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Memórias de um rabino Secular Humanista
Memórias de um rabino Secular Humanista
Memórias de um rabino Secular Humanista
E-book574 páginas8 horas

Memórias de um rabino Secular Humanista

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Sobre este e-book

Em Memórias de um rabino secular humanista, o autor Jayme Fucs Bar nos apresenta passagens de sua vida marcada pela identidade judaica.
Essas memórias misturam-se aos relatos de pensadores e movimentos sociais e judaicos que influenciaram sua visão da história e seu modo de ser e viver: um judeu humanista.
Numa narrativa envolvente, o livro traz, ainda, estudos e argumentos que convidam à reflexão sobre povo tão singular. Jayme Fucs Bar, com lirismo e erudição, coloca em segundo plano o fervor religioso e conduz o leitor interessado a compreender melhor como vive um rabino secular humanista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de fev. de 2023
ISBN9786589905523
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    Pré-visualização do livro

    Memórias de um rabino Secular Humanista - Jayme Fucs Bar

    Agradecimentos

    Agradeço pela luz que recebi em um determinado momento de minha vida, que iluminou minha alma e me ajudou a sair da escuridão em que me encontrava. Luz que me fez entender a sabedoria e a complexidade desse óbvio que é a vida, bem definido numa das passagens do livro do Zohar, mas que temos uma grande dificuldade de entender e assimilar.

    As coisas existem. Eu existo. Estou vivo. A vida é a não morte. Escuridão não é luz. Mas existe aquilo que é maior do que eu.

    Este livro de memórias de vida, relatos e reflexões judaicas humanistas é dedicado a todos aqueles que desejam despertar uma luz desconhecida no seu interior.

    Prefácio

    O livro vivo

    Conheci o Rabino Jayme Fucs Bar pessoalmente em uma situação peculiar, descrita nesta obra. O presidente Lula encontrava-se encarcerado em Curitiba, e um de seus pedidos era o de receber visitas de líderes espirituais de todos os credos. Quis o destino em sua infinita complexidade que o líder judeu a visitar o presidente fosse justamente o Rabino Jayme Fucs, que viria de Israel para esse evento, do qual participei como membro da comitiva que o receberia e o conduziria à sede da Polícia Federal em Curitiba e lá aguardaria aquela longuíssima hora à qual se sucederia um dos momentos mais emocionantes que vivi e que mantenho tão vivo em minha memória. O Rabino Jayme não conhecia pessoalmente o presidente Lula, embora certamente esteja entre os judeus com identidade política muito próxima à dele. E veio então o relato da conversa entre os dois. Éramos 35 na comitiva. Não me lembro de ter visto um único olho seco entre os ali 36 homens e mulheres, um a relatar e 35 a ouvir a voz e as palavras de um homem que certamente se agigantou diante da experiência de compartilhar àquela hora com o grande líder. Posso sim fazer essa afirmação, pois a emoção do Rabino Fucs e a profundidade de suas palavras deixavam claro que um grande homem saiu dali maior. E fui testemunha privilegiada.

    O Rabino Jayme Fucs ora nos apresenta um livro de memórias que em muitos aspectos lembra uma estrutura bíblica. Fala de origens (Gênesis), de travessias (Êxodo), de iluminações (Profetas) e segue com textos de histórias, lendas, sabedoria, cultura e, sobretudo, uma capacidade de descrever a própria trajetória como um processo de construção de si mesmo, como caberia a qualquer autobiografia, na qual vastos históricos e heranças dispersos pelo mundo em atuais 18 milhões de almas, aproximadamente, vão se posicionando, se encaixando, se sedimentando, o que é narrado de forma rica, intensa e corajosa, que poderia sem dificuldade ser mesmo confundido com alguma das personalidades daqueles tempos, especialmente aquelas ricas em dúvidas, contradições, dores, prazeres e glórias que cristalizam a noção da vida e do ser. E não poderia ser diferente. Penso não haver judeu que não traga em seu inconsciente os arquétipos bíblicos e as mitologias que atavicamente moldam as personalidades e as provocam a desafiar o destino e tudo aquilo que é estabelecido, reservando aos mais ousados a verdadeira missão de registrar suas experiências e transmiti-las, se possível em vida, para inspiração e deleite sobre a força da vida e da condição humana.

    Ser judeu é uma experiência que o destino me reservou e sou grato a D’us por isso, muito mais pelos desafios que esta condição me impôs do que por qualquer privilégio improvável numa condição de absoluta minoria no mundo e em meu país, o Brasil. Embora não tenha nascido em uma família seguidora dos rigores litúrgicos e de costumes, ainda assim pude contemplar a vasta herança espiritual, filosófica e social do judaísmo e, em certos momentos, derivados de minha paixão pela música, integrar momentos intensos participando do coral de diversas sinagogas e eventos. Assim, considero-me um judeu secular e, nessa condição, muito exposto aos conflitos cotidianos entre nossas heranças e a dura realidade de viver em um país complexo que tem dificuldades de encontrar seus caminhos. Nessa viagem conturbada, muitas vezes faltam-nos bússolas que consigam nos orientar por uma linguagem sólida e que ganhe a confiabilidade por representar a aglutinação das experiências da vida secular às experiências da identidade judaica deglutida e digerida a cada passo de uma vida intensa e potente como é a do Rabino Jayme Fucs Bar.

