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O Comendador
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E-book586 páginas7 horas

O Comendador

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Sobre este e-book

Esta obra literária narra a história de César, um apaixonado pelo automobilismo e sua árdua luta para vencer corridas e chegar a uma posição de destaque dentro de uma montadora. Tudo se passa durante as primeiras oito décadas do século passado, quando a comunicação telefônica era, ainda, muito difícil. O Comendador, tio avô de César, é uma figura patriarcal que está sempre amparando sua família em todas as situações, em particular, seu envolvimento com o sobrinho neto onde fica claro a afinidade mútua, respeito e gratidão, apesar das atitudes e ações do Comendador não medirem esforços para conseguirem seus objetivos. O livro narra a saga de vários personagens que tem sua vida entrelaçada por fatos envolvendo o Comendador. O texto atrai pela descrição emocionante da vida desses personagens e tem seu ápice na narrativa que inclui a Itália, como cenário final onde o autor, pela sua descendência, nos faz viajar por diversas regiões. O livro finaliza com uma mensagem de otimismo diante da vida, onde seremos vitoriosos na perseverança e na paciência, aguardando o momento certo das coisas acontecerem.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mar. de 2015
O Comendador

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    O Comendador - Sylvio Amadeo

    CAPÍTULO I

    Às onze horas e quarenta e cinco minutos da noite, do dia nove de agosto de 1950, Giovanna Piemonte olhou para o relógio da sala de parto... Terminou, finalmente – Pensou ela.

    Estava exaurida; apesar de ser seu segundo filho, sua gravidez inteira havia sido muito problemática. Seu organismo estava debilitado e não permitiu que ela se recuperasse o suficiente para o parto. Já no terceiro mês, tinha tido uma ameaça de aborto que foi muito difícil de ser evitado.

    Do lado de fora, o pai aflito ansiava para ver sua mulher e a criança.

    Quando o médico deixou a sala de parto encontrou o pai da criança, o Giuseppe Piemonte, que se apressou a perguntar-lhe:

    – Diga-me doutor, meu filho é um menino, não é?

    – Sim, Giuseppe, mas sinto lhe avisar que ele nasceu muito fraquinho. Ele pesa 1,3 Kg, e com o frio que estamos atravessando, é capaz até de não sobreviver.

    – Não doutor, não diga isso! O meu filho tem que viver!

    O médico com um suspiro respondeu:

     – A propósito, não falei a respeito da saúde da criança para sua mulher, pois ela está esgotada, deixe-a se recuperar.

    – Obrigado, doutor.

    – Não me agradeça, Giuseppe, só fiz o que pude, agradeça a Deus por sua mulher e peça pela saúde de seu filho.

    – Eu posso vê-los, doutor?

    – O bebê foi para a incubadora, você poderá vê-lo do vidro. Dona Giovanna está dormindo agora e só deverá acordar daqui a 4 horas para tentar amamentar. Deixe-a dormir até lá. Eu volto amanhã de manhã para vê-los. Até logo.

    – Até logo, doutor...

    Temeroso, Giuseppe foi caminhando para a incubadora, pensando na saúde do menino.

    Em um berço bem próximo ao vidro, encontrava-se uma pequenina criança enrolada em algodão, aquecida pelo calor de uma lâmpada. Nem foi preciso olhar o número do quarto marcado no berço para saber que era o seu filho. As lágrimas começaram a correr pelo seu rosto. – É tão pequenininho! Como vai conseguir viver? Oh, meu Deus! Mas por quê? Rafael, o mais velho, nasceu tão bem, forte como um touro, pesava 4,5 Kg e media 52 cm. Este agora não devia medir nem 45 cm. Não quero que ele morra! Meu filho, lute, lute pela sua vida. Talvez a vida para você não seja muito fácil, por isso lute, com todas as suas forças. Nesta vida, nada se consegue sem lutar, e quanto mais difícil for a batalha, maior será o sabor da sua vitória. Seja valente meu filho e lute bastante, você verá como a vida lhe será bela. Amanhã eu lhe darei um nome digno de um grande rei, para que cada vez que lhe chamarem, você se sinta orgulhoso de haver vencido esta sua primeira grande batalha...

    Dirigiu-se para a capela da maternidade, ajoelhou-se em um banco qualquer e começou a rezar:

    – Senhor meu Deus, abençoai este meu filho. Dai-lhe forças para sobreviver, faça com que ele cresça com saúde. À nós que sempre fomos obedientes aos Seus mandamentos, que não faltamos à missa de todos os domingos, que ajudamos aos mais pobres, que Lhe oferecemos nossos sacrifícios, não nos desampare, conceda-nos a graça da vida desta criança...

    Para Giuseppe, a vida também não tinha sido fácil. Nascido em uma pequena província no sul da Itália, veio para o Brasil com oito anos de idade junto com sua família composta de pai, mãe e seis irmãos. Começaram, como todos os imigrantes daquela época, a trabalhar na lavoura. Compraram um pedaço de terra no interior de São Paulo e começaram a plantar café. Era um trabalho muito duro. Todos ajudavam; os menores que não tinham forças para erguer pás ou enxadas, levavam água e comida para os mais velhos. Havia épocas em que o sol nascia e morria com todos trabalhando. Foram feitas as primeiras colheitas com sucesso. Aos dezenove anos, Giuseppe havia voltado do tiro de guerra e estava encarregado de vender o café obtido de suas últimas colheitas. Andava cinco quilômetros para chegar lá. Tinha que acordar às quatro horas da manhã para pegar um bom lugar. Após vender tudo, ou quase tudo, trocava o resto da mercadoria por outros gêneros que a família estivesse necessitando e voltava para casa.

