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A criação da memória: rastros autobiográficos na literatura portuguesa
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A criação da memória: rastros autobiográficos na literatura portuguesa
E-book380 páginas5 horas

A criação da memória: rastros autobiográficos na literatura portuguesa

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Sobre este e-book

A pertinência das discussões acerca da impossibilidade de um texto declaradamente autobiográfico desramificar-se por completo dos constructos literários, seja na recuperação de uma memória viciada pelo imaginar, seja na configuração na diegese de um outro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de ago. de 2022
ISBN9788539703791
A criação da memória: rastros autobiográficos na literatura portuguesa

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    A criação da memória - Paulo Ricardo Kralik Angelini

    Chanceler

    Dom Dadeus Grings

    Reitor

    Joaquim Clotet

    Vice-Reitor

    Evilázio Teixeira

    Conselho Editorial

    Ana Maria Lisboa de Mello

    Agemir Bavaresco

    Augusto Buchweitz

    Beatriz Regina Dorfman

    Bettina Steren dos Santos

    Carlos Gerbase

    Carlos Graeff Teixeira

    Clarice Beatriz de C. Sohngen

    Cláudio Luís C. Frankenberg

    Elaine Turk Faria

    Érico João Hammes

    Gilberto Keller de Andrade

    Jane Rita Caetano da Silveira

    Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente

    Lauro Kopper Filho

    Luciano Klöckner

    EDIPUCRS

    Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor

    Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe

    © EDIPUCRS, 2013

    Capa:  Rodrigo Valls

    Revisão de Texto:   Paulo Ricardo Kralik Angelini

    Editoração Eletrônica:  Rodrigo Valls

    edipucrs

    EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS

    Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33

    Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900

    Porto Alegre – RS – Brasil

    Fone/fax: (51) 3320 3711

    E-mail: edipucrs@pucrs.br - www.pucrs.br/edipucrs

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


    A582c Angelini, Paulo Ricardo Kralik 

                     A criação da memória : rastros autobiográficos na 

               Literatura Portuguesa / Paulo Ricardo Kralik Angelini. – 

               Porto Alegre : EDIPUCRS, 2013. 

                     350 p. 

                     Modo de Acesso:  

                     ISBN 978-85-397-0379-1 

                     1. Literatura Portuguesa – História e Crítica. 

               2. Escritores Portugueses – Autobiografias. I. Título. 

                                                                           CDD 869.09


    Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou  a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

    Paulo Ricardo Kralik Angelini

    (Organizador)

    A

    criação

    da memória

    Rastros autobiográficos na Literatura Portuguesa

    Porto Alegre - 2013

    Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,

    Não há nada mais simples.

    Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.

    Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

    Alberto Caeiro

    Aqui habito há muito, possuída

    Pela presença e ausência de cada forma.

    Acolho o dia e a noite, na vigília

    De quem copia do mundo a própria vida

    Fiama Hasse Pais Brandão

    Mas o que é ser-se eu; o que sou eu?

    Mário de Sá-Carneiro

    Porque nasci entre espelhos

    Tenho pressa

    De encontrar-me face a face

    Helder Macedo

    Escrevo na primeira pessoa (mas podia estar a escrever na terceira

    pessoa, fingindo a distância que realmente existe...). Que imagem

    provoca esta escolha? Que me projeto, que me autobiógrafo? Não

    vale a pena responder. Nem valia a pena perguntar

    Mafalda Ivo Cruz

    APRESENTAÇÃO

    A pertinência das discussões acerca da impossibilidade de um texto declaradamente autobiográfico desramificar-se por completo dos constructos literários, seja na recuperação de uma memória viciada pelo imaginar, seja na configuração na diegese de um outro, o leitor — debate este proporcionado no âmbito da disciplina do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da PUCRS, Literatura e Subjetividade, ministrada pelos professores Dr. Maria Luíza Ritzel Remédios e Dr. Paulo Ricardo Kralik Angelini, no primeiro semestre de 2011 —, motivou a documentação deste material.

