Pesquisa Narrativa: Teoria, Práticas e Transformação Educativa
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Pesquisa Narrativa - Alessandro de Melo
Pesquisa narrativa
teoria, práticas e transformação educativa
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis n.os 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Alessandro de Melo
José Ignacio Rivas Flores
(org.)
Pesquisa narrativa
teoria, práticas e transformação educativa
APRESENTAÇÃO DA TRADUÇÃO
O livro que o leitor e a leitora ora tem em mãos não é o resultado de um processo convencional de tradução, mas de um trabalho realizado entre companheiros que somos, o tradutor e os autores deste livro. Ora, o tradutor, que não é uma pessoa isenta nem somente técnica, trouxe para o texto traduzido certa liberdade que advém do seu conhecimento de quase uma década da produção coletiva. Assim, este texto é, sim, uma tradução, a mais fiel possível, dos originais, mas também em linguagem adaptada ao nosso idioma, de forma a tornar a leitura mais fluida possível, sem perder em nenhum momento a densa contribuição deste grupo especializado em pesquisa narrativa há mais de 20 anos: o Procie.
As normas utilizadas também foram traduzidas da American Psychological Association (APA) para a nossa norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Isso para tornar o texto mais próximo de nós, porque a leitura que fazemos de textos acadêmicos tem na forma um elemento fundamental.
É importante dizer que todos os textos aqui traduzidos são de livre acesso, e as referências estão listadas ao final do livro, todas juntas para facilitar e liberar o corpo do texto das notas de rodapé.
Sempre que necessário se fez, inserimos a Nota do tradutor, para esclarecer alguns aspectos que nos pareceu essencial. As notas do original estarão igualmente assinaladas.
Agradeço às leituras realizadas por minha orientanda do mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Fernanda Amaro, que desenvolve pesquisa na perspectiva narrativa, bem como de Adonias Nelson da Luz, que realizou uma revisão técnica. As leituras críticas de ambos garantiram ao texto ainda maior correção. Os possíveis equívocos, no entanto, são de inteira responsabilidade do professor tradutor.
Prof. Dr. Alessandro de Melo
Universidade Estadual do Centro-Oeste.
Sumário
INTRODUÇÃO
PARTE 1
PESQUISA NARRATIVA: TEORIA E EPISTEMOLOGIA
NARRAÇÃO, CONHECIMENTO E REALIDADE: UMA MUDANÇA DE ARGUMENTO NA PESQUISA EDUCATIVA
José Ignacio Rivas Flores
NARRATIVA E EDUCAÇÃOEM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL
José Ignacio Rivas Flores
María Jesús Márquez-García
Analía Elizabeth Leite-Méndez
Pablo Cortés-González
PESQUISA NARRATIVA EM EDUCAÇÃO: ASPECTOS METODOLÓGICOS NA PRÁTICA
María Jesús Márquez García
Daniela Padua Arcos
María Esther Prados Megías
ÉTICA, RESPONSABILIDADE E TRABALHO COLETIVO NA PESQUISA NARRATIVA
José Ignacio Rivas Flores
María Esther Prados Megías
Analía E. Leite Méndez
Pablo Cortés González
María Jesús Márquez García
Piedad Calvo León
Virginia Martagón Vázquez
Maia Acuña
PARTE 2
RELATOSDE PESQUISAS NARRATIVAS
A IMAGEM SOCIAL DA DEFICIÊNCIA NAS VOZES DAS PESSOAS QUE FORAM DIAGNOSTICADAS: UMA PERSPECTIVA EDUCATIVA
Moisés Mañas Olmo
Pablo Cortéz González
Beatriz Margarita Celada
UMA ABORDAGEM NARRATIVA DA IDENTIDADE PROFISSIONAL EM PROFESSORES PRINCIPIANTES
Pablo Cortés González
Analía Elizabeth Leite Méndez
José Ignacio Rivas Flores
NARRATIVA E CRIATIVIDADE NA UNIVERSIDADE: É POSSÍVEL TOMAR OUTROS CAMINHOSNO ENSINO E NA APRENDIZAGEM?
