modelo bioético proposto por Beauchamps e Childress (2001), a obrigatoriedade moral de não se causar dano intencional quando de uma deliberação assistencial. O princípio ético da não maleficência estaria condicionado às obrigações negativas, proibições de atos danosos, sejam eles físicos, morais, emocionais, espirituais, cuja infração possa traduzir-se em prejuízo.

    É relevante esclarecer que não causar dano é um imperativo mais importante do que o que prioriza fazer o bem, embora algumas vezes, na biomedicina, existam situações em que essa premissa pode inverter-se. Beauchamps e Childress (2001) afirmam que nem toda ação cuja consequência traduz-se em dor, sofrimento ou lesão constitui uma ofensa no sentido moral. Uma ofensa moral requer dano intencional e injusto, violação dos direitos alheios. Já o dano significaria frustrar ou prejudicar os interesses de alguém, sem que essa frustração ou prejuízo constituam, necessariamente, uma ofensa ou injustiça ao predicado.

    Para esses autores, ainda que as ações danosas sejam incorretas prima facie, podem justificar-se em determinadas circunstâncias. Ao infringir-se injustamente graves lesões corporais ou prejudicarem-se seriamente os interesses fundamentais de outras pessoas, incorre-se em ação danosa moralmente proibida pelo princípio da não maleficência.

    Justiça

    Para Beauchamps e Childress (2001), justiça refere-se ao que é devido às pessoas em uma sociedade, aquilo que de alguma forma pertence-lhes ou corresponde-lhes. Uma questão de justiça é aquela que envolve benefícios correspondentes a alguém ou responsabilidades comunitárias relacionadas à vulnerabilidade.

    Por sua vez, a injustiça é entendida, pelos autores, como a omissão ou perpetração, que nega a alguém ou tira aquilo que lhe era devido, que corresponderia como coisa sua, seja porque foi negado o seu direito, seja porque a distribuição de encargos não foi equitativa. O direito, nesse caso, refere-se ao direito legal estabelecido por lei.

    Na área biomédica assistencial e no modelo bioético proposto, os autores reduziram o conceito universal de justiça ao que eles denominaram de justiça distributiva, referente à distribuição equitativa de direitos, benefícios e responsabilidades ou encargos numa sociedade. Assim, essa justiça implicaria basicamente em dever do Estado e direito do predicado. O seu espectro amplo toca, sobretudo, as leis fiscais, a distribuição ou alocação de recursos para as diversas necessidades sociais: educação, saúde, defesa etc. e a distribuição de oportunidades na sociedade (Beauchamps; Childress, 2001).

    O quantum de justiça oferecido a cada um depende da definição legal de onde começa o dever do Estado e de onde se extingue o direito do cidadão, além, obviamente, da quantidade de recursos políticos destinados às causas sociais. Igualdade, diferença, vulnerabilidade, virtuosidade, boa vontade, mérito, contribuição etc. são algumas das possibilidades de critérios materiais para determinar a intervenção a ser realizada no campo da justiça distributiva.

    No entendimento dos autores, cada um dos critérios materiais de justiça existentes contém uma obrigação prima facie, cuja força vinculadora não pode ser avaliada adequadamente sem levarem-se em conta as circunstâncias particulares ou a esfera da vida na qual o princípio será aplicado. Esses autores, porém, não consideram como parte de seu paradigma o estabelecimento de critérios de precedência ou prioridade entre eles, caso entenda-se necessário incluir todos os critérios numa única teoria de justiça (Ferrer; Álvarez, 2005).

    Modelo libertário

    Em 1986, Tristam Engelhardt, partindo da reflexão acerca da diversidade moral do mundo contemporâneo e de sua particular descrença na capacidade ética racional humana, propôs um novo modelo bioético, cuja finalidade seria a de conseguir solucionar, na resolução dos desacordos éticos, o debate interminável entre estranhos morais (pessoas que não compartilham suficientes premissas morais ou normas de demonstração e inferência moral), uma vez constatada a inexistência de uma visão moral comum que permitisse, nesse caso, a resolução das diferenças, entre as partes, por meio de argumentos racionais válidos, além da falta de uma autoridade moral comum a quem se pudesse recorrer (Ferrer; Álvarez, 2005).