    Tendo como corpus essencialmente a literatura portuguesa – notadamente com um viés em particular introspectivo –, os textos que compõem A Criação da Memória: rastros autobiográficos na Literatura Portuguesa investigam as escritas que focalizam um eu-autor também como personagem, suas dimensões, seus reflexos, seus imbricamentos com outros elementos da narrativa, com a História, com a Filosofia, com a Psicologia, com as Artes Plásticas, com a Música, com os Quadrinhos. Na primeira parte desta obra, Eça de Queirós é revisitado na impossibilidade de uma autobiografia de Teodorico Raposo em A Relíquia. As marcas características de um narrador que se materializa e dramatiza no texto são levantadas em duas pontas temporalmente distantes, mas significativas e coincidentes: de Livro de Memórias de Teixeira de Pascoaes até As Pequenas Memórias de José Saramago. Da obra de Pascoaes, ainda, há um artigo que discute a narrativa memorialística como possibilidade de existência — e de resistência ao esquecimento. Da mesma constelação literária, vem Raul Brandão e a arqueologia de suas Memórias, no exame dos modos com que o ‘eu’ sobressai-se frente a eventos e seus entrelaçamentos com a sociedade da época e a História. Miguel Torga tem duas facetas literárias esquadrinhadas: a natureza limítrofe de sua escrita autobiográfica em A criação do mundo que, aliás, apresenta eventos igualmente presentes em seu Diário, também aqui investigado. O poeta da obra mais triste de Portugal, segundo o próprio autor de , António Nobre, tem suas cartas remexidas e pesquisadas em um artigo. Outro estudo contempla o existencialista Vergílio Ferreira e sua obra diarística Conta-Corrente em diálogo com suas e outras ficções. O excesso do eu nas cartas de Mário de Sá Carneiro enviadas a Fernando Pessoa também é inventariado. Aliás, esse material epistolar de Sá-Carneiro é do mesmo modo investigado como parte de um processo de registro que está em decadência (as missivas), em comparação a um gênero que desponta: as histórias em quadrinhos autobiográficas. Mais contemporâneas, as obras de António Lobo Antunes, Frederico Lourenço, Manuel Alegre são perquiridas neste trabalho: as pistas autobiográficas deixadas pelo narrador de Os Cus de Judas, a intertextualidade reveladora de Amar não acaba e as vacilações do pacto autobiográfico em O miúdo que pregava pregos numa tábua. Além delas, as memórias de um homem que não se reconhece são abordadas no estudo de De profundis, Valsa Lenta, novela que traz à cena os acontecimentos imediatamente posteriores ao acidente vascular cerebral sofrido por José Cardoso Pires.

    A segunda parte de A criação da memória traz as interseções entre a literatura e outras áreas do conhecimento. A partir de um viés ancorado na Psicologia, há três estudos que investigam Os cadernos de Lanzarote de José Saramago, a correspondência trocada por Eça de Queirós e Oliveira Martins, e o romance Memória de Elefante, de António Lobo Antunes. Em diálogo com a Música, um artigo debruça-se sobre a autobiografia em terreno movediço em canções de Roberto Carlos.

    Finalmente, na última seção desta obra, há uma inversão na configuração dos textos: os autores não investigam os rastros do ‘eu’ na literatura, mas criam sua própria escrita autobiográfica, com todas as implicações que esse processo pode trazer, em dois exercícios literários narrativos e um poético.

    Acrescente-se ao processo de construção desta obra um outro dado muito significativo: todo o incentivo recebido pela grande mestre Maria Luíza Remédios para que eu organizasse esta obra, revela, na verdade, a forma generosa com que a professora, precursora dos estudos da literatura portuguesa no Rio Grande do Sul, sempre lidou com seus alunos, sejam da graduação, sejam da pós-graduação, proporcionando-lhes visibilidade no mundo acadêmico. E assim, mesmo que durante o processo de edição desta obra sua presença tenha deixado de ser física, cada linha deste livro revela o seu olhar carinhoso dedicado a mim e a nossos alunos.

    Já dizia Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa, que a história de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta sobre si mesmo. Esta refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas (RICOEUR, 1997, p. 424). São essas histórias de vidas vividas ou sonhadas, recuperadas ou reinventadas, que este livro procura inventariar. Memória e criação. A criação da memória.

    Paulo Ricardo Kralik Angelini

    Organizador.

