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A Luz Sinistra Da Lua
A Luz Sinistra Da Lua
A Luz Sinistra Da Lua
E-book534 páginas7 horas

A Luz Sinistra Da Lua

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Sobre este e-book

Mulher de 40 anos se envolve com jovem 20 anos mais novo e perde o controle da situação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de nov. de 2015
A Luz Sinistra Da Lua

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    A Luz Sinistra Da Lua - Oinotna Odlavso

    A luz sinistra da lua

    Prelúdio

    A busca da felicidade, a procura de um espaço para viver em harmonia e se sentir à vontade no mundo é a expiação da existência. Mas essa ambição, a maior aspiração da experiência humana na terra, entra em conflito com a natureza conformista da maioria dos seres humanos, a tendência a se aquietar com a condição de títere de um destino tirânico alheio à sua vontade. Os que se atrevem a desafiar o padrão da existência com a pretensão de romper a resignação e alcançar a felicidade, de superar o fatalismo da sina e atentar uma cruzada em busca da realização de um sonho, de repente podem se dar conta de uma verdade ameaçadora: sonhar é perigoso.

    Sonhar implica em riscos, desenganos, frustrações, feridas na alma que nunca mais cicatrizam. A realidade que está à espera numa curva da estrada ordinariamente não se aproxima das imaginações, a não ser como fantasia, como alucinação. Está sempre à espreita o medo da desilusão, o assombramento do desengano, atrás daquela cortina negra e opaca da desconfiança.

    Por que então arriscar, se o paraíso atrás da cortina baça tem grandes chances de ser de isopor e se desfazer com um sopro?

    Não é preciso muita valentia para renunciar a audácia de levar a termo a cobiça de tentar ser venturoso como nos devaneios. É mais conveniente desistir dos sonhos em proveito da quietação sem desafios, afogar os hábitos tediosos do dia a dia num labirinto do cérebro sob a ação analgésica de endorfinas que fazem esquecer a amargura existencial com doses de falsa fortuna evitando as precipitações de alternativas extravagantes, continuar a viver sem os percalços de novidades a vida que não se gostaria que fosse aquela e que se vive com resignação pela pura ausência de coragem e iniciativa.

    Porém há casos em que a acomodação é irrompida involuntariamente, de chofre, e aquela cortina negra derrete num passe de mágica. É quando o ser humano se vê na frente da surpresa deliciosa de sentir a própria alma se desprender do que era a rotina inevitável da vida conformada e dar de cara com um portal aberto para outro universo cuja vista seduz pela impressão maravilhosa de estar diante de um sonho de felicidade possível de ser realizado. Então é preciso bravura para ultrapassar essa fronteira entre o que é conhecido, sossegado e seguro e o que é estranho, desconhecido e, portanto, perigoso; insensatez para experimentar esse novo ambiente de encantos cujo passaporte é a desistência dos limites morais e emocionais que aprisionam na habitual forma de convivência e reprimem o voo de pássaro livre; fascínio pelos mistérios e prazeres do novo universo que aparece depois daquele véu que se arredou por acaso: um céu de opala onde agora faz sentido olhar o mundo e ter bons pensamentos, esperanças e deslumbramentos.

    A armadilha é que este é um caminho sem volta, não existe uma via de retorno para os arrependidos. Quando aquela cortina é fendida e ultrapassada, não há como reparar esse incidente e viver depois como se nada tivesse acontecido, como quem nunca tivesse descoberto que era infeliz e não se importasse com os caminhos da felicidade. Uma vez tomada a decisão de ir em frente não há nada que possa ser feito depois de ultrapassado o limiar da cortina encantada para recuperar o passado, trazer de volta o que se pensava ser antes do sonho e enterrar numa cova sem epitáfio o tipo de gente diferente, transformada pelo novo universo para além da passagem rachada. É inútil lamentar sob o julgamento arrependido de que seria maravilhoso ter prosseguido sendo infeliz com a resignação dos que fingem ignorar essa infelicidade.

    O caminho de volta é o caminho de uma nova natureza ordinariamente mais infeliz do que aquela que estava ali antes de se ter partido.

    Esse é o risco de sonhar.

