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Viva comigo
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E-book281 páginas7 horas

Viva comigo

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Sobre este e-book

Na década de 1950, Giuliana Mabiuzzi é uma jovem estigmatizada por um passado sombrio. Ela vive com a irmã e o cunhado, ainda solteira por não acreditar mais em romance. Seu sonho de viver um conto de fadas foi arrancado dela quando ainda era inocente e alterou completamente seu futuro. Perdida e se sentindo sem talento ou perspectivas, Giuliana segue a vida como babá dos três sobrinhos, rejeitando todos os pretendentes que se aproximam dela. Para a moça, sua beleza é uma maldição que deve ser renunciada. No entanto, quando a primeira televisão brasileira é inaugurada no Rio de Janeiro, Giuliana conhece o charmoso ator Romeu Valentim, que vai transformar sua existência sem propósito em uma maravilhosa e apaixonante história de amor, digna de ser transmitida para todo o Brasil.
IdiomaPortuguês
EditoraBookerang
Data de lançamento7 de jul. de 2020
Viva comigo
Autor

Josy Stoque

Josy Stoque is a publicist by profession and author by vocation. She has been writing since discovering poetry as a child. Her debut novel, Marked by Fire, the first book in the Four Elements saga, was nominated for the 2013 Codex de Ouro Annual Literary Prize when published in Brazil in the original Portuguese. The second title in the series has also been published in Portuguese, and the author will release the remaining two books through Amazon’s Kindle Direct Publishing platform in 2014. Marked by Fire is her English-language debut.

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    Pré-visualização do livro

    Viva comigo - Josy Stoque

    Lispector

    PRÓLOGO

    Para Recomeçar

    A VIDA É UM ACÚMULO DE DESEJOS E MEDOS. ENQUANTO O PRIMEIRO NOS IMPULSIONA para frente, o segundo nos empurra para trás. Era ali que eu estava, perdida no vazio existente entre o desejo de continuar vivendo uma vida normal, e o medo de cometer erros que tornariam minha existência ainda pior do que era. Criatura... Era assim que me via. Um mero ser que respirava, consumindo o oxigênio de alguém muito mais importante.

    Permaneci no limbo da desesperança por longos anos, revivendo em minha mente perturbada a única coisa que conseguia: o passado. O presente era um emaranhado de pequenas funções aos quais me agarrara para não sucumbir. Mas era difícil. O vazio crescia conforme o tempo passava, inexorável, transformando-me em um abissal nada. E o futuro escapava por meus dedos, todos os dias, conforme eu afundava no poço da solidão.

    Lá estava eu, submersa em culpa, desespero e tristeza, e ninguém podia resgatar minha alma daquele purgatório autoimposto. Só eu mesma possuía o poder de me tirar da inércia.

    Mas por onde andava minha coragem de viver?

    Onde estava minha vontade para recomeçar?

    UM

    Meu Futuro

    O SOM DE PASSOS NAS ESCADARIAS DESVIOU MINHA ATENÇÃO DO LIVRO ABERTO ENTRE as minhas mãos. Não estava realmente lendo, apenas fingindo, como eu fazia desde que perdi minha irmã, meus pais e minha dignidade. Haviam se passado sete anos, mas as lembranças, principalmente os odores, estavam tão vívidas quanto no momento em que ocorreram. Bastava fechar os olhos e era transportada para lá, sozinha e aterrorizada, mesmo sabendo que me encontrava segura.

    Sorridente, vestida com uma elegante roupa de festa, um par de meias três quartos, saltos altos, cabelos presos e maquiagem escura sombreando os olhos, Giulia surgiu na escadaria. Estava espetacular, como sempre, e arrancou-me um suspiro, que era um misto de orgulho e desagrado. Eu me sentia vivendo à sua sombra, tanto em beleza, quanto em talento. Minha irmã mais velha, além de linda, era uma vedete de sucesso e muito bem casada com o produtor artístico aposentado Andrei Chermont.

