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O Despertar dos Dragões
O Despertar dos Dragões
O Despertar dos Dragões
E-book380 páginas5 horas

O Despertar dos Dragões

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Sobre este e-book

Em uma época de imperadores, cavaleiros, reis e dragões, a família Floressing comanda o que sobrou de seu povo no sul da Borislávia. Eles são profundamente religiosos e guardam consigo as tradições mais antigas de toda a nação. Com a subida dos Dargnstors ao reinado, várias províncias iniciam disputas pelo poder.
Quando se recusam a aceitar a extinção de sua cultura, os Floressings passam a sofrer com assassinatos, tortura e ataques sistemáticos de elfos, magos e orcs ao seu território para se submeterem. Nesse complicado contexto, Mileena, uma simples criada, vê-se na urgência de defender tudo que sua família construiu ao longo de séculos.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento6 de mar. de 2023
ISBN9786525443478
O Despertar dos Dragões

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    O Despertar dos Dragões - C. King

    Parte I

    Prólogo

    O sofrimento eterno vem da punição pelos pecados alheios. Assim era no Umbral. Não cheirava a lodo ou podridão, mas havia o prazer, aroma inebriante de carne em meio a dezenas de outros menos agradáveis. Ali residiam as mais diversas criaturas. Goblins, hidras, hipogrifos, medusas, orcs. Cada ser pronto a sair no despertar de novas eras para o terror das criaturas dignas que habitam o mundo normal. O calor da noite como centelha do despertar ao horror em meio à tranquilidade das famílias. Muitos seres perniciosos sairão pelas fendas deixando um pouco mais tenebrosa a existência dos reinos espalhados na crosta terrestre. Cobertos por trevas, monstros devoram goblins, a hidra é decapitada pelo centauro que vê o surgimento de uma nova cabeça. Ressuscitada, devora o pobre ser. A medusa comia os restos após a exaustão do confronto. Os homens enquanto vivos eram desgraçados gozando da flor carnal em sua plenitude, dominando e saqueando outros povos. Mas eles mal sabiam de seu destino ao cair do crepúsculo.

    As cavernas preenchiam o abismo, compostas por habitações cheias de feras. Alguns deles mais satisfeitos, outros não. Orcs eram invasores em postura curvada para lidar com o engano de quem os subestima. Cabeça quase sempre olhando ao chão, rostos gorduchos com os caninos proeminentes saindo das bocas, grunhidos ininteligíveis. Mas em qualquer língua existe o elemento compreensão, a forma do som. Uns entendem aos outros, o que impede a extinção da espécie inteira. Daí existir o Blind, deus supremo da escuridão a quem deviam prestar o seu tributo, elemento comum entre todos os ferozes. Reunidos em torno de uma fogueira, veneram o cego fornecedor de agressividade ilimitada sem um pingo de inteligência. Nasceram para obedecer no manto escuro da caverna específica.

    Seu líder não batia a cabeça na parede quando se indignava. Orok se fazia distinto dos demais. Os doze chefes escolhidos por Blind, o progenitor, eram mais prudentes. Passou os seus últimos 50 anos de vida bolando estratégias para o próximo humano a lhe invocar por meio do ritual de sangue. Seus dois filhos eram diferentes de sua personalidade, mais impulsivos se bem que, se conseguisse uma conexão com o seu deus, poderia abrir-lhes os olhos curando a ânsia pela carnificina.

    Brigavam por comida, gritando pela hora em que o mundo seria dividido entre eles. Poucos estavam sob o sol delicioso da Terra, enquanto a maioria era obrigada a se conformar com dias eternos de trevas. As florestas eram possuídas pelos orcs, os anões viviam nas montanhas. Reunidos em tribos, saqueavam vilarejos e aldeias ganhando moedas de ouro. Matavam rebanhos na destruição de quem cruzava seu caminho. Por quanto tempo ficariam sem o sangue de camponeses? Tal carência resultava em brigas. E na primeira tentativa, Brontar atirou seu martelo na direção de Gul, a mais treinada nas artes de guerra. O golpe foi bloqueado, a saliva em sangue não a amedrontou. A lança resistia, jogando longe o irmão. Coloca o punhal no pescoço e o prende na parede fria da gruta. No fim do confronto, a garota devolve sua arma a Orok, este sabia muito bem o nome ideal para lhe substituir quando a hora chegasse. Gul compensa em força os caninos pouco avantajados. Equilíbrio distante, mas ideal, como gostava.

