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Agora sou eu que falo, eu, o leitor: uma poética da leitura em Pepetela
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Agora sou eu que falo, eu, o leitor: uma poética da leitura em Pepetela
E-book577 páginas8 horas

Agora sou eu que falo, eu, o leitor: uma poética da leitura em Pepetela

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Sobre este e-book

Todo texto só se tece e se materializa na atualização conferida por quem lê. O texto prefigura seu leitor. A tessitura ganha corpo, em jogo que implica controle do texto e criação do leitor. Imaginação somada à consciência interpretativa, em acepção lógica e afetiva. A ficção narrativa do escritor angolano Pepetela se constitui como nosso objeto de estudo. Em proposta de articulação dialética, tal obra incita o leitor a compor sua fala. No rastro do leitor, investigamos as estratégias construídas para a configuração de uma poética da leitura. Nosso estudo reflete conjuntamente sobre a consciência da produção materializada na obra, seu projeto de inserção do leitor e o papel deste último em implicitude. Ademais, tangencia, no âmbito do diálogo texto e leitor, o projeto de compartilhamento de memórias e formação de repertório instaurado pela escrita romanesca. Analisamos romances cujas estratégias de composição investem em arquitetura de poética da leitura: As aventuras de Ngunga (1981); Mayombe (1980); O cão e os caluandas (2006); Lueji, o nascimento de um império (2015); Se o passado não tivesse asas (2016). Seguindo lição exemplarmente apresentada pelas obras estudadas, são convocados variados parceiros de percurso reflexivo e analítico. No entanto, dialogamos, sobretudo, com a teoria do efeito estético e a antropologia literária de Iser e as problematizações concernentes à dialogia e à polifonia de Bakhtin.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de mai. de 2022
ISBN9786525243375
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    Pré-visualização do livro

    Agora sou eu que falo, eu, o leitor - Beatriz de Jesus Santos Lanziero

    1 Introdução

    Na contemporaneidade brasileira, em meio às sombras instauradas por discursos e atos autoritários, centralizadores e retrógrados, faz-se necessário escutar o aviso de incêndio. Atualmente, os ideais basilares de sociedade democrática e plural têm sido postos à prova e questionados por outros, representantes de domínio fascista e anulador das diferenças. Falar sobre literatura, leitura e leitor nesse contexto implica marcar, desde o primeiro parágrafo, posição e aclarar a parte que nos cabe nesse latifúndio. Para tanto, nesta primeira instância, partimos da fecundante pedagogia crítica de Paulo Freire, distanciando-nos das compreensões e práticas pelo educador designadas como ingênuas e astutas. Em A importância do ato de ler, Freire se debruça sobre os saberes envolvidos na aprendizagem das primeiras letras, demonstrando que o processo de alfabetização não deve significar ruptura com a leitura do mundo. A leitura da palavra deve ser compreendida e atualizada como leitura da palavramundo. Repetimos já tão citado excerto, porque determinadas circunstâncias impõem necessária tautologia, exercício persistente da resistência como repetição: A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele (FREIRE, 2001, p.11). Nesse sentido, texto e contexto prendem-se dialética e dinamicamente. Ler o texto escrito implica leitura crítica da realidade, demanda o enfrentamento do estar no mundo, a fim de criar possibilidade de ser na construção de voz singular. Na lição de Freire, a alfabetização e, por extensão, a leitura como ato de conhecimento, criador e político, constitui esforço de leitura do mundo e da palavra (FREIRE, 2001, p.35).

    Depois da explicitação de nosso lugar de fala, levantemos outro importante fio das tramas da leitura. Considerando a arte e a literatura bens incompressíveis, Antônio Cândido, em O direito à literatura, defende o acesso às produções literárias como direito humano fundamentado em profunda necessidade que não pode deixar de ser satisfeita sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora (CÂNDIDO, 2011, 176). O ensaísta parte de ampla definição segundo a qual a literatura surge como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos: não há povo ou indivíduo que possa viver sem fabulação. Parafraseando Otto Ranke, para Cândido, a literatura é o sonho acordado das civilizações. Sem sonho não há equilíbrio psíquico, sem literatura não há equilíbrio social. Como fator indispensável de humanização, a literatura atua como forma de inculcamento intencional, instrumento poderoso de instrução e educação, equipamento intelectual e afetivo, mas, sobretudo, palco de vivência dialética de problemas. Não corrompe, tampouco edifica: forma. A natureza contraditória da literatura releva seu caráter humanizador, materializando-se em três faces: construção de objetos autônomos dotados de estrutura e significado, forma de manifestação de emoções e visões de mundo (conhecimento latente) e modo de expressão de conhecimento intencional. Em comunhão de eficácia humana e estética, a literatura faz-se imprescindível à humanidade. Fruir da palavra organizada por outrem nos capacita a ordenar nossa própria mente e sentimentos e, consequentemente, nossa visão do mundo. A literatura fala-nos por meio de conjunção entre forma e conteúdo, arranjo especial de palavras propositor de sentidos. Tal disposição liberta-nos do caos, aproximando-nos de nossa humanidade. Também nos torna mais abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante. Nessa aproximação, pode se corporificar como denúncia de iniquidades, negação ou restrição de direitos, fonte de reflexão crítica e posicionamento político sobre o mundo. Mais que motivo de contemplação, elemento de desfrute e prazer dos sentidos, configura-se como uma das condições ao entendimento crítico da sociedade, em ato que não se reduz a compreender, mas atuar partindo dessa compreensão. Como tão poeticamente afirma Luiz Costa Lima, não se aprende a liberdade desconhecendo-se os que imaginariamente a trabalharam (LIMA, 1969, p.47). O direito à literatura pressupõe o reconhecimento da importância da leitura e da formação do leitor.