    Em memória de Maria Luíza Ritzel Remédios

    O desmascaramento da hipocrisia e o desnudamento da fragmentação do sujeito em A Relíquia, de Eça de Queirós

    Maria Luiza Ritzel Remédios ¹

    Philippe Lejeune (1975), em seus estudos sobre o espaço autobiográfico, sublinha que os jogos de fuga e de revelação compõem a estratégia de construção literária de uma personalidade e que a consciência de um ser dividido desfaz a unidade do ‘eu’ e o mito do sujeito pleno. A Relíquia, novela de Eça de Queirós, seguindo a tradição que o discurso íntimo tem na literatura portuguesa, narra o vivido e mostra como as diferentes situações de comunicação fazem oscilar a forma e a função do ‘eu’. Em A Relíquia ² , há o desnudamento da fragmentação do sujeito e a preferência ao fundamentalmente humano: a essência, o fim, o destino do homem. O conhecimento desses objetivos torna-se imprescindível ao romance de Eça de Queirós que, em consequência, alcança, no leitor, o progresso intrínseco que se deriva do conhecimento de si mesmo, importante para despertar o interesse pelos verdadeiros problemas humanos. O homem que Eça analisa é o homem lançado no Universo, com sua grandeza e sua miséria, um homem problemático considerado em suas relações com o outro, com a História, com a sociedade, com o transcendente. Por isso, na análise dessa novela de Eça de Queirós, observa-se a composição textual em relação à função do sujeito da enunciação e à posição do leitor diante da matéria narrada, para se questionar a diferença entre novela autobiográfica e autobiografia, para se afirmar a questão da duplicação e fragmentação do sujeito em narrativas confessionais.

    No conjunto ficcional que circunda A Relíquia e em que se constrói a personagem Teodorico, o leitor pode-se indagar se Teodorico Raposo existiu ou não existiu? Se ele era escritor ou não? Qual a substância e o sentido de sua identidade? Para responder a essas questões, estabelecidas pelo leitor, é preciso observar as etapas que envolvem a gênese e a biografia de Teodorico Raposo; o pensamento e os propósitos, os anseios e os objetivos da época que o criou. Também é necessário observar-se a construção de um universo ambíguo, no qual o discurso aparente carrega o discurso velado e transgressor, apontando para a relação eu/outro.

    A narração de A Relíquia desenvolve-se em primeira pessoa, vista e filtrada do presente, sendo a ação de Teodorico Raposo uma concretização da reflexão do narrador, o que estrutura a alternância de tempos e espaços. Relata a vida de Teodorico Raposo, neto do padre Rufino da Conceição que, em Coimbra, recebeu a alcunha de Raposão, pois era homem de gostos soezes e letras grossas, para quem os maiores prazeres da vida eram o fado e uma Adélia que o enganava com um tal Adelino (SIMÕES, 1973, p. 477)

    Essa estranha personagem resolve, depois de arrependido de sua hipocrisia e bem casado e pai de família, escrever sua história, por motivos particulares:

    Esta jornada à terra do Egito e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira; e bem desejaria que dela ficasse nas Letras, para a Posteridade, um monumento airoso e maciço. Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituais, pretendi que as páginas íntimas em que a relembro se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade) suprimi neste manuscrito suculentas, resplandecentes narrativas de ruínas e de costumes... (p. 1095).

    Explicita, com clareza, que suas memórias serão escritas em consequência da viagem que lhe possibilitou experiências diferentes e significativa mudança em sua personalidade. Por isso, ele, Teodorico Raposo, deixará de lado as narrativas de ruínas e de costumes, e selecionará aqueles fatos que propiciaram a sua transformação.

    O espaço autobiográfico fica delimitado no Prefácio, no qual a personagem-narradora dá as diretrizes da narrativa e oferece os elementos para a análise. Trata-se, pois, de um relato cujo enunciador, devidamente contextualizado, tanto física quanto psicologicamente, objetiva atingir o destinatário coletivo ao qual revelará o que contém os dois pacotes de papel pardo que o acompanharam em sua viagem eu o revelo aos meus concidadãos nestas páginas de repouso e de férias, onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farsa (p. 1097).

    E dar uma lição de moral, justificando valores que beneficiam o sistema de conveniências sociais instaurado pela Burguesia Liberal (REIS, 1987). Para isso, a estrutura composicional de A Relíquia mostra, principalmente, como interagem os elementos constitutivos da relação dessa personagem-narradora com ela mesma, com D. Patrocínio da Neves (a Titi), com o Crispim, a Adélia, o Justino, a Vicência e outras personagens. Também a interação dessas personagens com referências temporais e/ou espaciais que marcam a trajetória de Teodorico, desde sua infância até o momento presente da narrativa em que decide escrever sua biografia. Numa posição distanciada com relação aos leitores, meus concidadãos, a quem se dirige a personagem-narradora, relata sobre locais diferentes de seu percurso em diferentes tempos. Desvela as fases da sua infância, da adolescência e da idade adulta. Desse modo, os leitores ficam sabendo que Teodorico passou a infância em Viana, na casa do pai até a morte desse, e, em Lisboa, com a Titi; viveu como estudante em Coimbra, depois de formado, vai em romagem a Jerusalém; depois retorna novamente a Lisboa; casa e vai morar na Quinta do Mosteiro. A narração dos fatos é realizada sob ponto de vista onisciente e retrospectivo, próprio do quadro de um projeto romanesco e que se opõe ao que parece ser inerente à posição autobiográfica:

    Casaram. Eu nasci numa tarde de Sexta-Feira da Paixão; e a mamã morreu, ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Aleluia. Jaz coberta de goivos no cemitério de Viana, numa rua junto ao muro, úmida da sombra dos chorões, onde ela gostava de ir passear nas tardes de Verão, vestida de branco, com sua cadelinha felpuda chamada Traviata. [...] Eu cresci, tive sarampo; o papá engordava; e o seu violão dormia esquecido ao canto da sala, dentro de um saco de baeta [...] Depois, numa noite de Entrudo o papá morreu de repente, com uma apoplexia, ao descer a escadaria de pedra de nossa casa, mascarado de urso para ir ao baile na casa das senhoras Macedos (p. 1100).

    Recordando etapas da sua existência, dos espaços e dos encontros com a vida, com a morte e com o sofrimento, a personagem-narradora obriga-se a situar o que é hoje na perspectiva do que foi, incentivando a curiosidade dos leitores e transformando-os não apenas em testemunhas de sua história particular, mas em testemunhas de uma época cultural. Faz, no presente da narrativa, uma leitura segunda da experiência vivida, a qual parece ser mais verdadeira do que a experimentada, porque dela tem consciência. A lembrança dá ao narrador autodiegético novas perspectivas, permitindo-lhe levar em consideração as complexidades de determinada situação, no tempo e no espaço. Assim, esse ‘eu’ reconstitui o outro, traduzindo para o leitor a ideia que o outro pode fazer do ‘eu’, Teodorico Raposo. A reconstituição da vida de Teodorico mostra a ele mesmo fatos que lhe haviam escapado, escolhas que fez, etc. Teodorico, ao reviver suas experiências, busca sua vera identidade e, mesmo sem alcançar a certeza do ‘eu’, tenta dizer quem é, com a autoridade moral e ideológica que lhe é conferida por sua transformação pessoal e por sua madurez intelectual e afetiva.

    Numa forma analéptica, rememora sua infância e adolescência, afirmando eu sou Teodorico Raposo. Desse modo, os fatos anteriores à sua viagem a Jerusalém, a qual propiciou a revisão de sua transformação, inserem-se no relato através de associações elaboradas pelo sujeito da enunciação, no momento da escrita, ou porque vieram à lembrança da personagem ao desenrolar da ação. Essas associações e lembranças seguem uma ordem lógica, reveladoras do percurso de vida que o permitem relatar seus passeios no Verão com o objetivo de alcançar homens que vivem na mesma sociedade que ele e modificá-los. Até aqui, diversos elementos sinalizadores de um texto autobiográfico foram levantados, principalmente a posição de centralidade em que se coloca Teodorico Raposo em relação ao universo diegético e que acentua o caráter exemplar das experiências que viveu (REIS, 1987, p. 56). Mas será esta novela de Eça de Queirós um texto autobiográfico?

    A autobiografia, segundo se tem conhecimento, apropriou-se, durante seu desenvolvimento, de procedimentos formais inerentes a outras formas de discurso. Assim, mesmo com regras definidas, tais regras são transgredidas e os limites entre autobiografia e novela são apagados. Elisabeth Bruss (1976), seguindo Lejeune, estabelece regras que, em princípio, deveriam satisfazer as condições de realização do ato biográfico: autor, narrador e personagem devem ser idênticos; informação e eventos devem ser verdadeiros e passíveis de comprovação; o autobiógrafo deve ter certeza sobre as informações dadas. Considerando-se esses aspectos, A Relíquia não é um relato autobiográfico, (não há identidade entre autor-narrador-personagem, as informações e eventos não são passíveis de comprovação), apesar de Teodorico Raposo retratar-se e avaliar-se envolvendo o leitor em sua história vivida e apesar de, no Prefácio ao relato, firmar-se o pacto narrativo, uma vez que o narrador-personagem, circunscrito à sua quinta, relembra e recria o mundo representado na memória:

    Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha Quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes Lindoso), as memórias da minha vida - que neste século, tão consumido pelas incertezas da inteligência e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte. Em 1875, nas vésperas de Santo António, uma desilusão de incomparável amargura abalou meu ser: por esse tempo minha tia D. Patrocínio das neves, mandou-me do Campo de Santana em romagem, a Jerusalém: dentro dessas santas muralhas, num dia abrasado do mês de Nizã, sendo Poncius Pilatus procurador da Judéia, Elius Lamma legado imperial da Síria e J. Kalapha sumo-pontífice, testemunhei, miraculosamente, escandalosos sucessos: depois, voltei - e uma grande mudança se fez nos meus bens e na minha moral (p. 1097).

    O narrador Teodorico Raposo, no instante da escrita, a reconstruir a história da personagem Teodorico, deixa entrever os espaços sociais que constituem a sociedade em que vive: a burguesia e o clero. Recuperando o passado, Teodorico analisa-o submetendo todas as ações a um objetivo central que constitui no porquê do seu discurso: condenar a hipocrisia e advertir o homem de que não deveria esperar a fortuna senão do esforço e do trabalho pessoais

    - Mas emudeci... Aquela inefável voz ressoava ainda em minha alma mostrando- me a inutilidade da hipocrisia. Consultei a minha consciência, que reentrara dentro de mim - e bem certo de não acreditar que Jesus fosse filho de Deus e de uma mulher casada da Galiléia (como Hércules era filho de Júpiter com uma mulher casada da Argólida) - cuspi dos meus lábios, tornados para sempre verdadeiros, o resto inútil da oração (p. 1265).

    O narrador-personagem, órfão, recolhido por caridade para a casa de uma tia, irmã de sua mãe, após a morte do pai por apoplexia, é pela titi educado numa tirania beata, revela, em sua história, primeiro seu maravilhamento pelas coisas religiosas; depois, tendo perdido a fé, mas não o desejo de herdar a fortuna de sua tia, revela-se como um carola abjeto,

    Prodigiosa foi então a minha atividade devota! Ia a matinas, ia a vésperas. Jamais falhei a igreja ou ermida onde se fizesse a adoração ao Sagrado Coração de Jesus. Em todas as exposições do Santíssimo eu lá estava de rojos. Partilhava sofregamente de todos os desagravos ao Sacramento. Novenas em que eu rezei, contam-se pelos lumes do Céu. E o Setenário das Dores era um dos meus doces cuidados (p. 1121).

    Esse narrador cuidadoso em recuperar toda sua vida registra, a par e passo, os bons resultados da política que põe em prática até a troca de embrulhos que origina a expulsão de Teodorico Raposo da casa de sua titi e a descoberta de sua personalidade hipócrita. Deserdado, recebe, após a morte da titi, um óculo e reconhece de que nada lhe valeu a hipocrisia, eleva-se à condição de moralista.

    Desde as palavras iniciais do texto queirosiano (prefácio), fica explícito o jogo duplo, ao mesmo tempo romanesco e autobiográfico, o qual é proposto ao leitor e que guia a escrita: Decidi compor, neste verão, [...] as memórias de minha vida... Essas palavras acentuam o emprego sistemático da primeira, em que o narrador leva o leitor a uma leitura ambígua, pois o que se tem é um ‘eu’ posto ante um ‘ele’ que é ‘eu’. Assim, a identidade se define no texto entre narrador e personagem, os quais remetem ao sujeito da enunciação e ao sujeito do enunciado, sendo difíceis de dissociar um do outro, porque em primeira pessoa. Também, desde o início da narrativa, fica marcada a duplicidade e a inconstância ético-moral que parecem estigmatizar a personagem narradora. Tanto assim que seu percurso na história oscila entre a hipocrisia e o fingimento e a coragem de revelar sua hipocrisia. Poder-se-ia traçar um caminho que parte da hipocrisia, passa pelo momento de desvelamento da hipocrisia e volta à hipocrisia, porque o discurso final da personagem-narradora é bastante hipócrita.

    O leitor percebe a enunciação como um fato de enunciação. O sujeito da enunciação apresenta-se como aquele que jura dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade (Lejeune, 1976). Os dêiticos temporais com que o sujeito da enunciação marca a trajetória da personagem Teodorico Raposo são importantes num relato pessoal, porque propiciam a aproximação com o leitor, procurando envolvê-lo, enquanto acompanha o narrador-personagem no caminho para o conhecimento de si mesmo.