    Capítulo I

    O sol calcinava Belém naquele início de tarde calorenta, sem brisas quando Adriana estacionou o carro, desceu apressada e passou pela porta automática da Cinderela. Transpôs o espelhado hall de acesso, entrou no estabelecimento e a recepcionista, vestida num blazer vermelho, saia justa, os cabelos longos artificialmente louros, um sorriso largo e acolhedor de aeromoça, apareceu para dar boas vindas. Ela seguiu a cerimoniosa guia, ultrapassou o salão de entrada onde ficava uma mesa de centro, larga, que servia de suporte para bolos enfeitados com coberturas de cores e desenhos diversos, passou na frente de um balcão envidraçado, uma vitrine para os doces, pudins, mousses e salgadinhos típicos da confeitaria, caminhando sem intervalos. Cruzou uma passagem lateral e entrou num salão requintado, retilíneo, que ia da fachada até aos fundos da construção, com os janelões cobertos por densas cortinas grenás a filtrar a luz excessiva da tarde e produzir uma iluminação sutil e serena, uma luz calma e mole de uma quase penumbra que confortava os olhos, e que junto com a ausência relaxante do barulho, a temperatura levemente refrigerada e seca, a música ambiente, baixinha, delicada, suave, de um pianista absorto em seus pensamentos reservados a reproduzir com eficiência uma sucessão de sons harmoniosos, confortava também os sentidos. Uma sensação de bem estar físico fez um agradável contraste com a aflição das gentes e o clima arredio da rua agitada.

    Passou pelo meio das mesas cobertas por alvas toalhas e um cortês arranjo de flores no centro. As pessoas falando baixinho; o que dava pra ouvir além do som delicado do piano eram murmúrios e um discreto tilintar dos talheres, aqui e ali, batendo nas porcelanas. Avançou para os fundos do salão onde ficavam os espaços mais íntimos e quando enxergou uma mulher morena, de cabelos negros, fartos e reluzentes, o queixo apoiado nas mãos cruzadas e uma expressão graciosa de satisfação, abriu um sorriso espontâneo, franco, feliz, e sutilmente apreensivo. A recepcionista deu meia volta e ela se apressou para trocar com a bela morena um abraço apertado, emotivo, febril, e um beijo de saudade no rosto.

    - Suely... Que bom que pudeste vir. Preciso tanto conversar contigo.

    - E quando foi que te faltei, mulher? Desde que me ligaste que estou morrendo de ansiedade...

    Adriana fez um muxoxo desconsolado. Sentou jogando a bolsa sobre a mesa, despiu-se dos óculos escuros, suspirou profundamente, esfregou as bochechas vermelhas e os olhos ligeiros com as mãos irrequietas. A garçonete se aproximou e gentilmente colocou o cardápio diante dela, que deu uma atenção desinteressada, de soslaio, breve, para a servente e dirigiu-se a acompanhante.

    - O que estás bebendo?

    - Um suco de tangerina e comendo um...

    - Me trás um suco de tangerina. – Ela pediu atabalhoada. Na sua frente Suely, cheia de curiosidade, impaciente, despejou um mar de queixas e de perguntas...

    - O que aconteceu contigo, menina? Te ligo e estás fora de área, sumiste do face, deixo mensagens e não respondes... As poucas vezes que nos falamos te senti estranha, aérea. O que está acontecendo contigo?  Desde o Ano Novo que desapareceste. Encontrei com o Antenor um dia desses e ele disse que estavas bem. Mas eu desconfiei. Fui demitida do meu cargo de confidente?

    - O que tenho pra te dizer não podia falar pelo facebook, nem pelo celular, nem em casa... Tinha que te dizer pessoalmente num lugar mais protegido.

    - Puxa, o que foi que andaste fazendo? Pensei que tinhas sido abduzida por um extraterrestre...

    Adriana sorriu com sarcasmo de si própria e por trás de um olhar úmido comentou:

    - E parece que tu adivinhaste.

    - Não entendi...

    - Foi quase isso que aconteceu comigo...

    - Quanto mistério... Conta logo o que aconteceu. Não sabes do meu nervosismo?

    A resposta foi antecipada por um sorriso pálido. A expressão severa aliviou-se como um céu claro que se abre rapidamente desfazendo a ameaça da chuva. O rosto de Adriana assumiu uma expressão juvenil, séria, mas ao mesmo tempo traquina, da criança que está prestes a confessar que foi ela quem entrou escondida na cozinha para comer os doces. Os olhos eram de uma inocência concupiscente, espelhos de uma mistura das intenções de quem vai revelar um segredo adulto através do véu acanhado de uma ingenuidade colegial. Ela voltou a espanar o rosto com as mãos agitadas e depois disse pausadamente, com a reverência de quem está num confessionário:

    - Eu estou apaixonada!

