Os filmes e eu
De Zelito Viana
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Sobre este e-book
Os filmes e eu, de Zelito Viana, produtor e um dos fundadores da Mapa Filmes, não é um livro "apenas" sobre cinema. Ao pecorrer sua carreira como produtor, Zelito escreve também sobre a própria vida, a história do cinema brasileiro e as mudanças políticas e sociais pelas quais o país passou.
Estruturado em episódios curtos, escrito com fluidez e com o humor característico do autor, Os filmes e eu traz revelações e reflexões sobre cinema e o fazer cinenamatográfico de sua geração, que enfrentou diversos obstáculos, como a censura e o exílio de vários amigos na ditadura militar. Além disso, narra episódios curiosos, engraçados e até mesmo insólitos, que fazem com que a leitura do livro seja ágil, cheia de movimento e graça.
Ana Maria Machado, que assina a orelha do livro, escreve: "O livro de Zelito ainda nos leva a deslizar pela história recente do país e pelas transformações da sociedade brasileira. A começar pelos parágrafos iniciais, em que, como se seguisse os postulados da epopeia clássica, nos joga de saída "in media res", no meio da ação. Em seguida, navegando por marcos cronológicos que vão recapitulando nossa história das últimas décadas, ele aos poucos recria os impasses e conquistas de sucessivas gerações em sua luta pela democracia. E traz à consciência do leitor a força de histórias simultâneas que convivem, contemporâneas, neste país em que povos originários têm sido desrespeitados e ameaçados de toda maneira."
Os filmes eu funciona quase como um almanaque, fundamental para estudiosos, especialistas e amantes de cinema, sobretudo do cinema brasileiro. É também uma ótima oportunidade para a nova geração conhecer este que é um dos maiores cineastas brasileiros.
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Os filmes e eu - Zelito Viana
1ª edição
Editora Record. Rio de Janeiro, São Paulo.2022
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
V668f
Viana, Zelito
Os filmes e eu [recurso eletrônico] / Zelito Viana. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2022.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5587-573-7 (recurso eletrônico)
1. Zelito, Viana, 1938-. 2. Homens – Brasil – Biografia. 3. Autobiografia 4. Cinema brasileiro. 5. Livros eletrônicos. I. Título.
22-78141
CDD: 920.71
CDU: 929-055.1
Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643
Copyright © Zelito Viana, 2022
Projeto gráfico de capa e miolo: Avellar e Duarte
Fotos: capa, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 (quadro de Aparecida Azedo), 9, 10 (equipe de O caminho Niemeyer), 11, 12, 13, 14, 15: Vera de Paula | 16, 17, 18, 19: Ronaldo Nina | 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26: José Antônio Ventura | 27, 28, 29: José Carlos Avellar | 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41: Arquivo pessoal | 42: Paulo Alberto Monteiro de Barros | 43: David Zingg/Instituto Moreira Salles | 44, 45: Dib Lutfi | 46: Lauro Escorel | 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85 (cartaz do filme Aparecida Azedo), 86, 87, 88, 89 (cartaz do filme O caminho Niemeyer), 90, 91: Divulgação | 92, 93: Zelito Viana | 94, 95, 96: Francisco Balbino Nunes | 97, 98, 99: Walter Carvalho | 100: Sebastião Salgado | 101, 102: Affonso Beato, ASC, ABC | 103: Aruanã Cavalleiro | 104: Betse de Paula
Todos os esforços foram feitos para localizar os fotógrafos das imagens reproduzidas neste livro. A editora compromete-se a dar os devidos créditos numa próxima edição, caso os autores as reconheçam e possam provar sua autoria. Nossa intenção é divulgar o material iconográfico que marcou uma época, sem qualquer intuito de violar direitos de terceiros.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direitos exclusivos desta edição reservados pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.