    A fogueira se apagou. O exército com mais de 50 milhões de guerreiros dormia exausto após os conflitos de praxe, exceto ele, que admirava sua cria. Já era de se esperar ao sentir o vento tocando a pele curtida por intempéries. Ali o tempo nunca andava, mas tornados e furacões puniam os humanos pecadores residentes. A ventania o mantinha firme, sem sair do lugar. Apenas se sentou em paciente espera, um som em meio ao barulho do ar ruidoso.

    Pelos céus, labaredas de fogo contra as medusas. O olhar a distância preservava o ser alado dos ataques assassinos. Elas queimavam em carne viva sem mortes. Os dragões comuns voavam em baixas altitudes sem chegar à superfície. Esse ser era sombrio, como se fosse forjado ali mesmo, centenas de anos visando atingir pleno poder. Simpatizava com os lamentos dos pecadores e muitos outros monstros na desolação infinita. Invocar dragões era proibido, pois causavam muitas desgraças. Avryr era o dragão normal confinado a seu reino de sombras depois de um povo conquistar sua independência. E mais outro. E assim por diante. Teve a chance de conhecer campos verdejantes, florestas de água cristalina ou as maravilhas presenciadas enquanto um clã de humanos o utilizava para as mais diversas intrigas. Havia esperança de conseguir ficar mais de cem anos na superfície voando pelos céus a ajudar quem mais precisava dos seus poderes. Nascera para ser alguém depois de viver na obscuridade. As escamas vermelhas ficaram mais escuras, reduzidas a um tom cinza, opacas. Os olhos castanhos eram poças negras do piche mais grudento, as asas estão maiores. Mas era inútil usá-las, pois nunca sairia dali sem o devido ritual. Ao contrário dos seus companheiros anciões, ele ainda tinha boas lembranças e as trevas nunca desejaram o seu existir. Por isso o tom de voz era calmo ao permanecer no ar enquanto Orok estava tranquilo na entrada da caverna.

    — Hora de retornarmos ao mundo verdadeiro – insistiu Avryr, triunfante.

    O velho monstro sabia onde estava se metendo. Sua falta de fé irritava o dragão todas as vezes que vinha comunicar ao orc seus temores.

    — Devemos recear os humanos vivos. Só podemos agir com a concordância deles – devolveu Orok, sem seus habituais grunhidos.

    — Nada devemos temer nesses seres. Eles têm a obrigação de nos respeitar, deixando-nos aqui para cuidar de seus desafortunados. Veja como estou de tanto trabalhar por essas montanhas sombrias! Alguém vai nos deixar em paz, sinto isso entre minhas escamas.

    — Como pode ter tanto entusiasmo? – inquiriu, incrédulo. – Uma sensação nada prova. Todos os pecadores nutrem a esperança de sair desse inferno.

    — Irmãos dispostos a destruir como os meus nunca se enganam – disse a voz que surgiu por detrás de Orok. Era Gul.

    O velho monstro se indignou, apenas seus filhos seriam os mais qualificados para tal empreitada. Mas parte dele se comprazia em satisfação. A menina tinha algum futuro.

    — Mamãe sempre nos dizia, estaremos com ela. Falou-me do senhor que nunca nos queima sem razão – confessou Gul.

    — Sua mãe nunca soube de nada além de te ensinar como se prepara uma carne de goblin – respondeu Orok. – Nunca confiamos em nada que as fêmeas possam dizer, nossas estratégias não lhes dizem respeito.

