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A Terra Dos Favos
A Terra Dos Favos
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E-book583 páginas8 horas

A Terra Dos Favos

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Sobre este e-book

Dedicado a Odam, parlamentar da cidade de Yusra, Kateb escreve a história da jovem Akemi Kahar, filha adotiva de uma família de camponeses. Sua família é partidária da volta do antigo reino sobre o país de Ales Izabran, cujo governo foi usurpado por um imperador tirano. A saga se passa quase trezentos anos após essa usurpação. Quando seus pais de criação são sequestrados por soldados imperiais, Akemi vê-se obrigada a sair em busca deles. No caminho, ela encontra uma importante pessoa para a restauração do reino, Éron, líder da Ordem dos Guerreiros, que está em uma missão própria para restaurar a história do país escrita nos livros perdidos oficiais do reino, os Trinta e Nove. Quando finalmente ela encontra um de seus queridos sequestrados, sofre uma traição inesperada. A partir disso, ela se integra à missão dos guerreiros de restaurar um governo legítimo de Ales Izabran e começa a juntar o quebra-cabeça de sua própria origem e papel na história de seu povo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de abr. de 2021
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    A Terra Dos Favos - Bianca Souto

    Prólogo

    Além do mar, corridas as campinas verdejantes, dentro da Grande Floresta Verde, estão as colunas de marfim na esplendorosa cidade de Sawsan. A luz branca da lua cortava caminho por entre as árvores e se refletia em cada mármore dos edifícios. Era uma noite límpida e fria do ano 277 depois da instauração do império, após a usurpação.

    O imperador instaurou seu governo tirano e ditatorial e espoliou todos os filhos do reino como seus súditos a partir de um golpe corrupto que tomou forma de lei. A antiga capital fora totalmente destruída e desolada; não havia nenhum habitante nela além de abutres e vermes. Pelo menos era o que se acreditava até agora...

    Naquela noite gelada, uma notícia que reacendia as esperanças chegou aos líderes de um povo que sofria sem liberdade. Um grupo de espias da Ordem dos Guerreiros conseguiu achar, depois de anos de procura, a antiga capital, em funcionamento e habitada com importância estratégica para a economia imperial e, justamente por isso, isolada e desconhecida para todas as outras províncias.

    A notícia se espalhou entre os aliados do reino, e uma carta do próprio rei explicitava seu desejo de retirar a cidade do poder do imperador e abrir caminho para uma cidade independente onde todo filho do reino pudesse buscar sua liberdade original. Todos os cidadãos do reino poderiam buscar refúgio ali e fugir da opressão. A empreitada causaria uma ruptura no poderio imperial, uma ferida amarga e profunda no funcionamento econômico e político de abastecimento de cada domínio.

    A notícia veio com grande festa e aplauso de todos os líderes. Todos menos um. Um homem se mostrou hesitante com a decisão. O nome dele era Daku, que significa areia do deserto. E assim como a areia é instável como base fundamental de qualquer construção, Daku era um elemento instável para alicerçar os fundamentos políticos da cidade. Ele, como descendente direto de Esdam, o primeiro líder nomeado pelo rei sobre o país Ales Izabran e que perdera o domínio para o imperador, deveria restaurar a linhagem dos líderes leais ao rei e seria o guia do exército de revolucionários para reconquistar a cidade.

    Todavia, Siham, líder da Ordem dos Guerreiros, em uma de suas missões, achou cartas trocadas entre Daku e um recém nomeado ministro do imperador, contando em detalhes planos secretos. E embora essas evidências fossem suficientes para destituir Daku de sua liderança, o rastro da desonestidade continuou até eliminar a última carta do mundo físico. Restava apenas o testemunho dos poucos que a leram. Desta maneira, Daku foi rejeitado como líder da missão e toda a sua dinastia manchada com a dúvida da traição. Assim, sem um líder, a missão perdera sua força inicial.

    A traição de Daku causou uma ruptura em sua própria família, em que parte o apoiava e parte ofereceu ajuda para os aliados, que ainda permaneciam sem um líder legítimo confiável que fosse fator de união.

    A fim de nomear outro herdeiro para o trono de Ales Izabran e escusar a dinastia de Daku de suas responsabilidades, seguindo a legislação, foram convocados todos os líderes aliados do reino. Todas as nacionalidades, de todas as províncias, vindos do norte, sul, leste e oeste, estavam presentes.

    De acordo com a lei do reino, para escusar um rei de uma dinastia em progressão – algo como uma deposição –, três gerações diretas de cada líder em exercício deveriam assinar a concordata e nomear uma nova dinastia. Essa é a Lei das Três Gerações, pois entendia um acordo entre o passado, o presente e o futuro.

    A reunião para assinar o acordo duraria cerca de uma semana, a fim de que todos os arranjos fossem devidamente feitos. O rastro da traição, porém, não havia sido apagado. Dentre os presentes havia um convidado que vendera seu título ao império e não mais atuava como um aliado real. Ele não teve sucesso em agregar todas as informações, mas sabia que a lei estava em progresso e agiu para impedi-la. Sua mão assassina elaborou planos genocidas contra os parentes ascendentes dos líderes que não haviam assinado até o momento. Não sei se sorte ou destino o impediu de concluir sua chacina. Ainda assim conseguiu executar três pessoas.

    Uma movimentação intensa se espalhou na bela cidade florestal de Sawsan, pois dois dos líderes afetados pelos assassinatos não tinham substituto imediato para concluir o acordo. Um desses líderes abdicou de seu posto em favor de seu irmão, que tinha um filho crescido para assinar o acordo. O outro líder tinha um descendente muito novo para que sequer pudesse escrever o próprio nome.