    Suely tomou um susto, revirou-se na cadeira, de testa franzida de surpresa. Ficou por um tempo ruminando a notícia inesperada sob o cenário de um longo silêncio, desassombrado de um lado e espantado do outro, enquanto as duas trocavam olhares ariscos, esquivos uns dos outros, furtivos, acanhados por causa da declaração desconcertante que ainda não tinha sido completamente absorvida pela parte surpreendida. É claro que sua amiga não estava naquele estado esquisito de frenesi emocional, não tinha tido as atitudes de reclusão nos últimos meses, não a tinha evitado por tanto tempo para aparecer agora com uma convocação misteriosa de uma conversa confessional e revelar que estava apaixonada pelo marido. Ela tentou sorrir demonstrando uma satisfação contente, mas não conseguiu ser autêntica e o sorriso ficou incompleto, esmaecido na perplexidade. Só depois de absorver a confissão, o choque da surpresa, perguntou com uma naturalidade afetada:

    - E quem é o felizardo?

    Teve de resposta um olhar luminoso, um sorriso gracioso e a fala insinuando uma timidez de adolescente...

    - Não vais acreditar...

    - Queres me matar de curiosidade?

    - É o Carlos.

    - Quem?

    - O Carlos... Tu já viste lá em casa...

    - Não lembro.

    - Aquele que dançou comigo no Natal... – Suely continuou fazendo a cara de desentendida, se esforçando para lembrar. – Aquele que foi lá na varanda e desejou feliz Natal pra nós duas quando estávamos tomando champanhe.

    - Aquele garoto? Que falou com a gente cheio de cerimônias?

    A garçonete trouxe o suco de tangerina. Colocou na mesa com os rapapés protocolares desculpando-se pela demora e deu meia volta. Adriana não deu atenção, mergulhada num êxtase particular. Provou o suco num reflexo mecânico para depois encarar a amiga com um nervosismo que lhe contraia as pálpebras contra a vontade, mas que vinha junto de um certo ar vaidoso.

    - Ele mesmo.

    - Meu Deus! Ele é uma criança... Tem a idade do teu filho.

    - Tem a idade do Diego, mas não é uma criança.

    - Adriana, como foi que isso aconteceu?

    - Ah, minha amiga, como vou saber? Aconteceu!

    - Mas como aconteceu? O que te fez olhar pra um garoto de vinte anos?

    - Vinte e três...

    - Tudo bem, que seja... O que te fez se interessar por um menino?

    - Alguém sabe por que se apaixona, Suely? – Com a expressão severa, defensiva, corajosa, ela mesma respondeu... – O cheiro, as palavras, o atrevimento, os gestos, o jeito que ele me olha, a sua inteligência, a irreverência... Como vou saber? Agora que me apaixonei sei que a paixão é justamente isso, uma coisa fora das tuas escolhas, fora do teu controle. Não tem como saber. O amor é o mais misterioso dos sentimentos. Agora eu sei que o que alimenta o fascínio é esse mistério que é o motivo de se amar alguém.

    - Não estás arriscando a paz do teu casamento?

    - Meu casamento não existe há muito tempo... Só não tinha me dado conta.

    - Deixaste de amar o Antenor então. E ele já sabe disso?

    - Ah, esse é só mais um dos meus problemas. E pra minha desgraça o maior dos meus problemas.

    - Ele vai ficar arrasado se souber disso...

    - Faz tempo que sou uma mulher sozinha. Ele devia saber disso.

    - Perdoa-me por me traíres?

    - Não estou culpando o Antenor, Suely... Ninguém é culpado de nada. Aconteceu! Eu estava livre e só e veio esse cara e preencheu a minha vida. Foi isso. Eu não posso culpar o Antenor de ser quem ele é e também não posso me culpar de ter caído nessa armadilha que é terrível e maravilhosa ao mesmo tempo.

    - Puxa, minha amiga... Não quis dizer isso. Ninguém tem culpa de se apaixonar.

    Um novo silêncio, movimentos comedidos, um constrangimento dissimulado. Depois uma voz sombria...

    - Quem dera eu pudesse culpar o Antenor por ter descoberto que não o amava... Isso só foi possível porque eu descobri o amor, Suely. E quando isso aconteceu não foi mais possível continuar sendo a mulher que eu era ou pensava ser. Tudo desmoronou. Às vezes tenho pena do Antenor, dos meus filhos, outras vezes tenho raiva. Eu não posso mais cuidar da felicidade deles, tu entendes isso? Vivi sem saber o que é amar um homem, e como é tão maravilhoso e absurdamente sofrido amar. Agora eu sei. Tenho sofrido muito, mas nenhum sofrimento é maior que a minha felicidade. Nunca imaginei que era tão bom ser incondicionalmente de alguém.

    - Não sei o que te dizer... Estou passada! Só não entendo como deixaste isso acontecer. Sempre foste intocável.