Produzido no Brasil
ISBN 978-65-5587-573-7
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SUMÁRIO
PRÓLOGO
INTRODUÇÃO
O INÍCIO DO COMEÇO
A TRANSIÇÃO
GOLPE DE 64
A CONVOCAÇÃO
TV-VERDADE
MAPA FILMES, 1965
O BATISMO
UMA LEVE DIVAGAÇÃO DA MEMÓRIA
A PRIMEIRA VEZ A GENTE NUNCA ESQUECE
• Carlos Mariani
DIFILM, 1965
A GRANDE CIDADE, 1966
LEO VILAR
A FESTA DA CUMEEIRA
MARANHÃO 66
UM FÃ IMPREVISTO
TERRA EM TRANSE, 1967
OS NEGATIVOS
GLAUBER E OS ATORES
PAULO AUTRAN
A DUBLAGEM
NOUS NE NOUS OPPOSONS PAS
CHRIS MARKER, PARIS
RUMO À CROISETTE
GOLFADAS NA CROISETTE
NICHOLAS RAY
FAZENDO A CABEÇA
O HOMEM QUE COMPROU O MUNDO , 1968
EUGÊNIO KUSNET
FRANCIS HIME
COPACABANA ME ATERRA, 1968
SOBRE O PADRE E A MOÇA
SÓ O POVO ORGANIZADO DERRUBA A DITADURA
SEMANA DO CINEMA BRASILEIRO NO MOMA, 1968
JOÃO GILBERTO
• Amico, Gianni
CÂNCER, 1968
• Mário Henrique Simonsen
O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO, 1968
O DRAGÃO EM CANNES
JOSEPH LOSEY
PALMA DE OURO
PONTO DE INFLEXÃO
A MAPA VIRA DISTRIBUIDORA
MÁSCARA DA TRAIÇÃO, 1969
MÁQUINA INVISÍVEL, 1969
EM BUSCA DO SU$EXO, 1969 | NA BOCA DA NOITE, 1972
FESTIVAL DE VIÑA DEL MAR, 1969
DER LEONE HAVE SEPT CABEÇAS, 1970
CABEÇAS CORTADAS, 1970
MINHA NAMORADA, 1970
• Armando Costa
A MÚSICA
ENTREVERO
• Fernanda Montenegro
UMA LIÇÃO DE VIDA
O DOCE ESPORTE DO SEXO, 1970
• Chico Anysio
BELÉM-BRASÍLIA, 1973
QUANDO O CARNAVAL CHEGAR, 1973
OS CONDENADOS, 1974
A DESCOBERTA DE OSWALD DE ANDRADE
O ROTEIRO
O FINANCIAMENTO
A EQUIPE
O QUE FAZ UM DIRETOR DE CINEMA?
FRANK CAPRA
A PÁTRIA DE MAHATMA GANDHI
FRANCIS FORD COPOLLA
CORUJA DE OURO
FESTIVAL DE ORLEANS
ZABUMBA, ORQUESTRA POPULAR DO NORDESTE, 1974
EMBRAFILME, 1974
UMA HISTÓRIA DA EMBRAFILME
REUNIÃO COM O MINISTRO REIS VELOSO
A SAÍDA
ABRACI, 1977-1979
JACK VALENTI
PERDIDA, UMA MULHER DA VIDA, 1975
RABO DE FOGUETE
MORTE E VIDA SEVERINA, 1976
UMA HISTÓRIA DAS FILMAGENS
UM ATENTADO À CULTURA
CONCLUSÃO
CHOQUE CULTURAL, 1977
QUEM É O SUJEITO DA ORAÇÃO?
O SONHO DO SOCIALISMO TROPICAL
TERRA DOS ÍNDIOS, 1978
MINHA EXPERIÊNCIA COM OS ÍNDIOS
DARCY RIBEIRO
• Carlos Moreira
• Nelson Xangrê, meu líder
MARÇAL DE SOUZA GUARANI, MEU COMPANHEIRO
SEGUNDOS QUE VALEM UMA ETERNIDADE
UM MOMENTO ESTÉTICO
UM MOMENTO PSICOLÓGICO
• Maria Rosa
O FANTASMA VOADOR
UMA OPINIÃO SOBRE O FILME
UMA VITÓRIA IMPORTANTE
QUERO ÁGUA
UM ENCONTRO CINEMATOGRÁFICO
IDADE DA TERRA, 1980
TV GLOBO CANAL 4, 1981
A PRIMEIRA GRAVAÇÃO
O FIM DAS TELENOVELAS
GLOBO VÍDEO, 1982
BB TUR
CINEANGIOCORONARIOGRAFIA
TANCREDO NEVES
DO OUTRO LADO DO BALCÃO
• Chico Buarque de Hollanda
• Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim
HÉRNIA DE DISCO
CABRA MARCADO PARA MORRER, 1984
UM EPISÓDIO TRAGICÔMICO
OUTRA HISTÓRIA DO COUTINHO
UMA REFLEXÂO SOBRE O CINEMA DOCUMENTAL
AVAETÉ, SEMENTE DA VINGANÇA, 1984
A LOCAÇÃO
O ELENCO
A EQUIPE
ATÉ QUANDO?