    Nesse sentido, o texto queirosiano aproxima-se da autobiografia e do diário íntimo, e contém elementos constitutivos do autorretrato, porque apresenta um resumo daquilo que seria a essência da vida de Teodorico Raposo, enquanto hipócrita e enquanto transformado em homem leal. Esses mesmos elementos apontam para a ficcionalidade, revelando o texto com uma novela. O narrador mistura os traços característicos de um gênero com o outro, e a narração da própria história pela personagem é delegado ao outro, e o leitor poderá ser tentado a acreditar que, em A Relíquia, os dois gêneros coincidem. Mas não é bem assim. Mesmo que os efeitos produzidos mudem, a narrativa estrutura-se como uma enunciação dupla que nos dá até o fim a impressão de uma voz fabricada que mimetiza ela mesma.

    Em consequência, mostra um novo modo misto de romance, gênero que não tem nome, mas que leva a buscar, a escrever, segundo uma dimensão nova ainda pouco explorada (MIRANDA, 1983, p. 219). Afasta o leitor de suas certezas, convidando-o a participar da criação de sentidos e mundos, auxiliando o homem a modificar seu destino e a recuperar sua integridade, pois, conforme Carlos Reis, se a narrativa parece revelar que a hipocrisia é inútil e que a mentira não compensa, que é preciso ter-se a coragem de desmascará-las para se estabelecerem princípios morais e critérios de comportamento, ao final, ela reafirma que convém aos leitores os jogos de aparência e procedimentos sociais e religiosos que configuram a burguesia liberal.

    A estrutura interna do texto analisado tem, com se viu, função importante, porque destaca elementos imprescindíveis para o desenvolvimento da leitura, como o decurso temporal representado no texto ou o tom que o sujeito da enunciação procura dar à própria imagem. Esses elementos periféricos não podem ser esquecidos quando se quer determinar o gênero de um texto e delinear relações de semelhança e diferença com outros tipos de texto.

    A novela de Eça de Queirós mostra que a fronteira entre o autobiográfico e a ficção intimista ou subjetivamente verdadeira é bastante tênue, podendo o grau de fingimento de determinados textos ser tão variável que torna difícil a diferenciação entre uma autobiografia autêntica e uma forma romanceada; isso porque muitos romances em primeira pessoa podem fingir o relato verídico de uma experiência pessoal. O leitor não pode desfazer a ambiguidade entre a história concreta do ‘eu’ real, que remete ao autor, e a recriação metafórica, invenção ficcional (BRUSS, 1976).

    Não podendo ser considerado como autobiográfico, no sentido de autobiografia concebido por Lejeune, apesar dos sinais que apontam para o gênero e que foram detectados na análise, o texto de Eça de Queirós caracteriza-se pela reflexividade, isto é, capacidade da linguagem e do pensamento de voltar-se sobre si mesmo, de constituir um objeto para si mesmo. Assim, A Relíquia caracteriza-se pela recriação, é autobiografia da personagem (história da experiência vivida por Teodorico Raposo); portanto, ainda que os acontecimentos tenham uma referência externa verificável, sabe-se que o texto de Eça é ficção, é criação do autor; a personagem é vista através das ações, predominando o generalizante e o tempo cronológico. Há nela o desdobramento da instância subjetiva, podendo-se detectar nesse texto ficcional a ruptura da instância unitária (eu) que pode ser resumida em diversas outras unidades semelhantes.

    Referências bibliográficas


    BRUSS, Elizabeth. Autobiographical acts: the changing situation of a literary genre. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976

    LEJEUNE, Ph. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.

    MIRANDA, W. Água viva: auto-retrato (im) possível. In: SOUZA, Eneida & ANDRADE, Vera Lúcia (Org.) Ensaios de semiótica. Belo Horizonte: UFMG, 1983.

    QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. In: ______. Obra completa, v. II. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.

    REIS, Carlos. Estratégia Narrativa e representação Ideológica n’ A Relíquia. In: Colóquio Letras, 100, novembro-dezembro de 1987.

    SIMÕES, João Gaspar. Vida e Obra de Eça de Queirós. Amadora: Bertrand, 1973.

    Notas


    1 Foi professora de Estudos Literários/Literaturas Lusófonas da Faculdade de Letras da PUCRS.

    2 QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. In: ______. Obra completa, v. II. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970. p. 1093-1270. Todas as citações referem-se a esta edição.

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    Paulo Ricardo Kralik Angelini ¹

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