    À procura de respostas sobre para quem se escreve, Sartre afirma que o escritor se dirige a seus contemporâneos. Acrescentamos que, em consonância com uma de nossas epígrafes¹, historicamente inserido, o leitor se presentifica como lugar da indagação, alguém de sentidos atentos ao encontro de contemporâneos em diferentes tempos e espaços. Alertando que é perigosamente fácil falar de valores eternos, o filósofo relativiza identificação entre leitores e todos os homens. Tal como o autor, o leitor está engajado na história. A universalidade do gênero humano reside no horizonte do grupo concreto e histórico dos seus leitores. Porém, as obras projetam uma imagem de leitor a que se destinam. Mais do que falar aos contemporâneos, portanto, talvez os escritores busquem contemporâneos ao falar, frágil tangenciamento proporcionado por processo de escrita que pressupõe a leitura, configuração de apelo à liberdade do leitor e seu exercício.

    A literatura só existe em movimento. Em sartreana imagem, estranho pião, o objeto literário gira enquanto se processa o ato concreto chamado leitura. O escritor não escreve para si mesmo. O ato criador corresponde a momento incompleto e abstrato. A operação de escrever apresenta como correlativo dialético a de ler, atos conexos promovidos por agentes distintos: É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só existe arte por e para outrem (SARTRE, 2004, p.37). Nesta reflexão, considerando o universo cultural no qual se insere nosso objeto de estudo, faz-se necessário levar em conta a dinâmica de tradução da oratura à escrita, em que a instância autoral reúne o letrado e o nómada e estes podem elaborar um texto em comum, tal como sinaliza Manuel Rui: Eu, letrado, transformo-me quando me falo e falo e escrevo em parte oraturizado (RUI, 1979, p.543). Dessa maneira, a par dos atos de escrever e ler, urge ponderarmos sobre os de falar e ouvir. Se a produção assim se traduz, demanda da recepção disposição similar.

    Como correlação dialética, o objeto literário enforma exercício dialógico promotor da importância da alteridade e da relação, entrega de tarefa cumprida e a ser cumprida, em paradoxal compreensão de que palavra gerada impulsiona palavra: a obra existe para e através do outro. O leitor realiza síntese de percepção e criação, desvenda criando ou cria pelo desvendamento (SARTRE, 2004, p.37). O objeto literário, realizado através da linguagem, dá-se enquanto silêncio e contestação de fala. Solicita o leitor a se colocar à altura desse silêncio: a leitura é criação dirigida (SARTRE, 2004, p.38). Como paradoxo dialético, ao decorrer da leitura, processa-se aquele apelo à liberdade do leitor, que, em recuo estético, sonha livremente, engajado em crença imaginária.

    Processo de leitura-urdidura de malhas multicolores, o texto só se tece e se substancializa na atualização conferida por quem lê. Leitura é travessia, devir. Caminho trilhado junto. Planejado para a conjunção ou disjunção, tarefas colaborativas. Há controle do texto e criação do leitor. Imaginação somada à consciência interpretativa, em sua acepção afetiva, lógica e imaginativa. Compreender lógica e afetivamente é conjugar a vontade do leitor com a oferta do texto em si (OLIVEIRA, 2009, p.130). Estruturas prefigurativas oferecem a implicitude como vazio a ser preenchido pelo leitor, papel criativo em interação com o texto.

    A narrativa romanesca de Pepetela, autor angolano cuja obra constitui nosso objeto de estudo, incita o leitor àquele preenchimento, tal como enuncia a voz narrativa do criado mudo dos Van Dum de A gloriosa família, leitor dos fatos que ora narra e que compõem a estorização da História: Tudo o que possa vir a saber do ocorrido dentro do gabinete será graças à imaginação. (...) Sirvo-me sempre dela para completar relatos que me são sonegados, tapando vazios (PEPETELA, 1999, p.14). Em imagem exemplar do procedimento de quem lê, o narrador-personagem circula, compromete-se com a observação e cria o silenciado. Assim, também o leitor deve se servir da imaginação criadora para completar o sonegado, conectar o disperso, atuar em implicitude.

    A palavra literariamente trabalhada por Pepetela co-move-nos e nos afeta, fazendo-nos refletir sobre nossa identidade cultural, a partir de vívidos e vitais vínculos sussurrados pelos ventos do Atlântico, águas que reúnem Brasil e Angola. Em nosso processo de leitura, a narrativa pepeteliana desenha-se como terra fértil, banhada por abundante rio-discurso metaficcional e irônico, de onde desabrocha e se exercita uma poética da leitura.

    Transgressora e emancipadora, embora não deixe de fundar compreensão fruidora e fruição compreensiva, essa obra contraria o horizonte de expectativa do leitor, não confirmando o conhecido e propiciando a emancipação do sujeito. Funda-se a contrariedade ao horizonte de expectativas de um leitor que se quer formar, na invenção de repertórios em profusão de vozes. Questiona-se o instituído pela recursividade à ironia e à paródia. Leitores libertos, em complexa e dialógica problematização do tempo, verificamos constante ressignificação e reinvenção da história por meio de memórias silenciadas pelo poder hegemônico. O texto convoca um leitor jogador², concebendo-se a leitura do texto ficcional como jogo de interação contínua. Desse modo, ler Pepetela corresponde a problematizar o presente, revisitando criticamente o passado e a tradição.

