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Investigação Criminal Sistêmica: por uma abordagem multidimensional
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Investigação Criminal Sistêmica: por uma abordagem multidimensional
E-book522 páginas5 horas

Investigação Criminal Sistêmica: por uma abordagem multidimensional

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Sobre este e-book

A investigação criminal sistêmica parte da proposição de modificação do modo de pensar a atuação do Estado na apuração criminal, com a adoção da ação investigativa orientada pelo tempo, promovendo o rompimento de bordas mutiladoras impostas por nichos do conhecimento e integrando convergências e contradições contidas nos estudos de Bertalanffy, Boyd, Foerster, Gell-Mann, Koestler, Polanyi, Prigogine, entre outros.

A obra refuta o paradigma mecanicista incrustado nas instituições que tem levado ao uso não qualificado de expressões credenciadas, como inteligência e método científico, que justificam um modelo bélico de atuação fortemente enraizado na ideia do confronto Estado versus criminoso, e que forma combatentes no lugar de investigadores.

Em substituição, o autor apresenta a investigação e o próprio crime como sistemas adaptativos complexos, identificando a polícia como um sistema observante que compreende para agir e age para compreender, admitindo a incerteza, a imprevisibilidade e a ação da flecha do tempo, o que exige ressignificação das noções de ética, de estratégia, de cânones e de hierarquia institucionais.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de fev. de 2023
ISBN9786555614978
Investigação Criminal Sistêmica: por uma abordagem multidimensional

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    Investigação Criminal Sistêmica - Élzio Vicente

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    Investigação Criminal Sistêmica

    Copyright © 2023 by Élzio Vicente da Silva

    Copyright © 2023 by Novo Século Editora Ltda.

    Editor:

    Luiz Vasconcelos

    Gerente Editorial:

    Letícia Teófilo

    Assistente Editorial:

    Gabrielly Saraiva

    Preparação:

    Luciene Ribeiro dos Santos de Freitas

    Diagramação:

    Manoela Dourado

    Revisão:

    Paola Sabbag Caputo

    Capa:

    Lucas Luan Durães

    Conversão para ePub:

    Linea Editora

    Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.

    GRUPO NOVO SÉCULO

    Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111

    CEP 06455­-000 – Alphaville Industrial, Barueri – SP – Brasil

    Tel.: (11) 3699­-7107 | www.gruponovoseculo.com.br

    atendimento@gruponovoseculo.com.br

    A perspectiva do autor

    Um livro nunca é obra de uma pessoa, principalmente se o tema em discussão é o reconhecimento da complexidade e do caráter sistêmico da atividade de investigação de crimes. Ele é fruto das vivências, dos estudos, das interações e das múltiplas influências que incidem permanentemente sobre o autor.

    Por isso, adianto que o texto carrega já de largada uma contradição: ele foi redigido por mim em terceira pessoa do singular por um apego objetivista, enquanto a obra admite um compromisso pessoal do investigador e estimula a interação aceleradora da compreensão dos fenômenos, mitigadora dos erros e dos preconceitos, decorrentes dos esforços de uma equipe policial coesa. Por isso, tenho consciência de que deveria tê-lo redigido na primeira pessoa do plural, não com a adoção do chamado plural de modéstia, mas por ser medida de justiça e de correção afirmar que esta obra compila o pensamento de pessoas que entendem a atividade de investigação de maneira distinta, restauradora de sua real finalidade.

    O que escrevo nas linhas a seguir, portanto, é fruto dos aprendizados, erros, acertos e principalmente das discussões e interações com diversos profissionais, particularmente com alguns integrantes da Polícia Federal brasileira. Agradeço sem nomeá-los porque não seria possível atribuir o devido reconhecimento aos que tornaram viável reproduzir em texto o resultado dessa convivência, mas tenho a confiança de que os membros desse grupo sabem quem são. Assim, quando o texto for lido em terceira pessoa do singular, entenda-se que é o nosso modo de pensar que ali está exposto.