    Tal qual toda obra escrita por grandes homens, trata-se de universalismo, antes de qualquer coisa. Mas como escrevi aqui, uma bússola preciosa para quem tem interesse — ou mesmo necessidade — de uma visão do judaísmo derivada e cuidadosamente destilada da experiência de uma pessoa, sem qualquer prejuízo das riquezas da liturgia, da simbologia, das inspirações e das forças da fé, reforçadas e verdadeiramente decoradas por um estofo cultural raro na atualidade.

    Esta obra fala do judeu no mundo de hoje, que é constantemente desafiado e desafiador em tempos descritos pelo sociólogo Zygmunt Bauman como modernidade líquida onde tudo está passível de ser desfeito e de literalmente escorrer pelas nossas mãos dando lugar a um vazio que será preenchido por outro líquido.

    Que os livros — tão prezados pelo judaísmo em todos os tempos — possam permanecer como argamassas a manter nossos tijolos unidos e nossos edifícios humanos em pé. Este certamente é um tratado sobre a engenharia que nos vem faltando.

    Nelson Nisenbaum²


    2 Médico especialista em Clínica Médica e Psiquiatria Clínica, escritor e ativista. Formado na Santa Casa de São Paulo, em 1984, trabalhou no SUS, no município de São Bernardo do Campo, por 25 anos.

    CAPÍTULO 1

    O HOMEM ALÉM DO RABINO

    Minha família

    Nasci em 1958, na cidade do Rio de Janeiro, em São Cristóvão. Minha mãe vem de uma família judia masorti³ (tradicionalista) de imigrantes que saíram de Bilgoraj, uma pequena aldeia judaica da Polônia. A família do meu pai era uma confusão: tanto ele quanto meu avô eram comunistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, portanto, ateístas! Porém, minha avó Cecília, a mãe do meu pai, era católica praticante e a minha tia Nelly, irmã do meu pai, era da umbanda.

    Nesta realidade, entre judeus, ateístas, uma cristã praticante e uma umbandista, passei parte de minha infância nos subúrbios do Rio de Janeiro. De um lado, fiz meu brit milá⁴ e fui circuncisado como judeu. Do outro, fui batizado por minha avó Cecília, de forma clandestina, na Igreja do Bonfim, quando eu tinha mais ou menos 3 anos de idade.

    Sem meus pais saberem, minha avó me levava à igreja para fortalecer minha educação cristã, e sempre me dizia, bem do jeito dela: Você tinha que ser judeu mesmo!, porque quando me apresentava às imagens dos santos, como São Jorge, São Cristóvão, Santo Antônio, Maria e o próprio Jesus, eu chorava e fazia escândalo, assustando até o padre, dizendo que esses santos me davam medo!

    O curioso é que ela me disse que São João Batista era o único santo do qual eu não tinha medo e até gostava.

    Pelos meus berros e resistências aos santos da igreja, minha avó Cecília chegou à conclusão de que Esse menino não tem jeito, vai ser judeu mesmo e desistiu de me catequizar no cristianismo. Ela jogou a toalha e aceitou resignada que eu recebesse a educação judaica da família da minha mãe.

    Eu não me lembrava dessa história de ter sido batizado por minha avó na igreja quando tinha por volta dos 3 anos. Somente soube desses fatos quando já tinha 33 anos de idade. Não sei por que minha avó Cecília decidiu me contar, com o jeito especial dela e na forma sempre cheia de mistério que tinha quando queria dizer algo muito importante! Olhando direto nos meus olhos e apontando o dedo para mim, ela disse: Estava escrito que você tinha que ser judeu!. Achei estranha a forma com que ela me disse isso. Foi então que minha avó Cecília pediu que eu jurasse guardar um segredo absoluto até ela morrer.

    Não sei explicar em palavras o que senti naquele momento. Pensava que ela iria me revelar que fui adotado, ou que me acharam dentro de uma cesta na porta de casa, sei lá! Mas a minha surpresa foi ouvir que havia me batizado como católico na Igreja do Bonfim. Fiquei paralisado, pois, na forma de entender da minha avó, isso seria uma forma de desfazer o judaísmo no qual eu estava sendo educado. Por isso, eu perguntei: Vó, por que você fez isso?. A minha surpresa foi a resposta dela: Ser judeu é perigoso!. De imediato, abracei minha avó, e juntos choramos, sem dizer uma palavra, mas naquele momento nenhuma palavra era necessária. Estava claro que ela fez isso para me proteger.

    Esse foi meu último encontro com minha avó Cecília, que ocorreu em 1991. Eu já era casado, tinha dois filhos e morava em Israel como judeu convicto. Vó Cecília me contou o segredo e veio a falecer um ano depois desse encontro.

    Esse segredo ficou marcado na minha vida e, com o tempo, me fez despertar e reavivar as memórias dos anos em que fui criado por ela. Eu vivi com minha avó Cecília desde que nasci até meus 6 anos de idade, quando fui tirado dela e colocado no colégio interno. Depois disso, sempre que podia sair do colégio para passar as férias escolares eu ficava com minha avó. Era de que mais gostava nos tempos difíceis da minha infância! Eu sempre amei essa avó e sempre vou amá-la. Ela é a pessoa mais importante na minha vida. Eu vivia grudado nela, avó Cecília era a pessoa que me fazia sentir protegido. Era como se eu fosse seu neto e seu filho ao mesmo tempo. Com ela, eu sempre me sentia o mais amado de todos.