    Ato de libertação e preenchimento, afastamento do real e criação de um universo marcado pelo imaginário do próprio receptor, ler devolve o leitor ao real "nutrido de ficção". Necessitamos de ficção e, em cooperação com os textos, criamos a novidade em meio ao repetitório, inauguramos horizontes. Na obra O fictício e o imaginário, Iser fala da atividade de ficcionalizar como inerente à condição humana, remete a tal processo como disposição antropológica, denotando a importância e a necessidade da ficção literária³. Precisamos outrar-nos pela leitura. Em vertigem, experenciamos a "interiorização do outro", possibilidade de ser, mesmo que transitoriamente, quem não somos. A vivência da alteridade constitui movimento simultaneamente perturbador e fascinante, implicando algo desestabilizador e capaz de provocar desterritorialização (JOUVE, 2002, p.109)⁴. Ler Pepetela consiste em interiorizar vozes plurais para compor o tecido diverso da história, reunião de fragmentos dispersos.

    Na leitura, distinguem-se dois processos. Por um lado, ler corresponde ao preenchimento de vazios com representações do leitor. Por meio desta atividade, quem lê implica-se no texto. Por outro, quando o texto invalida essas representações, o leitor se distancia do que formulou e pode se observar participando do ato da leitura. Esses processos, de contemplação e autodistanciamento, são extremamente enriquecedores e produtivos. Para Iser, a capacidade de entrever a si próprio num processo do qual se participa é um momento central da experiência estética. Como acontecimento vivido, de frequente confrontação da recepção com os sentidos construídos no ato de ler, a leitura leva o leitor ao exercício da consciência e reformulação dos sentidos, provocados por dinâmica de oscilação entre implicação e observação. Ler Pepetela consiste em aderir à lógica da implicação e observação, ler e se observar lendo.

    Em relação ao impacto da leitura da perspectiva da recepção individual, pode ser apontado o necessário distanciamento ideológico e psicológico do leitor em relação ao texto como garantia de desvio da alienação e regressão, da pura repetição do passado. Na contramão destes últimos processos, as obras de Pepetela incitam ao recuo crítico ao se constituírem como narrativas de perspectiva múltipla e plural: Obrigado a passar de um ponto de vista para o outro, o leitor é levado a tomar certa distância em relação à história contada (JOUVE, 2002, p.134). Ler Pepetela consiste em coordenar diferentes perspectivas suplementares e estar consciente de que a tarefa do leitor é inexaurível. O sentido do texto, longe de ser imanente, constrói-se no espaço intervalar de um processo interativo. A cada geração de leitores de diferentes épocas ou por cada leitor em particular, há renovação do dito, chuva fecundante essencial ao solo ficcional.

    A leitura, como integração entre a visão do texto e do leitor, nunca é passiva, ao contrário, é sempre receptiva e ativa, efetuando-se como sentido e significação, ou seja, deciframento operado durante a leitura e efetuação concreta na existência do leitor. Desse modo, a leitura prolonga-se na vida do sujeito que lê. O texto transmigra e o prazer do texto realiza-se e se consubstancia na produção de coexistência⁵. Afeto⁶ e identificação, transgressão e emancipação, transmigração e coexistência consistem em pares acionados para problematizarmos a poética da leitura em Pepetela e justificar o mergulho no feraz solo de sua ficção, de frutuosos resultados.

    De guerrilheiro escritor a escritor e professor combatente e crítico, Pepetela enveredou pelas trilhas da prosa literária abrindo algumas frentes pelo gênero dramático. No tempo da escrita de Mayombe ou de As aventuras de Ngunga, produzia à luz das chamas das fogueiras e traçava simultaneamente estratégias de guerra e escrita. Sua narrativa perspectiva criticamente o passado colonial, a luta pela libertação, a guerra civil, o período pós-guerra. Sob a ótica da ironia, conduz-se o leitor à reflexão: A ironia é a melhor forma para prender o leitor e colocá-lo a pensar (PEPETELA, 2010)⁷. A subversão do instituído e o preenchimento das lacunas da história também têm representado viés produtivo da literatura de Pepetela. O autor revisita a história, problematiza passado e presente, dinamizando tradição, insuflando a vida e reacendendo pequenas fagulhas responsáveis por tênue, mas essencial iluminação do percurso histórico angolano, em movimento de leitura atenta. Palavra que descobre e inventa Angola, a literatura de Pepetela perscruta a sociedade atual denunciando os descaminhos do período pós-revolução. A ideia de liberdade conferiu unidade aos povos angolanos. A guerra civil esfacelou o país. O fim da guerra entre irmãos não conduziu à igualdade e à distribuição da riqueza. A ficção desafia a realidade, projeta estratégias, arquiteta desconstruções por meio do humor e da paródia, da polifonia, do dialogismo e da criação de múltiplos narradores. Escrita de feitiços que enredam, a ficção narrativa de Pepetela convoca o leitor a compor a sua fala, como afirma o narrador-escritor de O cão e os caluandas: Agora, leitores, na minha escrita que morre começa a vossa fala. Lemos essa assertiva como instigante proposta que permeia a obra de nosso autor.

    Aceitamos a provocação e procuraremos estudar essa incitação à palavra do leitor. Perseguindo tal rastro, buscaremos a figuração de uma poética da leitura. Parafraseando estrutura de inserção da palavra usada por diferentes narradores em Lueji, AGORA SOU EU QUE FALO, EU, O LEITOR. Investigaremos as estratégias construídas por certas obras romanescas, considerando o fazer literário por meio do qual o autor se apresenta como alguém consciente de seu papel instaurador de discursividade, sujeito que se autodestitui da função central da ordem do discurso, colocando-se como criação a par de vários discursos, inclusive o do leitor, elemento fulcral à escrita constituída pela leitura.