    — Lagash tem um longo histórico de virtudes e delicadeza – salientou Avryr. – Como ela, muitos outros pediram ajuda. Nunca creia em que algo seja impossível, é o mantra sagrado dos meus irmãos negros. Sua sede de poder os faz acreditar que um dia serão guiados por alguém capaz de promover a destruição do mundo a nosso favor.

    — Fiz preces ao deus cego. Pressinto uma bênção muito em breve. Vingança contra os miseráveis.

    — Percebi o mesmo. Pode durar semanas. Ou anos. Mas está com a gente.

    Orok regressou com sua filha enquanto apertava a boca de agonia. Quais seriam os abençoados na invocação? Exércitos voltam, dragões também. Passou dez anos como recruta e mais trinta como comandante até morrer esperando mais uma chance de retorno para se redimir. Invocações só aconteciam em guerras. Gul detectou no rugir daquele misterioso dragão, diferente de seus demais, as sementes da esperança de um dia obedecerem aos comandos de um rei ou rainha, o poder humano.

    O Reino da Borislávia

    — És meus olhos e ouvidos – pronunciou Jamara com ar de autoridade. – Premiamos os melhores servos com sorrisos no rosto e os colocamos para trabalhar em tarefas menos exaustivas. Sua presença aqui veio da simpatia que sinto por sua mãe. Portanto não esqueças um só detalhe.

    — Fui ensinada a colocar algumas coisas de lado na busca da perfeição. Ajuda na hora de ser mais competente. Isso a deixa entristecida?

    Jamara deixou o assunto de lado como se já soubesse a resposta. Era típico dos servos ficarem submetidos aos caprichos dos senhores. Mas a nobre servidora, além de competente, era esperta e tinha suas respostas. Retrucou em tom austero sem ser mal-educada, granjeando simpatia de sua altiva superiora. Manhã tão limpa e quente se evidenciava no imenso castelo habitado por mais de dez mil pessoas. O centro de comando da família Dargnstor, que há quase quinhentos anos governa uma nação imensa. Penteava seguindo as instruções da família Darkeyes sobre maquiagem e compostura. Cada peça no seu devido lugar esperando o encaixe. Os cabelos da futura esposa real, bem arrumados para o encontro com o próximo rei. Mas mesmo assim era pouco elegante que o vestido ficasse sem adornos. A serva tinha cada detalhe preso nas costuras das vestimentas e ajeitava de acordo, criando o modelo perfeito de espontaneidade e elegância. O vestido foi confeccionado na tecelagem de Dragonwing, província rebelde do império. Mileena sorria à feliz coincidência de lembrar-se do balir daqueles animais tão assustados correndo atrás deles na inesquecível Floresta Ladoga, lugar do mogno que só crescia de tempos em tempos e produzia os móveis mais fortes do país. Lembrou-se das histórias contadas no fogo escuro, recebeu do pai os primeiros conselhos para se tornar boa criada.

    O poder máximo tornava as pessoas mais cruéis e pouco receptivas aos comandos da moral e dos bons costumes. Seu pai olhava as feridas nos braços e pernas, orgulhoso por ela se superar com ótimos resultados. Aprendia a se equivocar seguindo padrões específicos, sem a menor chance de erro quando chegasse ao acerto. Ajeitava um rasgo no pescoço, sentindo a textura da pele de sua senhora a lhe falar mais algumas vezes sobre os protocolos reais a serem seguidos. A mulher a quem acabara de atingir com a agulha a olhava de frente. Cabelos alisados por exigência, pele de ébano a refletir o risco que seu povo corria se o casamento não se confirmasse a tempo. Muitos já estão mortos e Jamara poderia ser a próxima vítima. Os dedos sem anéis pediram gesticulação. A criada, resignada, sentou-se com agulha e linha entre os dedos.