O MASSACRE
A MÚSICA
MACSUARA KADIUÉU
• D. Tomás Balduíno
MATA FECHADA
UMA HISTÓRIA DAS FILMAGENS
OS PROFISSIONAIS QUE SAÍRAM DE LÁ
UM FESTIVAL NA UNIÃO SOVIÉTICA
ANGOLA
HOMENAGEM EM 2014
VILLA-LOBOS, 1985
A PRIMEIRA PRODUÇÃO
MAPA VÍDEO, 1990
A PARCERIA COM A TV
MÍDIA, MENTIRAS E DEMOCRACIA, 1992
IMAGENS DA HISTÓRIA, 1995-2002
ABUJAMRA X EDUARDO COUTINHO
CONSELHO DE CULTURA, 1995
VILLA-LOBOS, UMA VIDA DE PAIXÃO, 2000
UMA AVENTURA MUSICAL
O VOO DO DINOSSAURO
UM FILME ATRÁS DO OUTRO
O ELENCO
UMA HISTORINHA DE FILMAGEM
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AUGUSTO BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO, 2008
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O GERENTE, 2009
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UMA HISTÓRIA INACREDITÁVEL!
MAPA 50 ANOS, 2015
A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA, 2016
EPÍLOGO
ANEXO 1
MORTE E VIDA SEVERINA, Carlos Diegues, 1977
ANEXO 2
MORTE E VIDA SEVERINA, Sergio Augusto, 1977
ANEXO 3
O PRIMEIRO EZPECTADOR, José Carlos Avellar, 2015
Para Vera, meus filhos, meus netos e para minha família do cinema.
PRÓLOGO
SEQUÊNCIA 1 – CASA DO CASAL – NOITE
– POLÍCIA! Cadê o cofre?
Uma poderosa pistola automática prateada em super close encostada no meu nariz. Atrás dela, um pivete com cara de ter uns quinze anos arranca o boné e repete aos berros:
– POLÍCIA! Cadê o cofre? Ô, coroa, anda, porra! Cadê o cofre, caralho? – grita mais uma vez, enquanto me derruba no chão e chuta com violência, sem parar, meus rins.
Nesse clima de seriado da Netflix, ficaram cinco homens, na minha casa no Cosme Velho, por mais de cinco horas, com Vera – minha mulher –, eu e mais três queridas amigas com vidas dedicadas à educação: Eloisa Guimarães, Lucia Siano e Philomena Gebran. Levamos muita porrada!
Essa mesma casa, situada na rua Senador Pedro Velho, 339, embaixo do Cristo Redentor, foi cenário de muitos episódios interessantes da história do Brasil do século 20. Cometendo muita injustiça, permito-me nomear alguns: a campanha frustrada para a candidatura do Rio de Janeiro às Olimpíadas de 2000; a campanha do senador Roberto Freire para a presidência da República em 1986; a reunião em que Celso Furtado virou ministro da Cultura. A casa serviu de guarita a guerrilheiros brasileiros e tupamaros, asilados latino-americanos, cineastas perseguidos, índios de diversas tribos, enfim, vivemos incontáveis e inesquecíveis momentos naquela locação.
No último assalto, o quinto que sofremos ali, muitas coisas foram levadas, sendo a mais importante uma primeira versão deste livro, com cerca de 180 páginas recém-escritas, que não tinha backup e sumiu no morro do Coroado, o que contribuiu para atrasar sua publicação por vários anos.
O tresloucado período de pandemia em que vivemos (2020) me colocou frente a frente comigo mesmo. É hora de encarar o livro e enfim terminá-lo.
Na varanda da casa do Cosme Velho.
INTRODUÇÃO
Sempre que conto histórias, incidentes de filmagens, logo alguém sugere que eu deveria escrevê-los, por ser muito engraçado.
Alguns amigos viviam me provocando e dizendo que eu era muito mais engraçado que meu saudoso e querido irmão Chico Anysio. Posso até ser mais engraçado, mas quem ganhou grana com isso foi ele. E muita, graças a Deus.
A esta altura da vida, em que os minutos custam a passar e os anos voam, me animei a seguir a sugestão. Tenham a bondade de se divertir com algumas histórias, umas vividas, outras contadas, algumas possivelmente inventadas, que trazem em comum o mundo que se apresentou a mim como o mundo do cinema.
