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São Romero dos direitos humanos
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E-book182 páginas2 horas

São Romero dos direitos humanos

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Sobre este e-book

O objetivo deste livro, como seu próprio título indica, é universalizar a figura profundamente humana e profética de dom Romero, trazendo seu legado para nosso tempo atual, no qual os direitos humanos e sociais continuam sendo sistematicamente pisoteados. Com uma linguagem dinâmica, simples e atual, a obra dirige-se a educadores, ativistas, voluntários e a todas as pessoas que buscam, de alguma forma, transformar a realidade em que vivem. O intuito do autor não foi elaborar uma biografia, listando datas e fatos, mas adotar um enfoque ético e pedagógico, apresentando o lado secular, cidadão e educativo do legado de dom Romero, bem como lições éticas que se depreendem dele e algumas pedagogias que podem ajudar a levá-las a cabo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de jun. de 2022
ISBN9786555626247
São Romero dos direitos humanos

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    São Romero dos direitos humanos - Luis Aranguren Gonzalo

    Prólogo

    Muito se escreveu sobre Oscar Romero desde o seu martírio pela justiça, em 24 de março de 1980. Eu estava a ponto de completar vinte anos quando isso ocorreu. Não corriam ventos favoráveis à mudança nem ao compromisso social na Igreja espanhola, naqueles tempos em que a Teologia da Libertação passou a ser vista sob suspeita. Por isso, os cristãos e cristãs de minha geração, nessa onda, encontraram na vida de Romero e suas homilias uma inspiração profética, um poço de Evangelho do qual beber com avidez, buscando como contextualizar, em nossos ambientes, a paixão pela justiça e a esperança contra toda desesperança, que dele manavam. Sigo sendo uma leitora voraz da literatura existente sobre Romero, e é por causa disso que este livro me comoveu.

    Sigo também, já há alguns anos, o seu autor, Luis Aranguren Gonzalo, pois, para muitas das pessoas que têm a vida embarcada na aventura da transformação social, a partir dos contextos de exclusão, constitui um referencial provado do intelectual cristão. Admiro sua opção por pensar com os pés, como diria o também bispo e profeta Pedro Casaldáliga, sem medo de ficar manchado e salpicado pelo barro do caminho e assumindo as consequências do que ele carrega. Seu pensamento evoca e provoca, pois tem a capacidade de apontar sempre ao inédito viável. Assim me aconteceu também com a leitura deste livro, no qual a novidade da perspectiva no enfoque da figura de Oscar Romero me capturou por completo, a partir das primeiras linhas. É possível dizer algo de novo sobre Romero?, se perguntam, porém, alguns e algumas. Luis Aranguren Gonzalo tem a ousadia e a humildade de fazê-lo.

    O livro encontra sua origem em uma conferência pronunciada por seu autor em agosto de 2017, no marco do Fórum Internacional celebrado em El Salvador, por motivo do centenário de nascimento de Romero. Da preparação dessa conferência e das conversas mantidas com Roberto Cuéllar, diretor do Departamento de Assistência Jurídica da Arquidiocese, de onde Romero denunciou a violação sistemática dos direitos humanos, nasce este livro.

    A primeira novidade que apresenta é seu próprio título, São Romero dos direitos humanos. Com ele, alude a uma das intencionalidades da obra: universalizar o Acontecimento Romero; reencontrar sua figura profundamente humana e profética a partir da diversidade de contextos, do aqui e agora, em que os direitos humanos e sociais continuam sendo sistematicamente pisoteados. Como ressignificar, hoje, palavras como dignidade, solidariedade, justiça e reconciliação, diante da violência estrutural que supõem as deportações imediatas de quem se organiza nos montes de Nador ou Beliones, para saltar os muros de Ceuta e Melilha, ou das mortes no Mediterrâneo? Como dotá-las de conteúdo na cultura da pós-verdade e fazê-las historicamente possíveis entre aqueles que permanecem amontoados nos campos de refugiados da Turquia, ou sobem no trem da Besta buscando a vida, mas encontrando a morte, tornando-se vítimas do tráfico e do feminicídio, ou padecendo o fantasma do racismo e da xenofobia da era Trump que nos atravessa, ou o capitalismo selvagem que instalou a precariedade, a exploração e o desemprego de forma estrutural no sistema?

    A segunda novidade é um enfoque ético e pedagógico do livro. A pretensão de que suas páginas, como diz o autor, sejam lidas e amassadas no coração dos educadores e educadoras, dos e das ativistas, que, tanto em âmbitos formais como informais, buscam transformar a realidade local. Sublinha, portanto, o lado secular, cidadão e educativo do legado de Romero, oferecendo algumas lições éticas que se depreendem dele e algumas pedagogias que podem ajudar a levá-las a cabo.