Analía E. Leite Méndez
Pablo Cortés González
José Ignacio Rivas Flores
NARRATIVAS NA FORMAÇÃO DOCENTE:O PODER DA PALAVRA E DA AÇÃO COLETIVA
Analía E. Leite Méndez
María Jesús Márquez García
Piedad Calvo León
Pablo Fernández Torres
NOS PENSAMOS COMO DOCENTES COM PAULO FREIRE: UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DIALÓGICA E AUTOBIOGRÁFICA
José Ignacio Rivas Flores
Jesús Javier Moreno Parra
María Jesús Márquez García
PARTE 3
EXPERIÊNCIASDE TRANSFORMAÇÃO EDUCATIVA
NARRAÇÃO FRENTE AO NEOLIBERALISMONA FORMAÇÃO DOCENTE: VISIBILIZARPARA TRANSFORMAR
José Ignacio Rivas Flores
PENSANDO EM NÓS MESMAS NO ENCONTRO COM OS OUTROS/OUTRAS
: PESQUISA NARRATIVA E TRANSFORMAÇÃO
María Jesús Márquez García
Analía Elizabeth Leite Méndez
Piedad Calvo León
EXPERIÊNCIA ESCOLAR, DIVERSIDADE E CIDADANIA JUSTA: UM ESTUDO BIOGRÁFICO-NARRATIVO
Blás González-Alba
Pablo Cortés González
José Ignacio Rivas Flores
FONTES ORIGINAIS DOS CAPÍTULOS
NOTAS BIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
O leitor e a leitora têm em mãos não um livro de tradução convencional, mas um livro, antes de tudo, resultado de uma relação profissional e pessoal que completa uma década entre o autor desta Introdução e os colegas e as colegas, amigos e amigas da Universidade de Málaga, autores e autoras dos capítulos desta obra. A unidade temática em torno da Pesquisa Narrativa torna esta obra especial, de alta qualidade teórica e que aponta caminhos para uma prática transformadora.
O primeiro contato com o grupo de pesquisa Profesorado, Comunicación e Investigación Educativa (Procie), da Faculdade de Educação da Universidade de Málaga, deu-se no marco de uma bolsa de pesquisa financiada pela Fundación Carolina e que envolvia o projeto de pesquisa do referido grupo de análise da recepção de Paulo Freire (MELO, 2015). O período de pesquisa ocorreu entre 20 de dezembro de 2013 a 15 de fevereiro de 2014.
O segundo momento vivido conjuntamente com esses companheiros de Málaga aconteceu quando do projeto de uma bolsa de pós-doutorado financiado pelo CNPQ e realizado ao longo do ano de 2015, cujo objetivo era a análise da reforma educativa neoliberal intitulada Ley Orgánica de Mejora de la Calidad Educativa (Lomce), implementada a partir de 2013. O resultado foi materializado no livro Educação de tod@s para tod@s: reforma educativa neoliberal e o caso espanhol (MELO, 2016).
Por fim, o último contato se deu entre os meses de janeiro e março de 2021, em meio à pandemia da covid-19, no bojo de uma pesquisa financiada pela Fundación Carolina. Nessa oportunidade, o objetivo foi justamente o de aprofundar as análises sobre a Pesquisa Narrativa, que é o foco do Procie desde os anos de 1990. Esse foi o marco que ensejou o surgimento deste livro que o leitor tem em mãos.
A organização da referida obra foi dividida entre este prefaciador e o professor catedrático Jose Ignacio Rivas Flores. O sentido inicial do projeto era o de agrupar em um só livro, em Língua Portuguesa, de forma inédita, portanto, as produções do grupo sobre pesquisa narrativa que cobriram a última década de publicações, como se pode ver ao final, onde estão referenciadas as fontes originais dos textos.
A proposta foi a de dividir o livro em três partes: a primeira parte trata da teoria da Pesquisa Narrativa, ou seja, uma perspectiva teórica, metodológica e epistemológica sobre o tema. A segunda parte do livro concentra-se nos relatos de pesquisa narrativa. A terceira e última parte do livro apresenta experiências publicadas que levam a pensar em possibilidades de transformação na educação na perspectiva da Pesquisa Narrativa. Dada essa divisão, foram os demais membros do Procie, por sua vez, que selecionaram os artigos que constam nesta obra.