    Segundo Engelhardt, não há uma bioética com conteúdos concretos fora da perspectiva moral particular. A moralidade só seria possível em dois níveis: a moral com conteúdos concretos, que une os amigos morais (aqueles que pensam o bem e o mal de forma semelhante), e a moral procedimental, que, ao se utilizar do acordo ou do consenso entre as partes, une os estranhos morais. De acordo com Engelhardt, moralidade, caracteristicamente, seria vazia de conteúdos normativos concretos e teria por objetivo estabelecer os limites da autoridade para atuar de forma coercitiva. O autor buscou determinar quando se poderia atuar sem a permissão da parte discordante; quando se poderia recorrer legitimamente à força sem lesar a precária ordem moral (Ferrer; Álvarez, 2005).

    Para fundamentar o modelo libertário, Engelhardt estabeleceu dois princípios cardeais da moral secular: 1) o princípio da permissão; e 2) o princípio da beneficência. Eles teriam a finalidade de servir como referência – para ordenar as questões morais e orientar a resolução dos problemas concretos, funcionando como normas – e indicar a fonte ou origem dos direitos e obrigações. Também introduziu, às discussões, os princípios liberais de 3) propriedade e de 4) autoridade política, de forma a avalizar o direito do indivíduo com o seu próprio corpo e sua relação com as coisas, além de definir o limite político do estabelecimento normativo a ser respeitado por todos os cidadãos.

    Princípios da permissão e da beneficência

    De acordo com Engelhardt, o consenso ou acordo mútuo entre pessoas razoáveis seria a única via para se garantir a resolução pacífica dos conflitos morais em uma sociedade secular pluralista. Isso implicaria que, na resolução dos dilemas éticos de uma prática bioética, seja lá qual for, há que se ceder, mais ou menos, em moralidade, para um consenso ou acordo mútuo.

    Um consentimento ou acordo mútuo somente é possível pela moralidade do respeito mútuo ou da permissão, entendendo-se por respeito mútuo a proibição de se usar o outro sem o seu consentimento. Esse princípio cardeal seria amparado, sempre que necessário, pelo princípio da beneficência – as obrigações de beneficência (ou recomendações?) – cuja justificação geral exigiria uma definição do que se entende por bem e uma ordem hierárquica de suas variáveis.

    Segundo o autor, por beneficência entende-se agir beneficamente em nossas relações com os outros, não podendo se justificar o uso da força para obrigar alguém a agir de uma maneira que não desejar. Agir com beneficência é pôr-se a serviço do bem dos outros, levando em conta a definição particular de bem de cada um, relativo ao entendimento do beneficiado, e não de quem está disposto a beneficiar (Ferrer; Álvarez, 2005).

    Princípios de propriedade e de autoridade política

    O primeiro ponto, para fundamentar os princípios de propriedade e de autoridade política como princípios bioéticos, para Engelhardt, parte da percepção da importância que as pessoas ocupam na vida moral. É importante ressaltar que o autor distingue, de uma forma excepcionalmente radical, a pessoa do ser humano, considerando pessoa todo indivíduo que é competente para posicionar-se moralmente a qualquer circunstância, desqualificando todo o resto dessa posição. Para ele, somente pessoas têm carta de cidadania no universo dos seres morais e somente elas podem se interessar pelos argumentos éticos, sendo susceptíveis de ser persuadidas por eles.

    Isso implica em desconsiderar fetos, crianças, deficientes mentais, psicopatas, dementados de toda a sorte e idosos com perda de capacidade cognitiva, dentre outros, como pessoas humanas. Segundo o autor, somente as pessoas poderiam captar o vínculo entre uma ação e o sentido de aprovação ou reprovação moral dela. Ou seja, somente as pessoas racionais, autoconscientes, com capacidade para escolher e com um sentido moral poderiam dar permissão, sustentar debates morais e constituir a comunidade moral.