    - Aconteceu! O que se pode fazer? Eu estava numa estrada conhecida e tediosa e de repente entrei numa outra via atrás de alguma coisa como quem procura por algo que não sabe o que é e ele estava lá como se estivesse esperando por mim. – Daí veio um sorriso repentino, de menina... – Ele estava lá... Esperando por mim. Foi isso que aconteceu.

    - Tu me dizes que estás feliz, mas eu vejo que não estás bem, Adri. – Suely falou com a austeridade retórica de um terapeuta. Tocou a mão da amiga com sincero carinho; franziu a testa com o olhar fixo nos olhos da interlocutora para dar um tom professoral na lição que estava prestes a enunciar... – Eu também tive as minhas paixonites nesses vinte anos de casada. Ora, os homens interessantes estão por aí e a gente acaba caindo em tentação. Mas superei todas. O que eu tenho em casa eu conheço, as manias, as chatices, mas é meu e me dá paz e uma família segura. É a primeira vez que te vejo falar assim de uma paixão. Eu estou surpresa, nunca pensei que isso pudesse acontecer contigo, mas olha, é bom ter essas tentações que fazem um bem enorme pro ego. A gente fica mais vaidosa, passa a se cuidar mais ainda... Só não deves levar isso tão a sério... Quando tu menos esperares, pronto, acabou, passou e tudo volta ao normal. Não deves ficar triste, porque foi bom enquanto durou. As paixões platônicas acabam fazendo bem pro espírito, fazem bem pra alma, nos renovam e os nossos maridos percebem e ficam mais amantes e mais atenciosos.

    Suely concluiu com um sorriso maroto a longa lição, cheia de emoção e entusiasmo, numa tentativa voluntariosa de transmitir uma experiência de vida particular que julgou ser o antídoto para os males da confidente, mas a resposta veio na forma de um olhar complacente, um sorriso lânguido, mole, compreensivo, que desenharam na expressão de Adriana uma representação timidamente sapeca, de adolescente que volta pra casa depois de fugir escondida pra se encontrar com o namorado. Então a professora entendeu que a aula de vida tinha sido desconsiderada quando ouviu a aluna dizer com a voz baixa, mas incisiva:

    - Não sei se a minha paixão é tão platônica assim...

    Suely se esticou no espaldar da cadeira. Arqueou as sobrancelhas...

    - Não entendi...

    - Eu disse que a minha paixão não é platônica.

    - O que tu queres dizer com isso?

    - Que minha paixão não é platônica!

    A confidente então arregalou os olhos numa demonstração exagerada de assombro. Por uns momentos respirou, ofegando, aspirando o ar como se quisesse tomar fôlego para depois perguntar com uma careta admirada:

    - Quer dizer que vocês já foram às vias de fato?

    Adriana riu com a inocência fingida de mulher que diante de uma confissão que fere o pudor não esconde o prazer de ter cometido o pecado.

    - Algumas vezes...

    Então Suely abriu a boca, espantada, mantendo os olhos esbugalhados para exclamar:

    - Não brinca... Estás louca!

    - Por que tu pensas que eu estou assim? Achaste que eu tinha sido abduzida por um extraterrestre? Eu não disse que tu quase acertaste?

    - Meu Deus do Céu! Se o Antenor desconfia...

    - Ele mata o seu manequim de exposição?

    - Adriana, ele é um menino. O que ele pode te dar em troca do que tu tens?

    - Amor? Prazer? Alegria? Esperança? Atenção? Carinho?

    - Estás louca! Completamente louca! Se o Antenor descobre a tua vida acaba. Ele mata o... Como é o nome dele?

    - Carlos!

    - Ele mata o Carlos!

    - Vai matar o meu ateu adorado?

    - Ele é ateu?, Suely perguntou alvoroçada com a nova surpresa.

    - Muito ateu, a resposta veio de uma boca risonha com um afetamento deslumbrado.

    - Meu Deus... Arranjaste um amante ateu?

    - O Carlos é mais do que meu amante. – Adriana respondeu ofendida. Amante era um adjetivo que reduzia a sua paixão aos casos aventureiros que se esgotavam nos desejos e prazeres da concubinagem. E Carlos era o homem da sua vida com quem ela sonhava viver para sempre, como mulher dele, toda e completamente dele. Então ela confessou com palavras doces e delicadas, mas que soavam como um desabafo afoito da alma, cheio de exclamações atrás de uma definição que satisfizesse a descrição do seu fascínio. – Ele é a minha paixão. Só sou feliz com ele. Quando ele não está perto eu penso nele e sou infeliz. Ele é a minha felicidade e a minha solidão. Se eu estou fazendo alguma coisa logo me distraio e penso nele, não tenho mais desejo que não seja por ele... Junto dele eu sou o que ele quer que eu seja, fico nas nuvens, quero que o mundo acabe ali mesmo. Meu corpo é que sente saudades... Tu podes entender isso?