    Ao comentar Muana Puó, seu primeiro texto literário, traçando paralelo entre programa literário e político, o autor refere-se ao romance como o programa mínimo de sua obra⁸. Como tal, Muana Puó pode ser vista enquanto obra a que autor e leitor podem recorrer e, simultaneamente, malha a perpassar o tecido discursivo enformador da narrativa pepeteliana. À procura de sinais de uma poética da leitura em Pepetela, interessa-nos partir da imagem da máscara. O processo de produção corporifica outro de sedução e leitura afetiva. A máscara constitui desafio de leitura consubstanciado em fios de escrita literária alegórica:

    Eu vi a fotografia de um cartaz para um espetáculo da Míriam Makeba, com a Muana Puó... e fiquei fascinado. Foi amor à primeira vista. Fechei-me uma semana no quarto, todo branco com o cartaz à frente e comecei a escrever sem saber o que ia escrever. [...] A história é perfeitamente intemporal e muito simbólica. O livro foi escrito com a máscara à frente e é para ser lido assim, com a máscara à frente. A ação do livro segue as linhas da máscara: o mundo oval, o rosto, o lago, a boca... (PEPETELA apud CAETANO, 2004, p. 270)

    Assim, a máscara por meio da qual se encena ritual de passagem, elemento artístico icônico, peça de resistência simbólica (PADILHA, 2009, p. 50) para a cultura angolana, nomeia texto também iniciático, semente de um programa de escrita que desde já solicita receptor ativo e disposto a jogar. No jogo dúbio da representação alegórica do texto com a e como a máscara, instauram-se vazios solicitadores de preenchimento. Em sondagem distanciada, o leitor percebe esse elemento textual, a partir de diferentes roteiros e perspectivas e, simultaneamente, adentra-o, cedendo à exigência de ocupar o oco da narrativa tal como a cabeça do iniciado cobre o oco disfarçado pela face e da máscara constitutivo (LUGARINHO, 1999, p.240).

    Muana Puó, romance incatalogável (PADILHA, 2009, p.50), organiza-se em duas partes e um epílogo, configurando-se a máscara em três movimentos, seu desenho como geografia de escrita e leitura. As epígrafes das três instâncias retomam o objeto em papel ritualístico na festa da circuncisão. No passado, elemento com o qual se dança; no futuro, esconderijo de lágrimas; no epílogo, dança e lágrimas reunidas: "Era uma máscara tchokuê. /Máscara de Muana Puó, a rapariga. /Com ela se dança e esconde as lágrimas, na festa da circuncisão (PEPETELA, 1995, p.165). Esta epígrafe já alia os dois segmentos narrativos antecessores. O epílogo devolve-os em desdobramento de leitura. Aqui, o narrador metalinguisticamente elenca três diferentes vias de leitura, recepção e observação da máscara. A primeira, efetuada na descrição da máscara em I- O passado, materializa-se a partir de olhos quase fechados e tristes de onde um abismo transparece para lá das pálpebras semicerradas (PEPETELA, 1995, p.7). Segue-se pelo nariz, destacando-se as escarificações e as incisões verticais, até chegar à boca, elíptica como os olhos: lábios sensuais, húmidos, meigos, o que realça a escuridão entre eles, traçando paisagem serena, grave, quase severa, formada de elementos violentos (PEPETELA, 1995, p.8). Nesse percurso, percebe-se o itinerário do primeiro viés de observação: o caminhar da tristeza dos olhos à fixação na doçura da boca. A segunda, já relacionada à descrição em II- O futuro, tem como ponto de partida a boca, quase reiterando o anterior retrato avaliativo da máscara: Serena, quase severa, constituída de elementos violentos e incoerentes (PEPETELA, 1995, p.81). A poeticidade acentua-se, a boca elíptica sopra um beijo, destacando-se o vazio sem fundo entre os lábios carnudos e húmidos. Daí o observador parte para os olhos em cuja imensa tristeza incomodamente se fixa. A terceira via remete a observadores que duplicam o trânsito: começam pelos olhos até à boca e daqui voltam aos olhos para em seguida descerem à boca e, completa o texto de modo ambíguo: não mais se libertarem. Não sabemos em definitivo se não se libertam da doçura da boca e de seu abismo ou do movimento incessante de ir e voltar. Percebemos que esta terceira posição deságua em uma aporia: Estes compreenderão a ternura, o mutismo, a severidade, o grito, da máscara de Muana Puó. /Por isso ela é enigmática" (PEPETELA, 1995, p.166). A compreensão instaura o enigma. Este é indecifrável, remetendo à imagem da personagem Ele, mistério enterrado na areia. E, ao mesmo tempo, capaz de produzir sentidos transformadores do mundo, Ele e Ela, outra personagem, reunidos sem reencontro.