    Eu vivenciei e escutei coisas de minha avó que nem os seus filhos sabem, coisas que eles nunca viram ou souberam. Eu estava com ela todos os dias, o tempo todo, saía com ela para as compras na rua, ajudava a cozinhar e a cultivar algumas mudas de árvores no seu pequeno quintal. Quando cresciam, ia com minha avó plantar as mudas na Quinta da Boa Vista — inclusive, acredito que muitas das árvores que existem hoje no parque foram plantadas clandestinamente por minha avó com minha ajuda.

    Nesse meio tempo, presenciei certos segredos que na época eu não entendia, como quando toda sexta-feira minha avó acendia uma vela numa candeia dentro de uma lata com azeite e colocava ao lado um tipo de vinho, que ela mesma fazia somente para essas ocasiões. Eu perguntava à minha avó o que era e ela me respondia do seu jeito: Vela e vinho para todos os santos. Vó Cecília também me dizia que não era bom comer carne de porco porque é carne podre. Ela me levava à igreja e, sempre antes de entrar, recomendava: Não confie nunca nos padres, é tudo falso e mentiroso.

    Lembro-me de que um pobre vendedor ambulante judeu, o senhor Jacó, sempre vinha vender calcinha e sutiã de porta em porta na rua da minha avó. Ela sempre o convidava para entrar e tomar café com bolo. Ele era um imigrante, não sei de onde, e falava com um sotaque que só minha avó conseguia entender. Ela comprava os produtos dele para ajudá-lo, pagando à prestação. Nesses momentos, minha avó sempre comentava: Tenho pena dos judeus, gente da nação, sempre perseguidos.

    Minha avó Cecília tinha outro lado: o de fazer maldição a quem maltratava outra pessoa ou até mesmo animais. Ela não usava remédios de farmácia e tinha os segredos das ervas que curam. Na vizinhança, as pessoas tinham medo dela e algumas até achavam que ela era bruxa ou feiticeira, porque minha avó tinha jogado suas pragas em alguns vizinhos e o que ela disse acabou acontecendo. Vó Cecília falava uma frase mais ou menos assim: Palavra que você fala com fé pode matar e pode curar uma pessoa.

    Com o tempo e com a maturidade, descobri que minha avó era descendente de cristãos-novos, uma bnei anussim⁵ que havia perdido totalmente o elo com o judaísmo. Porém, é incrível como esses costumes foram passados entre as mulheres de geração a geração. Em 2015, fui em busca de resgatar esse legado oculto de minha avó Cecília. Não só achei a aldeia dos meus avós, a Vila Nova de Foz Côa e a Vila Flor, como também encontrei parte da família, que são os primos e as primas que vivem em Portugal.

    Meu nome no Brasil é Jayme Luiz Fucs Barboza, mas sou também membro da família Nozes Carvalho da Fonseca e da família Pereira, de Almendra, em Portugal.

    O menino dos passarinhos biquinhos-de-lacre

    Eu mudava de assunto sempre que alguém perguntava algo sobre a minha infância, porque nunca gostei de falar dessa época, nem mesmo de lembrá-la. Essa é uma barreira que nunca consegui romper durante todos esses anos. As únicas pessoas em toda a minha vida com quem compartilhei minhas memórias sobre esse período foram a Lu, na minha juventude, e a Orpa, com quem me casei e com quem tive meus filhos. Duas mulheres: só elas conseguiram escavar dentro de mim muitas memórias das quais nunca gostei de lembrar.

    O tempo, porém, também me trouxe algumas surpresas: Lu desapareceu de minha vida. Orpa faleceu em 2012. Fiquei órfão dessas duas mulheres, minhas amantes e grandes conselheiras. Talvez por isso tenha necessidade de escrever esta história. Também cheguei a contar alguns episódios aos meus filhos, mas muitas coisas ainda ficarão guardadas comigo para o resto da vida!

    Estive num colégio interno da comunidade judaica dos 7 aos 16 anos de idade.

    Em resumo: eu odiava aquele lugar!

    Contudo, tenho algumas recordações desse período traumático que foram positivas em minha vida. Quero contar sobre os encontros que tive com um jovem psicólogo que estava atuando no seu primeiro trabalho no colégio interno. Ele tinha 24 anos e eu, 14.

    No colégio interno, o psicólogo era parte do sistema: você só ia ver o psicólogo se tinha feito algum tipo de bagunça e desordem, isso depois de ter ficado boas horas preso de castigo em um armário escuro no escritório do diretor. O psicólogo era solicitado para tratar de gente maluca e de desordeiros. Logicamente, não havia essa ideia de opção e escolha! Você era obrigado a se encontrar com o psicólogo de qualquer forma, caso contrário voltava para dentro do armário escuro!

    Nesse dia, eu tinha aprontado das minhas e, depois das pancadas que levei na cara e do castigo dentro do temido armário escuro, o diretor me deu a ordem de ir ao psicólogo toda semana. Para nós do colégio interno, ir ao psicólogo era o mesmo que receber a declaração oficial de que você é um demente! No entanto, entre a opção de receber o castigo do armário escuro e ir ao psicólogo, era bem melhor carregar o título de demente. Acredite, não faltavam dementes naquela escola, principalmente na diretoria.

    Lá fui eu me encontrar com o psicólogo. No primeiro encontro, não falei nada. Isso era parte da estratégia: entrar e ficar calado, marcar ponto e ser liberado. Isso deve ter acontecido várias vezes, se não me falha a memória. O importante é que lembro que o rapaz — o psicólogo — tinha a maior paciência comigo, algo incomum naquele lugar. Em vez de eu falar, era ele quem falava e sua fala agradava, cativava e me arrancava um sorriso!