    — Mileena Floressing, poderia tomar mais cuidado? Coloque em mim aquele perfume dado de presente pela casa real de Hamphet. Pelo respeito que tenho por ti, deve ser mais prudente. Sei do recado vindo da tua mãe, mas preciso zelar pela minha imagem perante nosso rei. O destino de nossos povos depende disso, você me compreende?

    — Um engano é feito de detalhes, senhora. Posso fazer?

    — Sim. Se me ajudar…

    Foi a permissão. Mileena arrancou o vestido deixando sua senhora de colo nu. Pediu inspiração ao sobrenatural. Em velocidade incomum, recolocou cada botão em seu lugar e pregou no lugar certeiro, ajeitando o espartilho sem a menor cerimônia. Arrumou também a escovação, alguns encaracolados aqui e ali, enquanto Jamara, admirada, via outra mulher nascer pela criada mais normal que já conhecera. A escova às vezes era feita de um lance, depois outro e o símbolo do povo submisso renasceu mais nobre.

    — Rude. Ousada! – resmungou na ânsia da expectativa. – Verei essa moça decidida a se sacrificar por mim no seio da realeza?

    — Eu a defenderei com a bravura transmitida por nosso patriarca.

    — Bravura tem pouco a ver com coragem, meus amigos eram grandes e bravos como ursos. Entregaram rebeldes vistos por mim nas forças dos elrorns.

    — Somos uma família. Amamos uns aos outros. Fui ensinada a dar respeito setenta vezes sete vezes.

    — Disse isso com sua amiga ao jurar lealdade a mim. Terá de fazer, Mileena.

    — Eu o farei, senhora – respondeu categórica.

    — Assim espero. Saia.

    Olhava por uma das minúsculas janelas, a capital Iomlan a se perder de vista, imensidão de casas e transeuntes. O mar era apenas outro detalhe em tamanha grandiosidade. Caminhando pelas inúmeras salas do palácio, passando por muitos criados, a triste serva entrou em seu quarto à espera de uma resposta, pois pediu informações sobre seus familiares. O líder de Dragonwing mais uma vez ausente. Mileena amava o pai, mas se preocupava, havia o desejo pela paz com o inimigo. Infância marcada pelas mesmas paixões do irmão Adoril com espadas e bonecos de palha. A mais habilidosa guerreira da família.

    O calor das fornalhas alimentadas por escravos conseguidos em acordos escusos provocava conflito entre casas muito povoadas e mendigos inconformados com a fome a reclamarem uma migalha de pão. Cobertos por fuligens, cativos alimentavam nuvens cinzentas prevalecidas no céu azul que às vezes se manifestava soberano. Nessa trégua da fumaça, o falcão chega com toda velocidade à janela de Mileena para entregar um pequeno recado. A ave deu bicadas carinhosas na sua mão, o pai a alimentou com cuidado. Abrindo uma das gavetas da cômoda, pegou um pergaminho. Tirado de um balir que implorava por viver, segura a pena e a molha na tinta. Quis colocar seus sentimentos na escrita, mas as grossas lágrimas de guerreira contida não a deixaram criar coisa alguma. Logo perderia sua terra, o último bastião de crenças milenares. Despertou dos seus devaneios, atenta ao belo animal a repousar em seu poleiro com a mensagem anexada na pata direita. O brasão dos meio-elfos. Ao agarrar o pergaminho veio o mau presságio, eles visitaram os seus mais uma vez. Antigos amigos. Os verfinianos.

    "Querida filha,

    Fomos ungidos na casca do mogno a dar centelha divina da imortalidade. Com ela, alcançamos milhões de anos sedentos por independência. Pertencemos à tradição morta a várias espécies, nossos descendentes seguem vivos, familiares desde sempre. Poderia falar ao Adoril sobre a nossa religiosidade quanto às dezenas de homens no comando da nossa província? Sem a menor dúvida, ele conseguiria reunir muitos bandidos em uma unidade para nos salvar, rebelde como você. Escrevo a ti implorando ajuda por ser a mais inteligente dos teus irmãos.

