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Campo dos Bargos, O futebol ou a recuperação semanal da infância
Campo dos Bargos, O futebol ou a recuperação semanal da infância
Campo dos Bargos, O futebol ou a recuperação semanal da infância
E-book125 páginas1 hora

Campo dos Bargos, O futebol ou a recuperação semanal da infância

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Sobre este e-book

Regressar à infância: não é isso, afinal, o que mais se procura? Esquecer as preocupações e as responsabilidades e, de novo, jogar à baliza com os primos. A maior ânsia é não se ser batido pelo remate do mais velho. É isso que o futebol permite: regressar à infância a cada quinze dias, sempre que joga o clube de eleição. E esse jogo acontece no campo mais memorável: chame-se ele Luz, Alvalade, Antas, ou Bargos, o do Famalicão.
O futebol é o maior criador de ídolos, como de vilões e heróis. Neste livro conta-se uma história muito pessoal, mas também daquelas onde qualquer adepto se pode rever, trazendo para agora aquilo que se viveu num relvado real, relembrado ou só sonhado.
Veja o vídeo de apresentação da obra em youtu.be/eD4AV_jDfYc
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de fev. de 2022
ISBN9789899064546
Campo dos Bargos, O futebol ou a recuperação semanal da infância
Autor

Jorge Reis-Sá

Jorge Reis-Sá nasceu em 1977 em Vila Nova de Famalicão. Licenciado em Biologia, foi editor das Quasi Edições e director editorial da Babel. Escreve poesia, romance, crónica e livros para os mais pequenos. Destaque para “A História do Vila Nova – 85 anos do Futebol Clube de Famalicão” (2016). Vive em Lisboa com a sua esposa e os filhos Guilherme e David. É o sócio 286 do Vila Nova.

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    Campo dos Bargos, O futebol ou a recuperação semanal da infância - Jorge Reis-Sá

    Introdução

    O Sr. João, o Campo e eu

    Viver é um desastre à espera de acontecer. Ou a felicidade, o que é o mesmo.

    Nasci na Castela, a 300 metros do Campo dos Bargos. Aquele onde o Futebol Clube de Famalicão passeava o azul e branco aos domingos, era o ano da graça de Nosso Senhor de 1977. E no ano em que, pela segunda vez na sua história, iria subir de divisão e, na época seguinte, receber os grandes do futebol nacional. Dessa sua segunda estada na Primeira Divisão não tenho, como seria expectável, qualquer memória. Mas da terceira, entre 1990 e 1994, temos todos. Nasci ao lado do Campo dos Bargos, aquele onde, ainda hoje, o Vila Nova passeia o azul e branco aos domingos.

    Tinha três meses e febre. Era sábado e chovia muito. E nesse dia escuro deram-me uma injecção na perna para mitigá-la. Passadas umas semanas, a minha mãe notou que algo se passava, que o pé direito começava a entortar para dentro. «O menino tem alguma coisa», repetia. Correram médicos e disseram-lhe que era pé boto, que afinal não era nada, que não sabiam o que era. Até que o Dr. Carvalho Oliveira, no Porto (tão longe era de Famalicão, nessa altura) diagnosticou a paralisia do nervo ciático. E até aos três anos fui semanalmente à cidade grande para tratamentos de fisioterapia. Com essa idade fiz a primeira de quatro cirurgias ao pé — aos três, cinco, sete e catorze anos. No entretanto, dormi com uma tala, cobrindo de equimoses as canelas do Pedro, o meu irmão mais novo, e andei de botas ortopédicas com um ferro até ao joelho. Calçava sapatilhas apenas aos domingos à tarde, para jogar futebol com os meus primos, sonhando com o relvado do Campo dos Bargos. E, por altura da última operação, sentei-me no banco de suplentes do Famalicão e conversei com o Sr. João.

