A Reforma da Natureza
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A Reforma da Natureza - Monteiro Lobato
A Reforma da Natureza
Os personagens e a linguagem usados nesta obra não refletem a opinião da editora. A obra é publicada enquanto documento histórico que descreve as percepções humanas vigentes no momento de sua escrita.
Cover image: Shutterstock
Copyright © 1941, 2022 SAGA Egmont
All rights reserved
ISBN: 9788726949803
1. E-book edition, 2022
Format: EPUB 3.0
No part of this publication may be reproduced, stored in a retrievial system, or transmitted, in any form or by any means without the prior written permission of the publisher, nor, be otherwise circulated in any form of binding or cover other than in which it is published and without a similar condition being imposed on the subsequent purchaser.
This work is republished as a historical document. It contains contemporary use of language.
www.sagaegmont.com
Saga is a subsidiary of Egmont. Egmont is Denmark’s largest media company and fully owned by the Egmont Foundation, which donates almost 13,4 million euros annually to children in difficult circumstances.
Primeira parte
A reforma da Natureza
Quando a guerra da Europa terminou, os ditadores, reis e presidentes cuidaram da discussão da paz. Reuniram-se num campo aberto, sob uma grande barraca de pano, porque já não havia cidades: todas haviam sido arrasadas pelos bombardeios aéreos. E puseram-se a discutir, mas por mais que discutissem não saía paz nenhuma. Parecia a continuação da guerra, com palavrões em vez de granadas e perdigotos em vez de balas de fuzil.
Foi então que o rei Carol da Romênia se levantou e disse:
– Meus senhores, a paz não sai porque somos todos aqui representantes de países e cada um de nós puxa a brasa para a sua sardinha. Ora, a brasa é uma só e as sardinhas são muitas. Ainda que discutamos durante um século, não haverá acordo possível. O meio de arrumarmos a situação é convidarmos para esta conferência alguns representantes da humanidade. Só essas criaturas poderão propor uma paz que, satisfazendo a toda a humanidade, também satisfaça aos povos, porque a humanidade é um todo do qual os povos são as partes. Ou melhor: a humanidade é uma laranja da qual os povos são os gomos.
Essas palavras profundamente sábias muito impressionaram aqueles homens. Mas onde encontrar criaturas que representassem a humanidade e não viessem com as mesquinharias das que só representam povos, isto é, gomos da humanidade?
O rei Carol, depois de cochichar com o general de Gaulle, prosseguiu no seu discurso.
– Só conheço – disse ele – duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas. A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.
Mussolini, enciumado, levantou o queixo.
– Quem são essas maravilhas?
– Dona Benta e Tia Nastácia – respondeu o rei Carol –, as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Picapau Amarelo, lá na América do Sul. Proponho que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.
– Muito bem! – aprovou o duque de Windsor, que era o representante dos ingleses. – A duquesa me leu a história desse maravilhoso pequeno país, um verdadeiro paraíso na terra, e também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom-senso de Tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o Sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade.
Os grandes ditadores e os outros chefes da Europa nada sabiam do Sítio. Admiraram-se daquelas palavras e pediram informações. O duque de Windsor começou a contar, desde o começo, as famosas brincadeiras de Narizinho, Pedrinho e Emília no Picapau Amarelo. O interesse foi tanto que pouco depois todos aqueles homens estavam sentados no chão, em redor do duque, ouvindo as histórias e lembrando-se com saudades do bom tempo em que haviam sido crianças e, em vez de matar gente com canhões e bombas, brincavam na maior alegria de esconde-esconde e chicote-queimado. Comoveram-se e aprovaram a proposta do rei Carol.
Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, Tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom-Senso na Conferência da Paz de 1945.
Com grande naturalidade Dona Benta aceitou o convite e deliberou seguir com todo o seu pessoalzinho – menos a Emília. Emília recusou-se a partir porque estava com a ideia que lhe veio pela primeira vez quando ouviu a fábula do Reformador da Natureza. Fazia já meses que Dona Benta havia contado essa fábula assim:
O REFORMADOR DA NATUREZA
Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de botar defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia tolices.
– Tolices, Américo?
– Pois então?!… Aqui neste pomar você tem a prova disso. Lá está aquela jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas e mais adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule de uma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas – punha as jabuticabas na aboboreira e as abóboras na jabuticabeira. Não acha que tenho razão?
E assim discorrendo Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.
– Mas o melhor – concluiu – é não pensar nisso e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?
E Américo Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.
Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, inteirinho reformado pelas suas mãos. Que beleza!
De repente, porém, no melhor do sonho – plaf!, uma jabuticaba cai do galho bem em cima do seu nariz.
Américo despertou de um pulo. Piscou, piscou. Meditou sobre o caso e afinal reconheceu que o mundo não estava tão malfeito como ele dizia. E lá se foi para casa, refletindo:
– Que espiga!… Pois não é que se o mundo tivesse sido reformado por mim a primeira vítima teria sido eu mesmo? Eu, Américo Pisca-Pisca,