    Giulia franziu o cenho ao me avistar, fazendo seu sorriso encantador desaparecer.

    — Por que ainda não está pronta, Giuliana? Já estamos em cima da hora.

    Fechei o livro com um baque surdo, preparando-me para contar mais uma mentira.

    — As crianças acabaram de dormir e você sabe que Aurora ainda não se adaptou à cama nova. Preciso ficar atenta caso ela desperte, chorando.

    Giulia estreitou os olhos, enquanto eu tentava manter uma expressão inocente e preocupada com o bem-estar de minha sobrinha mais nova.

    — Francisca pode socorrê-la se Aurora acordar choramingando.

    — Você está sobrecarregando sua governanta com tantas tarefas, Giulia.

    Minha irmã parou diante de mim e, mesmo sobre sapatos de saltos, ela ainda era mais baixa do que eu.

    — Você é tão jovem, Giuliana — havia pesar tanto em sua expressão quanto no tom de sua voz, sempre mansa. — Tem que sair mais. Sabe que não é sua responsabilidade cuidar dos meus filhos.

    — Eu os amo e adoro fazer companhia a eles. — Também sabia ser teimosa em demasia. Mamãe diria que eu havia puxado isso do nosso pai.

    — Sei que sim, mas você precisa ter sua própria vida. Sinto que está vivendo a minha.

    Também sentia, mas jamais admitiria em voz alta, porque fora minha escolha. A vida da minha irmã era muito melhor do que a minha poderia ser. Depois de ser marcada para sempre com tanta sujeira, eu jamais me sentiria limpa outra vez. Minha alma havia sido maculada e nada do que eu fizesse poderia torná-la pura de novo.

    — Já falamos sobre isso... — desconversei.

    — Não o suficiente já que continua irredutível. — Giulia se sentou ao meu lado, acomodando-se elegantemente. — Pois bem, se você não vai, eu também não vou.

    Naquele momento, Andrei desceu as mesmas escadas aos pulos, de dois em dois degraus, vestindo um traje black tie completo. Estava lindo, de tirar o fôlego e causar inveja em todas as mulheres que cruzassem o caminho de Giulia. Eles eram um par perfeito. Beleza e graça lhes eram tão naturais quanto respirar.

    — Perdoem-me pelo atraso — desculpou-se, porém, sorria, mal contendo a animação que aquela noite lhe proporcionava. — Passei no quarto das crianças para deixar um beijo de boa-noite e Aurora resmungou.

    — Bem que avisei — contive o desejo de revirar meus olhos para Giulia e levantei-me para ir ao socorro da pequena.

    — Não precisa se preocupar, Giuliana — meu cunhado me tranquilizou com um sorriso deslumbrante, que era sua característica mais marcante. — Consegui fazê-la adormecer novamente. — Apenas naquele instante, quando fiquei de pé, ele reparou em minhas roupas modestas, franzindo o cenho. — Pensei que eu tivesse nos atrasado, mas vejo que você ainda não está pronta.

    Abri a boca para mentir de novo, porém, Giulia foi mais ágil.

    — Nós não vamos mais, mi amore. Giuliana não quer deixar Aurora aos cuidados de Francisca, portanto, ficaremos em casa para velar seu sono.

    Não contive uma careta e baixei a cabeça antes que um dos dois notasse.

    — Giuliana está usando nossa filha como desculpa para não ir conosco, outra vez — Andrei compreendeu meu comportamento padrão depressa.

    — Como sempre, minha estrela guia. Mas como a filha é nossa, penso que é meu dever abdicar da festa.

    Giulia olhou para o marido com uma expressão de verdadeira adoração, como se não prestasse a menor atenção ao que dizia. Andrei retribuiu o olhar, com um misto de admiração e carinho, que sempre fazia meu estômago se contorcer.

    — Então, eu também devo ficar, já que sou tão responsável pelo bem-estar de nossa filha quanto você, petit.