    O modelo libertário refuta o argumento da potencialidade latente do ser em construção e desenvolvimento. Nele, a questão da potencialidade, do vir a ser, não avaliza a garantia da condição de pessoa humana para embriões, fetos, crianças pequenas pertencentes à espécie humana. Segundo esse modelo, essas entidades não seriam pessoas humanas.

    Engelhardt toma como princípio fundamental a questão das pessoas como propriedade. Assim, para ele, o corpo deve ser respeitado como sendo a própria pessoa, isto é, a moralidade do respeito mútuo deve garantir a posse da pessoa sobre si mesma, permitindo-lhe reivindicá-la ante os demais princípios. Ninguém poderia, assim, fazer uso de um corpo nem de uma pessoa sem a sua permissão. Isso leva à interpretação pragmática do princípio da autonomia, proposto por Beuchamps & Childress, dando-lhe superioridade em relação aos demais.

    Modelo personalista ontologicamente fundado

    Em 1985, foi fundado o primeiro Centro de Bioética da Itália, na Universidade Católica de Roma, tendo como um de seus principais representantes o então diretor dessa instituição, o cardeal Elio Sgreccia. Esse centro, desde a sua fundação, mantém uma perspectiva filosófica que se define como personalismo ontologicamente fundado, de inspiração tomista, em contínua sintonia com os dogmas católicos, desenvolvendo um trabalho vivo e profundo de valorização da vida humana (Sgreccia, 2002).

    É importante frisar a constante busca de se resgatar, nessa escola bioética, o valor da pessoa humana na perspectiva do irmão a ser amado, proposto por Jesus, ou do próprio Cristo, na figura do que mais sofre, numa configuração moralista absolutamente dogmática. Ressalta-se também a contribuição da Igreja Católica na promoção e assistência à saúde, desde o início do Cristianismo, destacando a humanização como um de seus valores elementares, não somente no cuidado com o doente, mas nas relações interpessoais e institucionais.

    Segundo Sgreccia, o personalismo ontológico, para além da capacidade subjetiva e da consciência, fundamenta a pessoa humana na própria existência e na sua essência, constituída na unidade corpo-Espírito.

    A pessoa humana é entendida, aqui, como substância racional individual. Sua personalidade subsiste na individualidade constituída por um corpo que é animado e estruturado por um Espírito. A capacidade de reflexão sobre si mesmo, a autodeterminação, a significação que dá às coisas, a capacidade de dar sentido às suas expressões e a linguagem consciente são algumas das características que tornam o homem uma pessoa humana, diferenciando-o das coisas e dos animais. Razão, liberdade e consciência representariam, assim, uma criação emergente e irredutível ao fluxo das leis cósmicas e evolucionistas, expressão da alma espiritual que informa e dá vida à sua realidade corpórea. O eu, então, filosoficamente, seria entidade irredutível, muito maior que as suas partes; antes, exigiria uma mente para lhe estruturar o cérebro e uma alma espiritual para materializar, guiar e vivificar o corpo.

    Sgreccia (2002) defende que são as estruturas ontológica (sua natureza e essência) e axiológica (seu valor moral) que distinguem a pessoa humana do animal. Em cada homem, em cada pessoa humana, o mundo todo se recapitularia, daí adquirindo sentido biofilosófico. Ali estaria contido o sentido do Universo e todo o valor da humanidade: cada pessoa seria, assim, uma unidade, um todo, e não apenas uma parte de um todo.

    Na escola personalista, a pessoa seria o próprio fim e a fonte da e para a sociedade. Do ponto de vista teológico, cada homem seria a imagem de seu criador, sendo sempre um fim, e não o meio. Entre o lícito e o não lícito, o homem seria, de sua concepção até a morte, o ponto de referência ético em qualquer dilema moral.