    Estive no quarto de seu pai rezando ao Deus único, acendi velas procurando o cheiro dele junto ao meu. Sua essência saiu e veio até mim na solidão que me encontrava, dando a majestade nunca alcançada. Discutiam a nossa submissão, o quanto deveríamos ser leais aos meio-elfos e que isso seria importante para o futuro Rei Julali. Falavam a respeito de a nossa província se organizar de modo a trabalharmos em cooperação, mas o real significado era nos escravizar aos odiosos elrorns.

    Lehfroy Prydenil ainda tinha aquele ar de bondade capaz de me conquistar à primeira vista. Imagine a figura do seu pai voltando de uma das suas muitas caçadas a me trazer simples flor sahanine em meio a várias perdizes. Recuou a me ver andar pelo corredor com imensa autoridade. As passadas dele ao reconhecer e beijar a mão de sua mãe eram de uma majestade inigualável, graça élfica como alguns bardos diriam.

    Músculos de homem tão viril quanto os de Grail, orelhas pontudas em seu devido lugar. Por debaixo de seu capuz vermelho, o manto carmim tão bem costurado por Athena, bela antes de morrer no parto do terceiro rebento. Segurava o cetro imenso em pouca convicção após escutar o som de minha voz conclamando ao acordo. Ninguém nesse mundo de elfos desprezava uma barba, mas ele o fazia com sua atraente feição.

    Ouvi-o dizendo a respeito dos planos para esta terra, inclusive terminar a devastação dos 80% restantes de nossa floresta. Edmundo escutava na tentativa de acalmar os ânimos dos nossos convidados. Conseguiu em um grito amedrontar a todos, o que fez Prydenil sacar seu arco. Ferocidade desconhecida nesse garoto, herdada de seu pai.

    — Meu marido esperava educação, caro Lehfroy. Ainda dá a honra da sua presença e despreza-nos ante o orgulho dos elfos? Os costumes de Athena ainda se fazem presentes nesta sala?

    Nada disseram. Se houvesse uma mosca, certamente ouviríamos.

    — Desculpe-me, Dama Egara. É inconcebível expressar a ti a admiração sentida em minha pessoa face ao ódio por Genarid. Como conseguir lhe dizer sobre a impossibilidade de um acordo entre nossas famílias?

    — Peço pela paz em alguns dias. Terá nossa resposta ao cair do primeiro floco.

    Assim estamos. Sua irmã pequena dá as alegrias de sempre em seu canto. Rudeto corre como Adoril nas brincadeiras perto do lago. E nesse contexto preciso da sua colaboração. Siga as ordens da princesa Jamara conforme seu pai ensinou. Rezo para ela nos ajudar.

    O brasão dos verfinianos vai nessa carta como parte de um acordo feito por Edmundo.

    Beije Selene por mim.

    Sua mãe."

    Pensou na colega tão estimada por sua matriarca. Selene trajava um vestido verde-oliva semelhante, malgrado caminhar na sua ilusão de princesa. Filha de um dos ricos proprietários de terra do país, tinha seu olhar de desdém com encarregados mais humildes. Com a orfandade, nada herdou, criada por estranhos. Enxergava esperança nas paredes de tijolos cinzentos, em bandeiras iluminadas por tochas. A casa Dargnstor protegia nobres tão fieis quanto os regentes do país, vários deles compunham a família do homem pelo qual estava apaixonada. Criada na capital, quase esquecida de sua origem humilde, fazia-se elegante no intuito de impressionar o clã do prometido.

    Selene ganhou muita confiança no treinamento para ser serva da futura princesa, com a amiga compartilhando com ela grandes histórias de fadas e cavaleiros. A que mais impressionou foi a do broche ganho pelo anjo que vivia em um príncipe. Mileena aprendeu essa lenda na adolescência, Selene pediu para ela contar várias vezes. Corria a boca solta que a rainha Arabella guardava o mimo a sete chaves para controlar o rei Caremin. Após deixar os aposentos de Jamara, a criada já sabia onde ir. Ao parar na porta de Mileena quis implorar por mais informações, sentir ser capaz de pegar para si a joia e ser feliz no casamento. Encontra a mesa de sua amiga com a caneta-tinteiro no suporte, o pergaminho ainda estendido. Viu a poltrona no centro do quarto, em frente à janela por onde a luz vespertina se infiltrou.