    Ler o romance corresponde a percorrer as linhas da máscara também orientadoras da produção. As personagens transitam em marcha inquieta ou linear caminhada. No passado, a ovalidade domina o mundo constituído por territórios interditos ou cercados por arame farpado e abismos. Nesse espaço, movimentam-se corvos e morcegos, em relação de dominação e opressão. O mel produzido pelos morcegos alimenta exclusivamente os corvos. Ele e Ela, morcegos oprimidos, amam-se em constante trânsito. Encontram-se e se desencontram para novamente se reunirem, convertendo-se os espaços (os campos, a montanha, o lago, Calpe) em palcos de amor e guerra, beijos húmidos, aguçando as garras. Ele e Ela movem-se para mudar a ovalidade do mundo sem dele fugir (PEPETELA, 1995, p.50). A máscara é o mundo em que se circula e a palavra literária, conjugada ao desejo utópico da revolução, torna-se agente transformador: – Que importa a ovalidade do mundo? Há que transformá-lo no interior! (PEPETELA, 1995, p.79), gestar o dia em que o Sol dardejará rosas sem espinhos e os morcegos comerão mel (PEPETELA, 1995, p.51). No futuro, tempo já nutrido como imagem acalentadora no passado, o mundo continua oval, mas sua ovalidade é esmorecida. Corvos derrotados, morcegos veem que são homens, os amantes se reencontram e a realidade ultrapassa os sonhos, a assembleia decidia: relógios esquecidos, distribui-se o mel; a leitura das letras é compatível com a das árvores; a originalidade e o riso havia em liberdade; a solidariedade explodia gratuita, a morte torna-se cessão da vez aos que nascem. A metamorfose do mundo coincide com a instabilidade da relação amorosa. Tomados por desassossego, Ele e Ela caminham para Calpe, cidade onde o mundo dos sonhos se materializa no mundo dos homens, as imagens projetadas tornam-se reais. Ele estranha o novo tempo, portador de negação de si e de seu próprio desejo nascida do deserto onde brotara, não compartilha do contentamento dos homens que viviam felizes num mundo sem ovalidade (PEPETELA, 1995, p.135). Ela, ao contrário, aceita os convites do mundo, em metamorfose intensa, ansiando pela vida. A separação acontece: Ele parte para o Oriente; Ela para o Ocidente, borboleta incansável a perseguir uma falta, presença-ausência constante metaforizada em persistentes olhos de bâmbi (PEPETELA, 1995, p.152). Na travessia traçada no distanciamento, ambos retornam ao ponto inicial da trajetória, em lados opostos, separados por uma muralha. Para reencontrem-se, basta mirar o lado oposto, materializando o desejo da busca, desfazendo tabique invisível em melodia de enlace amoroso. No entanto, Ele renuncia à retomada. Ela tardiamente contempla o lado contrário. Desfeito o elemento divisório, sobrevém o vazio, incitador de novas procuras. A máscara reage com um sorriso zombeteiro, e profundamente triste (PEPETELA, 1995, p.156). Alijado do sonho, Ele caminha para o deserto, onde é coberto pela areia de que se originara. Ela segue borboleteando, auxiliando na reconstrução do mundo. Peregrina ávida de ternura vislumbrada em certos olhos, sonho feito para se perder em infindável procura: Eternamente procuraria [...] Mas essa busca dava-lhe ainda força para viver. E criar a vida (PEPETELA, 1995, p.163).

    A ficção cria mundos, tarefa cumprida por meio de parceria e negociação entre produção e recepção. O ato de ler atualiza o texto em presente de reunião, intervalo preenchido por intenso e produtivo diálogo. Essa dinâmica pode transpor o texto, mas não se faz à sua revelia. Quando Pepetela relaciona Muana Puó a um programa mínimo, já o vincula a outro programa máximo realizado aos poucos e ainda em processo. Sendo assim, esta última obra, de modo autoindicativo, aponta entoar de palavra literária prefiguradora de leitor capaz de empreender buscas incessantes, itinerante como as personagens, múltiplo como as diversas vozes, parceiro na compreensão da utopia da escrita. Rito de passagem, pórtico necessário à nossa leitura, Muana Puó torna-se semente em outras obras, prefigurando o leitor das idas e vindas, disposto a se surpreender com o contraste entre tristeza e doçura e a mergulhar nos abismos de ar e água formados pelos contornos das linhas, dos olhos e boca dessa máscara/obra. Da semeadura rebenta, em frequente retorno à paisagem modificada pela própria leitura, a duplicação dos planos, os encontros e desencontros amorosos, a perseguição dos sonhos, individuais e coletivos, a desilusão e desconcerto do mundo, a potencialização do diálogo como estratégia de acolhimento da diversidade de vozes.

    Iniciados, somos impelidos ao recorte. Nossos relógios não estão depositados no gabinete dos objetos perdidos. Antes de qualquer justificativa, a escolha do corpus do trabalho se deve ao que poderíamos chamar, junto com Goethe, de afinidades eletivas. Em um mundo em que prevalecem a indiferença e a repulsa, a verdadeira afeição surge como algo valioso, como afirma o narrador de As afinidades eletivas. Nesta obra, dada a menção a termo cuja semântica remete ao âmbito da ciência, as personagens empreendem discussão delineadora do enredo. No âmbito da Química, definem-se como afins aquelas naturezas que, ao se reunirem, rapidamente se prendem e se identificam umas com as outras (GOETHE, 2014, p. 56). Mesmo elementos antagonistas procuram-se vivamente, prendem-se, modificam-se e formam um novo. Por meio de analogias, comparações e metáforas, em sofisticado jogo retórico, as personagens deslocam as afinidades eletivas ao campo das relações humanas. Nos atos de deixar levar e apanhar, nos de escapar e estar à procura, vislumbra-se determinação mais elevada, imputa-se aos seres espécie de volição e escolha, define-se, por fim, o termo, como sentimento de bem-estar partilhado na dança da vida: [...] parceiros que logram manter o mesmo passo tornam-se imprescindíveis; nasce então um sentimento de bem-estar que é partilhado por ambos os dançarinos (GOETHE, 2014, p. 74). Metáfora das paixões humanas, se, na ciência, diz respeito à reação química natural e inevitável, quando aplicada às relações humanas, pode implicar opção, liberdade de escolha, eleição.

    Obra aberta⁹, a ficção pepeteliana convoca o leitor provocando atos de liberdade consciente. Criam-se estratégias textuais e discursivas corporificadoras de uma poética da leitura. Almejamos refletir conjuntamente sobre a consciência da produção materializada na obra, sua propensão à inserção do leitor e o papel deste último em implicitude. Além disso, objetivamos tangenciar o projeto de compartilhamento de memórias e formação de repertório, realizado pela obra em estudo. Desse modo, ao investigar a prefiguração do leitor, perceberemos que ler não consiste em ato puramente subjetivo. Toda leitura é compartilhada, possui uma expressão institucional; relaciona-se com o fato de fazermos parte de uma instituição (HALL, 2018, p.419).