    Comecei a me sentir mais seguro e confiante. Um dia perguntei a ele: Você quer me ajudar?. E ele logicamente respondeu que sim! Eu exclamei: Então me tira desse lugar!. Ele com certeza não tinha uma resposta para esse difícil desafio, mas senti que me escutou e compreendeu perfeitamente a minha agonia. No final, ele entendeu o meu recado.

    Hoje fico imaginando um rapaz de 24 anos recém-formado tendo que enfrentar uma barra dessas! A partir desse momento, ele finalmente conseguiu romper a barreira, e eu ficava toda a semana esperando nosso encontro. O psicólogo, mesmo recém-formado, era meu anjo da guarda, pois comprou briga na escola por mim e por todos os outros. O psicólogo, na sua ingenuidade, procurou consertar o que não tinha mais conserto.

    E consequentemente teve que terminar seus serviços no colégio por causa disso.

    O nome desse psicólogo é Paulo Blank, hoje um grande psicanalista no Rio de Janeiro.

    Reencontrei Paulo depois que já tinha saído do colégio interno. Eu tinha 22 anos, naquele dia estava na praia de Ipanema, num domingo ensolarado, cheio de amor, sentado ao lado da minha bela namorada, e quando vi o Paulo, o meu psicólogo, passando junto de mim com uma mulher linda, eu o abordei e tentei conversar com ele, mas acho que estava tão compenetrado na beleza da namorada que acabou não dando muita atenção para mim...

    Nosso segundo reencontro foi em 1996, quando fui ao Brasil, a trabalho, pela organização Hashomer Hatzair,⁶ na comunidade judaica. Paulo estava nesse encontro da Congregação Judaica do Brasil, em que eu fiz uma intervenção nos debates, mas nada de importante. Logo depois da reunião, me aproximei dele e trocamos algumas palavras, percebi que ele não me reconheceu.

    Em todos esses anos, acompanhei de Israel a trajetória de Paulo Blank no Brasil. Por vezes, as crônicas judaicas que ele escrevia chegavam até mim. Depois, ele mesmo se tornou membro do site Judaísmo Humanista, que criei no Brasil, mas mesmo assim nunca percebeu quem eu era! Mas... A vida sempre nos traz grandes surpresas, como sempre falava minha amada Orpa. Procurei não deixar de estar conectado com o Brasil durante todos esses anos em que vivi em Israel. Na verdade, busco ir ao Brasil para ver meus pais e matar as saudades dos amigos e amigas.

    Em 2008, eu tinha agendado um encontro sobre o tema do judaísmo humanista na sede do Hashomer Hatzair em Botafogo. Paulo estava muito interessado nesse tema e, por intermédio de um amigo, conseguiu meu telefone. Ele me ligou dizendo que gostaria muito de assistir à palestra, mas não poderia estar presente porque tinha outros compromissos. Mesmo assim, ele me pediu muito que nos encontrássemos em sua casa, para bater um papo sobre o judaísmo humanista e também para me conhecer.

    Eu disse a ele: Paulo, você me conhece, mas talvez não se lembre de mim. Deixei o Paulo supercurioso! Ele queria me arrancar uma pista de qualquer jeito, porém o contive: Calma, quando a gente se encontrar você vai descobrir!.

    Eram 19 h da noite. Peguei o ônibus em Copacabana e saltei em Botafogo, na frente do Cemitério de São João Batista. Fui caminhando em direção ao endereço que anotei em minha agenda. Encontrei rapidamente a rua e a casa do Paulo, bati na porta e ele mesmo veio me atender.

    Assim que ele abriu a porta e me viu, fui dizendo: Paulo, sou eu, o Jayminho do Lar das Crianças! Você foi o meu psicólogo!.

    Ele abriu os olhos e me respondeu com uma frase que me fez entender que ele não somente se recordava de mim, mas também se lembrava de nossas conversas: Jayminho! O menino dos passarinhos biquinhos-de-lacre!.

    Então, ele começou a chorar! Um choro profundo de emoção, um choro que ele não conseguia controlar! Abraçamo-nos e sentamos juntos por várias horas, conversamos muito e colocamos a conversa em dia; afinal, Paulo e eu tínhamos muitos a falar sobre nossas vidas um para o outro depois de tantos anos!

    Já era tarde quando me despedi dele. Na porta, Paulo olhava para mim como se estivesse querendo dizer alguma coisa. Com toda a sua astúcia profissional e sua sensibilidade humana, me disse uma frase inesquecível: Jayminho, que maravilha! Você conseguiu abrir as gaiolas e libertar os seus biquinhos-de-lacre!.

    Pensei muito e penso até hoje nessa frase brilhante do Paulo!

    Ele tem razão!

    É verdade! Eu consegui me libertar da gaiola, junto com os meus biquinhos-de-lacre!

    Eu sou um homem livre!

    Meu segredo com uma polaca da Praça Onze

    Minha mãe tem um nome muito curioso: ela se chama Hinde Laie, nome nada comum no Brasil. Ela me contou que recebeu esse nome em homenagem à sua madrinha, que era de Bilgoraj, a mesma cidade em que meus avós viviam na Polônia. A madrinha de minha mãe ajudava muito a família dos meus avós, que eram imigrantes pobres que viviam no bairro iídiche⁷ da Praça Onze, no Rio de Janeiro.