    Desta maneira, foi tomando contato com o mercado de gêneros alimentícios. Em menos de dois anos, já havia comprado uma banca de frutas no mercado de São Paulo. Devido ao seu trabalho e enorme esforço físico, Giuseppe cresceu um homem muito forte e rude, o que o ajudou bastante a se defender contra todo o tipo de agressões que lhe eram impostas.

    No ano seguinte, após a compra da banca, houve uma queda de preço do café, que fez perder quase toda a produção da família naquele ano.

    Foi o caos! Tiveram que vender as terras. Seus outros irmãos, assumiram outras profissões, porém Giuseppe continuou sempre do lado de seu pai e sua mãe, ajudando a sustentar a família com os resultados do seu trabalho.

    Apesar de todo seu esforço, ele não ganhava o suficiente para o sustento e assim também teve de vender sua banca.

    Uma noite, quando estavam todos à mesa comendo o magro jantar que lhes era permitido, Francesco, seu pai, falou:

     – Giuseppe, meu filho. Eu muito me orgulho do seu trabalho e da sua dedicação, sua abnegação à família, mas para mim é muito triste ver você se sacrificando tanto para nada. Infelizmente o meu reumatismo me impede de fazer qualquer coisa, você sabe. Sequer podemos contar com a ajuda de seus irmãos, pois eles têm as suas famílias, agora... você teve de vender a banca. Que vamos fazer? Do que vamos viver quando este dinheiro acabar?

    – Papai, amanhã mesmo eu vou procurar um emprego, eu sou forte, posso trabalhar muito.

    – Você pode ser forte sim, meu filho, mas não para trabalhar para sustentar toda a nossa família. Eu sei que você não quer Giuseppe, mas a única solução será você procurar o tio Luigi.

    – Não papai. Não gosto do seu tipo de trabalho.

    – Mas você tem de admitir Giuseppe, depois que ele veio da Sicília, ele fez uma fortuna muito grande em tão pouco tempo. Talvez você não goste do seu trabalho, mas vá falar com ele, peça-lhe alguns conselhos, quem sabe ele não pode lhe conseguir uma boa colocação com toda a influência que ele tem.

    – Está bem papai, irei procurá-lo, mas não vou trabalhar com ele, isso eu lhe garanto.

     Chovia muito quando Giuseppe começou a subir as longas escadas do edifício da rua Florêncio de Abreu. Quando chegou, estava totalmente molhado. Bateu à porta.

    Um homem mais alto e muito mais forte que ele, apareceu.

    – Que você quer aqui?

    Pelo volume da cintura, podia-se perceber que estava portando uma arma embaixo do paletó.

    – Eu quero falar com o meu tio Luigi.

    – Como é seu nome?

    – Giuseppe. Giuseppe Piemonte.

    Sem falar nada, fechou a porta deixando-o do lado de fora. Depois de esperar uns cinco minutos, ele voltou:

    – Pode entrar, o Comendador Luigi o receberá agora.

    O tapete vermelho que cobria as tábuas corridas, ficara todo marcado de seus pés encharcados e sujos. Tudo era finamente mobiliado, peças do Liceu de artes e ofícios, lustres de cristal francês, o lugar cheirava a dinheiro, diferente de tudo o que já tinha visto, de todos os outros em que costumava estar, principalmente no mercado. Este lugar possuía um doce perfume do sucesso.

    – Giuseppe, meu sobrinho! Como é bom ter você aqui comigo.

    – A benção, tio Luigi. – abaixou-se e beijou-lhe a mão.

    – Deus te abençoe meu sobrinho, mas o que acontece? Está todo molhado, não é possível! Desse jeito vai pegar um resfriado. João, traga uma toalha do armário. E você Giuseppe, vá tirando esta roupa encharcada.

    – Não tio, estou bem assim.

    – Não discuta com seu tio. Pegue a toalha e vá se enxugando.

    – Tome João, vá até o largo de São Bento e compre uma roupa nova para Giuseppe, leve 100.000 reis que deve dar.

    – Mas tio, eu não quero que o senhor....

    – Quieto, Giuseppe, aqui mando eu! Beba um pouco deste licor que vai ajudar a esquentá-lo. E agora me conte, faz tanto tempo que não o via, você cresceu tanto, está um homem forte, saudável, que beleza! E minha irmã, como está? Estão todos bem, não estão?

    – Sim, tio, mamãe está muito bem, todos vão bem, apesar do papai estar sempre com aquele reumatismo que o atormenta.

    – Seu pai! Seu pai! É um homem muito teimoso. Desde que casou com Maria, na Itália, nunca quis que ninguém o ajudasse, sempre quis fazer tudo sozinho. E como vão as terras, o café, as verduras, as frutas?

    – Tio, este é o motivo pelo qual eu vim aqui. Nós perdemos tudo.

    – Como, Giuseppe, do que você está falando? Como?

    – Sim, o café caiu muito de preço e a nossa dívida já estava bem alta, não era a época certa, mas tivemos que vender as terras para pagar as nossas dívidas.

    – Seus irmãos e seus pais, como estão vivendo? Por que não falaram comigo antes?

    – Sabe tio, não é só o meu pai que é orgulhoso, somos todos nós. Gostamos de viver com aquilo que nós ganhamos de nosso trabalho. Meus irmãos se empregaram em indústrias. Mas o pouco que ganham dá somente para sua sobrevivência de suas famílias, o senhor se lembra que já estão casados, não é?