    Perscrutar a obra romanesca de Pepetela corresponde à travessia em Mayombe denso, diverso e desafiador. Requer estratégias de guerrilha, estado de alerta e habilidade de lidar com incômodo. Distante da fruição contemplativa e passiva, orientada ao sucesso do percurso, o prazer redunda do perseguir as fendas. Fissuras similares àquela por onde escorre água misteriosa, interrompendo o cotidiano de Luanda e, silenciosamente, enunciando o desejo de Kianda aos leitores dos desvãos. Imagem convocante do leitor, pode se referir ao exercício da leitura e construção do objeto estético: a fenda é lacuna ocupada pela água, passado mítico no presente ressignificado; a fenda solicita o leitor a cumprir sua função de preenchimento.

    Integram nosso corpus romances cujas estratégias de composição investem de diferentes formas, explícita ou implicitamente, em projeto de arquitetura daquela poética da leitura. Nosso recorte, além de proporcionar considerável périplo pela obra romanesca de Pepetela, justifica-se pelo exercício a que se submete à palavra nessas instâncias textuais, construindo-se estruturas, em seu conjunto, requisitantes do leitor. Os romances elencados investem em recursos criadores de rede formadora de complexo sistema de perspectivas, geradora de vazios e negações, por meio do multiperspectivismo, dialogismo e intertextualidade, com recorrente uso da ironia e da paródia, instrumentos constantes na obra narrativa estudada. Lida a obra completa de nosso autor, tornava-se necessário, devido à extensão da produção literária e ao limitado tempo de execução de uma tese, corte preciso e diminuto de tão farto material. Nosso trabalho estrutura-se em cinco seções.

    Estrutura capacitadora ao questionamento do mundo, a obra literária de Pepetela apresenta-se, variadas vezes, como exercício de deambulação, movimento de um sujeito migrante¹⁰, estimulando o leitor a se conformar à prática análoga. Assim, o deambular dialético de Ngunga é seminal em relação à obra; pedagógico no que concerne à recepção do texto. Na experiência da errância incitada por As aventuras, na primeira seção de análise, perspectivaremos o devir do protagonista associado ao do leitor implícito, como modelo dinâmico e relacional. Enfocaremos o tenso diálogo do texto com a tradição oral: em processo de despragmatização e tradução da tradição histórica e literária. Levantaremos e problematizaremos as diferentes perspectivas em contraste com as de Ngunga e a tessitura de rede perspectivística como papel do ponto de vista movente do leitor. Ainda neste primeiro passo, consideraremos convite à recepção a empreender uma busca possibilitada pela oferta de palavra aberta. Refletiremos sobre a ficcionalização do leitor e a construção da instância narrativa, atentando para intervenções significativas, sobretudo, a desenvolvida na última parte da obra.

    Em seguida, abordaremos Mayombe, romance construído sob a égide do múltiplo e do diverso, instaurando universo dialógico pontuado por diferentes práticas discursivas, formalmente variadas, constituindo teia de vozes criadora de efeito polifônico. Adentrar Mayombe exige recepção ativa, tecedura de malha plurissignificativa em incessante cooperação. A itinerância e o deslocamento constantes, como em As aventuras, enformam a condição do leitor, prefigurado pela estrutura textual como perspectiva nômade. Para estudar essa estruturação dialógica, refletiremos sobre o trânsito da palavra no romance em questão, por meio da análise da instância narrativa, das personagens e de suas relações, pontuando a cessão de voz e o diálogo composicional criado por variados esquemas de citação da palavra alheia. Além da teia dialógica gerada em parceria com o leitor, forjam-se imagens deste convocantes, símbolos são alegoricamente representados e significações paradigmáticas são irônicas e parodisticamente retomadas, instaurando-se espaço limiar em que diferentes repertórios aparecem em contiguidade conflitante. Tentando delinear uma poética da leitura, problematizaremos o título e o espaço romanesco na plurissignificação da palavra Mayombe, fundamental protocolo de leitura, ressignificado após o processamento do ato de ler. Os demais paratextos, solicitando um leitor aberto à estrutura dialógica e capaz de cooperar para a construção de múltiplas articulações, também constituirão objetos de reflexão.

    Contrariando possível horizonte de expectativa do leitor desta tese, que talvez esperasse abordagem mais linear e alinhamento cronológico das obras, Lueji, o nascimento de um império constitui nosso terceiro ponto de reflexão, antes de O cão e os caluandas¹¹, dada a relação com Mayombe e a retomada, em mais elevado grau de complexidade e elaboração, de estruturação dialógica. Resultado de leituras, tessitura enovelada a partir de diferentes práticas literárias, Lueji alimenta-se da tradição oral, investindo constantemente na cessão da palavra, encenando, em multiplicidade de tempos e espaços, em dois diferentes planos interligados, sociedade repleta de contradições e ambiguidades. Essa obra prefigura um leitor capaz de engendrar sua tarefa na fratura e nos desvãos: nômade no tempo e no espaço, hábil tecedor de diálogos. Perscrutando tal prefiguração e inquietações sobre o ato de ler, estudaremos a escrita romanesca como formadora de repertório em operação de leitura crítica da tradição. O mito de Lueji, em processo de tradução, é recontado pelo romance a par da história de Lu. Existências que, separadas no tempo e no espaço, confluem para o largo e caudaloso leito do rio discursivo romanesco. A produção propõe o alinhavo e o leitor o consubstancia: as personagens se correlacionam em interseção de planos. Interessa-nos investigar tal correlação. Antes, para melhor compreender a imbricação espaciotemporal, refletiremos sobre a transposição dos planos narrativos, empreendendo levantamento de transições e erupções de um plano no outro. O encontro das histórias também é encenado na composição de um bailado. Este corresponde à busca de Lu. Tal procura coaduna-se à do texto e ambas nos convidam a experenciar a diligência de ler e a se observar lendo. Para além do tensionamento entre os tempos, o de vozes também se efetua. Indagaremos sobre o complexo tecido dialógico pelo romance criado, estudaremos as múltiplas perspectivas, a pluralidade de vozes narrativas, os diferentes narradores que instauram hiatos incitadores da criação de redes de sentido. A profusão de vozes, como estratégia textual, potencializa o diálogo e intensifica o trabalho de quem lê. Ademais, examinaremos a peculiar construção do narrador em posição heterodiegética, no plano de Lueji. Como de um ngombo¹², vozes ancestrais brotam de emaranhada teia, cada qual de sua posição de sujeito, demonstrando disposição para falar, gerando vozear polifônico. A palavra também é cedida a Lueji e a Kandala, personagens romanescas. Desse modo, surgem micro-histórias, sobrepondo-se às demais em harmonia similar à da rosa de porcelana, multiplicando as pétalas do discurso. Para encerrar esta seção, perspectivaremos Lueji como um romance sobre a escrita de um romance. Nessa dinâmica, correlacionaremos o movimento de escrever e se ver escrevendo ao de ler e se observar lendo. Por meio da construção de um narrador autodiegético e de um narratário, o romance desnuda-se como exercício metaficcional, duplicando-se por dentro, ampliando os espelhamentos antes construídos em relação às personagens, ao tempo e ao espaço.