    A terceira novidade afeta a linguagem e o estilo narrativo: dinâmicos, simples, atuais, atrevidos na conexão dos textos de Romero com poemas, canções, filmes da cultura do ativismo social. Uma linguagem e um estilo nos quais rigor e beleza vão de mãos dadas.

    Uma quarta novidade que a leitura deste livro traz é a correlação que faz entre Oscar Romero e o papa Francisco. Entre um profeta, assassinado por sê-lo, procedente do menor país da longínqua América, e um papa reformador e carismático que, como ele mesmo declarou em seu discurso no início do pontificado, vem também do fim do mundo, de um lugar rebelde em sua memória e em suas lutas diante das ditaduras políticas e econômicas, como rebelde é Francisco diante da barbárie e da cumplicidade com a violação dos direitos humanos e dos direitos da terra.

    Deixo para o final uma última novidade à qual o livro aponta, mais como um alerta do que como um desenvolvimento: o risco de domesticar Romero e sua mensagem agora que o reconhecimento de sua santidade saltou do povo à instituição. Por isso, o grito de Romero vive! há de ser um antídoto contra toda forma de atrofia da memória desinstaladora e perigosa do profeta salvadorenho, como desinstaladora e perigosa continua sendo a memória de Jesus de Nazaré.

    Pepa Torres Pérez

    Introdução

    O acontecimento Romero

    O impacto cativante

    Ainda recordo a marca que me imprimiu aquele terrível acontecimento. Pela diferença horária, na Espanha, despertamos com a notícia do assassinato de dom Romero no dia seguinte aos fatos. Naquela manhã de 25 de março de 1980, eu estudava teologia na Universidade Comillas. Fizemos reuniões informativas e conseguimos paralisar toda a universidade durante cinco minutos para manifestar nossa dor e repulsa diante de algo que sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, ia chegar. Todos recordávamos a contundente homilia do bispo no domingo anterior, 23 de março. Aquele cesse a repressão!, dirigido aos soldados da Guarda Nacional, foi sua sentença de morte.

    Naquela mesma tarde de 25 de março, iria participar de uma reunião de caráter pastoral com meu bispo de Vallecas, Alberto Iniesta. A realidade se impôs e modificou a ordem do dia da reunião. Depois de rezarmos juntos, comentamos entre todos a trágica notícia. Também estranhamos não ter havido nenhum pronunciamento oficial por parte da Conferência Episcopal Espanhola.

    Pedimos a Alberto que, ao menos em Vallecas, se celebrassem orações fúnebres às quais fosse convocada toda a comunidade cristã. Isso foi organizado em apenas um dia, sem internet, sem celulares, sem WhatsApp. A igreja do Doce Nome estava para estourar. Na entrada, nos foi entregue uma imagem com a foto de dom Romero e uma frase: Dom Oscar Arnulfo Romero – Morreu e ressuscitou em 24/3/1980. Naquele momento, me recordava do que tinha expressado dom Romero semanas antes: E, se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho. Que imensa lição de teologia prática!, pensava para mim mesmo.

    Certamente, no ambiente, estava o desejo já manifestado ao bispo Iniesta de que ele se transladasse a São Salvador para participar do funeral e do enterro de Oscar Romero. Oficialmente, nenhum bispo espanhol se havia pronunciado a respeito. Porém, Alberto tinha sobre suas costas o impulso de toda a comunidade vallecana, e sobre sua consciência, o dever de estar ali junto ao seu irmão, o arcebispo assassinado.

    Na parte final da sua homilia, Alberto Iniesta trouxe à tona o tema. Manifestou que acreditava que, por motivos de fraternidade e proximidade com a igreja irmã salvadorenha, algum bispo espanhol deveria ir ao funeral de Romero. Nesse sentido, ele estava disposto a ir, porém, com duas condições: a primeira, de que a comunidade ali reunida o pedisse; a segunda, de que a comunidade ali reunida arcasse com as despesas de viagem, posto que nem ele, nem o vicariato dispunham de dinheiro para fazer frente a essa viagem.

    Os que conheciam Alberto sabiam de sua intransigência democrática, ou, o que é o mesmo, seu desmedido respeito pelos procedimentos democráticos (em muitas ocasiões, antes de começar uma votação, sobre o que fosse, propunha – e realizava – uma votação sondagem). Pois bem, naquela homilia, ele nos propôs uma votação levantando a mão. Os termos da pergunta, aproximadamente, eram: Estás de acordo com que eu viaje para São Salvador, e, nesse caso, estás disposto a arcar com os gastos da viagem?. Quando ainda não havia terminado de pronunciar essa frase, alguém, a quem nunca agradeceremos o suficiente esse gesto, começou a aplaudir com força, e, ao aplauso inicial, em poucos segundos, seguiu a aclamação de toda a comunidade ali reunida e posta em pé.