    Suely baixou a testa sobre os olhos incrédulos. Aquela era mesmo a Adriana que conhecia, que falava de sentimentos da forma acadêmica de um jurista insensível na tribuna? Era aquela mulher para quem os homens eram bobalhões insossos correndo atrás de saias? E agora lhe aparecia assim, com a voz baixinha e graciosa, emocionada, referindo-se a uma paixão extraconjugal naqueles tons vulneráveis e lascivos? Aquela mulher na sua frente, doida de paixão, com os olhinhos chamuscados de felicidade e melancolia ao falar do amante, as mãos tremendo com os medos e as ansiedades de quem ama pela primeira vez era a Adriana que nem nas épocas da juventude ela tinha a lembrança de ter demonstrado qualquer sentimento parecido por quem quer que fosse? E ficou um tempo desse jeito, reflexiva, suspensa, até se torcer na cadeira para comentar:

    - Puxa, mulher, se alguém me contasse eu nunca ia acreditar. O teu rosto muda quando falas dele. Nunca te vi assim.

    - Eu também não.

    - Pelo que estou ouvindo não acho que valha a pena eu perguntar se não estás só impressionada com as novidades. Se daqui a pouco não vais cair em ti, te enjoar, sei lá...

    - Suely esse cara entrou na minha vida como um trem descarrilado. Entrou no meu organismo. A outra novidade foi ter libertado a mulher louca que eu tinha escondida e nem sabia que ela existia. – Baixou e levantou a cabeça com uma expressão mais grave para concluir: – Tenho pavor de perder o meu amor. Tenho pavor de voltar a ser quem eu era.

    - E como isso vai terminar, Adri?, Suely perguntou com a testa franzida exprimindo uma preocupação genuína. Mas a resposta veio evasiva, com subterfúgios, exaltando a paixão, como se fosse preciso exprimi-la para aliviar-se de incertezas.

    - Ele é o homem com quem vou pra cama. Na maior parte das vezes não penso noutra coisa. Só na felicidade que tenho quando estou com ele. Depois vivo o inferno da minha vida conjugal...

    A confidente insistiu:

    - E o que esperas? Como achas que isso vai terminar?

    Adriana finalmente deu atenção e jogou-se para trás com um sorriso contrafeito. Fechou os olhos e aspirou o ar com volúpia para em seguida dizer:

    - Não sei! Só de uma coisa eu tenho pavor... Do Carlos sair da minha vida.

    Suely olhou para a mulher que lhe aparecia de um modo novo, e que por uns momentos a aturdiu. Estava na frente de um ser humano diferente e seria preciso reconquistar a intimidade do passado para ter acesso a essa pessoa diferente. Não era mais a confidente das amenidades, das trivialidades cotidianas, das atribulações da vida doméstica. Estava diante de uma mulher enrijecida pela dor e pelo medo e deslumbrada pela felicidade exaltada de uma paixão impaciente. Adriana havia atravessado o rio Guajará, não era mais a mulher mimada e cheia de si, e agora procurava um ancoradouro em margens perversas, perigosas, procurando as brechas entre recifes ameaçadores. Num piscar de olhos tinha se transformado em outra pessoa.

    - O que eu posso fazer por ti, Adri?

    Um silêncio. Depois um lamento...

    - Nada! Eu precisava dividir isso com alguém... Estava sufocada. E tinha que ser contigo. Estás fazendo o que eu preciso.

    - Ele te ama?, a confidente quis saber expressando inquietudes puras.

    - Sim!

    - Tens certeza?

    - Como ter certeza?

    - É verdade.

    - Mas eu sinto que ele é meu. Não é estranho isso?

    Suely sorriu com brandura.

    - Que garoto de sorte! Eu tenho certeza que se ele for inteligente ele sabe que és dele...

    - Eu sei que ele sabe...

    - E ele tem ciúme de ti? Assim, de ti com o Antenor?

    - Tem.

    - E como é?

    - Ele evita falar. Ele sabe que não deito mais com o Antenor.

    - E ele acredita?

    - Como vou saber?

    - Ah, Adriana... Estou atordoada.

    - Minha vida era monótona, todo dia a mesma coisa. Agora sou uma mulher de quarenta e dois anos e me apaixono, e o pior, por um homem de vinte e três. Quem vai entender uma situação dessas? Ah, minha amiga, estou no paraíso e no inferno ao mesmo tempo.

    - Minha querida!