    Na quarta seção de análise, apreciaremos O cão e os caluandas. Considerando o romance manancial para reflexão sobre o leitor, suas prefigurações e o processo de leitura, analisaremos o jogo instituído nos paratextos em correspondência com o texto, a proposição de uma escrita alegórica instauradora de leitura alegórica vinculada à oferta de poética e elogio da leitura em contraposição a redutor universo monológico de julgamento e condenação encetado em Angola pós-independência. Examinaremos, partindo da itinerância do cão, a fragmentação e multiplicidade de gêneros e vozes textuais, sendo a ironia recurso discursivo preponderante. É nossa intenção pensar os segmentos do texto como versões-leituras acerca da passagem de um cão que escritura, em cooperação com o leitor, caminho que vai da desconstrução do autoritarismo à afirmação da ternura por meio do estabelecimento de relações dialógicas.

    Nossa jornada reflexiva interinamente se suspenderá com a leitura de Se o passado não tivesse asas. Estruturando-se em espelho na relação de dois tempos, o romance propõe ao leitor jogo de articulação entre passado e presente em movimento contrário à escolha da protagonista de soterrar o anteriormente vivido. Abrindo o livro do passado (PEPETELA, 2017, 251), a produção sugere entrelaçamento efetivado pelo leitor, aos tempos atuais alinhavam-se os da guerra civil na composição do caminho de Himba a Sofia, de Kassule a Diego: enredam-se fios existenciais, duplicando sujeitos. Exploraremos a estruturação dialogante do romance na duplicação das personagens e na entretecedura dos planos narrativos, sublinhando o apelo à recepção ao engajamento nesse jogo dialógico. Essa organização em espelhamento é replicada e reforçada na criação do que chamaremos parágrafos dialogantes, forma de recursividade à dialogia, instaurando entre os parágrafos estruturadores da prosa literária dinâmico debate e animada conversa similar à ambiência da oralidade, do prosear de boca em boca. Aliada à última problematização, levantaremos e caracterizaremos a das formulações de caráter proverbial encontradas no romance. Muitas delas constituem parágrafos dialogantes e trazem à baila a recuperação crítica da tradição oral e do saber ancestral: vestígios do passado enformadores de novos saberes e enunciadores de outras sabedorias. Para finalizar, enfocaremos o confronto de vozes configurador de debate por meio da interdiscursividade e da intertextualidade. Nesse processo, o leitor coloca-se como mediador de diálogos entre diversos textos, cujo ponto de convergência é o romance: grande biblioteca, formadora de repertório e de renovada tradição. Mais uma vez, observaremos a prefiguração de perspectiva nômade em desafio de mobilidade e relação.

    Como um galo sozinho não tece uma manhã (NETO, 1995, p.245), adentraremos esse Mayombe literário estabelecendo parcerias de leitura. Transmigraremos teorias para diferentes espaços epistemológicos convencidos de que o objetivo da teoria é assim viajar, indo para além de seus limites, emigrar, permanecer em certo sentido no exílio (SAID in SANCHES, 2005, p.41). Dentre as parcerias, destacaremos estudos da recepção, sobretudo a teoria de efeito estético de Iser e as reflexões de Bakhtin sobre dialogismo, polifonia, carnavalização e paródia, assentes, principalmente, na investigação sobre a obra de Dostoiévski (2015).

    Em O ato da leitura (1996, v.1 e 2), Iser discute a existência do texto enquanto objeto estético a partir da ativação do leitor, no exercício do imaginário para a construção da significação. Estrutura verbal e afetiva, o texto literário desponta como elaboração em relação de não identidade com o mundo pragmático, forjada por estrutura norteadora da leitura, baseada na presença de vazios. Estes consistem em pontos de indeterminação do texto, rompendo com a previsibilidade da linguagem cotidiana. Enquanto espaço intervalar do não dito, estimulam a participação do leitor, provocando-lhe a imaginação para preenchê-los. Iser descreve o texto ficcional como estrutura de comunicação, que solicita a cooperação do leitor. Formula complexo quadro nocional do qual agenciaremos alguns conceitos, dentre eles: repertório ficcional e estratégias textuais, sistema perspectivístico textual, perspectiva nômade, leitor implícito, vazios e negações.