    Horrorizada, assisti Andrei se sentar ao lado de Giulia e a abraçar pelos ombros, embebido da beleza de minha irmã, como ela própria não conseguia disfarçar o deslumbramento.

    — De jeito nenhum! Vocês precisam ir! — Não pude controlar a ansiedade que dominou a minha fala. — A festa é para vocês!

    — Sabemos disso, Giuliana, mas Aurora sempre será nossa prioridade — minha irmã retrucou e Andrei concordou com um aceno de cabeça, para meu total desespero.

    — Está bem, vocês venceram! — Eu me rendi à intimidação. — Irei à bendita festa, mas não os perdoarei tão cedo pelo estratagema.

    Giulia abriu um enorme sorriso, que a fez parecer bem mais jovem e ainda muito bonita. Depois de três gravidezes, ela havia ganhado curvas mais generosas, faces mais cheias e seios volumosos. Minha irmã se tornara uma mulher voluptuosa, em todos os sentidos da palavra.

    — Ficamos aguardando, minha querida — ela retrucou. — Não se apresse.

    Como convidados de honra, Andrei e Giulia fariam uma entrada triunfal devido ao atraso que eu causava. Cabisbaixa, subi as escadas até meu quarto e vesti a primeira roupa que encontrei. Costumava usá-la nas missas de domingo. Era um vestido preto de bolinhas brancas, com um decote discreto e mangas curtas, que alcançava meus joelhos. Sob a saia, o tule preto a fazia inflar e se revelava alguns centímetros abaixo da barra. Prendi meus cabelos dourados com um arco escuro, o penteado mais simples e rápido que pude elaborar com pouco tempo, calcei sapatos também pretos e desci com uma fita na mão, ao encontro da única família que me restara.

    Não me preocupei em conferir a minha aparência no espelho de corpo inteiro do quarto. Nunca apreciava o que via. Ser bonita fora uma maldição para mim, desde muito jovem, e temia o mal que ainda poderia me causar, exatamente porque conhecia a maldade que a beleza de uma mulher atrai.

    — Giulia, poderia amarrar para mim, por favor? — entreguei-lhe a fita preta, que ela passou pela minha cintura, fazendo um laço nas minhas costas, que eu sabia, estaria muito bem feito. — Obrigada.

    — Se não fossem pelas bolinhas brancas, eu acharia que está de luto, minha cunhada. — Andrei caçoou do modelo que escolhi.

    Não deixava de ser verdade. De certa forma, eu estava de luto por mim mesma. Após o meu resgate daquela pocilga, renasci. A menina tola e inocente havia morrido para sempre, mas aquela perda ainda doía muito. De um dia para o outro, eu havia perdido tudo e não sobrara nada para recomeçar. Apenas uma vida vazia de sonhos, destinada a apenas sobreviver por mais um dia.

    — Sei que não estou vestida a caráter, mas não tenho roupas de festa.

    — Não tem porque não me deixa comprar nada para você.

    — Você já gasta muito comigo, minha irmã. Sou eternamente grata pelo seu cuidado, mas não preciso de luxos.

    — Você precisa viver, Giuliana! — Giulia me abraçou lateralmente. — Não quero perdê-la de novo, é verdade, mas não ficaria triste se você estivesse feliz, mesmo que não morasse mais aqui. E, desde que veio ficar conosco, não sinto que esteja inteira. É como se uma parte sua estivesse perdida para sempre.

    Não gostava daquele tipo de conversa. Na verdade, não gostava nenhum pouco quando minha irmã e meu cunhado enxergavam o quanto eu estava quebrada por dentro. Eles tinham esperança de que fosse melhorar com o tempo, mas eu sabia que havia ultrapassado uma via sem retorno. Viveria para ser grata a eles e cuidaria dos meus sobrinhos pelo restante dos meus dias, satisfeita com a bênção de amá-los que me fora concedida, apesar de tudo o que vivenciara.

    Houve um tempo em que achei que não sobreviveria para rever Giulia e essa graça, ao menos, me fora concedida.