    Inegável, também, a influência e a contribuição de diversos autores, cujas fontes registrei nas referências e nas notas de rodapé. Por coerência com o estudo de sistemas adaptativos complexos, a grande dificuldade da obra foi identificar regularidades em ideias tão distintas – muitas vezes com divergências abertas e frontais entre os autores (como entre Gell-Mann, Prigogine e Polanyi, p.ex.) colocadas em suspensão – e tentar apresentá-las em pé, integradas em um conjunto coerente e harmônico. Isso só é possível porque há, de fato, um grau de interiorização das ideias à proporção que elas são lidas, absorvidas e impactam a compreensão e o processos cognitivos necessários para construção de um texto e sua frequente reformulação. Além disso, sempre há o risco de ser injusto, incompleto ou impreciso na apresentação dos pensamentos emanados dessas fontes, muitos delas em outros idiomas – com traduções e equívocos de minha exclusiva responsabilidade – ou de domínios de campos da ciência distintos, desafio que deve ser enfrentado quando há pretensão de realizar uma abordagem transdisciplinar da investigação de crimes sob a ótica da complexidade, invadindo searas, lidando com as contradições e tomando emprestados conceitos de nichos de conhecimento especializado próprios da ciência chamada tradicional.

    Isso implica admitir a minha interpretação dessas ideias e propicia a obtenção de uma nova perspectiva dos textos – e dessas diversas áreas da ciência – a partir dos diferentes filtros aplicados pela minha visão de mundo como investigador observante, sempre provisória e aberta a novas informações que insistem em surgir. Com o intuito de não vilipendiar os pensamentos originais e diminuir a ocorrência de erros, evitei, na medida do possível, fazer citações diretas, optando por transpor a ideia do autor citado com indicação da respectiva fonte bibliográfica em nota de rodapé, possibilitando ao próprio leitor, caso deseje, buscar seu sentido no devido contexto original. Desculpo-me, desde já, se não fui suficientemente atento na abordagem das ideias desses autores ou se inadvertidamente deixei de reconhecer corretamente as fontes.

    Élzio Vicente da Silva

    A compulsão pela intenção universal estabelece a responsabilidade. A tensão desta responsabilidade é tanto maior – sendo as outras coisas iguais – quanto maior for a variedade de alternativas em aberto para a escolha e quanto mais conscienciosa for a pessoa responsável pela decisão. Enquanto as escolhas em questão estão abertas a decisões arbitrárias e egocêntricas, a ânsia pelo universal mantém um esforço construtivo e estreita esta discrição até ao ponto em que o agente que toma a decisão descobre que não o pode fazer de outro modo. A liberdade da pessoa subjetiva fazer como lhe apetece é ultrapassada pela liberdade da pessoa responsável para atuar como deve.

    Michael Polanyi

    Prólogo: o paradoxo do monotremado

    Os fatos não deixam de existir porque são ignorados.

    Aldous Huxley

    Utilizando alguns dos critérios taxonômicos possíveis já empregados por biólogos para agrupar e classificar os diferentes tipos de seres vertebrados, podem ser feitas as distinções entre os animais que vivem na água e retiram oxigênio desse meio por brânquias (os peixes); aqueles cujos filhotes são alimentados com o leite produzido pela genitora (os mamíferos); os que têm penas, asas e botam ovos (as aves); aqueles com a pele recoberta por escamas, que põem ovos e não têm patas ou essas são tão curtas que eles necessitam rastejar (os répteis); e os animais de sangue frio que vivem na água em uma fase inicial, respirando por brânquias e, na fase adulta, passam a respirar por pulmões ou pela pele (os anfíbios). Essa categorização¹ – aqui propositalmente simplificadora – é própria da busca humana por identificar padrões e tentar realizar a redução de fenômenos que são naturalmente complexos a partir de sua própria forma de enxergar o ambiente a sua volta. Essas cinco classes (aves, peixes, mamíferos, répteis, anfíbios) acabaram por orientar os pesquisadores no estudo das espécies de animais do filo chordata e foram aplicadas sem contradições durante bom tempo.

    Imagina-se, entretanto, o espanto dos estudiosos da Inglaterra quando, no final do século XVIII, chegou da longínqua colônia de Nova Gales do Sul – hoje Austrália – a notícia da existência de um ser vivo vertebrado que não se encaixava nessas definições vigentes. Era um ser que botava ovos e possuía bico similar ao de um pato; tinha pelos sobre o corpo e produzia leite para amamentar seus filhotes; mantinha hábitos aquáticos, com patas adaptadas para nado e com um rabo parecido com o de um castor; e que se deslocava em solo de maneira semelhante aos répteis, com similar estrutura óssea. Além disso, cavava galerias na terra como uma toupeira e os machos dessa espécie tinham esporões venenosos nas patas traseiras. Duas amostras mortas desse animal foram enviadas, em 1798, pelo capitão inglês e então governador (1795-1800) de Nova Gales do Sul, John Hunter, e foram recebidas em 1799, em New Castle, no continente europeu, mas estavam sem os órgãos internos, não sendo possível confirmar o que já era alardeado: a existência de um animal com bico de ave, anfíbio na descrição, rastejante como réptil, que botava ovos e ao mesmo tempo produzia leite para suas crias, que contradizia tudo o que sabia a zoologia eurocêntrica até então e que veio a ser posteriormente chamado de ornitorrinco (Ornithorhynchus Anatinus)².