    — Selene – chamou com suavidade.

    Em meditação, sua colega não respondeu. O rosto pálido lhe deu pena.

    — Millie – falou em tom conciliador. – Alguma coisa a aflige.

    — Só estou pensando. – De repente pega uma fruta da bandeja em uma mão e a faca na outra, arremessando ambas na direção oposta ao seu baú, lâmina atravessa a fruta fincada na arca. – Mamãe parece aflita com a visita de um amigo que se virou contra nós.

    Selene demorou a responder, ambas se analisando em silêncio. Sorriu apontando uma maçã. Mileena entendeu sinalizando para a parceira pegar a fruta. A maçã foi jogada para o alto, lâmina atingiu a fruta. Um arremesso apenas, o canivete retirado da maçã por Selene. Presente feito pelo seu povo do oeste, lugar de tão conhecidas minas de prata, de pólvoras e armas garantidoras do reinado secular Dargnstor.

    — Está apaixonada, eu sei – Mileena assinalou maliciosa. – Seu prometido parece ser um homem virtuoso nas sugestões para solucionar os problemas dos elfos famintos.

    — Eu o amo demais – disse com aflição. – Tenho medo. Esses seres são perigosos. É a revolta.

    — Medo é algo que se pode controlar – refletiu Mileena. – Um lema nosso é evitar agir por emoção deixando o destino te guiar, pois o medo tem o poder de ruir o mundo inteiro. Estou submissa e seguirei quando o destino pedir. Sempre orgulhosa da nossa senhora. Vejo nela meu projeto de ser feliz sentada em um trono, as ondulações poderosas passando nas minhas mãos atendendo às reivindicações populares. Nasci para governar, por isso escolhi ser uma criada. Preciso estar por perto e ser leal ao projeto. Lemas de família, as pedras erguidas do nosso castelo indicavam a paciência ao se perder tudo e ressurgirmos mais fortes. Sinto as mudanças em nosso tempo. Somos parte disso ao preparar Jamara. Hoje mesmo arrumei seu vestido. E vi ali a mulher do socorro, quando estávamos perdidos, a recompensa por uma resignação perpétua.

    — Acredita que as sahanines estavam mais brancas hoje? – lembrou Selene, admirada. – Dizem ser pelo fato de que a noiva será fiel ao rei, grande amor para a eternidade. Nós as vimos chegar e coroamos cada estátua com várias. Uma semana depois perdiam as pétalas. Esperamos floridas novamente para os noivos entrarem no templo da paixão. Organizaram cada tecido e instruções foram dadas para pétalas brancas e vermelhas caírem do teto. A deusa do amor parece cada vez mais inclinada a atender nossas preces.

    — Até agora eu estava rezando. Por isso me sentei nesta poltrona – admitiu com certa frieza. – Fico desligada ao me concentrar. Nosso Deus conseguiu atender aos meus desejos. A rainha terá sua beleza natural sem maquiagem, enquanto seu cabelo fica solto e sem desleixos. Deslumbrante em sua simplicidade.

    Mileena tomou as mãos de Selene nas suas.

    — As notícias são desanimadoras. Os verfinianos exigem que meu irmão Adoril seja morto. Lamento tanto por mim, que nunca senti falta de casa. Agora a morte parece nos rodear feito um orc no inferno. Dona Egara quer minha resignação, por isso estou ajudando nossa Jamara ao máximo. Gostaria de estar contigo arrumando a igreja.

    Selene pegou as palmas de Mileena e as beijou. A amabilidade nas feições da amiga sulista era um sinal verde a seu projeto particular.

    — Sua voz nunca fugiu dos ouvidos.