    — Eu sou feliz com vocês, apesar das perdas que sofremos — confessei, sem coragem de erguer minha cabeça e encará-los. — Vocês me deram muito, inclusive uma família para amar e proteger.

    — Você não sobreviveu àquele horror para nos servir, Giuliana — minha irmã me alcançou e ergueu meu rosto com um dedo, contemplando-me com um olhar suave. — Você precisa encontrar seu propósito.

    — Não os sirvo. Eu os amo e cuido para que nada de mal lhes aconteça! — exaltei-me, perdendo a razão por um instante. No entanto, reduzi o tom de voz, lembrando-me da dura educação de nosso pai, que jamais toleraria que eu erguesse a voz para retrucá-lo. — Já pensou que eu talvez não esteja destinada a grandes realizações, como você, Giulia?

    Minha irmã acariciou meu rosto, delicadamente.

    — Você está destinada a seguir seu próprio caminho. Temo apenas que esteja se anulando por medo de arriscar. Já faz sete anos, Giuliana...

    — É melhor irmos antes que se atrasem mais — desviei-me de suas mãos, sempre caridosas, e caminhei até a calçada, onde o motorista já nos aguardava.

    O anfitrião da festa havia enviado uma limusine para nos levar à sua residência. Suspirei aliviada quando Andrei e Giulia entraram no carro logo atrás de mim, em silêncio completo. Minha irmã sabia que eu não gostava de falar sobre o que me acontecera depois que ela fugiu de casa e dos maus-tratos de nosso pai bêbado e violento.

    Por mais que eu tentasse, as lembranças não me abandonavam. Sabia que falar não adiantava de nada. A raiva e o medo apenas aumentavam toda vez que eu pensava a respeito ou alguém mencionava algo sobre meu delicado passado. Eu precisava esquecer, porém, até aquele momento, nada tivera o poder de me ajudar. Nem mesmo o cuidado de minha irmã e do meu cunhado, muito menos o amor de meus sobrinhos, conseguiram apagar os momentos mais medonhos de minha existência. Não queria que nada nem perto do que eu sofrera os alcançasse. Por isso mesmo me dedicava a protegê-los.

    A festa era para comemorar a inauguração da TV Tupi no Rio de Janeiro, que acontecia às vésperas da primeira transmissão de televisão da América do Sul. Alguns meses antes, ocorrera em São Paulo, o que eu jamais entenderia. A capital do país deveria ter sido privilegiada. Giulia era a grande estrela musical, que daria vida à canção da TV, coreografada por Andrei. Os ensaios tomaram boa parte do tempo de ambos nas semanas que antecederam o momento histórico.

    Não sabia o que eu estava fazendo naquele veículo luxuoso. Era apenas a irmã perdida e calada da estrela, que queria se esconder dos holofotes, sob os quais ela me expunha sem querer. Ainda não me sentia pronta para prosseguir minha vida sozinha, essa era a verdade. Eventualmente, esperava conseguir. No entanto, parecia-me um dia muito distante.

    Desci do automóvel assim que este parou no meio-fio, diante da mansão do magnata Assis Chateaubriand, proprietário do grupo empresarial Diários Associados — o maior conglomerado de mídia da América Latina—, fundador da TV Tupi, político influente e grande incentivador das artes. Também foi Chateaubriand, em parceria com Pietro Maria Bardi, que construiu o Museu de Arte de São Paulo, conhecido como MASP.

    Graças à carreira bem-sucedida de minha irmã, vivíamos muito bem, porém, nada se comparava à grandeza do lugar no qual adentrávamos. Eu me senti menor e ainda mais vulnerável sob tantos objetos caros, lustres de cristal e pinturas raras. Aquilo tudo não espantava mais Giulia ou Andrei, que viveram em grande conforto parte da vida juntos. Mas a mim, sim. A menina pobre e explorada ainda habitava em meu interior.