    – Sim, sim, continue.

    – Eu, como era solteiro, fiquei com a responsabilidade da família. Tinha comprado uma banca de frutas no mercado e vendia frutas, verduras e legumes, mas como precisávamos de mais dinheiro, vendi também a banca. Entenda tio, eu não vim aqui para pedir-lhe dinheiro. Vim pedir-lhe conselhos, conselhos de uma pessoa mais velha e que teve sucesso na vida.

    – Caro mio! – Luigi levantou-se com lágrimas nos olhos e abraçou o sobrinho com toda força. – Eu gosto muito de todos vocês. – dizendo isso, beijou-lhe a face. – Você é tão parecido com o seu pai.

    – Comendador, eis as roupas que comprei – enquanto informava, João colocou-as no sofá.

    – Ótimo, ótimo. Agora vista-se, Giuseppe, enquanto traçamos nossos planos. Quero que você venha trabalhar comigo. Preciso de alguém que eu tenha confiança e ...

    – Tio, eu não quero trabalhar com o senhor. Como disse, não vim lhe pedir dinheiro e sim conselhos.

    – Mas que melhor conselho eu posso lhe dar, que vir trabalhar comigo? Posso lhe ensinar todas as artimanhas desta terra. Posso lhe educar ao ponto de você saber se comportar diante de um rei.

     – Não tio, eu agradeço muito, mas eu gostaria de saber onde poderia procurar um bom emprego, um ramo de negócios que eu pudesse juntar dinheiro bastante para ajudar a sustentar minha família, casar minhas irmãs, dar um pouco de conforto para meu pai e minha mãe. Talvez o senhor que conhece muita gente, poderia me ajudar.

    – Uh! Ajudá-lo? Ajudá-lo? Como se pode ajudar alguém que não quer trabalhar com o seu próprio tio?

    – Não é isso, não me leve a mal, eu só quero subir as escadas com as minhas próprias pernas, é só.

    – Está bem, Giuseppe, não se fala mais nisso. Nossa! Já é meio-dia, vamos almoçar juntos, aqui na Líbero Badaró, tem um restaurante muito bom.

    – Mas tio, eu pensava em voltar para casa e ...

    – Mas tio isso, mas tio aquilo, quantas vezes eu tenho que falar que quem manda aqui sou eu? Foi você que veio me pedir conselho, não foi? Eh?! Então agora vai almoçar comigo e pronto!

    Quando entraram na taberna São João, todos os que ali estavam, levantaram os olhos para Luigi. Vieram instantaneamente o maître e dois garçons ao seu encontro.

    Buongiorno, Commendatore, quer uma mesa no salão reservado? – dizendo isso, pegou a bengala e o chapéu de Luigi para levá-los à chapelaria.

    – Sim, Marco.

    Giuseppe estava assombrado. Tudo era do mais alto requinte. Copos de cristal, talheres de prata, guardanapos de linho. As paredes eram revestidas com tecido. As cadeiras estofadas de veludo vermelho, idênticos às cortinas. Tudo estava impecável. Sentiu novamente aquele cheiro, a fragrância do dinheiro, do que ele representava e do que ele podia comprar.

    Durante toda a refeição, Luigi pôs-se a falar sobre quais seriam as principais atividades que estariam sendo desenvolvidas no Brasil, sempre pensando nas melhores possibilidades de sucesso, em função da pouca instrução que Giuseppe tinha recebido. Apesar de estar fascinado pelo poder que ele possuía, em nenhum instante, Giuseppe deixou que seu tio o induzisse a ter qualquer ligação com seus negócios.

    Ele estava fascinado. Bastava um pequeno sinal e o garçom trazia mais vinho para completar seus copos. De quando em quando, o maître aparecia para verificar se o Comendador estava sendo bem tratado.

    Quando se despediram, Luigi disse:

    – Tome, meu sobrinho, leve este pouco de dinheiro para Maria. Ela vai saber o que melhor fazer com ele.

    – Não tio, eu não vou levar. Nós ainda temos dinheiro.

    – Ouça aqui, seu cabeça dura: Não quero que vocês passem necessidades. Tome, pegue o dinheiro – e enfiou um maço de notas no bolso do paletó de Giuseppe. – Eu vou falar com alguns amigos e amanhã lhe darei uma indicação, passe no escritório às 9h00.

    – Muito obrigado, meu tio.

    – Não me agradeça, Giuseppe; apesar de você me renegar, você é como um filho para mim e abraçou-o.

    No dia seguinte, Giuseppe chegou no horário marcado. O mesmo homem o interviu na porta, dizendo:

    – O Comendador pediu para que eu lhe entregasse este envelope.

    – Obrigado, ele não está?

    – Não.

    O envelope estava endereçado ao Sr. Orlando Pereira, da Secretaria da Fazenda e estava fechado.

    Giuseppe pegou o envelope e se dirigiu para o endereço citado.

    Era um prédio alto de três andares, com móveis e utensílios de uma certa idade, marcados pelo uso.

    Ao entrar, perguntou onde poderia encontrar o Sr. Orlando Pereira, sendo encaminhado para o 3º andar. Lá chegando, bateu na porta que continha o seu nome.

    – Sim, pode entrar.

    – Bom dia.

    – Sim, o que deseja?

    – Eu sou sobrinho do Sr. Luigi – e entregou-lhe o envelope.

    – Ah! Por favor, sente-se aqui. O seu tio falou comigo ontem a seu respeito. Sente-se, sente-se. Quer um café? Uma água? Antonieta! Traga água e café aqui para o meu amigo, como é mesmo o seu nome?