    Charles Darwin ainda não havia enunciado o que veio a ser conhecido como a teoria da evolução e essas amostras foram inicialmente encaradas como uma possível farsa, isto é, uma tentativa dos habitantes nativos da Austrália de enganar os desbravadores que chegavam àquela terra distante vindos da Europa. Assim, com os pesquisadores incrédulos, as primeiras investigações foram focadas na identificação de possíveis fraudes, tentando encontrar, por exemplo, costuras ou colas unindo o bico e o rabo naquele corpo peludo. À medida que alguns cientistas encontravam certas evidências, outros ironizavam ou ridicularizavam tais estudos. Alguns insistiam em classificá-lo dentro dos critérios vigentes, ignorando informações disponíveis. As dúvidas, desconfianças e especulações quanto à veracidade dos dados, com subsequentes verificações de suas mencionadas características ímpares, bem como os esforços voltados à compreensão desse novo animal forçaram os estudiosos a encaixá-lo na taxonomia tradicional europeia como um mamífero³, embora somente em 1832 tenha ocorrido, de fato, a identificação de glândulas produtoras de leite em fêmeas da espécie⁴. Entretanto, o período nebuloso em torno do entendimento do ornitorrinco se estendeu durante várias décadas do século XIX.

    Essa história expõe a dificuldade do ser humano em abandonar ideias arraigadas, aceitar o imprevisível e mudar a forma como enxerga o mundo. É, também, um exemplo bem aproximado do que ocorre na apuração criminal, quando se identifica uma contradição entre o quadro conceitual do investigador e um novo sistema observado para o qual ainda não há uma imagem mental, um rascunho cognitivo ou um modelo conceitual a respeito. Ou quando não há correlação entre um fenômeno até então desconhecido e o paradigma científico vigente – que sempre se entendeu apto a explicar o que existe – e que rege quem observa. Sua visão de mundo não consegue, utilizando os mesmos esquemas e conceitos, compreender e encontrar uma explicação plausível para o novo ou para o desconhecido, o que turba a aparente tranquilidade comumente gerada pela ausência de incoerências num sistema.

    Isso ocorre porque o enfoque mecanicista que atualmente rege a mentalidade do investigador o faz prestigiar a abordagem hiperespecializada, em que o estudo da parte propiciará ao ornitólogo identificar esse novo animal como um pássaro ou um mastozoólogo identificar um mamífero pelo encaixe do que vêem a seus modelos mentais. Ou seja, esses expertos não só creem ser possível compreender o todo pelo estudo e conhecimento que detêm a respeito da parte, como tendem a refutar energicamente qualquer abordagem distinta como não científica, por não se encaixarem nas práticas que se prestam em grande parte a valorizar o próprio nicho especializado de conhecimento, em detrimento da busca de um contato mais próximo com a realidade.

    Exige-se do investigador uma procura permanente por essa aproximação, pois a complexidade não se simplifica pela amputação das incompatibilidades ou pela retirada das partes do contexto, mas pode ser mais rapidamente compreendida pela aplicação de um processo multidimensional recursivo integrador, realizado de maneira que não torne a busca pela verdade um caminho mais doloroso do que a própria ignorância do fenômeno. Essa atividade pressupõe um esforço ativo do investigador tanto para utilizar adequadamente seu quadro de compreensão, como para alterá-lo diante de um conflito entre a experiência e os conceitos empregados.

    Trata-se de reconhecer a existência de um impulso exploratório que empurra o ser humano à busca de compreensão e à rápida adaptação diante do novo e do contraditório, encontrados em situações até então desconhecidas, em um processo de desconstrução e reconstrução, o que só se torna possível quando as pessoas utilizam informações e modificam seus esquemas para desconstruir o todo em seus detalhes (distinção, dissociação, particularização ou exteriorização) e depois os junta novamente em novos arranjos (integração, conjunção, bissociação ou interiorização⁵), demonstrando como ideias e ações aparentemente não compatíveis podem estar correlacionadas. Desse modo, para compreender o mundo, é impositivo permanecer aberto e interagir de muitas maneiras com o ambiente, ou seja, deve-se ter a capacidade de examinar a realidade por vários pontos de vista para obtenção de percepções que habilitem o observante a descrever esse mundo, a prescrever comportamentos ou a prever acontecimentos. Conclui-se, portanto, que o indivíduo ou grupo inapto para investigar é aquele incapaz de abandonar ideias preconcebidas ao enfrentar incertezas, enquanto investigador competente é não só o que consegue construir um quadro interpretativo adequado diante da novidade e da incerteza – leia-se: conjungir e ressignificar um novo sistema –, mas também aquele que consegue utilizá-lo da maneira adequada, modificando e aperfeiçoando-o como uma ferramenta para aprimorar tal quadro e, por consequência, a própria experiência, em uma espiral recursiva que se estende até a consolidação da investigação.