    O modelo personalista ontologicamente fundado, o personalismo, não se confunde com o individualismo subjetivista nem com sua capacidade de decisão: o valor maior da vida seria a própria pessoa humana, independentemente da capacidade ou do desenvolvimento racional individual. A dignidade humana estaria irrevogavelmente vinculada ao direito de viver. Esse modelo propõe, a partir de sua fundamentação (a valorização da pessoa humana), quatro princípios como ferramenta de trabalho bioético: 1) princípio da defesa da vida física; 2) princípio de liberdade e de responsabilidade; 3) princípio de totalidade ou princípio terapêutico; e 4) princípio de socialidade e de subsidiariedade.

    Princípio da defesa da vida

    Para a bioética personalista, uma pessoa seria, antes de tudo, Espírito que, transcendendo a matéria e a temporalidade, teria no corpo físico o objeto de sua representação máxima, o seu valor fundamental. O corpo físico material seria a ferramenta através da qual a pessoa se realiza e entra no tempo-espaço, se expressa e se manifesta, construindo e exprimindo os demais valores, inclusive a liberdade e a socialidade, e ao mesmo tempo projetando o futuro.

    O personalismo ontologicamente fundado considera emergente a importância do princípio da defesa da vida em ordem à manifestação dos vários tipos de supressão da vida humana: homicídio, suicídio, aborto, eutanásia, genocídio, guerra de conquista e assim por diante. Ressalta que não se trata apenas do respeito, mas da defesa ativa e promocional da vida humana. Nessa escola filosófica, não se considera qualquer hipótese de supressão direta e deliberada da vida de alguém para favorecer a vida ou as melhores condições-político-sociais de outros, pois a pessoa seria a totalidade de valor, e não uma parte da sociedade.

    Quanto a outras formas de vida, dos animais e dos vegetais, o personalismo ontologicamente fundado reconhece algum valor, destacando que o equilíbrio das várias formas de vida no cosmo está ligado à saúde e à sobrevivência do homem, por isso haveria o dever de se manter esse equilíbrio. Todavia, uma vez que o homem representa um nível ontologicamente superior e transcendente em relação ao reino da vida dos seres inferiores, é natural que o homem se utilize de plantas e animais para a sua sobrevivência.

    Princípio de liberdade e responsabilidade

    O modelo personalista ontologicamente fundado explicita que o direito à defesa da vida é anterior em relação ao direito de liberdade; a liberdade deve arcar com as consequências de seus riscos à própria vida e à vida do outro. Ora, para ser livre, segundo essa escola filosófica, é preciso estar vivo. A vida é uma condição primordial para o exercício da liberdade.

    Assim, do ponto de vista bioético, não existe o direito de se dispor, em nome da liberdade de escolha, da supressão da vida, seja ela por motivo social, cultural ou religioso. Esse princípio sanciona a obrigação moral do indivíduo em colaborar com as terapêuticas ordinárias e necessárias para salvaguardar a vida e a saúde própria e de outrem. No caso da recusa de tratamento indispensável à vida e à sobrevivência, esse princípio garante ao médico, quando por juízo de consciência, impor a terapêutica obrigatória à sobrevivência de seu paciente e, num âmbito mais abrangente, do termo de conduta a regular legalmente uma sociedade.

    O princípio de totalidade ou princípio terapêutico

    Esse princípio se fundamenta no fato de que o corpo humano é um todo individualizado resultante da união de partes distintas e unificadas, orgânica e hierarquicamente entre si, pela existência única e pessoal. Tem por finalidade garantir, diante de um procedimento médico e cirúrgico, a licitude das intervenções, de extrações e mutilações, quando da preservação da vida ou de um bem maior, diante do quadro que se apresenta.

    Princípio de socialidade e de subsidiariedade

    Princípio inicialmente desenvolvido dentro da teologia, diz respeito à socialização da medicina, acesso social e garantia de subsídios para garantia dos cuidados necessários à saúde.

    Bioética personalista espírita

    Em 2000, a Dra. Marlene Nobre, então presidente da Associação Médica-Espírita do Brasil, publicou O clamor da vida: reflexões contra o aborto intencional, um livro de cunho bioético em que abordou o tema aborto numa visão claramente personalista, trazendo, porém,

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