    – Giuseppe.

    – Sim, Giuseppe, desculpe. Bom, seu tio falou que você está precisando trabalhar.

    – É Sr. Orlando, eu queria começar a trabalhar em um lugar onde eu pudesse ter futuro.

    – Sim, meu caro. E você fez algum curso técnico de contabilidade, economia, sabe bater à máquina, onde você trabalhou antes?

    Ele baixou a cabeça e respondeu:

    – Não, Sr. Orlando, eu não tenho nenhuma dessas qualidades que o senhor mencionou. Eu tinha uma banca no mercado de frutas e verduras. Fiz só o ginásio, mas tenho muita vontade de aprender.

    – É o principal, Giuseppe, é o principal. Vontade é o que falta em muita gente hoje em dia.

    Ele olhou para fora da sala e através do vidro viu todos os funcionários datilografando e escrevendo em suas mesas. Desiludido, ele levantou-se e disse:

    – Bom, agradeço sua atenção, Sr. Orlando, todavia, eu vejo que não sou a pessoa certa para trabalhar em sua repartição.

    – Como? Aonde você vai? Nada disso. Eu preciso de você. Aqui mais vale uma pessoa que seja de nossa confiança, do que muita gente instruída. Você vai trabalhar comigo na fiscalização. Este trabalho consiste em vistoriar algumas indústrias e estabelecimentos comerciais, que estejam instalados e verificar se têm recolhido corretamente seus impostos. Inicialmente você passará algum tempo aqui no escritório para se familiarizar com tudo e depois começará a fazer visitas. O que você acha?

    – Ainda acho que não tenho qualificações para seu trabalho.

    – Ouça aqui, meu rapaz. O nosso país está crescendo. Já não vivemos mais na era em que só sabendo ler, podiam-se resolver todos os problemas. Não! Estamos avançando, evoluindo. Breve, não existirá nenhum futuro promissor para aquele que não tiver alguma instrução. Estou lhe dando uma chance de aprender conosco. Aproveite, pois você não achará uma oportunidade igual a esta tão facilmente.

    Giuseppe permaneceu alguns segundos em silêncio, pensando e depois apertou a mão de seu interlocutor.

    – Obrigado, Sr. Orlando, eu aceito e agradeço seu esforço e atenção; eu só peço que tenham paciência e não se ofenda comigo pela minha pouca instrução. Qual seria o meu salário?

    – Inicialmente você ganharia 600.000 reis, depois vamos aumentando-lhe conforme você for adquirindo experiência.

     Era uma quantia muito maior do que a que Giuseppe conseguia mensalmente com sua banca.

    – Está bem, Sr. Orlando. Quando eu posso começar?

    – Amanhã mesmo. Você vai gostar de trabalhar conosco. Chegue às 8:00 horas.

    – Muito obrigado, Sr. Orlando.

    – Não me agradeça, Giuseppe. Agradeça ao Comendador.

    – Até amanhã.

    – Até amanhã, Giuseppe.

    Quando Giuseppe saiu, Orlando rascunhou um bilhete e colocou dentro de um envelope.

     – Antonieta, leve esta correspondência para o Comendador Luigi, imediatamente.

    – Certo, Sr. Orlando.

    No dia seguinte, Giuseppe chegou cedo à Secretaria e teve de esperar alguns minutos até que Orlando aparecesse.

    Nesse meio tempo, ele percebia como ele era notado. Todos os que passavam por ele, no hall de entrada, ficavam olhando com certo ar de desdém. Ele resolveu se levantar e entrar no salão principal para sentar-se. Ao entrar, os outros funcionários fizeram um silêncio imediato, o que fez com que Giuseppe tivesse mesmo a certeza de que era ele o assunto de todos. Dentro de poucos instantes chegava Orlando:

    – Ah, você já chegou? Giuseppe, venha, venha que vou lhe apresentar todos do departamento. – e seguiram caminhando por dentro da repartição – Este é Joaquim, é o fiscal mais velho daqui.

    – Como vai, Sr. Joaquim?

    – Eu vou bem, Giuseppe.

    – Nesta mesa senta o Geraldo, que ainda não chegou. Aqui, Antonieta que você já conheceu ontem. Ah, lá estão todos: Manuel, Antônio, Fernando, Pedro e Francisco.

    – Este é Giuseppe, que irá trabalhar conosco a partir de hoje.

    Enquanto Giuseppe dava a mão para cada um de seus novos colegas, ia examinando suas reações e em todos, encontrava sempre o mesmo desdém.

    – Bom, agora que você já os conhece, vamos ao trabalho. Inicialmente eu vou pedir para você ir lendo o nosso regulamento. Esta será a sua mesa, como você pode ver, é do lado do Joaquim, assim, sempre que você tiver alguma dúvida ele poderá lhe ajudar. Antonieta, traga café para todos e depois leve o processo do lanifício para eu estudar. Giuseppe, se precisar de mais alguma coisa, me chame.

    – Certo, Sr. Orlando.

    Giuseppe sentou-se em sua mesa e começou a ler o regulamento. Taxas e cifras, prazos, tudo aquilo era novo para ele. Era um outro mundo que se descortinava. – É, talvez o Sr. Orlando estivesse com razão, não há mais lugar nesta terra para alguém que não tenha pelo menos um pouco de instrução. Mas como vencer esta barreira? – pensava ele. – Não entendo nada de escrituração fiscal e pelo visto, não terei uma boa recepção pelos colegas de trabalho. Percebo que a minha colocação aqui foi imposta, não sei por qual argumento, mas estou certo disto. Não sei a quem recorrer para me explicar todo o funcionamento do departamento, mas vou tentar aprender da melhor forma possível.