    Com a falta de uma assinatura e sem possibilidade de substitutos para validar a lei, o documento foi guardado até que o descendente tivesse idade suficiente para assumir seu lugar no Conselho e legitimar uma nova dinastia escolhida. O documento foi levado secretamente, ninguém sabe por quem, ninguém sabe para onde. Nomeados sob a alcunha de reabrir esse inquérito quando o tempo chegasse estavam um general, um juiz, um soldado e um cidadão livre. Mas sobre o descendente estava a esperança de libertação.

    1

    O segredo de uma família

    Um estranho barulho irrompe na noite. Era verão, embora a temperatura gelada dos últimos dias contrariasse a estação. O céu estava limpo de nuvens e densamente estrelado. A noite estava calma no campesino Vale de Mizar. Tudo estava quieto demais na densa madrugada do pequeno vilarejo de Fellah, até que um leve tremor no chão encheu as casas. Os utensílios na cozinha oscilavam e faziam canecas penduradas e talheres tilintarem, o que despertou uma jovem moça daquela casa.

    Ao longe podiam-se ouvir sons de cavalos, muitos cavalos. Ela não levanta da cama, pois o frio daquela noite lhe fazia se encolher entre as cobertas. Tentou fechar os olhos. Mais cavalos. E agora estales de espadas eram audíveis também. Sons de batalha. Batalha? Cavalos? Nunca houvera nada assim por ali. Sentiu-se na obrigação de abrir os olhos e se levantar para caçar aquele som. Ninguém mais no vilarejo ousara sair para constatar a razão e os verdadeiros acontecimentos daquele barulho tão adverso àquele lugar. Sendo simples camponeses, certamente seriam trucidados no meio de uma batalha real.

    Ali, no extremo leste de Ales Izabran, totalmente longe de suas fronteiras, num vilarejo aconchegante e familiar no meio de um dos vales entre a cadeia montanhosa de Mizar, batalhas não eram frequentes e toda a pouca movimentação que havia era comercial.

    Na janela de seu quarto, Turaya, a jovem moça, esgueirava-se para ver. Os combatentes não estavam tão próximos quanto o barulho os denunciava. Provavelmente isso se devia ao eco produzido no vale onde ficava o vilarejo. Sua mãe entrou em seu quarto para ver como ela e suas irmãs estavam e deparou-se com a jovem ali.

    – Turaya, saia já daí! Se alguém te encontrar espionando, não haverá noiva nem família de noiva para cumprir o acordo com a família de Bariri.

    – A senhora fala como se eu me importasse – diz a moça, fazendo pouco caso do que sugerira a mãe.

    – Não se importa? Olhe o que está dizendo!

    – Eu não me importaria em não me casar com um estúpido irresponsável.

    – Cuidado como fala de seu futuro noivo!

    – Veja só o noivo que me arranjou, mamãe. Com tudo o que está acontecendo, ele nem se deu ao trabalho de verificar como a família da noiva está.

    – Está noite e escuro lá fora. Talvez o pai dele não o tenha deixado sair.

    – Espere até o amanhecer, então – a moça desafia.

    – Turaya!

    A jovem senta-se em sua cama, cruzando os braços, com uma expressão de desagrado.

    – E não me olhe desse jeito. Por que não faz como suas irmãs e age feito uma dama?

    – Não somos damas, mãe, estamos mais para servas.

    – Turaya! – repreende-a de novo. – Não fale assim.

    Ela revira os olhos e sua mãe sai. Olha para suas irmãs, todas agarradas aos lençóis com medo ou então voltadas para ela com desaprovação no olhar. Sem se incomodar, ela volta para sua janela.

    A batalha fora rápida. Ou pelo menos passara rapidamente por ali. Provavelmente iria se desenrolar em outra região.

    Logo à primeira luz do amanhecer, os vizinhos se ajuntaram para comentar, intrigados, sobre os acontecimentos passados. Ninguém sabia ao certo o que de fato ocorrera. Cada um tinha uma teoria mais mirabolante que a outra.

    Perto dali existiam pegadas embaralhadas de cavalos, sangue e flechas no chão. As mulheres ficaram nas portas de suas casas observando os homens discutirem o assunto. Alguns nem dormiram de noite por tanta preocupação de que algo lhes ocorresse. Bariri estava tão entretido nas flechas que nem se dera ao trabalho de ver como sua noiva estava, como ela previra. Mas sua família tinha terras e bens, enquanto a de Turaya, apenas uma égua prenha e uma vaca leiteira que ficavam no pasto da família dele. Isso fora suficiente para vender Turaya, a moça mais velha da família, em casamento.

    Em meio ao alvoroço dos vizinhos, especulando e discutindo temerosos, uma figura, respeitável por natureza, apareceu. Ao ritmo de seus passos, todos foram parando de falar e passaram a encarar o homem. Ele era alto e tinha em seu rosto feições da experiência. Vestia uma roupa num tom azul muito escuro, com o desenho de uma espada com asas prateadas no centro do abdômen. Era um cavaleiro! Um de seus braços estava ferido. Com autoridade, mas também gentileza na voz, ele disse:

    – Preciso de um cavalo.

    Silêncio. O pai de Bariri, então, todo cheio de si, chama um de seus empregados e manda pegar um dos seus animais para agradar e impressionar o cavaleiro. Cochicha que pegasse o pior e mais fraquinho ou, em outras palavras, o que não faria falta. Então, todo pomposo, veio o rapaz com um pangaré quase doente. O pai sentia orgulho do que fazia. Parecia um nobre, porém, não é exagero dizer que até os porcos eram mais decentes.