    - Suely... Não estou mais podendo esconder de ninguém. O Antenor me olha e eu sei que ele sabe. Como não saber? Ele me procura e eu recuso. Perdi a espontaneidade, perdi a paz de espírito, o contato com ele é uma provação. Sabes como ele é discreto, mesmo assim numa das nossas discussões ele insinuou que tenho outra pessoa. Não tem como esconder. Já me veio na ponta da língua contar o que está acontecendo, mas não tive coragem.

    - Até quando tu vais conseguir?

    - Por que tu achas que estou desesperada?

    - Essas coisas se afogam no início, mulher. Depois viram tragédia.

    - Nunca me interessei por ninguém, tomei tantas cantadas que nem me lembro. Pra mim a minha vida era aquilo, mulher casada e mãe. Trabalho, as amigas... Nem sonhar eu sonhava. Então esse cara apareceu. Do nada... Chegou pra mudar tudo. Quando dei por mim o mundo todo estava diferente. Aí, minha amiga, voltar atrás é mais difícil do que seguir em frente. Uma vida sem paixão, sem identidade própria, filhos que não desejei, profissão que apenas aturo... E agora eu sinto o peso dessas correntes e o terror de me livrar delas sem maltratar quem não tem culpa de ser parte desse mundo que me atormenta.

    Capítulo Dois

    A manhã de sábado do fim de novembro anunciava o inverno, os seis meses de chuvas que estavam a caminho; a paisagem parecia um espelho refletindo a monotonia de um clone das manhãs nubladas dessa época do ano. Nada de especial no céu da cidade fracamente azulado, rasurado por nuvenzinhas escuras, baixas, ameaçando chover. A claridade filtrada pelas nuvens carregadas, cinzentas, embaçando a luz do sol, era uma claridade mansa, mas de um brilho que mesmo sem os reflexos mais salientes dos dias ensolarados poderia, no entanto, tornar particularmente incômodo o despertar depois de uma noite mal dormida.

    E foi assim, por conta de um sono inquieto e desconfortável, que Adriana acordou amolada, sem ânimo, num exercício penoso de abrir e fechar as pálpebras procurando se acostumar com a importuna luminosidade. Indisposta, debateu-se na cama, espreguiçou-se, torceu os músculos, se maldisse por não ter tomado a precaução de fechar as cortinas, até que depois de um tempo resolveu enfrentar o inevitável: a luz antipática e o fim de semana modorrento e tedioso que ela antevia através da ampla sacada com vista para o Guajará.

    De repente um brilho mais intenso invadiu o apartamento como holofotes de clareza exagerada. Eram intensos raios solares que desintegravam uma barreira de nuvens marrons para impor seus fulgores, atirar a claridade branca da manhã para dentro do quarto, e não foi possível para Adriana adivinhar que aquele sol de cintilância intermitente, a pulsar clarões em intervalos irregulares ia mudar sua vida. Ela sentou na cama e curvou-se para esconder o rosto encostando os seios nas coxas, alongou as pernas, inspirou o ar pleno de umidade, e superada a perturbação da luz importuna levantou e foi até o limiar da varanda. A visão prateada do Guajará lhe trouxe um inesperado conforto. As águas turvas da baía eram como um colossal espelho tremeluzente a refletir incerta e indiscriminadamente a radiação da luminosidade mutante como um imenso lustre piscando aleatoriamente os prateados pingos de purpurinas resplandecentes que caiam do céu sobre o leito do grande rio. Ela afagou os cabelos jogando-os para trás com a naturalidade da repetição de um sestro reincidente. Contraiu e descontraiu os músculos da face várias vezes e se olhou no vidro da porta corrediça da sacada para verificar se apesar da noite pouco relaxante as olheiras estavam serenadas ou parecendo maracujás engelhados. Até que não estava tão ruim... Nada que não voltasse ao normal rapidamente, sem precisar dos retoques farmacêuticos exagerados.

    Passou os dedos acariciando as cortinas que se estendiam do teto até o chão adornando a passagem para a varanda. Pensou em trocá-las, eram muito brancas e realçavam a claridade. Talvez um azul claro ou um tom violeta brando, uma cor menos estridente para atenuar a luz estrídula que causava aquele desconforto ao acordar em dias claros. Exercitou novamente os olhos abrindo e fechando rapidamente as pálpebras e olhou pro céu. Então compreendeu o motivo da claridade instantaneamente exagerada: as nuvens escuras estavam sendo expulsas pelos ventos para o extremo norte, além do Guajará, ou sendo desintegradas pelo calor, pulverizando-se como a fumaça que escapa de uma xícara de café quente e esmaece no espaço vazio, desaparecendo completamente. O céu claro vencia a batalha contra a turvação enevoada e um sol amarelo e brilhante surgia soberano sobre o norte da cidade. Mas ela foi indiferente àqueles fenômenos a não ser pelo incômodo que sentiu ao despertar. O Guajará só transmitia uma inocente paz tediosa.