     Neste dia, durante o horário do almoço, ele ficou estudando todas aquelas complicações do regulamento enquanto seus colegas saiam para almoçar. Alguns dos rapazes traziam suas refeições para uma pequena copa situada nos fundos da repartição. Ao longe, Giuseppe, que tinha uma excelente audição, podia ouvir a conversa que vinha de lá.

    – E agora vocês têm de se comportar direitinho rapazes, senão a máfia cortará suas cabeças.

    – Que nada Fernando, agora que a máfia está entre nós, não temos nada a temer!

    – Puxa Antônio, como é que o Orlando foi colocar logo o sobrinho do Al Capone aqui dentro, isto é uma afronta para o departamento!

    – Interesses meu caro, interesses...

    – Só quero ver quem é que irá ensinar o boneco aí, eu é que não. Não quero complicações com a máfia.

    – Nem eu, já tenho tanto trabalho e preocupações aqui dentro, não quero mais um motivo para eu perder meu sono durante a noite.

    ...Então era isso! Esta era a barreira que lhe haviam imposto. Mas eu vou superá-los, – pensava Giuseppe. – Por que serei inferior a eles? Pode ser que não tenha a mesma instrução e educação, mas eu tenho fibra! Sempre tive.

    Assim foram se desenrolando os dias, as semanas e os meses. Com a aversão dos seus colegas, Giuseppe acabou voltando-se para Orlando e Joaquim, que lhe davam maior atenção. Frequentemente ele saia junto com Joaquim para fazer fiscalizações:

    – Bom dia. Nós somos fiscais da Secretaria da Fazenda. Viemos fazer uma verificação na escrita fiscal.

    – Ah, sim! Pois não. Por favor, sentem-se que eu vou chamar o guarda-livros, sintam-se à vontade. Aqui neste barzinho temos café, chá e torradas. Um minutinho que eu já volto.

    Fechando a porta, ele saiu correndo até a sala do guarda-livros.

    – Ovídio, estão aí dois fiscais da Fazenda e querem examinar os livros. Puxa vida! O que vamos fazer? Você está com tudo em dia?

    – O senhor sabe que não, Sr. Luís. Faltam ainda acertar aqueles últimos lançamentos.

    – Ovídio, será que eles vão descobrir?

    – Não acredito. A coisa está muito bem feita e não creio que sejam tão espertos.

    – Bom, o que faremos?

    – Podemos ir dando os primeiros livros para eles irem olhando. Acredito que isto já irá demorar uns dois dias, enquanto isto, à noite eu acerto os outros.

    – Está bem, então pegue os livros e vamos apresentá-los, eles estão esperando na sala de reuniões. – E encaminharam-se apressadamente para lá.

    – Senhores, este é nosso guarda-livros, Sr. Ovídio. Ele trouxe alguns livros iniciais para a verificação, os outros estão sendo atualizados, o que devemos finalizar nestes próximos dias.

    – Muito bem. – disse Joaquim. – Podemos começar por estes daqui. Giuseppe, verifique os primeiros lançamentos deste livro.

    – Bem, senhores, vou deixá-los à vontade. Qualquer coisa que precisarem, peçam para o Sr. Ovídio que estará à vossa disposição para qualquer esclarecimento.

    E assim a fiscalização se desenrolou durante 30 dias, no fim do 30º dia, Giuseppe havia encontrado lançamentos feitos com valores apenas de 10% da nota fiscal.

    – Joaquim, olhe aqui esta nota. Foi tirada por um conto de reis e o valor lançado no livro, foi de 100 reis. Ah..., tem outras aqui nas mesmas condições.

    – Puxa Giuseppe, se você não tivesse visto eu nem repararia, pois a escrita está tão apagada!

    – Vamos somando para ver quanto existe de divergências nestes livros.

    – Convém verificar também nos próprios estabelecimentos compradores, para apurar qual foi o valor pago por eles.

    – Tem razão, Joaquim. Vamos nos dividir para o nosso trabalho ser mais eficaz e mais rápido.

    – Certo! Amanhã você começará vendo estas outras empresas, enquanto eu vou continuar a examinar os livros por aqui.

    – Está bem, então vamos relacionar todos os endereços para eu não perder tempo.

    Nos dias seguintes, Giuseppe durante as suas jornadas, constatou realmente a fraude detectada no lançamento das notas fiscais. Em todas as empresas visitadas por ele, ficara comprovada a sonegação.

    Quando ele encontrou Joaquim na repartição, apressou-se em dizer o que tinha feito.

    – Muito bem Giuseppe, muito bem. Só que eu, há uns dias, encontrei outro livro que correspondia exatamente a estes lançamentos.

    – Como, Joaquim? Como pode haver dois livros para uma mesma empresa? Um deles deve ser falso. Você checou pelas guias de recolhimento, qual deles que corresponde à realidade?

    – Sim, Giuseppe, esse último que eu encontrei é que é o correto. Assim sendo, eu encerrei a fiscalização.

    Giuseppe, que achou toda essa conversa muito estranha, pensou que seria melhor não continuar a questioná-lo.

    – Bom, se você achou que estava tudo certo, para nós é melhor, assim podemos passar para a próxima da lista.

    – Venha, que eu lhe levo para casa, pois já é tarde.

    – Ótimo. Deixe só eu guardar estes papéis e vamos.

    Desceram as escadas e começaram a caminhar pela rua.

    – Até que está uma noite bem agradável, não é Giuseppe?