    Ao constatar mais uma atitude mesquinha de tal família, um dos homens ofereceu o seu próprio animal. Não era um meio sangue e estava em melhores condições do que o outro. O homem aceitou e pagou muito mais do que o animal valia. Quem deu o cavalo foi Matias, homem que vivia nas colinas. Estava ali por ocasião do casamento, pois era um velho amigo da família, especialmente de Turaya.

    O cavaleiro já ia montando em seu cavalo para deixar a localidade quando, enfim, Turaya tomou coragem e perguntou-lhe o que ocorrera naquela noite. Sua mãe a censurou por se dirigir assim ao homem desconhecido, entretanto ela e todos ali se permitiram ouvir a tão esperada resposta. Ele montou no cavalo e, observando a ignorância daquelas pessoas, apenas disse:

    – Rakin... Ele lutou por aqui – agradeceu o cavalo e foi embora.

    Todos estremeceram perante aquele nome tão imponente. Rakin era o grande general de todas as tropas do antigo reino e aquele homem lutava ao seu lado como subordinado.

    Não sei se aquela resposta esclarecia ou anuviava mais dúvidas.

    O que Rakin fazia tão distante do reino? Por que lutava? Com quem lutava? Aquele dia fora de mistério para todos. Sem respostas às suas indagações, todos voltaram à rotina de trabalho normal.

    Mas Turaya fugia da rotina. Vai até o pasto, onde diversos animais do vilarejo ficavam, observar sua égua, atualmente a única coisa que realmente gostava em sua vida. Estava ansiosa, pois as luas estavam para se completar e ela queria muito ver o nascimento do potrinho. Quando chegou lá, teve uma surpresa. O filhote já havia nascido e era um belo macho malhado, filho de sua égua meio sangue e de um puro sangue de Bariri. Ela, então, passa o dia inteiro com os animais. Estava onde queria estar. Sabia que quando voltasse para casa levaria bronca por não estar ajudando nos preparativos do casamento, que seria em menos de três dias. Contudo, isso não a aborrecia. Depois do casamento, muito da sua vida mudaria e já não poderia fazer aquilo que era da sua vontade. Além disso, ela não se importava com esse casamento, que era apenas um meio de tirar sua família da pobreza. Sua vida inteira fora vendida por terras e gado.

    Logo iria anoitecer. Com tristeza, Turaya se apressou em ir para casa. Pelo menos tinha uma esperança: o velho Matias estaria lá. O que ela não sabia era o tamanho do furor e da ira de sua mãe, que só cresciam. Assim que chegasse, agiria naturalmente. Pensava nas desculpas que poderia dar. Até pensou em mentir, mas seu estado lhe denunciava. Cheirava a cavalos e estava totalmente desarrumada, com os cabelos desgrenhados e as mãos sujas, e não só as mãos.

    De longe ela ouve sua mãe discutir com seu pai sobre ela não colaborar em nada com esse casamento. E como poderia? Era a maior desgraça de sua vida. Quando chegou em casa, sua mãe logo foi esbravejando. Turaya não se continha em ficar calada e acabou falando o que não devia. Um de seus desaforos foi dizer que meretrizes eram mais valorosas do que seus próprios pais, pois elas vendiam o próprio corpo e não o dos filhos. Ao ouvir isso, sua mãe partiu para cima dela e começou a bater. Ela não podia revidar, afinal, era sua mãe. Seu pai ficou parado, sem mover um músculo para salvá-la. Quando sua mãe levantou novamente a mão para lhe acertar, a moça a segurou. Isso enfureceu a mulher, que pegou um enorme pedaço de madeira. Turaya se encolheu, esperando a colisão. Foi então, nesse exato momento, que Matias adentrou a casa.

    Ele não pensou duas vezes, colocou-se na frente de Turaya e impediu que sua mãe lhe fizesse algo de que se arrependeria mais tarde. Falando palavras para acalmar a mulher, ele pegou a madeira e a jogou para fora. Turaya olha com os olhos cheios de decepção em forma de lágrimas e sai correndo de sua casa. Matias não consegue alcançá-la.

    Chorando muito e sem pensar direito, ela corre de volta para o pasto, procurando consolo nos animais. O caminho era distante e a noite já havia caído há certo tempo. Não era seguro andar sozinha, porém ela não pensava em nada além do que acontecera.

    Quando chega lá, não encontra seus animais de imediato. Então se joga na grama iluminada pela lua e deságua suas mágoas. De repente, ela ouve um cavalo relinchar desesperadamente. A princípio não dá atenção. Porém, havia algo naquele relincho que lhe era familiar. Sua égua! Imediatamente parou de chorar, levantou-se e, por ora, esqueceu o ocorrido. Ela corre em direção ao som da égua e a encontra. O potro havia sumido e a mãe estava deveras agitada frente à cerca que dava para a floresta. A moça não entende a situação, apenas corre para acalmar o animal.

    Turaya começa, então, a procurar o filhote desesperadamente. Era recém-nascido e provavelmente não sobreviveria sozinho. Ela teve muito trabalho e gastou muito tempo olhando pelas redondezas, sozinha, procurando o potro. Nem parou para pensar onde a égua estava e por que estava tão agitada. Foi então que, num flash de pensamento, percebeu que tinha alguma coisa ali dentro da mata que deixara a égua daquele jeito.

    A menina pula a cerca e adentra a floresta escura. O ambiente estava muito sombrio, porém faltavam poucas horas para o amanhecer. Sua noite fora tão agitada que mal percebera o tempo passar.