    Meu avô, Chaim Fuksman, era doente de tuberculose e morreu alguns anos depois do nascimento de minha mãe. A minha avó, Necha Fuksman, tinha diabetes e, no final, além de ficar viúva, acabou ficando cega. Era estranho ter ouvido várias vezes, quando eu era garoto, meu pai reclamar do fato de minha mãe não manter contato com a madrinha dela, que, algumas vezes, a procurou para trazer presentes. Mesmo assim, a minha mãe sempre respondia ao meu pai que tinha vergonha, porque sua madrinha trabalhava na zona na Praça Onze.

    Nunca entendi essa história muito bem, enquanto ainda era pequeno; mas, à medida que eu crescia, tudo foi fazendo sentido, como um quebra-cabeça que fui montando aos poucos, com o passar dos anos!

    No meu tempo de adolescente, no meio em que eu vivia, os rapazes sentiam a necessidade de mostrar a sua masculinidade perdendo a virgindade, e isso geralmente vinha de uma pressão social do grupo dos rapazes mais velhos ou, em muitos casos, até do próprio pai, dos tios ou da família. Lembro que era comum, em certos casos, que o tio ou muitas vezes o próprio pai levasse o filho para um prostíbulo logo depois do seu bar mitzá.

    Essa realidade também se repetiu comigo, quando eu tinha uns 15 anos. Um dos rapazes mais velhos me chamou, com outro amigo da mesma idade que eu, para irmos ao prostíbulo perder a virgindade. Naquele tempo isso era quase uma ordem, pois se eu não aceitasse, era xingado de tudo o que vocês possam imaginar.

    Eu não tinha como dizer não em uma situação daquelas, mesmo com todo o medo e com todos os receios que sempre aparecem em momentos assim, pois, na verdade, éramos nada mais que crianças, adolescentes! E lá fomos nós três para o prostíbulo na Praça Onze, que ficava por trás da Rua do Mangue. Até hoje eu me lembro muito bem da casa. Ela tinha uma fachada azul e, diferente do que imaginei, era muito bem organizada e limpa por dentro, só a iluminação que era pouca, talvez para criar um ambiente de certa intimidade.

    Logo ao entrar, fomos convidados a nos sentar na sala de espera. Ali, víamos muitas mulheres e, na grande maioria, homens adultos. As minhas pernas tremiam! Eu sentia como se tivesse que provar algo a alguém, mas que não estava preparado para isso. A pressão social, porém, era tão grande que valia a pena tentar terminar toda aquela aflição o mais rápido o possível.

    Meu amigo e eu, ambos virgens, não conseguíamos trocar uma só palavra. Na verdade, estávamos apavorados naquela situação nada confortável. De repente, aparece em nossa frente uma senhora de idade avançada, cabelos muito brancos, olhos azuis como bolas de gude, as mesmas bolinhas com que eu ainda brincava naquela época. Ela tinha o rosto bem redondo e se vestia com um vestido longo bordado muito bonito. A senhora se aproximou da gente e perguntou, com certo sotaque de estrangeiro: É a primeira vez?.

    Nenhuma resposta saiu da minha boca, mas fiz que sim com um movimento da cabeça. Contudo, alguma coisa aconteceu nesse encontro, porque ela olhou para mim e viu que eu tinha uma corrente com uma Estrela de David no pescoço, a mesma que eu ganhei de presente no meu bar mitzá. Naquele instante, ela parou, fixou os olhos azuis em mim e perguntou, ainda com o seu sotaque carregado: Você é iídiche?.

    Eu congelei, mas dessa vez as palavras saíram de minha boca: Sim, sou judeu!.

    Olhei em sua direção e vi que ela usava uma grande Estrela de David de ouro ao redor do pescoço. Então, eu perguntei: Você é judia?.

    Ela me respondeu com firmeza: Me orgulho de ser judia!.

    Vi no seu rosto todo o constrangimento dessa situação, mas ela logo contornou tudo isso e disse: Vou arranjar umas moças que irão cuidar bem de vocês.

    Ela se foi e logo apareceram duas mulheres, que nos levaram para dentro de um quarto, onde tudo terminou muito rápido! Na saída, a senhora estava à minha espera. Parece que a curiosidade que ela tinha sobre mim era grande. Então ela me abordou: Qual é o seu nome?.

    Eu respondi: Jayme Fucs.

    Quem é sua mãe?

    Eu disse: Lea Fucs.

    Quando olhei para seu rosto, vi que a senhora havia mudado de cor. Mais uma vez, ela interveio: Sua mãe se chama Hinde Laie?.

    Eu, surpreendido, respondi: Sim, esse é o nome verdadeiro de minha mãe.

    Ela sorriu, meio encabulada: "Meu nome também é Hinde Laie e eu sou a madrinha de sua mãe. Fui eu que mandei essa Estrela de David que você tem no pescoço para o Lar das Crianças como presente do seu bar mitzá!".

    A senhora Hinde Laie, a dona do prostíbulo, me abraçou com força, como se fosse parte da minha família. Logo depois, porém, ela me segurou pelos ombros firmemente e pediu que lhe prometesse uma coisa: Jayminho, te peço que jamais conte para sua mãe que esteve aqui e que não retorne jamais, por favor!.

    Ela me abraçou, me deu um beijo na bochecha, como se fosse minha avó, e colocou em minhas mãos umas notas de dinheiro enroladas, dizendo: Isso é para você e seus amigos comerem algo.

    De longe, meus amigos olhavam aquela situação sem entender nada, e tão logo me despedi da senhora me aproximei deles, que não demoraram a me perguntar: Você conhece essa senhora, a dona do prostíbulo?.

