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Pax Lyncis - Parte I
Pax Lyncis - Parte I
Pax Lyncis - Parte I
E-book589 páginas13 horas

Pax Lyncis - Parte I

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Sobre este e-book

O Leonardo, um jovem português com uma mente ímpar no mundo, é descoberto por uma equipa de cientistas japoneses que estão a desenvolver tecnologia que possibilita a telepatia. Juntando-se a eles, descobre não só o seu prodigioso potencial, mas também a sua urgente missão: impedir uma guerra de proporções inéditas, detendo o doutor Shirakawa, um criminoso que pretende usar essa tecnologia para semear o caos no mundo inteiro.
Para fazer isso, tem de deixar em Portugal a sua família e a sua namorada; esta, por sua vez, está a atravessar mudanças que só podem ser compreendidas sabendo aquilo que está a acontecer no Japão. Uma das pessoas com mentes fora do comum que o Leonardo conhece, a misteriosa Aurora, revela-lhe o maior de todos os segredos que ela e o doutor Shirakawa partilham: que a busca por mentes extraordinariamente poderosas não se limita ao planeta Terra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de mar. de 2023
ISBN9791222086705
Pax Lyncis - Parte I

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    Pré-visualização do livro

    Pax Lyncis - Parte I - João Lázaro

    Agradecimentos

    Escrevo este livro respeitando o Acordo Ortográfico, não por preferir fazê-lo, mas como expressão do meu desejo de uma amizade e harmonia genuínas entre Portugal, o Brasil e todos os países de língua portuguesa, acima das minhas preferências pessoais.

    Ciente da tensão existente entre diferentes povos e países, consequência da nossa Humanidade, acredito na importância de dar a cada pessoa uma hipótese de provar a sua verdadeira natureza, sem os constrangimentos e fardos da discriminação, dos rótulos e dos preconceitos, e rejeito o ódio internacional apesar dessa tensão. É por isso que dedico, com gratidão, cada parte desta história:

    Aos meus pais e irmãos, pela paciência e pelo apoio incondicional.

    A todos os meus parentes, amigos e conhecidos, por tudo o que deles aprendi.

    Ao Alentejo, onde fui criança e aprendi a sentir.

    A Portugal e Espanha, os países aos quais devo tudo aquilo que sou e que sempre me fizeram querer ser uma pessoa melhor.

    Ao Brasil, ao México e a todos os países iberófonos no mundo que, mesmo sem ter visitado, me fizeram compreender a importância da reconciliação e do perdão.

    Aos Estados Unidos da América e ao Canadá, que tanto me fizeram sonhar e querer superar todos os obstáculos.

    Ao Japão, à Polónia, à Itália e à Grécia, sobre os quais aprendi tantas coisas que me inspiraram e fizeram querer descobrir e compreender diferentes culturas e mentalidades.

    À Irlanda, à Finlândia e à Alemanha, os países que visitei na fase mais incerta da minha vida e onde também podia ter vivido uma vida feliz.

    À Ucrânia, país que visitei em 2008, de onde vieram os migrantes que mais marcaram a minha vida, e onde foi mais intenso o desejo pela concórdia mundial, pelo entendimento mútuo e pela paz entre todos os países.

    E ao mundo inteiro, por me ensinar a condição humana e definir aquilo a que devemos aspirar como seres humanos.

    Prefácio

    Tenho a minha opinião sobre os prefácios. Talvez seja um pré-juízo que, como todos os preconceitos, apenas têm a sustentá-los a ligeireza da análise e a preguiça dogmática de quem assim arrumou um assunto a que nunca atribuiu muita importância.

    Mal, aceito admiti-lo, ainda que como mera possibilidade, porque é verdade que, nem sempre a memória é fiel à verdade, parei na ideia de que os prefácios se ficam, regra geral, por narrativas sobre quem escreve ou veiculam uma narrativa condicionadora que traduz o olhar de quem leu.

    Escrever um prefácio, sem cometer tais pecados originais, conseguir escrever, sem cair na tentação dos lugares-comuns, para além de pretensioso desígnio que ultrapassa as capacidades de quem agora se propõem, numa autocrática postura de superior distanciamento e ignorante atrevimento, de pretender dizer/escrever, sem ser escritor, sobre aquilo que quem escreveu, o fez sendo-o, confirmar-se-á tarefa impossível.

    Talvez não seja de palmatória afirmar que o prefácio há de ter a ver com o que foi escrito e com quem o escreveu.

    O que foi escrito não me surpreende, porque conheço quem escreveu desde sempre e este escrito era esperado, não que antevisse a narrativa, que surpreende à medida que a vamos percorrendo, até pelo rigor do tempo e o espaço, qual tabuleiro de xadrez onde se vão jogando as peças que, como acontece nas realidades de muitos tabuleiros, mais não são do que pessoas que se movem num tempo e num espaço, com identidades vincadas pelas histórias que fazem delas o que são e que a fez ser o que são e estar onde estão. Histórias que são também as histórias das nações, dos Estados, das tribos, dos povos que ao longo dos tempos foram povoando, fazendo e desfazendo modos de vidas e formas de ser, definindo e redefinindo as geografias de um planeta que parece condenado.

