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Os Postais de Onde Vens
Os Postais de Onde Vens
Os Postais de Onde Vens
E-book135 páginas1 hora

Os Postais de Onde Vens

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Sobre este e-book

Testemunhados e acessados por um narrador ardiloso, diferentes gerações refletem sobre o peso das escolhas e sobre as consequências que carregam ao longo de suas biografias.
Personagens se encontram presos, não pelas paredes da sala ou pelos limites das páginas, mas sim pelos recuos e omissões do passado presenciados na atualidade narrativa que ora os mantém sólidos ora os fazem viver somente na fluidez das lembranças que guardam.
Na voz de outrem, ou na dos mesmos, cada indivíduo nos expõe um caminho próprio.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de jun. de 2022
ISBN9786584634145
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    Pré-visualização do livro

    Os Postais de Onde Vens - Adson Santos

    EDITOR

    Jeferson Barbosa

    PRODUÇÃO EDITORIAL

    Juliana Matos

    ASSISTENTE EDITORIAL

    Cecilia Siessarrua

    REVISÃO

    Luisa Serrano

    Capa e Projeto Gráfico

    Jeferson Barbosa

    FOTO DE CAPA

    Hyères, France de Henri Cartier-Bresson (1932)

    ISBN

    978-65-84634-14-5

    Todos os direitos desta edição reservados à

    MONDRU EDITORA

    www.mondru.com

    Goiânia - GO

    O sol mal cabia ali. O batente nem morno nem frio, duas xícaras azuis com prédios de marfim e um letreiro cor-de-mel por onde escorria chá. Duas colheres de açúcar mascavo em cada uma, acompanhando um pingo de limão silvestre e alguma voracidade no olhar, na forma precipitada que segura o talher ou o bule de cerâmica.

    Sentiu o aroma baforar pensamentos confidentes como se ele lhe lembrasse de súbito algo íntimo. Pôs duas mãos no colo e inclinou levemente a coluna para frente e para trás algumas vezes, como se pescasse algo da própria mente, fisgando-o em forma de sílabas truncadas e lutando bravamente para mantê-las na proa.

    Cerca de três minutos depois, ouve um som que procede de um silêncio incomum, como alguns zumbidos e sussurros na ponta da orelha. Estremece, revira os olhos, balbuciando outros sons igualmente incompreensíveis, como se andasse por dentro. Mãos nas costas, rosto curvado e o olhar distante, mas passageiro daquele andar forte, cadenciado. Fiel e inquieta; assiste.

    Sabia que ali era o seu lugar favorito. Os olhos encontram o chão fissurado, formigas andam por ali carregando farelo de bolo ou os grãos das quatro colheres de açúcar. Em algum lugar dali, há um casebre com a fechadura quebrada, seus dois enormes portões de maçaranduba despem sombras dos seus telhados vermelhos e envernizados. O cheiro das plantas, do arado servido, dos bons homens sentados no chão em círculo contado casualidades, das mulheres esparramadas no riacho escaldando tecidos de todo peso e tamanho enquanto aquela espuma escorrega riacho abaixo.

    Não nutria por nada nem ninguém maior amor e respeito, e se andasse sobre todas as terras do mundo, jamais estaria em casa, jamais seria o seu lar, como os picos altos e planos que descia com carrinhos feitos de esferas de ferro e madeira da Marcenaria do Sr. Martins quando pequeno. O queixo firme, os olhos lacrimejados para o horizonte, cheio de promessas brilhantes que soltavam da mata como as estrelas soltam do céu. Imaginava sozinho no escuro todas as cores do mundo chamuscando os sonhos infantis de grandeza, o que o atingia como brutalidade. Sentia ainda uma necessidade quase cívica de viver para sempre ali.

    Naquela manhã, Alberto segurou a porta e se inclinou na outra extremidade como gangorra. Olhou admirado para fora. O chão ainda molhado, os cães correndo e o letreiro piscando. Sentou-se na cabeceira, pôs o sapato com um ar irradio. Queria deitar ali e dormir até o dia seguinte ou fechar os olhos e ouvir o assobio firme e contagiante dos pássaros, arquear os dedos na janela e ver tudo girar. Mas tinha uma obrigação quase formal. Quase, pois se não fosse a sua última visita ao colégio, se sentiria melhor com os olhares culposos e as insinuações. Era um homem infeliz, ele pensava. Só poderia ser, pois aquela vida de nada lhe agradava. Os postos de gasolina se tornaram sua segunda casa e até mesmo os hotéis, espalhados pelas bordas do país, tinham essa característica familiar. Seus filhos eram duas crianças gentis e amorosas, mas às vezes, que Deus lhe perdoasse, sentia como se eles fossem um castigo.