    O leitor em implicitude não apresenta existência real, concretiza-se como pré-orientações oferecidas pelo texto, condições de leitura. Compreender o leitor implícito corresponde à percepção da oferta de papéis a possíveis receptores do texto literário. Esse conceito não se esteia em substratos empíricos, mas antes na estrutura textual:

    Se daí inferirmos que os textos só adquirem sua realidade ao serem lidos, isso significa que as condições de atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto, que permitem constituir o sentido do texto na consciência receptiva do leitor. A concepção de leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor. O preenchimento dessa forma vazia e estruturada não se deixa prejudicar quando os textos afirmam por meio de sua ficção do leitor que não se interessam por um receptor ou mesmo quando, através das estratégias empregadas, buscam excluir seu público possível. Desse modo, a concepção do leitor implícito enfatiza as estruturas de efeito do texto, cujos atos de apreensão relacionam o receptor a ele. (ISER, 1996, p.73. Grifos nossos.)

    Decorre de tal concepção inferir o papel do leitor como estrutura do texto e estrutura do ato. Esta última configuração conduzir-nos-á à compreensão da implicitude para além da prefiguração textual do leitor. Cabe a este assumir o ponto de vista integrador das perspectivas textuais. Tal dinâmica de integração não é arbitrária e depende da estrutura interna do texto. Esse ponto de vista e seu quadro de referência não são representados no texto. No entanto, cumprindo o papel nele inscrito, cada leitor assume posição, captando perspectivas textuais divergentes e as reunindo. Essa atividade de constituição oferecida aos receptores refere-se ao aspecto da implicitude relacionado à estrutura do texto. Mas, extrapolando a estrutura textual, como a perspectiva nômade não pode manifestar-se verbalmente no texto, move-se em jogo interativo constituindo a estrutura do ato. A estrutura textual e a estrutura do ato se relacionam de forma análoga a intenção e preenchimento. E ambas se associam na concepção de leitor implícito. O leitor não se transforma totalmente nos papéis oferecidos pelo texto. Isso o destituiria de todas as experiências constantemente introduzidas na leitura, responsáveis por diferentes modos de atualização. O horizonte de ideias do leitor dirige de forma latente sua disposição de responder à demanda textual. Apenas a imaginação é capaz de apreender o não dado. A estrutura do texto, ao estimular sequência de imagens, traduz-se na consciência receptiva do leitor. As experiências do leitor afetam o conteúdo dessas imagens e constituem o quadro de referências promotor de apropriação do não familiar ou da fundamentação de sua imagem. Como já dissemos, tal processo não é aleatório: Toda concretização se dá diante do pano de fundo das estruturas de efeito contidas no texto (ISER, 1996, p.78. V.1). Entretanto, cada atualização corresponde a determinado preenchimento da estrutura do leitor implícito, então essa estrutura cria uma referência que torna a recepção individual do texto acessível à intersubjetividade (ISER, 1996, p.78. V.1). O leitor implícito proporciona referenciais para diversidade de atualizações históricas e individuais do texto.

    Para pensar a estrutura textual, Iser estuda os conceitos de repertório e estratégias. Quanto ao primeiro, relaciona-se ao processo de seleção, às convenções criadas pelo texto a partir de sistemas epocais e tradição literária. Em âmbito ficcional, opera-se processo de despragmatização, a contrariedade ao familiar: a negatividade em relação ao dado empírico e à expectativa do leitor. O repertório ficcional questiona o sistema mundo dominante, horizontalizando valores. Também promove a transcendência do leitor em relação à sua posição no mundo. O texto literário não se dá como reflexo de uma realidade. Possui natureza dupla, isto é, expressa a realidade e a constitui. Quanto às estratégias textuais, correspondem à projeção de caminhos de atualização do texto e se relacionam ao processo de combinação. Organizam o repertório, a fim de garantir a recepção. Delineiam caminhos, demandando o leitor, pois não podem representar o que possibilitam. Nomeiam múltiplas e variadas técnicas e os procedimentos aceitos para garantir a comunicação. O universo intratextual organiza-se em sistema perspectivístico: visões diversificadas sobre os objetos intencionados e sobre outros pontos de vista. O objeto estético emerge das perspectivas internas do texto, o leitor o produz através de orientação oportunizada por constelação de visões e ângulos diferenciados. Ponto de vista nômade, o leitor salta de uma perspectiva a outra, tecendo relações. O texto desenha-se como rede relacional de perspectivas.

    De Iser também agenciaremos a obra O fictício e o imaginário (2013), valendo-nos das modalidades de jogo que integram o texto ficcional por meio dos atos de fingir que reforçam a ideia da ficcionalidade como disposição antropológica. Tomando como estatuto da ficção a necessidade de o homem se mostrar a si mesmo, o estudo teórico problematiza o conceito de encenação, o estar em si e fora de si, vivenciar a dualidade, distanciar-se de si mesmo, colocar-se em perspectiva, criar-se. O fictício corresponde à instância apta a tornar o imaginário acessível. Ambos nutrem entre si parceria profícua orientada pelo jogo. A ficção literária origina-se de arranjo cambiante e complexo entre os jogos livres e instrumentais e compõe-se de atos de fingir: seleção, combinação e autoindicação. Nesse contexto, Iser explora e discute o conceito de mimesis, caminhando da representação à apresentação, da imitação à performance, à produção, à encenação, passos decisivos no sentido da mudança da visão sobre a criação artística.

    O conceito de dialogia perpassa e estrutura o pensamento de Bakhtin, reflexão teórica na qual também nos pautamos. Em relação à investigação sobre a prosa romanesca, o dialogismo é de fundamental importância para a compreensão da obra de Dostoiévski, autor cuja escrita se insere na tradição carnavalesca do romance europeu, revitalizando o gênero através de original faceta polifônica. Segundo o teórico, a origem do romance se situa na desintegração dos gêneros elevados do universo grego. Para compreender tal processo, Bakhtin relaciona três noções muito próximas, ressaltando-lhes a diferença, carnaval, visão carnavalesca e carnavalização da literatura, passando à análise das peculiaridades exteriores do gênero sério-cômico como resultado da influência da cosmovisão carnavalesca. O estudo desses

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