    O Sr. João era o massagista do Famalicão. Eu costumava ir ver os treinos — naquela altura, abertos a todos os que queriam assistir — e sentar-me na pista de terra, junto ao relvado, porque o Carlos Janela, vizinho dos meus avós na Castela, era o secretário técnico do clube. Tolerava, por isso, o Míster Abel Braga a presença de um pré-adolescente perto dos seus ídolos. Estava sol, naquele dia. O Sr. João arranjava os sacos onde tinha os cremes, sprays e ligaduras prontos para entrarem em acção e de onde exalava um odor tão característico a éter que, misturado com a relva próxima, cheirava a infância. E eu perguntei, «Sr. João, se uma criança tivesse uma paralisia do nervo ciático porque lhe deram uma injecção em bebé, o motivo teria sido a injecção ser mal dada ou a dose que foi prescrita?» Tenho a certeza de que não usei a palavra «prescrita», mas também tenho agora a certeza de que o Sr. João sabia quem era aquela criança — mas não mo disse. Disse apenas a verdade, que eu viria a confirmar duas décadas mais tarde com o Dr. Carvalho, já bem crescido: «teria sido o local da picada a fazer isso; a injecção teria sido mal administrada». Tenho a certeza de que o Sr. João não usou a palavra «administrada», mas também tenho agora a certeza que ele não sabia quem ma tinha «administrado» — a minha avó.

    Era um sábado de temporal, o meu pai não estava, os meus avós e a minha mãe não conduziam. O menino estava com febre e a farmácia não tinha seringas esterilizadas. A outra era já muito longe. A minha avó era administrativa no Centro de Saúde. Em 1977, quase enfermeira na ajuda aos médicos na província. «Dê a mãezinha», disse a minha mãe. E ela deu. A vida é um desastre à espera de acontecer. E eu soube do desastre sentado no banco de suplentes do Campo dos Bargos.

    Mas nós somos feitos de todas as circunstâncias que se nos apresentam. E eu sempre gostei do cheiro a éter — nunca qualquer cirurgia foi uma dor na alma, apenas no corpo. Estive para ser médico por causa disso. E confesso que não fui futebolista porque, mesmo que não fosse manco, não tinha qualquer jeito para jogar à bola. O cheiro a éter misturado com a relva e as palavras do Sr. João apenas me sossegaram. Não haveria melhor sítio para saber o maior segredo da família do que aquele: no banco de suplentes do Campo dos Bargos. A vida é um desastre à espera de acontecer. E a felicidade também, o que é o mesmo.

    Escrever este livro é, por isso, regressar à infância. Não só a esta história tão pessoal, mas também àquelas onde qualquer um dos leitores se pode rever. O futebol é o maior criador de ídolos, como de vilões e heróis. E permite registar na memória de um adulto várias experiências que, se diferentes, são sempre associadas à companhia com que íamos ver o jogo, ao jogador que marcou o golo da vitória, à forma como festejámos a marcação daquele penálti e à forma como chorámos quando o nosso jogador falhou. Ou à entrada nos cativos pelo braço do meu avô, à ida ao bar para trazer as batatas fritas pelo intervalo, à aprendizagem da ciência por outro intervalo: o da diferença, ainda que mínima mas que percebemos existir, no tempo que demorámos a ouvir o som do bombo da claque na bancada oposta e a visão que tivemos do rapaz a bater nele.

    Escrevo-o porque talvez faça sentido, a partir da campanha (quase) magistral do Futebol Clube de Famalicão na época 2019/2020, pensar um bocado que jogo é este e que memórias passadas e presentes são estas. Não tenho a ambição nem a presunção de acrescentar muito à História do desporto mais jogado no mundo. Seria uma tarefa votada ao fracasso desde a primeira hora. Mas posso sempre tentar colocar-me nos ombros de gigantes como Eduardo Galeano, Nelson Rodrigues, Javier Marías, Desmond Morris ou Fernando Assis Pacheco e, serenamente,

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