    Logo que passei a viver com eles, meu cunhado tinha devolvido o dinheiro e as propriedades que ganhou através da jogatina, o que o deixou completamente sem nada. Entretanto, minha irmã possuía um investidor, que bancou nossa estadia no hotel Copacabana Palace até que ela pudesse comprar a casa na qual passamos a morar algum tempo depois. Por isso, Giulia optara por esperar alguns anos antes de engravidar, após o casamento.

    Segui Andrei e Giulia de longe, enquanto eram cumprimentados por todos que cruzavam seu caminho ao adentrarem a residência. Eles realmente apreciavam aquela vida. A mim não remetia a boas lembranças. Odiava a maneira que os homens me olhavam, mesmo que eu nunca saísse de casa maquiada ou com roupas extravagantes, como minha irmã. Queria ter um grão de sua autoconfiança, mas eu não era ela e já aceitara isso há muito tempo.

    Também não sabia quem eu poderia ser e isso me frustrava, principalmente quando Giulia demonstrava se preocupar comigo. Meu único propósito ao me levantar da cama todas as manhãs era continuar respirando. Não me interessara por música ou dança, apesar de amar ver minha irmã e meu cunhado bailarem. Ela era incrível, sempre fora, e ao lado de Andrei se tornou a estrela que sempre sonhou. Mas eu não tinha talento nem mesmo para tocar um instrumento. Até Agnes, minha sobrinha de apenas quatro anos, sabia mais o que queria da vida que eu.

    A única coisa que eu fazia bem era companhia para as três crianças. Às vezes Giulia ralhava comigo, dizendo que quando eu estava com seus filhos me esquecia de que era adulta e agia como eles. Talvez fosse isso que gostava mais ao ser babá: reviver a pureza e a inocência da infância que me fora arrancada.

    Mesmo atrás de Giulia e Andrei, mantendo-me calada e discreta, fui notada, como eu temia. Cavaleiros elegantes, exalando a cigarros e álcool, se aproximaram de mim a fim de se apresentar, o que eu me recusava a aceitar, desviando-me como uma contorcionista. Percebia com nojo seus olhos cobiçosos sobre minha beleza e meu corpo, e me afastava com náuseas. Encostei-me a uma parede a fim de recuperar o fôlego, antes que vomitasse bile, já que não havia jantado ainda.

    Giulia não tinha ideia do quanto lugares como aquele me faziam mal. Ela não tinha culpa. Era uma irmã atenciosa. Eu que escondia meus sentimentos.

    Entretanto, um homem parou silenciosamente ao meu lado e me arrepiei toda com sua proximidade, por mais que ele não me tocasse de forma alguma. Espiei de canto de olho e perdi o ar com sua formosura. Ele também era jovem, estava bem-vestido como todos, porém, tinha um charme que exalava como fumaça, espiralando entre nós. Desviei meus olhos quando o homem se virou para mim, sem jeito ao ser pega em flagrante, analisando-o.

    — Espero que não se importe que eu me esconda aqui também.

    Eu o encarei estupefata, esquecendo-me das palavras que pretendia proferir. Ele não sorria galantemente, como muitos faziam, no entanto, era como se pudesse ver minha alma. Aquilo me amedrontou um pouco e fiquei na defensiva.

    — Não estou me escondendo...

    — Ah, não? — Senti deboche em sua voz, mas não ofensivo. Era como se tentasse puxar assunto. — Pensei que aqui fosse um bom local para me esconder. Mil perdões, senhorita — curvou-se, cavalheirescamente. — Não irei mais incomodá-la com a minha presença.

    Não sei o que me deu ao vê-lo se retirar. Simplesmente agi por impulso, surpreendida com seus modos educados e não invasivos. Não estava acostumada a ter por perto um homem que não fosse rude ou bolinador. Com exceção de Andrei, evidente.

    — Não se desculpe, por favor. Fique à vontade. Não sou a dona da casa.

    Ele abriu um sorriso comedido, não reagindo efusivamente à minha tentativa de troça.