    Ela anda devagar e temerosa, ouvindo os sons da mata. Mesmo com todo o cuidado, acaba se perdendo. Sem ter o que fazer, ela senta. Submergida em suas ideias para sair dali, ela volta a si ao ouvir o barulho de uma coruja. De um barulho a outro na selva, ela identifica o som de águas. Seguindo esse som, depara-se com o rio Grande.

    A certa distância dali a moça avista um animalzinho quase disforme. Era o potrinho. Que felicidade! Ela corre para encontrá-lo. Chegando mais perto, percebe que ele não estava sozinho. Logo sua alegria se esvai. Uma cena triste invade seus olhos. Ali, ao seu lado, havia uma bela mulher de cabelos dourados, morta. Segurava firmemente uma garotinha ruiva, ainda bebê, que deveria ser sua filha. Pela posição em que estava, parecia que morrera protegendo-a. A cena chocou-lhe muito, pois tudo indicava que havia sido em vão. Ela apertava contra o peito a menina, tendo o punho fechado. A luz da manhã já se manifestava e produzia um lindo efeito ao entrecortar as árvores. Foi então que uma gotinha de orvalho caiu do alto de uma árvore atingindo o rosto da menininha, fazendo-a acordar. A garotinha não se assustou ao ver a estranha; pelo contrário, deu-lhe um belo sorriso. Comovida com a situação, Turaya pega a menina no colo, fazendo o potro também se levantar. Até o momento não entendera o motivo de ele estar ali. Quando o potro se levantou, ela viu uma cobra – até agora embaixo dele – esmagada pela cabeça. Ele estava ali para proteger a garotinha.

    – Parece que tudo conspira a seu favor, menina. Quem seria eu para quebrar essa regra? – ela decide que cuidaria da menina como se fosse sua. – Seu nome será Akemi, pois foi achada na luz da manhã, reluzindo beleza novamente em minha vida. E você – ela se volta para o potro – será Dôla, pois foi um amigo fiel em salvá-la.

    Ao pegar a menina no colo, Turaya viu em seu abdômen uma ferida. Parecia que uma flecha quente fora apertada contra a barriguinha dela. Com certeza a marca iria ficar, mas não causaria maiores problemas se a tratasse a partir daquele momento.

    Ela sabia que se a levasse para casa sua mãe nunca permitiria sua estada permanente e ninguém sabe o que poderia fazer à menina em represália à filha. Pensando nisso, ela a escondeu num lugar seguro da floresta e sempre ia visitá-la. Seu plano era trazê-la para sua casa assim que se casasse.

    Antes de ir, olha novamente para a mulher. Sua mão havia se aberto, mostrando assim o que segurava: um lindo anel com uma pedra na ponta e um fio de ouro que devia servir como colar. Ela pegou aquele objeto e o guardou consigo. Feito isso, sentiu uma forte responsabilidade sobre aquela mulher. Não poderia abandoná-la daquela maneira, para que os bichos desonrassem sua memória destruindo seu corpo à vista de todos. Então, enterrou-a junto às rochas, deu-lhe um túmulo simples, porém honrado.

    Agora sua atenção estava completamente voltada para a menina. Nunca tinha visto uma criança tão cabeluda com tão pouca idade. Seus cabelos lisos na raiz iam se enrolando nas pontas com suavidade. Tinha lindos e grandes olhos verdes, que, quando chorava, ficavam azuis. E, enquanto ia crescendo e experimentando emoções novas, outras cores surgiam, para surpresa de qualquer um que olhasse. Tinha entre dois e três anos quando foi encontrada. Aquela data passaria a ser considerada seu aniversário, o décimo dia depois do início do verão.

    O dia do casamento chegara. De certa forma ela estava feliz por sair da casa dos pais. Turaya se fazia de contente e, toda vez que a tristeza lhe irrompia a alma, ela pensava na doce criança e seu humor mudava. A festa envolveu todo o vilarejo e durou o dia todo até o pôr do sol, como de costume. Depois os noivos saíram para sua nova casa.

    Turaya estava então casada. Agora queria pôr seu plano em ação, por isso fez a declaração ao seu marido:

    – Achei uma criança perdida na mata.

    Ela inventou uma história qualquer, sentindo que não poderia confiar-lhe a verdade. Ele assentiu em trazer a criança para casa, desde que fosse um menino. Caso contrário, ele mesmo trataria de arranjar um destino para ela. E esse destino não seria nada agradável. Então, um turbilhão de pensamentos invadiu a mente da jovem esposa. Não era um menino que achara. O que poderia acontecer se falasse que era menina? Não podia abandoná-la depois de tudo aquilo, e criá-la na floresta era inviável, pois ela mesma vivia no vilarejo. Lembrou-se de quando a mãe de Bariri ficou grávida e todos na família dele achavam que era um menino. Quando a criança nasceu e viram ser uma menina, houve um desgosto geral. Depois daquilo, a criança desapareceu. Quando os vizinhos aldeões perguntaram, falaram que morrera de causas naturais, pois era uma criança fraca. Porém, todos os que a haviam visto juravam ser o mais saudável entre os recém-nascidos, pela boa alimentação da mãe na gravidez.

    Um arrepio percorreu seu corpo só de imaginar o que poderia ser feito à pequena. Não tinha pensado nisso antes. O velho Matias seria uma opção, mas ele tinha assuntos de guerra a resolver longe dali. Não ficaria em sua casa na colina durante um bom tempo.