    O bispo Iniesta ficou inicialmente parado e pasmado, olhando para cima com seu pequeno corpo, claramente tomado pela mesma emoção que o resto. Enquanto os aplausos se tornavam cada vez mais fortes, ele se voltou para o altar e, do chão, pegou um grande cesto de vime, que era o que tradicionalmente se utilizava para fazer a coleta nas missas do vicariato. Colocou-se diante do altar, diante da comunidade, puxou para fora do bolso de sua calça uma nota de mil pesetas e depositou-a no cesto. A seguir (sem deixar de aplaudir), os fiéis formaram várias filas para depositar cada qual seu donativo. Esse momento durou muitos minutos. Vizinhos que viviam nas proximidades foram até suas casas para recolher dinheiro, outros depositaram cheques, outros vales, cujo valor entregariam, no dia seguinte, no vicariato... E os aplausos não se detiveram. E parecia que o tempo também não; talvez um pequeno grande êxtase tenha se instalado naquele momento e naquele lugar.

    Anos mais tarde, li em uma homilia de dom Romero, ao comentar o relato da multiplicação dos pães e dos peixes:

    A multiplicação dos pães é um sinal do Reino messiânico. Qual é o sinal? Já o disse o seminarista antes de ler o Evangelho: um problema sem saída humana, uma multidão com fome de pão. As soluções humanas, quão frágeis elas são! O relato dos pães é o sinal da Eucaristia como foi o maná (29/7/1979).1

    A viagem e o regresso de Alberto Iniesta custaria, na época, umas 120.000 pesetas. Na ação de graças daquela Eucaristia, nos foi comunicado que se tinha arrecadado 1.200.000 pesetas.² De novo, uma estrondosa ovação inundou o templo e retumbou por toda Vallecas. O milagre se fez. Compreendi, ali, um dos significados da Eucaristia como complô dos seguidores de Jesus para fazer efetiva, contra toda esperança, a possibilidade de aproveitar resquícios do Reino de Deus onde prevalecem a injustiça, a indiferença ou o fatalismo histórico do nada se pode fazer. Os cristãos se reúnem na Eucaristia para confabular, em um plano libertador que começa em Deus e termina nele.

    Se todos os crentes são testemunhas do Evangelho de Jesus, naquele funeral, todos ficamos preocupados em ser portadores do legado histórico e teológico de Oscar Romero. Portadores do trabalho pela justiça, pela inclusão e pela participação social como forma profética de seguir os planos de Deus e como maneira de nos posicionarmos diante da realidade histórica deste tempo que vivemos.

    Tenho para mim que aquela Eucaristia supôs um movimento interior de grande intensidade. E a fagulha de Romero me acompanhou durante todo esse tempo, embora seja consciente de minha pequena estatura humana e de crente ao lado desse santo do povo. Porém, pouco a pouco, essa árvore centenária em que se converteu Oscar Romero para tantos também se tornou o lugar para onde vou com frequência. Na sombra dessa árvore me abrigo, saboreio uma e outra vez seus textos, tento atualizá-los, e a abraço, como quem se agarra a uma âncora que se afunda na terra. É a terra que tem gosto de povo, de luta cotidiana que não toma a vida como garantida, de esperança de que o Evangelho de Jesus segue sendo Boa Notícia.

    Universalizar Romero

    Passaram-se quase quarenta anos desde o assassinato de dom Romero. Estamos celebrando o centenário de seu nascimento. O que tem a dizer a voz de Romero aos nossos ouvidos, à nossa realidade?

    Em um mundo que galopa à velocidade de vertigem, o que nos indica a figura de dom Romero em relação à nossa implicação na sociedade como cidadãos? O que traz aos educadores, a quem se encontra nas periferias da exclusão e a quem põe sua tenda nesses lugares, a partir de suas associações, plataformas, organizações grandes e pequenas? Como renomeamos, hoje, palavras como dignidade, solidariedade ou justiça, à luz da vida, morte e ressurreição de Oscar Romero? Qual voz de Romero há de se modular hoje em nossos bairros, para que possamos viver juntos na diversidade?

    Vamos nos acostumando a que as personalidades que tempos atrás foram relevantes passem a ocupar um lugar no museu da recordação. Um lugar, em todo caso, secundário e que, pouco a pouco, nos conduz ao esquecimento. A atrofia da memória – escreve Steiner – "é o traço dominante da educação

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