O INÍCIO DO COMEÇO
Apesar de não acreditar e, em consequência, não entender nada de astrologia, sou obrigado a reconhecer que me comporto como um taurino de almanaque
: obstinado, teimoso, lento, amoroso, rabugento e determinado. Nasci no dia 5 de maio de 1938, às onze da manhã, no bairro de Benfica, fronteira com Gentilândia, em Fortaleza, no Ceará. Caçula temporão de uma família de artistas. Do meu pai, herdei o senso de humor, que já me causou inúmeros problemas, pois sou daqueles que não conseguem deixar escapar uma piada. Da minha mãe, o amor pela música. Dona Haydée era dotada de um ouvido absoluto. Você emitia qualquer som e ela imediatamente dizia a nota. Aprendeu a tocar numa tábua desenhada como se fosse um piano. Uma vez por semana tocava de verdade, no piano da professora. Não virou pianista devido ao tamanho dos dedos, muito pequenos, que dificultavam a execução das oitavas.
Com Dona Haydée, minha mãe, e minha irmã Lilia.
Como gostava muito de matemática, cometi o equívoco do senso comum de estudar Engenharia. Em 1960, formei-me em Engenharia Civil na Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, no largo de São Francisco, Rio de Janeiro.
Meu primeiro contato com a escola foi pelas mãos de um veterano, que apontou para um lourinho magricela e me aconselhou veementemente:
– Afaste-se daquele ali, ele é comunista!
Ora, aquele conselho, para uma pessoa com 18 anos incompletos, que sabia todas as respostas para as questões da humanidade – característica básica de um comunista do final da década de 1950 –, caiu como sopa no mel. Foi com aquele mesmo que me enturmei.
O louro magricelo era o nosso superquerido, imenso cineasta, meu irmão em várias encarnações, batizado Leon Hirszman ou, como mais tarde o chamaria Glauber Rocha, Leon H.
Adolescente.
Sempre liderado por Leon H., fiz política estudantil como eterno candidato ao diretório acadêmico, sistematicamente derrotado pela direita
(as aspas vão por conta de, nos dias de hoje, ninguém mais saber muito bem o que é direita e esquerda), que dominava a escola de engenharia naqueles tempos. Graças a uma manobra política inteligente, quando estávamos no quarto ano, fizemos uma chapa puro-sangue comunista
e mandamos todo mundo votar na chapa de centro
, que nada mais era do que a nossa mesmo, mas que, com a presença dos queimados
como candidatos, não poderiam ser rotulados de comunistas. Nossa chapa puro-sangue
teve 13 votos. Apenas nós votamos em nós mesmos. A chapa de centro
ganhou de barbada, com mais de 70% dos votos. Ou seja, todo mundo queria mudar, só não queriam os comunistas.
Ali compreendi o nível de preconceito que esta simples palavra carregava: Comunista!
Naqueles tempos, emprego para engenheiro era barbada. Havia leilão desde os bancos da escola.Meu primeiro emprego depois de formado foi o de diretor técnico de produção da Usina de Aços Especiais, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ali aprendi a encarar com naturalidade situações extremas. Era eu que autorizava a corrida do aço, ou seja, o esvaziamento de oito toneladas de um forno de aços especiais fervendo a 1.500ºC. O valor de uma corrida
era mais de mil vezes meu salário. Todo mundo ficava me olhando à espera da palavra final: Corre!
Portanto, dizer hoje em dia Ação!
num set de filmagem, na frente do nível de responsabilidade que tinha naquela época, é uma brincadeira. Podemos concluir que minha irresponsabilidade vem de longe.
Em 1961, fiz um curso de pós-graduação em Engenharia Econômica capitaneado por Mário Henrique Simonsen, de quem tornei-me amigo. Adiante contarei mais sobre o gênio e grande cantor de óperas frustrado que ele era.
Nesse mesmo ano, casei com Vera Maria Borges Palmeira, que me atura até hoje. Nos anos seguintes, tivemos dois extraordinários filhos, Betse, em 1962, e Marcos, em 1963.
Posso afirmar sem modéstia que era um engenheiro de futuro. Utilizando um recurso que no Ceará tem o nome de sopa de pedra
, consegui voltar à Europa, onde Vera e eu tínhamos passado a lua de mel. Candidatei-me a uma bolsa de estudos na embaixada da França dizendo que tinha um salário garantido no Brasil e a passagem de avião. Consegui a bolsa, fui no emprego e disse que tinha uma bolsa para estudar na França e uma passagem de avião, eles me garantiram o salário. Finalmente, fui ao Itamaraty e disse que tinha uma bolsa e um salário. Eles me deram a passagem e mais uma graninha de argent de poche, como dizem os franceses. Assim, consegui morar um ano na França e na Alemanha, nas bocas de fornos elétricos, me especializando na fabricação de aços especiais.