    – Sim, Joaquim, mas logo deve começar a esfriar.

    Chegando próximo a um Sedan novinho em folha, Orlando parou.

    – Entre, Giuseppe.

    – Ué! Você trocou de carro?

    – É, eu estava precisando. Aquele estava velho.

    – Muito bonito seu carro! – exclamou enquanto pensava: estofamento de couro e painel de madeira! Deve ter custado caro.

    Joaquim tratou de mudar rapidamente de assunto:

    – Giuseppe, estou começando a ficar preocupado com os boatos que andam por aí sobre a nossa política.

    – Que boatos? Eu pensei que depois que Getúlio Vargas nomeou para interventor Pedro de Toledo, os ânimos tivessem se apaziguado.

     – Que nada, estão dizendo que o nosso chefe está colocando alguns fascistas de Mussolini como seus auxiliares.

    – Não acredito, Joaquim.

    – Não acredita, é? Ele é muito amigo do seu tio Luigi e companhia limitada.

    – Mas são só amigos, nada mais. O que eu acho que pode deturpar a nossa paz, são estes esquemas tarifários sobre os produtos paulistas industriais ou agrícolas.

    – Em parte você tem razão, Giuseppe. Eu também achei um absurdo não se poder negociar café do tipo inferior ao oito. Nem todos os agricultores tem meios de combater as pragas, e por isso não conseguem obter uma boa qualidade da safra.

    – E também o limite de 60.000 reis por saca é muito baixo, para quem teve todo o trabalho de cuidar do pé de café o ano inteiro, adubá-lo, colhe-lo, etc. Se o indivíduo tiver a infelicidade de ter uma ou duas geadas fortes, adeus café. Minha família sofreu um bocado com isto tudo. Eu conheço isso bem de perto. Quando houveram as novas resoluções do governo, resolvemos terminar com a nossa cafeicultura.

    – Que resoluções?

    – Cada novo pé de café, estaria sujeito ao imposto de mil reis durante 5 anos. Teria uma porcentagem progressiva cobrada sobre a safra que fosse exportada, a qual começaria com 20%.

    – É, mas o Governo Federal renunciou a qualquer benefício quando comprou os estoques em meados do ano passado.

    – Certo, mas deduzia do preço do café vendido o capital empregado, os juros desse capital à 6% ao ano e as despesas realizadas com a operação de venda. Enquanto isto, o Estado de São Paulo tinha que fornecer os armazéns necessários à conservação desses estoques, facilitar as operações de venda, transportando por via férrea as sacas para o local de destino, isto tudo com o rígido controle do governo central. Isto tudo ocasionou uma revolta dos donos das lavouras, pois até então, não tinham tido nenhuma restituição. Mais tarde ainda houve um limite de chegada de café aos portos.

    – Como assim?

    – É, o agricultor não podia embarcar mais do que um vinte e quatro avos de sua produção mensalmente. E nenhuma licença de exportação era expedida sem exibir a prova de pagamento da taxa de exportação, que era aproximadamente meia libra esterlina. O controle da Bolsa Oficial de Santos, os corretores, o horário do pregão, era tudo muito complicado para que nós, simples agricultores, pudéssemos entender.

    – Não só vocês, Giuseppe, praticamente todos os cafeicultores não querem se envolver com um comércio assim, complicado.

    – Eu acredito que, como nós, os que não gostaram deste tipo de prática, já se desfizeram de suas terras e estão em outros negócios.

    – Chegamos.

    – Boa noite, Joaquim.

    – Até amanhã.

    CAPÍTULO II

    Por toda a parte se via uma propaganda constitucionalista, Governo Civil e Paulista para São Paulo, Adira às manifestações pela libertação militar Abaixo a ditadura, frases estas que se encontravam pintadas nos muros, pregadas em cartazes e apregoadas por civis que estavam prontos a correr no caso da aparição de algum militar.

    Diversas eram as declarações que se ouviam pelas ruas e principalmente pelo rádio:

    – E agora ouviremos as palavras do nosso embaixador Sr. Altino Arantes: Cidadãos que me ouvem, temos que ter brios! O nosso estado não pode ser rebaixado às condições de um território militarmente ocupado como refém, mantido pela razão da conquista! Todos sabem, pois ninguém pode ter em dúvida, ou ignorar, o povo de São Paulo é profundamente civilista e deseja ser governado por um homem de sua confiança, que o conheça, que o estime, que já tenha feito suas provas em nosso meio. Embaixador do Brasil serei, enquanto São Paulo tiver no coração brasileiro, o lugar que lhe cabe por sua brasilidade, por seu amor ao trabalho, por dedicação ilimitada à causa nacional, por seus gloriosos serviços a civilização, a riqueza, a felicidade da Pátria. Quando, porém, nos sujeitarem como a um filho espúrio, saberei ser o embaixador do povo paulista ofendido, solidário com ele na reivindicação dos seus direitos, firme nas reações de sua dignidade.

    – Papai. – Dizia certa noite Giuseppe – Eu estou com muito receio do que possa acontecer por aqui.

    – Por que meu filho, por causa deste movimento revolucionário?

    – É, está cada vez mais intenso. Lá na secretaria, nós temos recebido pressão de todos os lados. Estão dizendo que nós temos gente ligada com a máfia e estamos deturpando a fiscalização dos impostos ao nosso favor. Oswaldo Aranha está cogitando uma paralisação do trabalho até que as coisas voltem ao normal.

    – Do jeito que estão, não voltarão ao normal tão cedo. O povo foi muito rebaixado com toda esta política.