    Eu não tinha como relatar toda essa história aos meus amigos e respondi simplesmente: Ela é judia e viu que somos judeus, por isso devolveu nosso dinheiro para nós comermos algo. Ela também pediu que nós jamais voltássemos aqui.

    Por muito tempo não entendi muito bem o que aconteceu nesse dia. Somente mais tarde, já adulto, descobri que a madrinha de minha mãe fazia parte da história das jovens judias imigrantes polonesas que se prostituíram ao chegar ao Rio de Janeiro, para logo depois se tornarem donas de prostíbulos. Mesmo com essa situação difícil, escondidas e negadas pela comunidade judaica, jamais deixaram de ser judias: elas não somente criaram sua própria associação, com suas sinagogas e seu cemitério, mas também faziam muitas tzedaká⁹ aos imigrantes judeus pobres que chegaram à Praça Onze, entre eles a família de minha mãe.

    Minha avó, Necha Fuksman, fez muito bem em homenagear e honrar o nome dessa grande mulher: Hinde Laie!

    Deus no céu e Prestes na terra!

    Eu sempre tive uma grande curiosidade sobre meu avô Luís Lino Barboza. Em minhas recordações de criança, na casa da avó Cecília, ele era um homem carrancudo, que nunca demonstrava carinho nem para os netos e muito menos para os seis filhos que teve com minha avó.

    Lembro que ele, sempre quando se sentava para jantar, colocava o braço esquerdo com o cotovelo cravado na mesa. Os seus pensamentos estavam sempre longe de todos e de tudo! A única pessoa com quem ele era completamente diferente era a minha avó Cecília. Com ela, por vezes eu conseguia ver um sorriso no rosto dele. Eu também sentia a forma amorosa com que ele olhava para ela e o modo com que, sobretudo, a respeitava. Com certeza, vó Cecília foi o amor de sua vida!

    Eu sou uma pessoa muito curiosa sobre as histórias de minha família, pois tenho uma família de muitas origens diferentes. Independentemente se do lado da minha mãe ou do lado do meu pai, o que não falta nessa família são figuras, pessoas de quem sempre se descobre uma nova história.

    O curioso é que no Dia dos Pais de 2021, recebi da minha tia Nelly, a filha mais nova de Luís e Cecília, uma mensagem muito curiosa sobre alguns mistérios do avô Luís.

    São histórias desconhecidas que ela resolveu me contar! Talvez esse sentimento tenha surgido por ser o Dia dos Pais. Ela deve ter pensado no meu avô Luís e uma saudade forte deve ter batido no seu coração. Deve ter sido por isso que ela me enviou uma mensagem, desvendando alguns mistérios e segredos familiares que sua mãe, minha avó Cecília, havia contado antes de morrer, aos 90 anos de idade.

    Tia Nelly sabe que gosto de escrever e pesquisar sobre nossa família e percebeu que essas lembranças poderiam se transformar em um relato familiar. Como ela gosta de sempre me dizer: Estamos todos de passagem e temos que deixar as memórias de nossa família para as futuras gerações!.

    Meu avô Luís Lino Barboza sempre foi totalmente ausente na criação dos filhos e na relação com os netos e as netas. Parece que ele veio de uma família, como contava minha avó Cecília, de gente grosseira e mal-educada. Talvez o avô Luís nunca tenha recebido muito afeto quando criança, por isso não sabia o que era dar carinho e ser afetivo com seus filhos. A única pessoa com quem víamos certa afetividade era sua esposa, vó Cecília.

    A relação dele para com ela era realmente diferente, ficava estampado no rosto o quanto ele gostava dela. Certamente minha avó Cecília sempre deu ao meu avô Luís toda a afetividade e o carinho que ele nunca recebeu na vida.

    O avô Luís nunca foi uma má pessoa. Ao contrário, sempre foi um idealista, um sonhador, pois esteve grande parte de sua vida envolvido em movimentos sociais, já que queria salvar o Brasil da fome e da miséria.

    Ele tinha uma rotina rígida em toda a sua vida, que era sair bem cedo de manhã para trabalhar como operário na fábrica de sapatos, ir ao sindicato da classe operária durante a tarde e, uma ou duas vezes por semana, não perder a reunião da noite no Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual ele estava vinculado por uma célula secreta. Aliás, ele ocupava um cargo significativo no partido, pois tinha ligações com Luís Carlos Prestes.

    Seu lazer era quando, todo domingo, minha avó fazia para ele um café, que na verdade era um almoço, antes que saísse para passar o dia inteiro vendo o jogo de futebol, na Rua Dois de Maio!

    Qual seria, porém, o grande segredo familiar que minha avó Cecília contou para tia Nelly antes de morrer?

    Avó Cecília conheceu vô Luís quando tinha 19 anos. Ele veio em sua casa com o seu irmão, o tio Pereira, e acredito que foi amor à primeira vista, pois, a partir dessa visita, ele sempre aparecia com o pretexto de ver o amigo, mas logo ficou evidente que ele estava mesmo era a fim de um romance com a avó Cecília, que nesse período já tinha um namorado, um português bem mais velho que ela, mas muito rico!

    Minha avó Cecília começou a se encontrar com o avô Luís de forma secreta, porém logo tudo foi descoberto pelos cinco irmãos, que não gostaram nada desses encontros, pelo menos a princípio. Os irmãos dela marcaram um encontro com o avô Luís, que foi colocado contra a parede de surpresa. Eles disseram que se ele queria namorar a avó Cecília, teria que trabalhar honestamente e ter uma profissão! E largar o negócio que ele tinha na Praça Mauá, com o qual vivia muito bem, pois o avô Luís era dono de um pequeno prostíbulo!