No parco período de pesquisa em Málaga em 2021, conseguimos realizar três chamados Conversatórios Procie
, organizados por mim junto com os membros do grupo, usando ferramentas de reunião virtual em virtude da pandemia, com a duração de duas horas cada um. Nessas ocasiões, pudemos nos aprofundar coletivamente nos princípios da Pesquisa Narrativa desenvolvida pelo grupo, dando oportunidade para que elaborassem oralmente os princípios teóricos, metodológicos, filosóficos e epistemológicos, bem como a prática desenvolvida nas várias pesquisas desenvolvidas. Foram ocasiões riquíssimas em conhecimento, inclusive reconhecidas pelos próprios professores, já que nem sempre existe esta possibilidade de pensar a própria prática coletivamente com o aprofundamento necessário. Esse material ainda está inédito, gravado pelo aplicativo do Google Meet. No entanto, a ideia do livro surgiu justamente nessas conversas.
A obra inicia abordando os fundamentos da Pesquisa Narrativa, a relação entre o epistemológico e o político dessa perspectiva, que tem como objetivo a superação das pesquisas positivistas, as quais têm como fundamento a separação entre sujeito e objeto da pesquisa e a neutralidade axiológica e epistêmica. A Pesquisa Narrativa, por outro lado, considera a intersubjetividade entre os agentes da construção do conhecimento: não pode haver um sujeito que dilapida ou despoja o conhecimento do seu objeto, numa relação extrativista de pesquisa. Trata-se, portanto, de uma perspectiva de pesquisa que se desenvolve entre sujeitos, com seus corpos e mentes presentes.
O livro nos faz refletir, inclusive, sobre possibilidades de pensar a pesquisa como um texto em coautoria com os sujeitos, afinal se se quer superar as metodologias tradicionais em que os pesquisadores exploram os dados
fornecidos pelos agentes estudados, é preciso considerar que o conhecimento nunca é uma produção individual, mas coletiva. É preciso, nesse sentido, revolucionar as formas acadêmicas, que do alto da arrogância cientificista, apenas consideram autor ou autora aqueles e aquelas que assinam
as pesquisas e que ocupam lugares institucionais nas universidades.
A pesquisa narrativa, como a tratam aqui os professores e pesquisadores do Procie, só tem sentido se relacionada com a transformação social e educacional. Questiona Rivas Flores (2020, p. 4): Falar de pesquisa, especialmente no âmbito da educação, sempre me leva à mesma pergunta: em que medida contribui para a mudança e melhora da educação?
.
No entanto, como pode ser bem analisado neste livro, as políticas de pesquisa forjadas como políticas neoliberais interessam-se apenas pelos resultados quantitativos. Não está no horizonte a transformação social e educativa. O foco, segundo Rivas Flores (2020), está mais nos protocolos, reificados, que nos conteúdos. A qualidade buscada tem cariz quantitativo/estatístico, e nada se refere à incidência das pesquisas na transformação prática da realidade, a não ser se essa transformação for mercantilizada.
Busca-se, portanto, o sentido da pesquisa, e não apenas o foco nos dados
, e esse sentido tem a ver com a consideração de perguntas pertinentes: por que pesquisar? Para quem? Ajuda-nos a compreender a realidade? Para transformá-la? Com quem pesquisamos? Como consideramos esses parceiros
da pesquisa? Quais modelos epistêmicos levamos em consideração? Entre outras perguntas. A ideia persistente neste livro é que a pesquisa é um processo a ser compartilhado entre sujeitos, tanto pesquisadores quanto os e as que participam da pesquisa, professores, estudantes, gestores, família, membros da comunidade escolar etc. O âmbito da ética tradicional é discutido e superado, em sentido mais radical, de superar uma ética que abarca e legitima as práticas positivistas e extrativistas da pesquisa.
A pesquisa narrativa abre a possibilidade de construção de conhecimentos, desde que se considerem as vozes dos sujeitos como vozes autorizadas, numa relação dialógica e horizontal, ou seja, como fim, e não apenas como meio. Os sujeitos não devem ser considerados apenas como fontes de dados
a serem extraídos da melhor forma possível. Assim, mais importante do que chegar à verdade
é compreender o sentido que os sujeitos dão às suas práticas, bem como a capacidade de atuar no mundo para transformá-lo, o que, necessariamente, depende daquele sentido, e isso ocorre tanto individual quanto coletivamente. Isso se torna mais radical quando se trata de pesquisas em contextos marginalizados ou com pessoas com deficiência, nos quais as pessoas e contextos já são suficientemente vilipendiados pela sociedade capitalista para se tormarem ainda mais exploradas em relações de pesquisa.