    Se a família de Bariri foi capaz de algo tão atroz, quem garantia que ele mesmo não fosse? Como não tinha pensado nisso antes? E agora já havia falado da criança... Foi aí que tomou sua decisão, que teria repercussões para sempre na vida da pequena Akemi. Disfarçaria a menina de garoto. Seria Ake, em vez de Akemi, e dessa forma a traria para dentro de sua casa.

    Incrivelmente, Bariri se afeiçoou muito da criança e cuidou como se fosse seu próprio filho. Ensinou-lhe a lutar, cavalgar e cuidar do campo. Eles tiveram mais três meninos depois disso, Rachid, Faris e Társis. Mas Akemi era tratada como o filho primogênito. Turaya sabia que isso não duraria para sempre. A despeito de ter conseguido esconder o sexo da menina com sucesso enquanto era criança, o cenário mudaria quando chegasse a puberdade. Não demoraram para descobrir. A farsa durou até os doze anos de idade.

    Bariri percebia que seu suposto filho não sentia interesse por meninas logo aos doze anos, mas pensava que era por ser muito infantil ainda. Com um pouco mais de idade, sua mãe planejava contar-lhe toda a verdade para ela sobre seu nascimento e seu nome. Porém um acontecimento muito mais traumático a forçou a contar a verdade mais cedo.

    Certo dia, Bariri encontrou um objeto em casa que o encheu de furor. A briga entre os dois nunca havia sido tão feia em toda a vida deles juntos. Bariri começou a quebrar os móveis em casa e Turaya temeu que ele levantasse a mão para ela na frente dos filhos. Então mandou que saíssem para brincar. Não queria que vissem a mãe apanhando do próprio pai. Os gritos na casa eram altos e Akemi levou as crianças cada vez mais longe, além dos limites, para não ouvirem o que acontecia. Estava um dia muito quente e Társis teve a ideia de mergulhar no rio dali de perto. Eles costumavam fazer isso sempre, mas o faziam com a supervisão de adultos; logo, sempre vestidos.

    Nesse dia, Turaya estava em casa apanhando do marido, e os meninos, sozinhos sem instrução. A ideia de Társis foi logo aceita e, como estavam só entre garotos, tiraram suas roupas e se jogaram na água. Na euforia da brincadeira, ninguém notou nada de diferente. Brincaram, divertiram-se o dia todo. Com o cair da tarde, resolveram sair dali antes que sua mãe viesse buscá-los, brava por terem ido muito longe sozinhos. Todos saíram da água para vestir suas roupas. Foi aí que perceberam.

    Foi um choque para todos, especialmente para Akemi. Todos foram para casa tirar satisfação. Akemi sempre soubera que era diferente de seus irmãos e amigos, mas não tinha noção de quão diferente era.

    Chegando em casa, os móveis estavam destruídos, Turaya estava sentada na cozinha com a cabeça entre as mãos e os olhos fundos, sem condições de derramar mais lágrimas. Bariri tomava fôlego depois de ter explodido em sua ira violenta. Foi então que a notícia chegou.

    Bariri esbofeteou a esposa na frente dos filhos pela primeira vez. Ela destruíra a reputação de toda a sua família. Levantou-se para bater nela novamente, mas a pequena Akemi correu para proteger a mãe e levou o tapa no lugar dela. Turaya então se levantou, pegou uma caixinha e ameaçou tornar o conteúdo daquilo público, dizendo que ele seria o primeiro a morrer. Que se encostasse em Akemi de novo, ele seria o primeiro a morrer. Bariri se calou.

    Faris e Társis, os dois menores, desataram a chorar, Rachid estava paralisado frente àquela cena e Akemi sentia a primeira dor da rejeição. Ele olhou para a criança que um dia tanto amara e lhe disse que teria sido melhor que a menina tivesse morrido de fome na floresta. Ele se arrependeria do que falara mais tarde. Amava a criança, mas seu preconceito e arrogância eram muito grandes para aceitá-la. Assim quebrou o pequeno coração dela.

    Akemi tinha lágrimas nos olhos, mas se recusava a deixá-las caírem. Olhava para o chão, tentando encontrar pensamentos que lhe sustentassem. Foi a primeira vez que a cor de seus olhos escureceu. Turaya a levantou e jogou água gelada e corrente no local onde havia recebido o tapa. Temendo pela vida da menina e prevenindo consequências piores, ela a leva para a casa do velho amigo, o senhor Matias. Ele enriquecera muito nos últimos anos a partir de suas viagens bélicas e, por isso, estabeleceu sua aposentadoria na casa que tinha nas colinas. Ali seria a casa de Akemi pelos próximos anos.

    Turaya contou toda a história para a menina, que tinha a mente confusa e o coração despedaçado. Então se agachou e deu um abraço na menina. Akemi sentia raiva da mãe por ter mentido e a culpava pela humilhação intensa que passara. Mas quando percebeu que aquele abraço era uma despedida, agarrou-se na mãe e sentiu-se abandonada. Como ela podia voltar a morar com aquele homem? Como podia deixá-la com outra pessoa depois de tudo o que aconteceu? Será que voltaria a ver seus irmãos e seus amigos? A pequena Akemi segurou as lágrimas com força até Turaya ir embora. Quando viu a mãe sair, sentiu suas forças irem junto. Sozinha, abandonada, desatou a chorar. Matias deixou tudo para socorrê-la, viu seus olhos ficarem cada vez num azul mais claro, quase sem cor. A menina soluçava desesperada. Foi então que ele a pegou no colo e jurou que não a abandonaria jamais. Ele repetia essas palavras e aos poucos ela foi se acalmando. As lágrimas só cessaram quando ela finalmente conseguiu dormir nos braços de Matias.