    — Fico aliviado. — Para minha surpresa, ele participou da chacota, fazendo surgir covinhas em seu rosto ao rir. — Estou cansado de bajuladores.

    Senti-me imediatamente confortável estando simplesmente ali, parada ao seu lado, como se nos conhecêssemos a vida inteira. Eu me conectei aquele estranho que demonstrou o mesmo sentimento que o meu. Nunca havia me deparado com ninguém que me compreendesse e me respeitasse tão de imediato. Nem mesmo Giulia tinha esse dom, por mais que tentasse muito.

    — É algum tipo de celebridade. — Não falei como uma pergunta.

    — E não somos todos aqui? — Daquela vez ele riu e o som foi tão cristalino que soou como música aos meus ouvidos. — Romeu Valentim — apresentou-se, estendendo uma das mãos em minha direção, educadamente.

    Eu a aceitei e Romeu a balançou, privando-me da textura de seus lábios contra o dorso de minha mão. Não soube dizer se isso foi bom ou ruim.

    — Giuliana Mabiuzzi.

    — A senhorita não tem sotaque italiano, mas seu nome me diz que é descendente.

    — O senhor tem razão. Sou filha de colonos, mas nasci aqui no Brasil.

    — Mabiuzzi... — disse pensativo. — Conheço esse sobrenome.

    — Minha irmã é Giulia Mabiuzzi Chermont — e apontei para a grande, porém, pequena, vedete, que parecia dançar e cantar conforme caminhava e falava pelo salão.

    — Ah! Sim! Sua irmã é muito talentosa. Deve ter muito orgulho dela.

    — Giulia sempre correu atrás de seus sonhos.

    — E chegou longe graças a seus esforços.

    — Precisamente.

    Romeu me olhou com ternura por um segundo que pareceu longo demais. Foi a primeira vez que eu não me senti desconfortável na presença de um homem que não fosse Andrei. Na verdade, aquele olhar cor de mel, vidrado na minha direção, era muito semelhante à doçura que meu cunhado havia dirigido a mim quando nos conhecemos, em tempos conturbados. Talvez por causa daquela semelhança eu tenha me sentido segura ao lado do desconhecido.

    — Valentim! — alguém gritou seu sobrenome, obrigando-o a desviar os olhos dos meus. Senti-me abandonada e estranhamente confusa com aquilo.

    Com um aceno, Romeu avisou a pessoa que já se juntaria a ela e se voltou para mim, fazendo meu coração disparar, descontroladamente. Havia uma intensidade desconcertante e maravilhosa na maneira que me encarava. Era como se transbordasse verdade.

    — Obrigado pela companhia, senhorita Giuliana Mabiuzzi. Espero conseguir me esconder novamente, quando a festa for demais para mim.

    Eu me despedi com um gesto breve de cabeça, incapaz de fazer minha voz sair sem tremer.

    Eu o segui com os olhos a noite inteira, mantendo-me sempre nos cantos menos populares do enorme salão de baile da mansão do magnata. E para a minha frustração, Romeu Valentim não voltou a escapar de seus bajuladores. Nem mesmo me lançou aqueles olhos incrivelmente gentis outra vez. Era como se ele tivesse se esquecido da minha existência.

    E, pela primeira vez em anos, eu desejei ser memorável para um homem, mas só para aquele que tinha no olhar o futuro, o meu futuro, do jeito que um dia eu jamais sonhara avistar.

    DOIS

    Minha Heroína

    ESPEREI QUE O CENÁRIO FUNESTO SURGISSE ASSIM QUE SENTI MEU CORPO ORBITAR PARA a inconsciência. Não adiantava lutar contra o sono, ele sempre me vencia, assim como o pesadelo recorrente nunca falhava. Lá estava eu, pequena e indefesa, coberta de sangue, da cabeça aos pés. Em uma mão se encontrava a faca que tirara a vida de meus pais. Olhei para ela horrorizada, como todas as vezes em que me deparei com a arma daquele massacre. Eu

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