    Sentia falta do pai. Cada vírgula, cada freio, cada ponto ou exclamação, cada palavra que entrava vorazmente por um ouvido e saia escorregadio pelo outro. E pouco importava a introspecção da prece, era fiel e rígido. Essa combinação o impediu de seguir o curso do luto, e estacionado nele ficou. Quando olhavam para Alberto, viam um vazio. Uma dor, uma boca, um segredo que não rege, uns sinais de ruptura, um buraco, uma goteira. Viam o sinal de fumaça, enquanto queimava por dentro, manchando os olhos de uma penetrante dureza, nunca desviados.

    Alberto chega cedo, como de costume. Abre o paletó, põe uma música qualquer, simulando completa afinidade com o gênero. Tira as sandálias, uma aquisição recente que dava conforto aos pés calejados. Termina seu sanduíche de frango, deixa o café esfriar. Abre uma porta, entra em outra. Conversa com a enfermeira antes de adentrar um recinto amplo, com quatro janelas na frente, pilastras azuis no centro, cadeiras espalhadas em círculo. Ainda olha para trás conferindo as respostas de Luana. Quando o ponteiro atinge dois números pares, ele sacode seu avental, tira o jaleco, empunhando a sua cartola e o seus sapatos de pano. Carteira na mesa, óculos em cima do teclado, os olhos lacrimejando. Talvez seja a máquina de raio-X ou a tela do computador. O entre e sai se torna escandaloso na sua rotineira despedida. Pacientes dão entrada, outros recebem alta. Tentam, a todo custo, retardar sua saída. Ele, que se mostrava o homem mais paciente do mundo, sorria com determinante atenção enquanto passava os dedos em receitas, bulas, atestados e exames.

    Sentia-se tão sortudo pela vida que tinha.

    Entrou no carro cansado, quase dormindo, quase certo de que deveria colocar uma cama na sua sala, esticar os horários, abrir espaço entre a escrivaninha e o receituário no meio de uma penca de amostras grátis que recebe da indústria farmacêutica. Talvez na próxima semana. Ainda de olhos abertos, ombros esparramados no assento, os olhos por cima dos óculos que caem lentamente. Ainda dizia baixo, como se já estivesse em casa: talvez na próxima semana....

    Uma voz familiar ele finge ouvir, enquanto olha despreocupado para Clara. Grita, mas não muito. Pede socorro com os lábios colados, com o suor interrompido. Das longas e automáticas portas saem dois enfermeiros. Um segurando uma cadeira de rodas e o outro para fazer presença diante do chefe. Ele diz, com nicotina nas pontas dos dedos, esfarelando uma porção de papéis, num tom calmo, mas urgente;

    – Adiantem logo isso! Ela não tá bem. Vocês estão me ouvindo?

    Ouve a pergunta como se fosse burocrático demais, cansativo até para um homem repleto de paciência.

    Ele desce as escadas, e imagina como será sua vida de agora em diante. Quando terminou de montar o berço, viu que faltava um parafuso. Deixou sem. Queria passar depressa por tudo, com muita fome e muita sede. Desejava secretamente que Clara pintasse mais e que, entre os primeiros aniversários dos gêmeos, pudesse deixar o trabalho e ficar mais em casa. Quando desce o último degrau, ouve um choro vindo do andar de cima, revirando completamente o trajeto por segundos. Os braços soltos no ar, como um bambolê. Seus olhos em um giro único, estático.

    Sempre quis filhos, sempre desejou ser pai. Lembra do dia que a conheceu, como falou da sua vida pobre no interior e de como a maneira que ela o olhava fazia ele se sentir mais vivo. E como via nele o homem que passou a ser para todos. Sobe mais um degrau, completamente perdido.

    Clara era mais jovem do que ele dois anos. Nascera na capital, e tinha dois irmãos mais velhos. Sonhava em ser bailarina clássica, mas o tempo passou e junto a ele seus sonhos mais nobres. O irmão do meio se chamava Henrique e era o seu maior confidente. Lembrava de contar estrelas sob o céu ainda descortinado, e encaminhar suas preces como o vento encaminha os barcos para o destino mais firme, para o solo mais fértil. Gostava de respirar o ar meigo do irmão que, mesmo mais velho que ela, parecia tão dócil e sonhador e tão confidente das preces silenciosas. O irmão mais velho se chamava Júlio, o mais gentil e doce ser que conhecera.

    Júlio morava no centro e dava aulas particulares de violão. Não era certo chamá-lo de artista (pois não gostava), mas era o talentoso –, como jamais Clara imaginou ser. Era um homem inquieto, mas que se fez presente mesmo na ausência. Amava os dois, indiferente, sem preferência. Apesar dos desagrados frequentes de Júlio, ambos formavam

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