    – Aconteça o que acontecer, papai, eu gostaria que vocês tomassem cuidado, sabe, como nós somos italianos e ...

    – Não somos italianos, todos nós nos naturalizamos brasileiros, e se São Paulo fosse uma nação, teríamos nos naturalizados paulistas.

    – Certo, mas, como nós somos oriundos da Itália, não somos bem vistos por aqui. Convém tomarmos algumas precauções, comprar um bom estoque de mantimentos, evitar sair de casa com frequência, não conversar sentado na calçada com seus amigos.

    Ele encarou o filho de frente e respondeu:

    – Está bem, Giuseppe, você sabe o que fala.

    Em 9 de julho de 1932, com a adesão do Rio Grande do Sul e Minas Gerais, eclodiu a Revolução Constitucionalista, mobilizando toda a cidade de São Paulo. Com a notícia, milhares de voluntários de todas as classes sociais se apresentaram nos postos de recrutamento, para seguirem à frente de batalha.

    As guarnições do exército, logo aderiram ao movimento e os rebeldes instalaram seu quartel general na Chácara do Carvalho.

    No dia seguinte, os jornais publicavam a renúncia de Pedro de Toledo ao cargo de interventor federal:

    Doutor Getúlio Vargas, esgotados todos os meios que ao meu alcance estiveram para evitar o movimento que acaba de verificar-se na guarnição desta região, ao qual aderiu o povo paulista, não me foi possível caminhar ao revés dos sentimentos de meu estado. Impossibilitado de continuar a cumprir o mandato que Vossa Excelência houve por bem confiar-me e que sempre procurei honrar, olhos fitos no interesse de São Paulo e do Brasil, venho renunciar ao cargo de interventor. Nesta situação de fato, os chefes militares do movimento revolucionário constitucionalista, ficaram com a delicada missão de manter a mais perfeita ordem e disciplina em todo o estado. Vejo distante terminada a missão de paz que tentei realizar e constituir a máxima preocupação de meu governo. Agradeço à V. Exa. as atenções que me dispensou e a que correspondi quanto em mim esteve. Neste, apelo a todos os meus compatrícios para que se esmoreçam a fim de estabelecer um regime de paz e de ordem, que o nosso país reclama para uma reconstrução econômica e política.

    Estava deflagrada a revolução! Nada poderia ser feito para impedir o seu curso. Todas as repartições foram fechadas, o movimento era para se arrecadar tudo o que fosse possível e útil para os voluntários. Apesar do estado de São Paulo ser, pelo seu próprio esforço, um estado rico, poucos recursos lhe restavam, pois tudo o que era arrecadado era enviado para os outros estados.

    Juntamente com outros rapazes, Giuseppe também se alistou. Deveria se apresentar dali a dois dias no quartel da Av. Tiradentes.

    Grande era o entusiasmo dos rebeldes, marchavam a passo firme com seus ideais fortalecidos. Tinham a certeza que estavam lutando por uma causa totalmente justa.

    Giuseppe foi enviado para o Vale do Paraíba, local onde esperariam por reforços e estrategicamente perfeito para a invasão do estado da Guanabara, onde ficava a capital federal. Exercícios eram feitos todos os dias para manter o pelotão na mais absoluta forma possível para a batalha. O general Klinger, que comandava as forças rebeldes, sabia lhes transmitir todo o entusiasmo de que necessitavam:

    – Homens que somos, temos que estar prontos para mostrar nossas forças para aqueles que querem nos subjugar. Levantemos nossos ideais para os céus e tenhamos fé, fé em nossa causa, fé em nós mesmos, fé em nosso querido país!

    Porém, por mais que esperasse, nada acontecia, os víveres estavam rareando e os reforços não chegavam.

    Os jornais continuavam sempre a publicar as intenções do regime no poder, pelos interventores de todos os outros estados:

    – Houvemos de lutar contra os italianos residentes nesta terra bandeirante, que estão fundando uma colônia fascista, obedecendo as ordens diretas de Benito Mussolini. Temos de agregar novamente São Paulo ao nosso país.

    Quando o general Klinger soube que São Paulo estava absolutamente sozinha na luta pela sua causa, não se desesperou, continuava a comandar seus pelotões, porém, já não mais se pensava no ataque à capital federal. A ordem que era dada naquela ocasião era durar.

    Mas apesar de todo o esforço paulistano, nada pode combater os recursos e o poderio dos adversários. Começaram a perder fronteiras dentro do próprio estado, assim, Sorocaba foi a primeira que tombou, seguindo-se de Campinas e algumas cidades do Vale do Paraíba também, como Taubaté e Guaratinguetá.

    Quando as baixas já estavam consideráveis, Klinger ainda tinha fé na sua causa, ainda tinha fé em si e em seu país, porém, mais que tudo, tinha fé em Deus. Não sabia se consciente ou inconscientemente ele lutava também por vingança de ter sido exonerado do comando da circunscrição militar de Mato Grosso, e embora contra as intenções de outros dirigentes do movimento revolucionário, a fim de evitar mais baixas, Klinger entregou-se. Não podia mais aturar a responsabilidade de tantas vidas perdidas, tantos corpos mutilados.

    Em primeiro de outubro, lançou sua última senha às tropas rebeldes: Não mais durar. Estava tudo acabado. Era o fim!