    Ninguém no vilarejo soubera o real motivo pelo qual Ake tinha ido morar nas colinas. E assim deveria permanecer, mas numa época tão remota, num vilarejo tão pequeno, era difícil guardar segredo.

    Akemi ficou vivendo muitos anos com o senhor Matias, que se tornara como um pai para ela, já que Bariri a havia desprezado. Matias não ligava por ser ela mulher nem pelas coisas que gostava de fazer; amava-a de todo o coração. Ele fez tudo o que estava em seu alcance para fortalecer aquela menina quebrantada pela vida que não escolhera. O ensino dele a aprimorou em tudo o que já havia aprendido, e ela adquiriu novas habilidades, além de uma nova paixão: arco e flecha. Era melhor do que todos os rapazes e homens feitos das redondezas. E sua obsessão pela perfeição no tiro a faria a melhor numa extensão muito mais ampla.

    Matias fora soldado em sua juventude, quando morava em Ales Izabran, e passou a treinar a menina com o que aprendera. Isso porque ela, desde o abandono, sentia muito ódio e ele temia que isso a destruísse. Então canalizou esse ódio dela em disciplina militar. Ele a educou em tudo o que tinha acesso, já que não receberia a mesma educação das crianças do vilarejo. Aperfeiçoou aquilo que já sabia, ensinou, como já dito, arco e flecha, cuidados da casa, cozinhar, ensinou muito sobre plantas, animais, estrelas e uma atividade incomum no vale, desenhar. Ele criava galinhas e cabras e ensinou-lhe um forte amor e cuidado pelos animais, além de um respeito imenso por toda forma de vida. Akemi via o quanto ele zelava por seus animais. Sempre olhava pelo cercado para que eles não fugissem ou fossem devoradas por raposas e outros predadores das colinas. Assim ele ensinava o cuidado passivo e ativo no tratamento dos bichos.

    Matias era honesto e decente. Ensinou valores e princípios a Akemi como a uma filha. De todas as lições, essas seriam as mais difíceis para ela aprender. Não que Akemi não tivesse princípios, mas seu coração fora manchado pela mágoa ainda muito cedo e certas situações ela não podia simplesmente aceitar.

    Quando se findava a semana, Matias, a quem chamava de tio e tratava como pai, levava a menina ao cume de uma montanha ao pôr do sol. Ali ele lhe contava histórias, suas ou outras quaisquer, à luz de uma fogueira e embalados pelo cheiro de um cozido. Depois, ficavam a observar as estrelas até caírem no sono.

    Numa dessas vezes, ele se achegou a ela com uma história diferente.

    – Minha querida, não sei se você sabe como sua mãe e eu nos tornamos tão próximos...

    – Não, tio – ela responde enquanto descasca uma fruta qualquer.

    – Ficamos amigos quando me mudei para cá. Eu a tinha como irmã, minha pequena irmã mais nova de quem deveria cuidar. Certa vez, uma de suas amigas falou coisas pouco honrosas de mim a ela e por isso brigamos.

    – Ficaram sem se falar?

    – Sim, por muito tempo.

    – E o que houve? Como voltaram...

    – Ah, minha querida, a falsidade não dura para sempre. Essa suposta amiga acabou traindo-a e toda a verdade foi revelada. Sua mãe me pediu desculpas e eu a perdoei. Ela me prometeu nunca mais acreditar em algo contra mim sem antes tomar a limpo a história. Foi então que ela me deu isto – ele tira de uma pequena bolsinha um colar de esmeraldas.

    – Oh! Que lindo, titio!

    – Ela coletou cada uma dessas pedrinhas que compõem o colar do lixo de garimpo, logo ali no povoado de Rabiah, e pediu para um ourives amigo de seu pai trançar os fios de ouro.

    – É lindo!

    – Deu muito trabalho para ela construir. Ela me deu como um símbolo da nossa amizade. Escolheu esmeraldas para simbolizarem a esperança, esperança de que no final as coisas dão certo. Acabou sendo um símbolo do perdão também.

    – Que coisa bonita, tio!

    – Minha doce Akemi, há três lições que eu quero que aprenda com este colar.

    – Amizade, esperança e perdão, já sei – revirou os olhos. O tio, ignorando propositalmente aquele desdém descarado dela, continuou:

    – Isso! A amizade é por vezes o que nos mantém firmes. O que seria de nós sem o amor de um amigo? Esse é um amor muito puro, pois é amor por escolha. E espero que você encontre tudo isso.

    – Sim, tio – ela sorri carinhosamente.

    – A esperança, porque nada faz sentido se não acreditarmos que pode dar certo. Ela nos dá força para continuar cada missão, desde a mais simples. Guarde a esperança, querida. Um dia você sairá daqui. Te conheço, você é jovem e ambiciosa, vai encontrar seu próprio caminho. Mas se ele for muito difícil de seguir, olhe o colar e lembre-se da esperança de resolver os problemas e voltar para casa.

    – Me lembrarei, tio.

    – E, por fim, o perdão. Porque as pessoas não serão perfeitas com você e você não será com elas. Perdoe para ser perdoada. Não deixe que algo tão trivial como a mágoa e o rancor te separe daqueles a quem você ama. Perdoe. Perdoe e não deixe seu coração se encher com o sentimento de vingança – ele fez uma longa pausa para que ela absorvesse aquelas informações. De todas, sabia que a última era a mais importante para aquele coraçãozinho tantas vezes já quebrado. – E agora – ele limpa a garganta antes de continuar –, minha querida, vou dormir. Este colar é seu, sempre leve com você.