    — Esse olhar… Selene, deixe de bobagem. Poderá perder uma ferramenta de trabalho feita de cinco dedos… No sul da Borislávia eles obrigam uma pessoa a pegar no carvão incandescente por dois minutos…

    — Estou segura. É só uma história, fique tranquila.

    Selene se foi com o coração acelerado. Sozinha em seu quarto, Mileena ergueu a cortina, deixando a claridade iluminar o brasão da família. Árvore de prata cujas pétalas desabavam. Borislávia. Uma nação governada no trono dourado em detalhes rococó. 28 milhões de km² abrangendo civilizações nobres e plebeias, ricas e pobres. O reino de uma dinastia iniciada pela virtude de um povo cansado da longa batalha contra quem havia tiranizado sua região. A capital de dois mil anos permanecia em pé, Iomlan testemunhou a construção em palha, alvenaria e metal, nada além de sua imortalidade e outras cinco civilizações comandadas por seus líderes em um ciclo eterno feito com paz e guerra. Especiarias, pedras preciosas, belezas a enfeitar a cabeça do nobre querendo a bênção do seu rei. As cinco províncias divididas ficavam próximas umas das outras graças à proteção do trono dourado, o supremo diretor e sua família poderosa conduzindo as outras. Dargnstor, os antigos guerreiros religiosos, nas suas práticas centenárias fizeram por seus habitantes o melhor nos primeiros cem anos de reinado. Salvo raras exceções, nos 400 anos seguintes fariam reis cada vez mais autoritários.

    As tribos orcs do norte viviam em harmonia com os atuais sulistas. Isso até as disputas de poder transformarem os sulistas no povo exilado. Graças ao soberano Vilor, primeiro da linhagem a afirmar sua tirania no trono, os orcs se revoltaram após longos anos de acordo contra os Floressing, pacifistas. O acordo permitiu aos verfinianos do norte a ter seu próprio pedaço de terra confiscado dos descirtianos, restando a estes se refugiar no ponto mais austral do território.

    Os monstros das províncias tinham corpos fortes, muito habilidosos. Eram os chamados bárbaros de presas. Vivem na parte mais setentrional. Sete regiões feitas de grunhidos e linguagem, Mileena adorava escutar seu pai Genarid contar as histórias deles lendo alguns livros, a serva os namorava, conseguindo o privilégio da leitura apenas aos catorze anos com o sacerdote lhe passando os elementos fundamentais da retórica e idioma descirtianos. Demonstrou desde o início mais capacidade em superar as lições, a satisfação por Genarid lhe omitir vários tesouros do saber desde os três anos de idade. Conheceu os segredos pela curiosidade juvenil do fantástico nesses seres ignorantes, brutos, apenas úteis nas mãos dos Dargnstors. Soube que descirtianos e orcs estavam próximos. Humanos emigrados de Dragonwing fizeram contato com seus amigos pretéritos do norte atravessando a região central pertencente à corte. Procuraram amizade através da tradição passada a novas gerações. Muitos foram empalados nas estacas das cidades, não havia mais amizade entre sulistas e nortistas.

    Esteve mais próxima do irmão Adoril e juntos desbravaram a história dos homens nórdicos em cada uma das províncias que ainda mudam seus costumes para agradar a atual rainha, sempre mantendo as fêmeas em cavernas escuras de onde saíam seus filhotes mais viris, embora elas não fossem obrigadas à reclusão. Smyrnna, Baal, Serdays e Tyrilia, nelas as fêmeas gozavam de muita autonomia podendo se separar e exigir à força o bem do marido, pois eram fisicamente avantajadas segundo leis obrigatórias: exercícios físicos à exaustão, gerar bebês fortes, pois os fracos eram automaticamente eliminados.