Essa perspectiva adotada nos capítulos deste livro parte da valorização de várias epistemologias que são desenvolvidas não apenas nas universidades, mas também pelos sujeitos em suas vidas e nas práticas que desenvolvem em suas vidas pessoais e profissionais. A premissa da Pesquisa Narrativa, portanto, é que é possível historiar
as experiências humanas, individuais e coletivas, e, dessa forma, o relato de uma pessoa, em sua narrativa, é a forma de se contar essa história. Portanto, diferentemente das histórias de grandes relatos ou de grandes períodos ou processos históricos, trata-se de valorizar na narrativa as formas da vida cotidiana na qual se desenvolvem as práticas, especialmente as práticas educativas, no caso deste livro.
No que diz respeito aos professores, a Pesquisa Narrativa procura superar sua histórica marginalização na condução das políticas e práticas educativas. É preciso levar em consideração as narrativas docentes para transformar a educação. Mas, não somente deles. A comunidade escolar, especialmente a família, tem sido ainda mais marginalizada nos destinos da educação, colocada de lado por uma ideia de que educação é coisa para profissional da educação
. No entanto, pensamos, junto com os autores deste livro, que a educação é do interesse de toda comunidade, e a comunidade precisa comparecer para decidir coletivamente os destinos da educação, especialmente das escolas.
No campo das pesquisas em educação, a penetração de estudos narrativos é recente, remetendo-se aos trabalhos primordiais de Louis M. Smith, The complexities of urban school, de 1968, e, já nos anos de 1980, aos trabalhos de Ivor F. Goodson e suas parcerias, como com Stephen Ball, no livro Teacher’s lives and carreers, de 1985, entre tantos outros. Destacam-se, já nos anos de 1990, os trabalhos de D. Jean Clandinin e suas parcerias, como a com F. M. Connelly, no livro Teachers’ profesional knowledge landscapes, de 1995 (RIVAS FLORES, 2009).
No Brasil, o campo de estudos narrativos em Educação é ainda mais incipiente e a literatura internacional sobre o tema ainda é pouco traduzida¹. Segundo Passegi, Souza e Vicentini (2011), a partir dos anos de 1990, o país vivenciou o que elas denominam de a virada biográfica em Educação
, o que significou uma expansão de pesquisas voltadas para processos de formação e profissionalização docente, mirando: [...] a maneira como os professores vivenciam os processos de formação no decorrer de sua existência e privilegiam a reflexão sobre as experiências vividas no magistério.
(PASSEGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 370).
Para finalizar, esperamos que a organização deste livro em Língua Portuguesa possa ser uma ferramenta de trabalho para pesquisadores e pesquisadoras que trabalham ou pretendem trabalhar nessa perspectiva. Está mais do que na hora de pensarmos uma prática pesquisadora colaborativa, e não extrativista; de pensarmos em uma universidade que seja mais pintada com as vozes e narrativas da educação básica; e, por sua vez, precisamos urgentemente que as políticas e práticas educativas sejam direcionadas pelos agentes envolvidos, sejam eles diretamente no interior das escolas ou na comunidade.
Esses são, entre outras reflexões e ensinamentos, os conteúdos mais valorosos que se podem tirar da leitura deste importante livro.
Alessandro de Melo
Doutor em Educação.
Professor associado do Departamento de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste.
REFERÊNCIAS
MELO, A. As potencialidades da pesquisa colaborativa na formação de professores e nas transformações do ambiente escolar. In: TOZETTO, S. S. (org.). Professores em formação: saberes, práticas e desafios. Curitiba: Intersaberes, 2015. p. 122-137.
MELO, A. Educação de tod@s para tod@s: a reforma educativa neoliberal e o caso espanhol. Guarapuava: Apprehendere, 2016.
PASSEGGI, M. C.; SOUZA, E. C.; VICENTINI, P. P. Entre a vida e a formação: pesquisa (auto)biográfica, docência e profissionalização. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 369-386, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-46982011000100017. Acesso em: 10 nov. 2021.
RIVAS FLORES, J. I. La investigación educativa hoy: del rol forense a la transformación social. Márgenes. Revista de Educación de la Universidad de Málaga, Málaga, v. 1, n. 1, p. 3-22, 2020. Disponível em: https://revistas.uma.es/index.php/mgn/article/view/7413/7050. Acesso em: 10 nov. 2021.
.
Ressalta-se, nesse sentido, o trabalho do Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores, da Associação Norte-Nordeste das Histórias de Vida em Formação (ANNHIVIF), da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOgraph) e da Rede Narrativas Autobiográficas (RedNAue).