    Ele adormeceu logo, deixando na cabeça de Akemi um eco daquelas palavras. Achava tudo aquilo muito lindo, mas também achava que nunca passaria por coisas tão profundas assim, nem mesmo que um colar a ajudaria de alguma forma, caso passasse. Eram apenas tolices de um velho que a amava. Mesmo assim, passou a usar todos os dias o colar, não no convencional pescoço, e sim no punho. Usaria o colar à sua própria maneira, não como era indicado.

    Depois que ela se mudou para as colinas, Dôla ficou com ela durante todo o tempo. Era realmente seu amigo fiel, pois mesmo estando solto, não fugiu para voltar até a mãe. Para que todos soubessem que ele era seu cavalo, prendeu uma pena de falcão em sua crina branca, semelhante à que usava em suas flechas, e, por onde ele passava, sabiam que era o cavalo de Akemi.

    A menina cresceu e se tornou uma bela jovem. Apesar de ser bela, não era vista dessa forma pelas pessoas do vilarejo. Principalmente por seu passado, e também por sua aparência, as pessoas a achavam extremamente diferente. Alguns até a achavam feia, por ser ruiva, ter o cabelo mesclado entre o liso e o encaracolado e olhos claros. Ela era diferente em tudo. A cor dos cabelos lisos de todos era negro, bem escuro, bem como seus olhos. Todos eram descendentes da mesma família. Também eram bonitos, mas não lidavam bem com as diferenças. A bem da verdade, a diferença na aparência era uma desculpa para a abominação que ela era aos olhos de todos.

    Vez ou outra Akemi ia ao vilarejo por necessidades diversas. Ia muito pouco, devido ao preconceito que recebia, por isso só aparecia quando muito necessário. Bariri, esses anos todos, não falava com a garota, mesmo que tivesse vontade. Tinha o coração muito duro. Ela, por sua vez, também não queria saber dele. Via-o como um traidor; abandonou-a enquanto ainda era uma criança. Sabia que o que sua mãe fizera não era certo, porém tinha consciência de que era a única forma de mantê-la viva e a salvo. Aliás, ela só o fizera, em primeiro plano, por causa da ameaça que ele mesmo representara.

    Turaya e seus filhos sempre a visitavam. Certo período, Turaya passou a frequentar menos a casa de Matias. Estava grávida novamente e problemas com Bariri a impediam de visitar sua filha tanto quanto gostaria. Os meninos faziam isso por ela.

    Quando o pequeno Diso nasceu, as coisas se complicaram ainda mais e suas visitas eram exemplo de raridade. Certa vez, Akemi saíra com seus irmãos e três amigos, que ainda a aceitavam. Eles foram até um pomar distante para colher tipos diferentes de frutas. Enquanto descansavam debaixo da sombra de um perseeiro, conversavam e se divertiam. Akemi, então, perguntou a seu irmão Rachid:

    – Rachi, por que mamãe não aparece mais na casa de Matias?

    – Não sei direito. Desde que ficou grávida do pequeno Diso, ela e papai têm brigado muito. Parece que papai achou alguma coisa que não gostou.

    – O quê?

    – Nenhum de nós sabe – disse Társis, interrompendo.

    – Eles esperam a gente sair para brigar, ou então discutem em voz baixa enquanto dormimos – acrescentou Faris.

    – Só pegamos algumas partes, nunca a briga inteira.

    Depois de colherem mais perseas e outras frutas, eles voltaram para casa. Quando Isedri, Brena e Yago, os três amigos, já tinham ido embora, Akemi acompanhou seus irmãos. Perto da casa, eles ouviram a discussão e os choros do pequeno Diso, que não conseguia se acalmar. Eles se entreolharam preocupados. Falavam a respeito de algum colar ou algo assim. Os pais, então, perceberam a presença deles e pararam. Bariri abriu a porta e se deparou com Akemi e seus irmãos. A situação ficou ainda mais tensa. O cenho de Bariri estava enrijecido de raiva, mas conversas posteriores entre os irmãos revelaram que viram ele tentar, sem sucesso, disfarçar o queixo trêmulo. Ao ver que não era bem-vinda, Akemi tratou de se retirar, dando boa-noite aos irmãos.

    Chegou a sua casa antes do anoitecer. Saudou Matias com sua cesta de frutas.

    – Olhe só o que os cabelos vermelhos trouxeram.

    – Olá, tio Matias.

    – Olá, raio de sol, como foi seu dia?

    – Muito bom, trouxe estas perseas para o senhor.

    – Obrigado, querida – ele pega as perseas, aperta a fruta e analisa a casca dela, falando uma porção de curiosidades sobre as perseas. Enquanto isso, a mente de Akemi a transportava do perseeiro até a casa de Turaya, totalmente sem atenção no tio. Com sua mão apoiada no queixo, ela olhava longe, o vazio. Seus pensamentos fervilhavam em questionamentos. Matias continuava sua história sobre as perseas, até que fez uma pergunta e não recebeu resposta.

    – Akemi? Akemi, querida, você está bem?

    Despertando de seu transe, ela responde:

    – O quê? Claro. Estou bem.

    – Tão ruim assim?

    – O quê? Eu disse que estava bem – ela ri, sem entender bem seu tio.

    – Isso que me preocupa. Você não disse que estava bem, disse que estava bem – ele senta na cadeira e imita sua expressão amuada. – Vamos, querida, diga o que você tem.

    – Não tenho nada, tio. Não sei de onde inventa tanta bobagem – ela disfarça mostrando-se despreocupada, como se não soubesse do que ele estava falando.

    – Se você não me contar, vou fazer sopa de mostarda, aquela que a senhorita tanto adora, a semana toda.