    Assim, no lugar de a polícia atuar com especialistas tentando explicar partes isoladas de um todo, deve atuar com a ideia da diversidade de impulsos, da aquisição de pontos de vista entrecruzados, contextualizados, integradores. Ou seja, no lugar de o Estado dirigir os esforços à compreensão das partes – e ao aumento de sua capacidade para compreendê-las, criando, adquirindo ou aprimorando mecanismos para tal – e seguir formando policiais analistas, especialistas e peritos, fortalecendo a mentalidade laplaciana⁶ na atividade de investigação, deve a instituição policial jamais esquecer que o novo vai surgir e, ao final, para prosperar no alcance de sua finalidade sistêmica, terá de reconhecer o conceito que emerge de múltiplas perspectivas integradoras, cambiando, inclusive, sua forma de entender o mundo para identificar o ornitorrinco que teima em aparecer.


    1 Nota do autor: a exemplo do que se identificará em outros momentos da obra, a menção a temas afetos a determinados ramos do conhecimento é feita de forma alegórica, sem apego acadêmico, apenas como subsídio para avanço na discussão.

    2 MOYAL, 2004.

    3 Nota do autor: após estudos, os zoólogos criaram uma ordem (os monotremados, por causa da única abertura existente para os sistemas excretor, urinário e genital) para incluir o ornitorrinco e, posteriormente, a equidna.

    4 HALL, 1999, p. 211-218.

    5 Nota do autor: essas diversas expressões são utilizadas em contextos similares por Polanyi (1965a, 1965b, 2009, 2013 e 2014), Vasconcellos (2013), Morin (2015) e Koestler (2016) e aqui são apresentadas em superação aos processos de análise e síntese, muito atrelados à ideia atomista de compreensão do todo pelo estudo da parte.

    6 Nota do autor: o matemático francês Pierre Simon Laplace (1749-1827) formalizou o ideal determinista ao propor a viabilidade de se conhecer passado, presente e futuro caso se tivesse uma inteligência suficiente para analisar, em um momento específico, os dados relativos a todas as forças que operam sobre a natureza e à topografia de todos os elementos que a compõem. Vide epígrafe do tópico 3.1. (LAPLACE, 1902).

    A PERSPECTIVA DA OBRA

    Investigação criminal sistêmica: por uma abordagem multidimensional

    É graças aos processos irreversíveis associados à flecha do tempo que a natureza realiza suas estruturas mais delicadas e mais complexas. A vida só é possível num universo longe do equilíbrio.

    Ilya Prigogine

    A presente obra pretende debater o argumento de que o reconhecimento da atividade de investigação, do crime e da própria polícia como sistemas adaptativos complexos, com todas as noções e propriedades identificadas, é o primeiro passo para lidar eficazmente com a complexidade e com os diversos conflitos que surgem quando um delito é cometido ou está em andamento, seja ele praticado por uma pessoa ou por uma organização criminosa. E, como qualquer sistema aberto, complexo e adaptativo, distingue-se a polícia dos demais organismos por possuir finalidades próprias, um código de conduta exclusivo, com a abertura necessária para interagir com outros sistemas, obtendo informações, comunicando-se e trocando insumos para criar, empregar e modificar seus esquemas e cumprir sua missão essencial, mas também com a capacidade de se fechar, para evitar perda de sua identidade e sua desconstrução. Esse distinto paradigma explicita que os conflitos que emergem das necessárias interações não se limitam ao embate entre polícia e autores de crimes, mas também ocorrem dentro do próprio sistema policial e entre este e os demais atores sociais.

    Como sistema, a instituição policial é parte da sociedade, bem como integra um sistema mais amplo, denominado justiça criminal. Mas também é todo, um organismo próprio, que tem uma razão de existir exclusiva e uma forma específica de lidar com as informações obtidas. Esse órgão de Estado, especialmente designado para execução do verbo investigar – no caso do Brasil, uma função inerente à polícia judiciária⁸ –, é um ente autônomo que tem missão previamente definida e que deve assumir seu papel imparcial, ou seja, de organismo que não atua no interesse das partes do sistema de justiça (acusação e defesa), ainda que contribua para o alcance de objetivos de outras instituições.