    Parece que ele não pensou muito, pois estava realmente apaixonado! Sem muita conversa, aceitou tudo e passou para outra pessoa o ponto do prostíbulo. Então foi ser operário na fábrica de sapatos.

    Foi por amor à minha avó que deixou de ser empresário do prostíbulo na Praça Mauá, trocou a vida da boemia para ter uma vida humilde e simples como operário!

    Essa decisão mudou totalmente sua vida, não somente com o encontro do seu grande amor e da única pessoa que soube dar o carinho, a afetividade e o respeito que ele nunca teve, mas essa nova vida fez com que ele conhecesse o movimento sindical, fazendo com que se tornasse um homem culto, autodidata, e também um grande ativista pela causa dos trabalhadores e da classe operária.

    Em 1964, quando aconteceu o Golpe Militar no Brasil, meu avô Luís já estava doente de tuberculose. Minha avó e tia Nelly não esperaram que as forças da repressão da Ditadura Militar chegassem em casa. Sem avisar ao avô Luís, tiraram tudo comprometedor que havia dentro de casa e fizeram uma grande fogueira no quintal.

    Como me contou a tia Nelly: Era um acervo histórico que poderia ter um grande valor hoje para os pesquisadores da história do Brasil, pois era ele quem escrevia as atas das reuniões do Partido Comunista. Tudo foi queimado, até a bandeira do partido, livros e fotos do avô Luís com Luís Carlos Prestes.

    Meu avô Luís morreu de tuberculose antes de poder ser preso e torturado!

    Antes de morrer, no entanto, tia Nelly perguntou se ele acreditava em Deus, e assim ele respondeu: Deus no céu, Prestes na terra!. E avó Cecília no seu coração.

    Jimi Hendrix e Janis Joplin

    Finalmente saí do colégio interno e fui morar na casa dos meus pais, que tinham se mudado do bairro de Jacarepaguá para a Tijuca. Minha vida social estava dividida entre ir à escola, ao treino de futebol de salão no Monte Sinai, trabalhar, participar aos sábados das atividades do Hashomer Hatzair e, no domingo, me encontrar com os grupos e as gangues juvenis da Praça Sáenz Peña.

    Aos 16 anos eu conheci a Beth no Hashomer. Até hoje eu a tenho como minha grande amiga, uma irmã, minha alma gêmea. Uma vez, alguém me disse que em outras encarnações éramos irmãos de verdade. Tenho um amor especial pela Beth e sempre nos encontramos quando vou ao Brasil, desde que passei a viver em Israel. Ir ao Brasil e não me encontrar com a Beth é como não ir ao Brasil! E quando nos vemos e nos encontramos é como se nunca tivéssemos nos separados. Orpa apreciava muito essa relação especial que Beth e eu sempre tivemos, dizendo que os encontros com a Beth no Brasil despertavam novas energias em mim. O incrível era que Beth também era amiga da Lu na nossa juventude. Foi a Beth quem me enviou a última foto que tenho da Lu, tirada em um encontro casual numa festa no Rio de Janeiro.

    Beth nunca foi minha namorada! Sempre fomos irmãos, almas gêmeas! Com ela, no Brasil, vivi várias aventuras, muita rebeldia e boas recordações! Beth e eu éramos uma dupla furacão, o que não faltava na gente era energia! Por nos sentirmos irmãos gêmeos, um protegia o outro de nossas quedas, dos nossos erros e das nossas loucuras.

    Na juventude, eu apelidei Beth de Janis Joplin e assim a chamei por muitos anos. Do outro lado, ela me chamava de Jimi Hendrix. Até hoje ela me chama de Jimi, que, para Beth, se tornou a forma mais natural de dizer meu nome.

    Jimi Hendrix e Janis Joplin eram nossos heróis, tínhamos uma paixão por suas músicas e ouvíamos suas canções como se fossem hinos sagrados. Éramos dois jovens de rua, frequentávamos os grupos e as gangues da Praça Sáenz Peña, acampávamos no Hashomer, nos vestíamos como hippies, as festas, as músicas de rock pesado e, acima de tudo, gostávamos de rir muito e de viver a vida sem medo.

    Na nossa juventude não faltava aventura, sempre estávamos à procura delas!

    Vou contar uma dessas aventuras que me marcou profundamente. Foi quando Beth, os irmãos Galper e eu decidimos viajar para o Nordeste. Éramos cinco: eu, Beth, o Galper e suas duas irmãs. O Galper morava em Israel e veio com as irmãs passear no Brasil. Ele era bem mais velho do que a gente, mais ou menos uns oito anos, uma figura extraordinária de beleza e sabedoria de vida. O Galper era um anarquista convicto na teoria e na prática!

    E lá fomos nós, saindo para essa aventura, sem nenhum itinerário definido, viajávamos seguindo o rumo que os nossos corações determinavam, andando de carona, de caminhão, de ônibus, a pé e até de jumento, passando por lugares mágicos! Uma viagem de loucuras, de anarquia e de liberdade total e absoluta! Nunca me senti tão livre e liberto! Vivíamos na prática a famosa frase do Raul Seixas, É proibido proibir!, e éramos malucos-beleza no sentido total e absoluto do termo.