PARTE 1
PESQUISA NARRATIVA:
TEORIA E EPISTEMOLOGIA
NARRAÇÃO, CONHECIMENTO E REALIDADE: UMA MUDANÇA DE ARGUMENTO NA PESQUISA EDUCATIVA
José Ignacio Rivas Flores
Entendo por argumento, tomando o critério da Real Academia de la Lengua² (segunda acepção), o assunto ou matéria de que se trata em uma obra
. Refere-se, portanto, à forma de enfocar ou olhar a realidade e ao modo como se constrói uma estrutura de significado. Portanto, entendo que esse assunto ou matéria
refere-se, necessariamente, a um processo de construção coletiva e histórica, que lhe dá sentido e relevância. Dessa forma, todo argumento nos remete a um contexto cultural, acadêmico, social e político, de tal forma que nos vincula a uma tradição e a uma história que outorgam significado a seus diferentes componentes.
A pesquisa educativa foi desenvolvida sob diferentes argumentos ao longo de sua história recente. Alguns mais próximos às posições positivistas explicavam a educação em sistemas de relações causais, de tipo probabilístico, imitando disciplinas afins; outros ofereciam uma explicação centrada na entidade psíquica que constitui cada sujeito individual e os processos nos quais incorporam o conhecimento; outros colocaram a ênfase em sistemas e estruturas sociais, nas quais a educação cumpria uma função própria; outros, ao invés disso, aproximavam-nos da cultura e dos significados que se construíam em um contexto intersubjetivo etc. Cada enfoque, definitivamente, informava-nos qual era a matéria da educação sob seu ponto de vista peculiar.
Entendo que o processo de construção do conhecimento é um diálogo permanente de caráter sócio-histórico, no qual nos incorporamos em determinado momento para fazer nossas contribuições. Em nenhum caso esse processo, no âmbito científico em que nos movemos, deve ficar à margem da reflexão sobre o tipo de aporte que realizamos, a sua relevância e o modo como contribui para melhorar nossa compreensão do mundo e sua transformação. Sob essa perspectiva, o argumento surge desse diálogo permanente, como aqueles temas sobre os quais se estabelece a comunicação. Portanto, ele assume o processo prévio de construção desses temas e, por sua vez, constitui o ponto de partida para que se realizem as contribuições correspondentes por parte do pesquisador. Tal processo pode ser considerado, dessa forma, como o encontro de duas histórias, a social e coletiva, e a pessoal, com os diversos caminhos pelos quais transitaram. A compreensão dos temas aos quais um argumento responde relacionaa-se às experiências prévias do sujeito. Isso supõe não somente propor uma trajetória teórica como fruto de uma razão objetiva, mas também como um processo pessoal.
No meu ponto de vista, portanto, não se pode falar de dois modelos gerais sobre a realidade como os únicos argumentos que podemos trabalhar. Ao contrário, a experiência dos sujeitos e o modo como interpretam seu mundo concretizam esses modelos em diferentes construções particulares. O ponto de vista narrativo que apresentamos nesta obra representa essa forma de compreensão dos marcos teóricos e de sua construção. Não representa construções preestabelecidas e fechadas, mas um processo em marcha, uma forma de participação na história coletiva do conhecimento.
O objetivo deste capítulo é apresentar os pilares sobre os quais se sustenta este argumento narrativo da pesquisa educativa e, portanto, de qual ideia da realidade partimos e de que forma se compreende o conhecimento e os modos como os sujeitos o acessam. Enfim, quero apresentar como a pesquisa narrativa supõe uma forma de conhecimento que interpreta a realidade (educativa, no nosso caso) sob uma ótica particular: a da identidade como uma forma de aprendizagem dos contextos nos quais os sujeitos vivem e dos modos como narramos essa vivência para explicar o mundo no qual vivemos. Uma importante matriz que diferencia a narrativa de outros possíveis argumentos é que, neste caso, o relevante são as vozes próprias dos diferentes sujeitos, não as teorias prévias com as quais tentamos enquadrar a realidade. Entendo essas teorias como sistemas de referência para construir as diferentes vozes e dar sentido a elas.