    Já a investigação criminal sistêmica implica reconhecer o próprio delito e a respectiva atividade de compreensão do fenômeno como sistemas próprios, interativos e interdependentes, identificando no pensamento de Murray Gell-Mann (Nobel em física, 1969) as correlações de seus estudos com a atuação estatal, refutando o isolacionismo, a crença na possibilidade de aquisição da verdade absoluta e a proposição de definir a polícia como um sistema de obtenção e utilização de informação⁹. Implica também refutar o ideal de centralização, de regência por leis universais, aderindo às constatações de Ilya Prigogine (Nobel em química, 1977), que identifica a auto-organização como a regra dos sistemas vivos na natureza, sobrevivendo por atuarem longe do equilíbrio, dissipando energia em processos irreversíveis. Refuta-se, assim, o apego cego ao paradigma newtoniano, que acaba por influenciar, como se verá, a mentalidade de controle rígido e de enfrentamento bélico que impregna cada vez mais a atividade policial, culminando na migração dessa lógica da guerra para a apuração criminal. A abordagem sob o prisma da complexidade traz para a discussão a incerteza, o caos, a multidimensionalidade, a transversalidade e a provisoriedade das asserções feitas pela polícia ao atuar para elucidar um fato ilícito ou para fazer cessar sua ocorrência, bem como para romper subsídios que alimentam as ações de pessoas que transgridem a lei, especialmente as organizações criminosas, violentas ou não. Sob essa ótica, ao reconhecer o crime como um sistema aberto que precisa ser identificado, investigado, descrito, compreendido e cessado, surge a consequente necessidade de a própria atividade de apuração se reconhecer como um sistema próprio. A relação entre esses dois sistemas promove uma interação de causalidade recursiva, em que o investigador molda o que vê quando tenta compreender o fenômeno, enquanto o sistema observado modifica a si e promove alterações no modo de agir do sistema observante.

    Aqui, opta-se por denominar a polícia como um sistema adaptativo complexo observante no lugar de observador porque, embora de mesma origem, tais palavras carregam uma significativa distinção: um observador se pretende passivo, distante, não interferente, enquanto a palavra observante traz também ínsita a ideia de zelo e de atenção ao regulamento, de disciplina – no sentido que será discutido no capítulo 9, em que integrantes do sistema aprendem com ele e para ele –, ao mesmo tempo que, ao tentar compreender, o investigador tem o potencial de gerar mudança naquilo que observa. Vasconcellos¹⁰ atribui a expressão à cibernética de segunda ordem de Foerster¹¹, denominando como tal o sistema que engloba dois outros: o observador e o observado. Sob tal perspectiva, ela apresenta a expressão sistema observante como sinônimo de sistema de observação, em que o observador se observará observando, na mesma linha que Gell-Mann¹², que expõe que esse sistema de obtenção e utilização de informações deve possuir autoconsciência para que se perceba percebendo o sistema observado. Esse conjunto valida o sistema polícia como observante, pois regula, observa, afere e corrige sua própria atuação – leia-se: define como se deve observar – no processo de apuração do crime.

    Enquanto há discussões no mundo jurídico a respeito de critérios ou fórmulas para aferir tipo ou qualidade de prova que seria suficiente para culpabilizar uma pessoa ou enquanto há entendimentos de atores do sistema de justiça que veem a apuração criminal como atividade subsidiária à atuação de outros órgãos, a investigação sistêmica trabalha com a imprescindibilidade de se reconhecer a polícia investigativa como um sistema especificamente voltado para o esclarecimento de crimes, um organismo autônomo, que tem por finalidade identificar a autoria, a materialidade e as circunstâncias do delito e neutralizar o ímpeto de seus autores. Esses objetivos específicos são alcançados por meio da obtenção de uma multiplicidade de perspectivas para rápida compreensão do crime e para promoção de mudanças nas formas como se dão as relações e respectivas interações entre as pessoas ou os grupos delinquentes, impactando os aspectos físicos, mentais e, principalmente, morais do conflito, sempre com enfoque nos fatos em apuração.