    Meditação silenciosa em aposento onde estava nua. Derramava a água sobre seu corpo com as duas mãos. Movimentos múltiplos de luta descobertos, com eles tinha os seus segredos mais obscuros, cheios de capítulos tristes, dignos e uma morte terrível. Conhecia a família real, mas por ela não se interessava, pois a atual era uma cópia caricata dos primeiros Dargnstors, mais virtuosos, agora mergulhados na perdição da sua libido repleta de sodomia. A elegância dos nobres era admiravel nas várias audiências com Jamara, ao acompanhar a súbita paixão pelo príncipe Julali nos rituais sacros passados a seu povo já acostumado às incursões orcs em solo turano. Jamara se apaixonou pelo futuro monarca ao sentir seus sermões caindo feito bálsamo nos ouvidos dele. Escutou na boca do príncipe, filho da regente, a necessidade do sangue puro na Borislávia.

    — Estou melancólico ao observar as criações tão singelas perecerem ligadas ao mundo perdido nas ruas silenciosas a caírem até o tão herege sul. Feito com sangue de ratos presos a uma jaula de onde saem em cada minuto rumo a nossa corrupção. Casam-se entre si, geram ratazanas tão fétidas quanto o esgoto imundo a contaminar água cristalina. Sejamos fiéis ao sagrado e original Vilor e nossa santa mãe Fanamor, fiquem longe de templos sacrossantos ou cultos superficiais cheios de símbolos. A fonte dos males reside nas pessoas a seguirem independentes por séculos nos contaminado até o regato mais singelo de onde sai a virtude primeira. Peço a união de todos vocês nas muitas raças, orcs, elfos, humanos, mestiços. Façamos nossa partida até o primeiro bastião austral, vitoriosos contra os fanáticos do templo! Meu projeto burilado saíra do paraíso onde crianças correram livres aos seus pais, às suas casas em tributo ao soberano a lhes dar uma só identidade: Borislávia!

    As torres cônicas castelãs se impunham sobre as centenas de construções na metrópole. Escutava a forja, além de gritos. O sono a vencia sentindo-se trazida pelo mar costeiro. Na bigorna um elfo escravo batia sua lâmina a praguejar infâmias recolhidas do esquecido dialeto. Mileena obedecia seu pai, além de Edmundo, o provável governador de Dragonwing. Eles estavam fracos e poderiam ser eliminados a qualquer momento.

    Ao enxugar o corpo nu experimentou outras acrobacias. Deitou-se em posição fetal na lembrança das suas origens. Levantou-se erguendo a cabeça de súbito na sensação da brisa lhe dar calma. Sem calafrios, estava pronta para defender as pessoas que amava. Sabia quem eram seus inimigos e no rompante de fúria arremessou o punhal na porta com vontade assassina.

    Sem destino

    Rudeto Floressing não estava exausto após um longo dia se divertindo. Batia em bonecos de madeira no entusiasmo típico de um garoto inocente. Não se sentia capaz de ser igual a seu irmão Adoril. Rosto vermelho após longo pranto pela advertência de Rulurdo desejando o fim da brincadeira. Aquilo tinha uma razão: outros deviam ocupar o espaço onde se divertia. Os soldados mais profissionais do reino treinaram em suas espadas fortes cujo complemento dos cabos era composto de madeira negra, o corpo inteiro no elemento duro que arranca a mão humana em um só golpe. O garoto subia em espiral pela torre a nordeste vencendo degrau por degrau até o limiar da ombreira. Uma das muitas salas de armas. Rudeto encarava o desafio, conseguir chegar ali em tempo mínimo, seu obstáculo era o choro incessante por sua vontade ter sido contrariada pelo infame guerreiro vindo de família bárbara.

    Cansou-se ao sentir as pernas implorando pela desistência. Entraria em várias daquelas portas querendo possuir um amuleto sagrado, apanhar no desejo de fazer uma traquinagem. Mas se assustou ao ouvir passos na escada, por saber serem os mesmos que um dia vão separá-lo de sua amada mãezinha. Cheios de armaduras, portanto lanças e escudos, as sentinelas passam pelo garoto sem dizer uma só palavra. Eram homens valentes, acostumados a usar seu treinamento como serviçais caçando monstros

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