Levarei em conta duas dimensões que, embora sejam normalmente tratadas separadamente, neste caso apresentam uma unidade epistemológica clara. A primeira refere-se aos aspectos que têm a ver com o metodológico em relação à tradição biográfica e narrativa. A segunda aponta para os componentes mais relevantes que constituem o marco teórico a partir do qual enfrento a compreensão dos fenômenos pesquisados. Neste caso, forma e conteúdo caminham necessariamente juntas, de forma que o fato de que, metodologicamente, tenhamos optado por essa tradição torna-se relevante para a compreensão do conteúdo da pesquisa: entendo, como acabo de dizer, que a voz própria dos sujeitos que participam na realidade pesquisada é a que melhor nos permite compreender a realidade em que vivem. Biografia, experiência escolar e identidade são os três eixos essenciais de nossa pesquisa e que se implicam mutuamente.
Portanto, vou fazer uma apresentação do sentido desse tipo de pesquisa para propor, em seguida, o significado da narração e a biografia em relação à compreensão da vida cotidiana e na construção da identidade. Revisarei, em seguida, seu envolvimento na pesquisa educativa para terminar com alguns elementos críticos que fazem parte de nosso universo de preocupações, tanto conceituais quanto metodológicas, epistemológicas e éticas.
FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS
Nos encontramos, na minha forma de entender, com uma opção de pesquisa de certa forma diferente nas Ciências Sociais e, em particular, em Educação, que pretende fazer frente às correntes positivistas (e também algumas etnográficas) em seu objetivo de segregar o sujeito do pesquisador. Possivelmente, essa seja uma das contribuições mais relevantes da pesquisa biográfica e narrativa que a diferenciam de outras perspectivas de orientação interpretativa. Esta é a posição de Bolívar (2002, p. 41) quando afirma que:
[...] o ideal positivista foi o de estabelecer uma distância entre pesquisador e objeto pesquisado, correlacionando maior despersonalização com incremento de objetividade. A pesquisa narrativa (e interpretativa) justamente nega este pressuposto, pois os informantes falam deles mesmos, sem silenciar sua subjetividade.
Desse modo, a voz própria
dos sujeitos converte-se no componente relevante da pesquisa, na qual se articulam a informação e a interpretação. Entende-se que o conhecimento vem a ser essencialmente uma forma de narração sobre a vida, a sociedade e o mundo em geral. Portanto, a forma como os próprios sujeitos constroem seus relatos é um componente essencial no processo de compreensão (GOODSON, 1996; HARGREAVES, 1996a, 1996b; MACLURE, 1993). Esse princípio redunda no que anteriormente tratava como união entre forma e conteúdo, que é própria de minha interpretação desse modelo de pesquisa.
Chama a atenção, nesse sentido, como os autores que trabalham nessa perspectiva discutem de forma explícita a questão, inclusive por meio do relato de sua própria história. Louis M. Smith, um dos pesquisadores que primeiramente abriram as portas aos métodos qualitativos em educação (SMITH; GEOFFREY, 1968), apresenta no relato de sua própria história e sua passagem para a pesquisa biográfica esta unidade entre o metodológico e o conceitual: A natureza e quantidade da mescla entre o narrativo e a conceituação é uma opção importante na pesquisa qualitativa, aquela que exige uma análise arrazoada de si mesma.
(SMITH, 1997, p. 3).
É interessante o raciocínio que esses autores desenvolvem na revisão de suas próprias histórias como pesquisadores. No escrito citado, narram como em sua conhecida e clássica primeira pesquisa (SMITH; GEOFFREY, 1968) consideraram seguir o esquema de estudo de caso sociológico sem estarem conscientes disso no momento. O trabalho poderia ser descrito como um episódio autobiográfico na vida de Geoffrey como professor, assim como em sua própria vida como pesquisador qualitativo. Essa questão é importante, porque estabelece um passo necessário, poderíamos dizer, na evolução da pesquisa qualitativa e que corresponde com a seguida por muitos dos autores que acompanhamos nesse enfoque.
Tal como proponho, a construção de conhecimento público por meio das biografias supõe dar valor às vozes próprias dos sujeitos participantes, como portadoras de sentido e de conteúdo. Connelly e Clandinin (1995, p. 20) observam, no mesmo sentido, que: [...] os praticantes (os docentes) se viram sem uma voz própria no processo de pesquisa, e muitas vezes acharam difícil se sentirem encorajados e autorizados para contar suas histórias. Fizeram se sentir desiguais, inferiores.
Outros autores relevantes também redundaram nessa mesma ideia repetidamente (HARGREAVES, 1996b; HUBERMAN, 1995, entre