    A investigação criminal sistêmica não é apresentada como uma doutrina. Não é um conjunto fechado de princípios e, portanto, fadado a engessar seguidores com protocolos a serem seguidos. Se o leitor procura aqui um manual, dicas, boas práticas, atalhos, roteiros, receitas ou fórmulas, este livro não é recomendado. Ao contrário, entender a própria investigação de crimes sob esse distinto paradigma é reconhecer a necessidade de se manter aberto para os fenômenos que incessantemente emergem em um mundo dinâmico, em que o acaso, a incerteza e a imprevisibilidade fazem parte do enfoque estudado.

    É uma atividade que não estimula o cumprimento de rotinas ou um conjunto de procedimentos, mas que prestigia a formação e a educação do investigador para que aprenda e apreenda o ethos da instituição e adquira um modo de pensar do policial, que o habilite para a atuação técnica e imparcial, capaz de prontamente construir, desconstruir e reconstruir seus esquemas e descrever o sistema observado, além de tomar rápidas e adequadas decisões em ambientes caóticos, diante de ambiguidades e dúvidas, mas sempre consentâneas com a investigação em curso e com os ditames do Estado Democrático de Direito, atuando de fato como um policial estratégico, porque observa, compreende e absorve a hierarquia sistêmica de sua instituição e age conforme suas regras.

    Adere-se aqui ao ensinamento de Michael Polanyi, que refuta a ideia de que o processo de investigação se dá em um contexto de objetividade plena, de forma desapaixonada, como se o pesquisador atuasse como um autômato. De fato, o investigador digno de ser assim chamado não se apega a preconceitos, não impõe sua perspectiva sobre as demais e luta para não se manter na superficialidade do senso comum. Ele possui um compromisso radical, ético, pessoal e inegociável com a própria atividade de investigação e dela não abre mão, pois é guiado pela responsabilidade de perseguir uma verdade oculta¹³. Por isso ele se compromete com as asserções que faz e as utiliza como norte para sua atuação, conduzindo a atividade de investigação como um processo de interiorização dos detalhes que compõem e indicam o sistema observado, a fim de que se eleve como um todo significante, enquanto, para lidar com inconsistências, recursivamente promove a exteriorização das particularidades para uma subsequente reintegração¹⁴.

    Adianta-se que livro contempla uma aparente contradição, que por sua vez é coerente com qualquer discussão que envolva complexidade. Apesar de a obra se mostrar prevalentemente teórica – especialmente em suas duas primeiras partes –, tratando dos pressupostos necessários para avanço na compreensão do escopo (pressupostos; polícia e crime como sistemas em si; fluxo de construção da hipótese e suas bases; proposta sistêmica de comando e controle; planejamento e estratégia policial, p.ex.), o leitor compreenderá que o livro não envolve uma abordagem abstrata ou meramente especulativa. Se houver a paciência necessária para percorrer todo o conteúdo, o leitor encontrará um debate fundamentalmente propositivo, cujo lastro é corroborado pela experiência no emprego da aqui agora denominada ação investigativa orientada pelo tempo, cujas eficiência, proporcionalidade e eficácia têm sido demonstradas em casos concretos, prestigiando o drive exploratório, a celeridade e a transparência da atuação policial, mas sem critérios escolhidos conforme o caso da vez ou com argumentos de conveniência, isto é, trata-se de uma mentalidade aderente ao que se espera do Estado, independentemente da gravidade dos fatos ou do nível socioeconômico das pessoas envolvidas em sua prática, ciente da implacabilidade da flecha do tempo na apuração e reconhecendo que qualquer ação tática só se justifica quando compatibilizada com a finalidade de investigar.

    Será possível compreender, por fim, que há uma via de dupla alimentação na lida com a criminalidade – especialmente a organizada, seja a estruturada por persuasão ou por violência –, em que a legitimidade do Estado para fazer impor seu sistema normativo só é mantida por sua capacidade de demonstrar sua aderência às próprias regras que emana. Assim, a polícia, como instituição que lida em pronta resposta com o principal conflito em tempos de paz, é a primeira responsável por demonstrar essa observância. O câmbio de mentalidade na investigação de crimes aqui proposto é, portanto, um importante passo para consolidar o Estado como ente legítimo e respeitado por sua população.

    Ao lado de reconhecer que há uma equivocada militarização da atividade de investigação, o tema também é especialmente importante porque se identifica que está em curso em alguns países do mundo – Brasil, inclusive – uma espécie de policialização deturpada de diversas instituições, as quais, entretanto, não só possuem finalidades sistêmicas muito distintas, mas principalmente erram ao aderir a um estereótipo bélico/newtoniano da atividade policial que aqui se criticará, em que organizações com missões distintas querem realizar a complexa atividade de apuração de crimes como um instrumento para alcance de suas finalidades, atuando – como uma caricatura do modelo criticado – com enfoque acusatório ou punitivo, transmutando-se em órgãos de investigação para justificar e referendar a própria visão de mundo desses sistemas.