    Torceu o corpo com enfado e enquanto caminhava para o toalete pensava no que ia fazer do seu dia. Entrar no facebook e conferir as sugestões das amigas para passar a tarde, ir ao cabeleireiro, coisa que não fazia há séculos, ler um romance, o que também não fazia há tempos, programar a sua agenda da semana para evitar atropelos de última hora quando estivesse no trabalho, na rotina do insípido e enfadonho escritório de advocacia diante da pilha de processos, petições, ações, instaurações, e todas aquelas coisas chatíssimas de uma semana inteira que passava se arrastando. Acabou preferindo dar conta daquelas intenções mais tarde.

    Depois do banho vestiu um short apertado e uma camiseta sem sutiã retirados à toa da gaveta do armário; olhou-se nos espelhos de três faces que eram as portas do closet; espiou-se longamente, dos pés à cabeça com a precisão feminina farta de censuras hostis. Prendeu os cabelos para trás, um rabo de cavalo que deixava o rosto à mostra sem molduras e ficou a examinar com objeções autocríticas o shortinho que lhe apertava a virilha e o início da coxa, a blusa que lhe abrochava os seios salientando seus contornos. Empurrou com as mãos em concha o par de mamas mais para cima. Ficou olhando com ar severo a sua silhueta, as linhas que desenhavam os relevos do seu corpo. Suspirou profundamente num misto de satisfação e melancolia. Via-se bonita, mas a juventude se esvaia e para ela tão rapidamente quanto à pressa de escorrer da areia de uma ampulheta. O que fazer? O tempo é inexorável e cruel. Não pode ser detido E as pretensões de enganar o tempo são ordinariamente ridículas.

    Não estaria ela sendo ridícula se vestindo daquele jeito extravagante, como uma colegial? Não seria ridículo se vestir igual à Larissa, de 17 anos, bela e perfeita, com a pele cintilando como os primeiros raios de sol o brilho da juventude? Seria talvez mais apropriado vestir algo moderado, mais adequado a sua idade, um vestidinho simples que não deixasse as formas tão evidentes, uma calça comprida para esconder as celulites que se anunciavam nas partes de trás das coxas, esconder as gordurinhas extras da bunda com uma bermuda larga, qualquer coisa que não deixasse tão visíveis os motivos da crítica implacável de uma assistência rigorosa.

    Irresoluta, voltou a se olhar novamente, de frente, de lado, de costas. Aquele shortinho atrevido e a camiseta saliente poderiam parecer as peças do ensaio de uma farsa, da ilusão de reviver recordações nostálgicas da juventude. Poderia naquelas roupinhas de colegial correr o risco de ser mal entendida e confundida com as pessoas que teimam em resistir ao ritmo da natureza e se vestem e se comportam de maneira ordinária, inadequadas para suas idades, se expondo a zombaria impiedosa do juízo estranho.

    Mas afinal de contas quais os motivos desses pensamentos bobos se ela sabia que o hábito de disfarçar a idade é um veneno para o espírito; uma insensatez que transforma pessoas em androides sem personalidade; um processo que exclui da consciência o mundo real, embora este mundo não possa ser excluído do inconsciente, o que leva o ser humano a recalques no âmbito de uma luta sôfrega para impor a fantasia sobre a realidade. Este não era o seu caso, embora a perda da juventude não seja uma condição da existência vivenciada sem inquietações e melancolias. Além do mais, não ia sair por aí vestida assim. Ia tomar um café, ler as notícias on-line e cochilar folheando uma revista até decidir o que fazer da vida.

    Estranhou que essas reflexões lhe tivessem aparecido de súbito e atribuiu os pensamentos a um policiamento radical de não querer se parecer com a filha andando pelo meio da casa. O costume de se vestir nos padrões recatados de mulher aos quarenta parecia se indispor com a escolha inusitada do traje incomum. ‘Que mal há nisso se eu tenho a consciência da minha idade?’ Pois então resolveu esquecer as provocações intimistas em torno do vestuário, sacudiu a cabeça para afastar as avalanches de ideias inspiradas por preocupações que no fim das contas não faziam sentido, desceu, atravessou o apartamento vazio, a sala de jantar, a imensa sala de estar, foi até o escritório com suas estantes assépticas decoradas com o requinte de um arquiteto de interiores pretensioso, pegou o seu net book, atravessou novamente as salas, passou por uma meia porta de ir e vir e entrou na cozinha.

    - Oi, mãe!?