Voltei ao Brasil no final de 1963 cheio de conhecimento e gás para ajudar no crescimento de um país que caminhava a passos largos para criar uma sociedade mais justa e fraterna. Ah, bons tempos aqueles. Já se passou mais de meio século e continuamos quase no mesmo lugar. Só exclamando em bom português: Puta que o pariu!
A TRANSIÇÃO
Em fevereiro de 1963, durante um dos piores invernos que a Europa enfrentou no século 20, o rio Reno congelou. Na qualidade de estagiário da aciaria, eu fazia plantão na boca de um forno elétrico, próximo ao quarto de pensão que dividia com Vera, na cidade de Krefeld, perto de Colônia, quase na fronteira com a Holanda. O portão da usina DEW (Deutsche Edelstahlwerke, fabricante dos canhões Krupp) ficava a uns 400 metros à direita. Eu pegava no primeiro turno e tinha que estar na boca do forno às seis da manhã. Por conseguinte, pelas cinco e meia, escuro como breu, caminhava os 400 metros contra o vento, sobre uns 20 a 30 centímetros de neve. A cada passo, meu sapato, com sola preparada para aguentar temperatura de 1.500ºC, enterrava seu peso de cinco quilos na neve branca.
Betse, Marcos e Vera, em Copacabana.
Primeiro aniversário de Marcos, em 1964.
Nesses momentos, confesso que me passou algumas vezes pela cabeça a pergunta: O que é que eu fiz de errado na minha vida até agora para merecer um castigo como esse?
Ali comecei a perceber que não era tão feliz como pensava exercendo a profissão de engenheiro metalúrgico.
GOLPE DE 64
No dia 31 de março, por volta das seis e meia da tarde, tentei entrar na sede da UNE (União Nacional dos Estudantes), na praia do Flamengo. Ardia em febre. Meu irmão Chico Anysio havia topado fazer o show de estreia do teatro da UNE e eu era o portador da boa notícia para Vianinha, que havia me pedido para fazer o convite. Nosso companheiro e grande artista Oduvaldo Vianna Filho abriu a porta meio esbaforido e disse que estavam numa reunião muito importante e mais tarde me receberia. Voltei para casa.
Estava me sentindo mal. Deitado na cama, febril, fiquei acompanhando os acontecimentos do dia primeiro de abril. Ouvia a rádio da legalidade
do Brizola e achava que estávamos abafando. Estamos ganhando em toda parte. Acreditava eu.
De repente, alguém telefona e, como dizia Nelson Rodrigues, sentencia: Liga a televisão!
Ao ligá-la, imediatamente vejo um oficial do Exército, fardado, invadindo o Forte de Copacabana com um simples tapa na cara da sentinela. No mesmo take, feito da janela da TV Rio, em Copacabana, o cameraman fez uma panorâmica para a esquerda e flagrou uma pelada superanimada nas areias do Posto 6. O povo não tinha a menor ideia do que estava acontecendo.
Meu sogro, o deputado pelo Partido Comunista Sinval Palmeira, vestiu-se com a elegância que lhe era peculiar e dirigiu-se, a pedido de Luís Carlos Prestes, de quem era advogado, ao Palácio Laranjeiras, para uma audiência reservada com o presidente da República. Dr. Sinval não conseguiu chegar nem na rua Farani. Jango já estava no Uruguai havia muitas horas.
A UNE foi incendiada, e seu teatro jamais inaugurado. Com o golpe, o sonho de construir um país menos injusto ia, mais uma vez, por água abaixo.
A CONVOCAÇÃO
Nos meses seguintes após o golpe de 64, encontrava-me no final de uma tarde em plena praça Quinze olhando com tristeza meu carro com os quatro pneus literalmente arriados, obra do famigerado coronel Américo Fontenelle, que acreditava que, com medidas radicais como aquela, estava organizando o trânsito do Rio de Janeiro. Procurando uma maneira de resolver o problema, deparo-me com Leon H. no volante de um carro, em direção à Zona Sul.
– Leonzinho! Para onde você está indo, rapaz?
– Vou pra Copacabana.
– É pra lá mesmo que eu vou.
Abandonei o carro pensando depois eu resolvo esses pneus
e segui viagem com o velho companheiro de escola.