    Pode-se dizer, portanto, que a investigação criminal sistêmica é a realizada com a consciência das mudanças de concepções do mundo¹⁵ em curso e da compreensão desse paradigma da ciência que começou a emergir a partir da primeira metade do século XX, inserindo-se na zona de transição identificada quando se constata que a aplicação do padrão mecanicista atual encontra contradições diante da complexidade dos fenômenos e não se mostra apta ao desenvolvimento da atividade investigativa, enquanto reconhece que o paradigma sistêmico, embora ainda não recepcionado por nichos da comunidade científica, é o mais aderente aos ditames de um Estado Democrático de Direito e ao ideal de atuação imparcial do órgão incumbido da investigação criminal.


    7 PRIGOGINE, 2011, p. 30.

    8 Nota do autor: expressão extraída do artigo 144 da Constituição Federal, apresentando-a como órgão incumbido de apurar infrações penais e respectiva autoria.

    9 Nota do autor: de Information Gathering and Utilizing System (IGUS). GELL-MANN e HARTLE, 2012.

    10 VASCONCELLOS, 2013, p. 143.

    11 FOERSTER, 1984.

    12 GELL-MANN, 1994a, p. 155.

    13 POLANYI, 2009.

    14 POLANYI, 2009, p. 17.

    15 KUHN, 1998, p. 145.

    PARTE I

    INVESTIGAÇÃO CRIMINAL SISTÊMICA:

    OS PRESSUPOSTOS

    CAPÍTULO 1

    1. INTRODUÇÃO

    Os proponentes de um novo sistema apenas podem convencer sua audiência começando por ganhar a sua simpatia intelectual para uma nova doutrina que ainda não compreenderam. Aqueles que ouvem com simpatia descobrirão, por si próprios, o que nunca teriam compreendido de outra forma. Uma tal aceitação é um processo heurístico, um ato de automodificação, e nessa medida é uma conversão. Produz discípulos que formam uma escola, cujos membros estão, por enquanto, separados por um hiato lógico em relação aos que estão fora. Pensam diferente, falam uma linguagem diferente, vivem num mundo diferente¹⁶.

    Michael Polanyi

    O objetivo deste livro é debater e expor como a polícia, como sistema adaptativo complexo e auto-organizado, pode ser eficaz e prosperar na apuração de crimes e nos conflitos com seus autores (sistemas em si), por meio de uma atuação estatal reconhecedora da complexidade desses fenômenos e executada de forma célere, ágil, transparente e imparcial. Para tanto, serão confrontados os estudos de diversos autores, especialmente Boyd, Foerster, Gell-Mann, Koestler, Polanyi e Prigogine, para, sob a perspectiva da experiência policial e da visão de mundo deste subscritor, abordar um distinto modo de pensar a apuração criminal – sintetizado em um fluxo de obtenção de informações, competição de esquemas, enunciação da hipótese e confrontação – promovendo uma apropriação metafórica dos conceitos de distintas áreas para lastrear as proposições aqui lançadas.

    Trata-se de uma abordagem sistêmica e, ao mesmo tempo, estratégica e tática da atuação da polícia diante do conflito humano denominado crime, nas formas que surgem na investigação, ou seja, tanto entendido o conflito originado da prática de um fato definido em uma norma penal com a subsequente investigação criminal; como os conflitos humanos decorrentes do efetivo choque gerado pela atividade estatal de enfrentamento, compreensão e desestruturação do que se supõe ser a atuação de pessoa ou grupo com intenção criminosa, além dos dissensos que emergem dentro da própria instituição policial e entre ela e outros atores públicos ou privados que ora cooperam, ora competem no desenvolvimento da atividade de investigação.

    Há poucos estudos afetos à temática da investigação que se apartam da abordagem jurídica, da parte meramente procedimental, da busca da pureza acadêmica ou, em outro extremo, da parte tático-policial ostensiva, que representa uma mínima parcela da atuação da instituição na apuração de crimes, a qual, ao contrário, é eminentemente técnica e discreta. Nesse aspecto, o enfoque desta obra se contrapõe ao quadro predominante – e ainda vigente – de que o fenômeno crime, como o maior conflito humano em tempos de paz, deve ser reprimido por meio da lógica do enfrentamento bélico ou do que Rogers¹⁷ define como o paradigma do controle com recursos militares, caracterizado pela tentativa de impor domínio sobre dissensos sociais com emprego de ações militares padronizadas. A obra pretende demonstrar a baixa eficácia dessa prática e que essa mentalidade é inadequada para emprego na investigação, que possui finalidade muito distinta dos objetivos de instituições com enraizamento na cultura militar tradicional. Em outra vertente, adianta-se que este livro não contém uma doutrina, mas a apresentação do core de um sistema de apuração aberto, adaptável e, portanto, lastreado no desenvolvimento de uma mentalidade que ensine ao policial como pensar sistemicamente, em vez de apresentar rotinas e procedimentos rígidos, que estimulam o que fazer ou como agir diante de cada situação, como se isso fosse possível.