    Então tomou um susto que exigiu esforço para não demonstrar. De repente se viu na situação que a sua autocrítica severa havia suposto, a da inadequação de seus trajes para uma assistência inesperada de gente estranha e de cerimônia. As reflexões de minutos antes estalaram ameaçadoras no cérebro, mas era tarde para voltar atrás e ela quis aparentar descaso e naturalidade. Diego estava na cozinha com dois amigos. Um deles era o Watson, um rechonchudo bonachão bem humorado que era apelidado de Jô Soares. O gorducho ela conhecia porque era um apresentado extrovertido, sempre se fazia visível. Ele só olhou rapidamente pra ela com um aceno de cabeça e a boca cheia de fiambre e pão de forma. O outro era um garoto sossegado, encostado no balcão de mármore, os olhos impassíveis, a expressão serena, segurando uma garrafinha de água de coco e esse ela não lembrava, se tinha outra vez cruzado com ele não havia prestado atenção, mas teve a certeza de que pela primeira vez se dirigia a ela.

    - Bom dia, senhora. – Ele cumprimentou com um olhar presunçoso e uma audácia desconcertante que não passaram despercebidos.

    Ela fingiu não ligar, não respondeu, transferiu a atenção para Alzira que entrava na cozinha assentando uma touca na cabeça, desatinando-se a falar...

    - Dona Adriana, o doutor Antenor não quis tomar café em casa... Saiu cedo pro clube. Insisti mas ele disse que ia tomar café por lá. Esses meninos chegaram agora. Disse pra eles esperarem lá fora, mas eles nem me deram bola. Estão mexendo em tudo. A senhora quer café? Passo uns ovos pra senhora...

    - Não. Só quero um suco.

    - O de laranja acabei de fazer, vou pegar...

    - Pode deixar... Eu mesma pego. A Larissa já desceu?

    - Não senhora. É sábado... Ela nunca acorda antes do meio dia.

    - Mãe, o papai vem almoçar em casa?

    - Como vou saber? – A resposta poderia ser outra, mais delicada, menos indiferente. Houve um incidente dos sentidos diante do sujeito escorado no balcão com aquela atitude dissimulada de observador alheio e que ela pressentiu estar atento aos seus movimentos e por conta de uma atração curiosa, vaidosa e faceira teve o impulso involuntário de manifestar que não era a sua a condição de esposa dedicada e interessada no marido. Um impulso que lhe veio de um estímulo precipitado de demonstrar independência emocional, que partiu como um recado da sua liberdade afetiva. Partiu como um recurso retórico protegido da confissão sem rodeios de quem quer dizer pro outro que está disponível ao assédio.

    Naquele instante ela não se deu conta do incidente, coisa que não ia demorar a acontecer. E quase não prestou atenção quando Diego voltou a falar...

    - Nós vamos pra Salinas hoje à tarde e queria pedir uma grana.

    - Ligue pra ele...

    - A senhora não tem?

    - Não.

    O Jô esboçou um risinho sarcástico; levou de Diego um sopapo na cabeça. Adriana deu a volta na mesa e para ir até a geladeira passou perto do jovem impassível encostado no balcão. Apesar dos olhos baixos, aparentemente distraídos, ela percebia que o rapaz com o ar de arrogante indiferença estava atento nos seus movimentos. Havia nele um jeito discreto de observá-la, e isso era feito com um recato misterioso, secreto, sutil. Ela se moveu propositalmente para olhar pra ele com dissimulações de desatenção e quando fez isso viu por trás da discrição aparente que ele a despia vasculhando as suas intimidades com um atrevimento licencioso. Mas ao invés de embaraço sentiu o arrependimento de não ter passado uma sombra nos olhos para disfarçar as olheiras, de não ter escovado os cabelos, de não ter pintado os lábios com um batom queimoso.

    Abriu a geladeira, tirou a jarra de suco e voltando-se de cabeça em pé para o porta copos sobre o balcão num gesto proposital de quem não resiste a curiosidade de saber das intenções alheias, deu de frente com a insolência, a confiança, o desplante olhando fixamente nos olhos dela com uma seriedade agressiva. E foi rápida essa troca de olhares, inesperada, mas não inexpressiva e nem desatenta; foi como se tivesse congelado o tempo, profunda o suficiente para deixar a mulher perturbada, surpreendendo-se tendo que se dar conta de um acanhamento espontâneo vindo da timidez de quem se compraz com o elogio. Ele estava sério, expressando uma melancolia vaga, misteriosa, numa fisionomia serena que contrastava com o olhar teimoso, impertinente, penetrante, a transmitir com uma fúria suave a vontade de conhecer profundamente aquilo que esta sendo visto, uma lente invasiva que num certo momento despreza o corpo e penetra

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