    – Argh, tio! – ela reclama, torcendo os lábios, sua típica cara de nojo.

    – Sei que dentre todos os motivos que fazem uma moça se preocupar, o único que tem poder sobre você é a família e talvez os amigos. O que aconteceu?

    Vendo-se sem saída, ela suspira e conta dos problemas de Turaya e Bariri.

    – Mas você por acaso sabe que coisa é essa que ele achou? – seu tio pergunta.

    – Não sei... Parece ser um colar ou algo assim.

    – Colar? – ele se intrigou muito.

    – É, colar.

    – De ouro? – parecia que ele sabia que colar era.

    – Não sei, tio. Não fiquei lá papeando. Não sou bem-vinda naquela casa, assim como ele não é na minha.

    – Akemi, apesar de tudo, ele é seu pai.

    – Para com isso, tio. Sei que não sou filha legítima deles. O cabelo ruivo denuncia – ela pega uma mexa e a balança no ar. – E ele não fez o menor esforço para me tratar como pessoa, imagina como filha. Ele não é como o senhor.

    Matias não podia argumentar quanto a isso.

    Akemi não era filha legítima de Turaya, mas bem que poderia ser. Tinha o mesmo espírito da mãe e algumas manias também. Quer um exemplo? Turaya gostava de se retirar para passar um tempo sozinha no pasto. Akemi também tinha o seu local, porém muito mais interessante que o pasto. Andando de um lado para o outro nas colinas, montanhas e vales, ela descobriu um espetáculo da natureza que acabou virando seu lar.

    Faltava pouco tempo para o raiar do sol e ela já estava acordada. Corria junto com o vento em seu cavalo em direção à Cascata Esverdeada. Ali ela subia até o topo e ficava à beira do rio; bem ali onde o curso da água corria por cima da rocha, esperava o sol nascer. Era uma bela visão! Em meio às árvores e alguns jardins, ela colhia pequenas amoras e se deliciava ao despertar dos passarinhos. Pouco a pouco nascia o sol. Seu único companheiro era Dôla. Alguns dias tinham se passado, meses e anos também. Estava perto da festa do shem de Faris.

    Ela e Matias ficariam por algum tempo em sua antiga casa devido aos preparativos. Pouca coisa mudara no relacionamento de Akemi com as pessoas dali. Como passara algum tempo a mais no vilarejo desta vez, devido à festa, ela recebeu um apelido das moças de lá: Cabelos de Fogo. Era um nome que tinha o objetivo de humilhar, mas que acabaria se tornando um nome muito temível anos mais tarde.

    Com a chegada da manhã, ela logo voltava ao vale, ao pequeno vilarejo de Fellah. Ele tinha esse nome devido às diversas espécies de jasmim que o circundavam. Jasmins não são nativas de Ales Izabran; foram trazidas do velho país e plantadas ali. Como acharam um ambiente favorável, se proliferaram em toda a região do vilarejo, nomeando-o por fim.

    As atividades diárias estavam intensas e em tudo ela ajudava sua mãe e seu tio, juntamente com seus irmãos, durante a manhã e, às vezes, de tarde. O pasto era um pouco longe, então tinham que atravessar o vale a cavalo para irem mais depressa. Logo cedo, Akemi e Rachid foram cuidar do pequeno gado de leite que a mãe tinha. Apesar de o marido possuir servos para cuidar do gado da família, Turaya fazia questão de ter seu próprio gado, conseguido a muito custo, com muito trabalho. Logo os dois voltavam trazendo parte do café da manhã. A outra parte, sua mãe e Faris providenciavam no pomar. Assim, Társis e o pequeno Diso se juntavam à família para o desjejum.

    Após isso, cada um se dirigia a suas atividades específicas. Rachid, o mais velho depois de Akemi, era o filho responsável que trabalhava junto com o pai na roça. Faris vinha em seguida de Rachid; era amante de cavalos e por conta disso arrumou um emprego com o senhor Reú, homem rico que morava próximo ao vilarejo. Rico porque iniciara uma criação de cavalos nos últimos anos, mas não tinha saúde nem idade para cuidar deles, portanto contratava alguns jovens para fazer o que não podia. Társis, o terceiro filho, muito corajoso desde pequeno, o que o fez ganhar o nome, era considerado muito novo, apesar de ter nascido dois anos depois que Faris apenas. Por isso só fazia trabalhos simples dentro de casa com a mãe. Logo em seguida vinha o caçulo, Diso. Agora com três anos, ainda estava sendo educado pela mãe.

    Estava chegando um dia especial! Faris estava completando dezesseis anos, idade que marcava a transição de menino para homem, e haveria uma grande festa em Fellah. A Festa do Shem. Todas as pessoas recebiam honrarias especiais ao completar dezesseis anos. Era a idade do compromisso.

    Akemi geralmente ajudava sua mãe pela manhã e de tarde trabalhava juntamente com Faris para o senhor Reú. Era a forma que arranjara para ajudar Matias nas despesas que dava em casa. Apesar de seu tio ter se tornado um homem de posses, ela não gostava de receber tudo sem fazer nada de útil, por isso começou a ajudar. Outra semelhança com Turaya.

    No dia da festa de Faris, ela resolveu ficar em casa e ajudar sua mãe com os preparativos, que eram muitos. Seu tio estava preocupado demais com a cerimônia, já que era de idade avançada e não poderia ajudar em outras coisas. Ademais, era claro que junto com Bariri ela não iria ficar, portanto sua mãe era a única e a melhor opção.

    Akemi e sua mãe ficaram horas na cozinha fazendo os preparativos. Tudo

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