    A partir desse direcionamento, reforçando-se que a polícia, em sua atividade de investigação, tem finalidades próprias – a identificação de autoria, da materialidade e das circunstâncias do crime e a cessação da atividade criminosa e ruptura dos canais que a sustentam –, impõe-se tratar da atuação policial como uma atividade autônoma, isto é, não instrumental, e de caráter paradoxal, pois ao mesmo tempo que que realiza diversos atos de intrusão na esfera íntima de pessoas que se encontram em torno do fato criminoso (suposto autor, colaboradores, testemunhas, vítimas, familiares, vizinhos), deve buscar sempre a obtenção de uma vitória moral no conflito, atuando com a inarredável necessidade de ser reconhecida como a primeira garantidora dos direitos dos envolvidos, mesmo perante integrantes de organizações criminosas violentas, premissa essencial à manutenção da legitimidade do discurso de observância da lei utilizado pelo Estado diante de sua população.

    Para atingir esses objetivos aparentemente distintos, torna-se necessário substituir não só o mencionado modelo vigente do confronto, da lógica bélica, pela atuação incisiva, mas ao mesmo tempo imparcial, técnica, célere e compromissada do investigador, equidistante das partes do processo, inserindo nessa atividade estatal o reconhecimento da busca da transdisciplinaridade inerente à produção científica contemporânea, resultando em um mecanismo mitigador do atrito usualmente gerado pela adoção de raciocínio de embate polarizado entre forças, trazido do mundo militar clausewitziano. Mais: quando a investigação se direciona para acompanhar a suposta ocorrência de crime que se protrai no tempo¹⁸, ou empregando quaisquer outras técnicas voltadas à elucidação dos fatos e à compreensão do modo de atuação, torna-se imprescindível modificar a cultura do confronto – focada apenas no aspecto físico – por métodos que promovam a neutralização da atuação e a ruptura da estrutura ilícita, com emprego de ações que possibilitem a desconexão voluntária de integrantes do grupo criminoso de seu sistema original, inclusive com obtenção de sua cooperação com o Estado (por meio de confissão, arrependimento eficaz, colaboração etc.).

    Com foco nessa finalidade, há necessidade de acrescer aos já conhecidos aspectos estratégicos, operacionais e táticos a observância das dimensões físicas, mentais e morais¹⁹ do conflito, reconhecendo que a abordagem sistêmica a esse fenômeno – o surgimento, a manutenção e a atuação de associações criminosas – não se restringe a uma relação binária, mas trata de um conflito entre múltiplos sistemas, entre eles o Estado e os criminosos, todos interagindo, influenciando e sendo influenciados, interdependentes e interconectados com o sistema maior, que é a sociedade.

    Como sistêmica, entende-se a abordagem da atividade de investigação criminal dentro da compreensão da complexidade apresentada por Gell-Mann, Prigogine e Morin e do que Vasconcellos denomina como o novo paradigma da ciência²⁰, expressão aqui empregada em contraposição à forma como a polícia hegemonicamente aplica a ciência na atividade de enfrentamento da criminalidade – isto é, de maneira mecanicista, reducionista, reversível e determinista – que repercute em uma atuação com mentalidade militar tradicional, bélica, com suas respectivas consequências, polarizando esse tipo de conflito humano com a visão preconcebida de que o fenômeno se limita à disputa polícia versus criminoso.

    A apuração criminal gera atritos e consequências que escapam à lógica newtoniana de causa e consequência, de disputa opositiva, de vetores lineares antagônicos, em que ganha o mais forte, o mais preparado, o que detém mais homens ou mulheres, mais tecnologia ou o que possui mais inteligência. Trata-se, como se constatará ao longo da leitura, de um embate com influência de inúmeras variáveis, de previsibilidade limitada, permeado de incertezas e riscos, caótico, com diversos atores operando, com métodos violentos ou persuasivos, de natureza não linear, expansionista e irreversível. É

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