    Giuseppe voltou para sua casa, fraco e abatido, tanto moral como fisicamente. Estava com 23 anos, mas se sentia acabado. Lutou por algo que lhe parecia correto, ali empenhou todos os seus esforços e sacrifícios, combateu junto com seus colegas, tendo muitas vezes que socorrê-los e enterrá-los. Não estava acostumado com a morte tão próxima dele. Os dias se passavam com a única esperança de se acordar vivo no dia seguinte. Foi aprisionado e trazido de volta como um cachorro preso a uma corrente. Quando finalmente foi solto, não sabia mais para onde se dirigir, tudo estava tão distante. Tão poucos meses lhe pareciam uma eternidade.

    – Giuseppe! O meu filho Giuseppe está de volta – gritava Maria.

    – Giuseppe, Giuseppe. – gritavam seu pai e suas irmãs, mas aquele entusiasmo não era retribuído.

    – Que fizeram para o meu filho querido, não está ferido, está?

    – Não, mamãe. Estou apenas muito cansado.

    – Venha, venha que eu vou lhe preparar um banho bem quente e uma refeição que você nunca mais vai se esquecer.

    Francesco, apoiando sob o seu ombro conduziu-o até o banheiro.

    – Deixe-me ajudá-lo a despir-se – dizia Francesco, seu pai. – Conte-me como foi tudo meu filho, foi muito duro para você?

    – Foi horrível, papai! Se o senhor não se importar, eu prefiro não falar sobre isto agora.

    – Está bem, Giuseppe. Tome seu banho enquanto sua mãe prepara algo para comer.

    E assim ele deixou-se entrar naquela banheira de águas caldas e limpas, sentindo o calor lhe esquentar o corpo fatigado e dolorido. Há quanto tempo não tomava um banho? E ainda mais com sabão! Como é bom sentir o calor chegando aos poucos, a água a tocar a superfície de sua pele, a espuma a limpar a sujeira entranhada em seus poros, sujeira causada pelos ideais humanos, pelo anseio da conquista, a luta pela vitória. Vitória de quê? Quantos morreram, quantas famílias terão de lutar arduamente por seu sustento, pois seu arrimo não existe mais. O que se ganhou com isso? Nada! Mortes e mais mortes, tantos rapazes com dezenas de anos pela frente, agora reduzidos a pó. A aflição das bombas caindo e estourando tudo o que estivesse ao redor. Corpos amputados, sangue cobrindo os uniformes, rações diminuídas, água acabando e as palavras de ordem retumbando dentro de nossas cabeças: durar durar durar ... Para ele, não restava mais nada, nem a conquista de seus ideais revolucionários, nem seu trabalho, nem saúde, nem nada, sua vida se resumia aquela banheira cheia de água quente da qual não queria sair nunca, nunca mais...

    – Giuseppe, acorde, Giuseppe! Sua comida está esfriando. Enxugue-se e vista-se rápido. Tome, aqui tem uma muda de roupa nova. Tem até talco no armário se você quiser. Venha logo, estamos esperando – disse seu pai.

    – Sim papai. Eu já vou – E assim dizendo, levantou-se e foi se enxugando com muito vigor, pois parecia ter nascido de novo. Quanto tempo teria dormido naquela banheira? Aquela água havia novamente lhe trazido a razão. Precisa pensar como iria sustentar sua família. Seu pai não podia trabalhar, sua mãe tinha a casa para cuidar. Suas irmãs ainda iam à escola. Como será que eles teriam se arranjado com dinheiro este tempo todo? É difícil prever, mas tudo deveria ter aumentado bastante.

    – Agora sim, este é meu filho. Limpo e perfumado. Venha, sente-se aqui e me diga o que você acha desta bela macarronada que sua mãe lhe fez?

    – Ótima, mesmo para um soldado faminto, posso reconhecer que é a melhor que eu já comi, o espaguete está realmente como eu gosto al dente.

    – Tome, beba um copo de vinho.

    – Papai, como vocês se arranjaram este tempo todo? O dinheiro que eu lhes deixei foi suficiente?

    Seus pais se entreolharam e ele respondeu:

    – Não, meu filho. Deflagrada a revolução, os preços subiram vertiginosamente. Não se encontrava mais nada para comprar e quando se achava, custava uma fortuna. Tivemos de recorrer ao seu tio Luigi.

    – Não acredito que fizeram isso!

    – Entenda, Giuseppe – Disse Maria – O que mais poderíamos fazer? Não tínhamos outra forma de conseguir dinheiro.

    – Quieta, Maria. Não se intrometa nos assuntos dos homens.

    – Quanto dinheiro ele lhes emprestou?

    – 20 contos de réis.

    – Nossa senhora do céu! Como vamos devolver tudo isso?

     – Não precisamos devolver, o Luigi nos deu o dinheiro.

    – Como?

    – Giuseppe, Luigi é meu irmão e ele tem grande disponibilidade financeira. Por que eu não aceitaria uma ajuda dele? Se fosse o caso inverso, eu teria o maior prazer de dar o dinheiro para ele.

    Um profundo silêncio encerrou este diálogo.

    Nos dias que se seguiram, Giuseppe saia pelas ruas procurando e pensando no que ele poderia trabalhar. Tinha adquirido certa experiência no trabalho que ele fazia na secretaria, mas ele sabia que era limitado. Além disso, todos os negócios começavam a ter uma certa atividade, era apenas o princípio. Não conseguia pensar em algo diferente.

    – Giuseppe, Giuseppe!

    Olhando para a direção de onde soava seu nome, ele viu seu colega Joaquim.

    – Joaquim! Como é bom ver você de novo.

    – Giuseppe, estava com saudades de você. Como foram as coisas? Você sofreu muito no front?

    – Bom, pelo menos eu sobrevivi.

    – E graças a Deus! Perdemos muita gente nesta

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