    Dormíamos nas casas de pescadores, nas areias das praias e nos bancos dos povoados. O Galper, grande inovador, tinha conseguido uma garrafa de Santo Daime em suas viagens pelo Amazonas. Com ela, realizávamos nossas sessões místicas durante a noite, nas dunas das lindas praias de Trancoso, na Bahia. A viagem era tão legal que, sem sentir, num instante todo mundo estava dançando nu e cantando músicas que vinham do além!

    Fazíamos caminhadas pelas praias como se fossemos nômades, pescávamos como índios e comíamos os peixes na fogueira. Ao longo do caminho, conhecíamos pessoas, figuras interessantes, poetas, feiticeiros, e muitos malucos-beleza, todos sonhadores à procura de mundos diferentes. Cada dia nos trazia um novo agradecimento à vida por nos proporcionar esses momentos.

    Foi nessas caminhadas longas e cheias de diversidade que chegamos ao carnaval de Salvador. Com aquele mundão de gente, a doideira não teve limites! Pela primeira vez na vida perdi os sentidos e o controle de mim. Perdi a memória por um bom tempo e depois acordei pela manhã nas areias da Praia do Farol da Barra, nos braços de uma vistosa mulata de seios poderosos. Eu não tinha ideia de quem ela era e nem sequer sabia o seu nome! Nosso grupo ficou meio desconectado durante o carnaval, cada um com sua doideira, o que fez com que nos espalhássemos em pontos diferentes da cidade.

    E foi difícil nos encontrar novamente!

    O Galper acabou num pequeno bairro bem longe do centro, um lugar que lembrava as favelas do Rio de Janeiro, porque tinha arrumado uma namorada. Com seu charme, Galper conseguiu fazer com que ela convidasse todo mundo do nosso grupo a morar com eles por uns dias. O lugar era simples e um monte de gente vivia naquela casa: crianças, irmãos, tios e tias, era bem grande a família da namorada dele. Todos nós dormíamos no mesmo quarto. Só o Galper tinha um quarto separado com a namorada. No quintal havia muita galinha, porco, cachorro e dezenas de arbustos enormes de maconha.

    Nunca vi tantos pés de maconha na minha vida! Eram pés de maconha para todo lado. Fumávamos maconha à vontade, comíamos bolo de maconha, salada de tomate, alface e folha de maconha, tomamos chá de maconha com mel, bebíamos cachaça com maconha...

    Um dia, no fim da tarde, assistimos atônitos a um carro da polícia chegar e, com toda tranquilidade do mundo, colocar o carro na garagem como quem está acostumado a fazer aquilo. Logo descobrimos que o motorista da viatura era um dos irmãos da dona da casa! Jantamos juntos e depois ele nos ofereceu uma carona na viatura da polícia até o centro da cidade.

    Na minha vida, jamais vou esquecer essa cena, foi algo que ficou para sempre guardado na minha memória: entramos na viatura e assim que saímos o policial acendeu um baseado. Depois, ele ligou a sirene. Isso foi surreal em sua totalidade absoluta!

    Eu via o deslumbre do Galper, sentindo suas teorias anarquistas se tornando realidade, enquanto todos nós estávamos sentados dentro do carro da polícia, fumando maconha com um policial, a viatura seguindo pelas ruas de Salvador em alta velocidade com o toque da sirene pelo ar, aquilo era um delírio! Pensávamos que estávamos em outro planeta, que tínhamos partido da Terra e estávamos em outro mundo. Riamos e riamos e riamos sem parar, junto com o policial!

    Em determinado momento, o Galper transforma os nossos risos em palavras e começa a gritar: É só na Bahia!. Todos nós acompanhamos o grito do Galper: É só na Bahia!. Chegamos ao centro da cidade e nos despedimos do policial. Também nos despedimos de nossa aventura, que ficaria para sempre marcada, repleta de anarquia e de liberdade absoluta.

    É só na Bahia!

    Hashomer Hatzair: uma escola de vida

    A primeira vez que tive contato com o Hashomer Hatzair, movimento juvenil judaico sionista-socialista, foi quando tinha uns 10 anos de idade. Na época, eu vivia no Lar das Crianças, um colégio interno da comunidade judaica. O grupo de seis educadores do Hashomer veio numa bela sexta-feira para nos levar a um cabalat shabat.¹⁰ Saímos a pé da Rua José Higino e fomos até a Praça Sáenz Peña, aonde chegamos à famosa sede, chamada de Ken Negba. Naquela noite me diverti muito, foi um cabalat shabat inesquecível.

    Recordo-me do lugar cheio de crianças e jovens, todos com blusas brancas e reunidos num grande salão. Havia muitos jogos, brincadeiras, música e dança. Nesse dia, apesar de não entender nada do que seria esse Hashomer Hatzair, quando estava voltando para o internato, pedi aos educadores que viessem todas as sextas-feiras — o que infelizmente não aconteceu, mas que ainda assim me deixou uma forte recordação. No sábado, quando fui para a casa de meus pais em Jacarepaguá, contei essa experiência para minha mãe e me lembro do sorriso dela e da frase que ela me disse em seguida: Meu filho, eu também fui do Hashomer!.

    Minha segunda experiência com o Hashomer foi quando eu tinha 12 ou 13 anos de idade: eu jogava futebol de salão no Monte Sinai. Parece que eu era até bom de bola, porque era titular no time e participava do campeonato carioca. Por essa vantagem, ganhei a carteira de sócio atleta do clube, o que me abriu a possibilidade de ter permissão de sair

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