    É, não me surpreende o rigor da narrativa, a preocupação com os antes históricos, com o entrelaçar dos diferentes percursos, Não me surpreendem as reflexões, tantas vezes premonitórias. Como não me surpreende o detalhe que emana de uma realidade que é um universo que tem um centro (e às vezes mais) criador onde tudo retorna, num movimento que sobrepõe o circular e o linear, que intencionalmente mistura a supostamente ficcionada narrativa a uma narrativa de uma mundividência intimista e pessoal que fornece as chaves que nos irão permitir ler o que foi escrito.

    A escrita é sempre uma viagem, em forma de caminho que alguém ousada e destemidamente se dispõe a fazer – primeiro lugar-comum dos muitos que se lhe seguirão.

    A escrita é uma forma de coragem insensata e temerária quando deixamos que seja lida por outros, que, por mais que se não queira, sempre será uma forma de revelação dos deuses e demónios que nos povoam.

    E esta escrita é também isso, uma imagem nítida dos mundos e das pessoas e de quem escreve através do seu alter-ego, que muitas vezes se diz e é mais que um e se assume nos diferentes personagens/pessoas. Imagens, umas vezes de cores intensas, duma ficção marcada pela realidade, outras vezes, de tons a preto e branco e imagens desfocadas saídas, pensa-se, da dimensão profunda das existências que é suposto em todos existir e que nos vai construindo, moldando-nos na forma de ser e, quando aí se chega, na forma de nos pensar e aos outros e ao mundo e ao devir de todos eles.

    E as pessoas, esta é uma escrita sobre as pessoas, não que não o seja também sobre os lugares, que não são apenas espaços geográficos, mas paradigmas das múltiplas geografias humanas. Esta é uma escrita sobre a existência das pessoas, ainda que as suas diferentes existências não o fossem sem os lugares de onde saíram/partiram para serem o que são, nos sitos onde os encontramos.

    As pessoas, hiperbolizadas, mais nos seus defeitos que nas suas virtudes, como se a deixar-nos um aviso sobre uma natureza que, sem aviso, num eterno retorno, num cíclico repetir, se pode manifestar numa bestialidade que insiste em não se conter dentro dos limites do Humano, nesse desejo intemporal de metamorfose para o divino, desejosos duma natureza, também ela hiperbolizada, de poderes de uma imortalidade imperfeita que subjuga e destrói, numa afirmação de poder, a que não falta nem um Olimpo, nem as hierofanias, nem o transe e a loucura, como condição da clarividência e do conhecimento da verdade.

    Como não faltam as intrigas, as traições, as manipulações, num constante jogo de poder - a que se reduziu a carga dramática para privilegiar o conteúdo – de quem, do alto dum espaço sagrado, comtempla os que continuam a ser simples mortais nas sua pequenas e mesquinhas existências destinadas a destruição, como se esta fosse a única razão para que tivessem sido criados e que, por isso, não podem ser salvos.

    As pessoas, de quem depende a escrita e a leitura e também a narrativa, personagens presas a um destino, determinadas pelos desígnios de uma qualquer indefinida entidade, apenas nisso a diferença das míticas narrativas dos heróis helénicos, também eles, como estas, com ilusão de liberdade, quando apenas atores a representar o papel que lhe coube. Personagens, que na sua constante procura do conhecimento que leva à serenidade/paz, conferem sentido e compreensão à narrativa.

    O prazer da leitura – porque disso também se trata, ainda que envolva a subjetividade de um juízo – que de forma muitas vezes subtil e gradual, mas também sistemático e intencional nos aprisiona, as vezes de um modo quase manipulador, caminha sempre, tantas vezes dissimulado, a par com a fria e perturbante lucidez da leitura da realidade, a que a factualidade dos nossos dias apenas conferiu mais intensidade e lucidez.

    A perfeição linguística e o detalhe e pormenor da narrativa, que confere uma solidez a exigir o exercício contemplativo que lhe é inerente, não nos distrai da intensidade da natureza humana que transparece das personagens e do detalhe.

    Mesmo se deixando muito à construção criativa do leitor, a escrita cuida de, desapercebidamente, ao longo das linhas colocar as palavras num ritmo que vai crescendo à medida que os espaços e as pessoas se tornam mais intensos, mais complexos, mais nítidos nos aconteceres.

    Sem pressas, para que nada fique por dizer, disponibilizando, numa metódica cadência, aos poucos, o que se precisa ir sabendo para que se desvende e encontre o fio que, sem antecipar o final, nos vai permitindo tentar, mesmo se sem acertar, construir o que faz encontrar os diferentes caminhos da narrativa que irão fechar o livro, completando o círculo figura geométrica perfeita.

    Mas isto sou eu a dizer, como se se pudesse dizer, como se as palavras que se dizem, fossem capazes de dizer sobre o que está escrito, como se elas tivessem a capacidade de verter em escrita os pensamentos e as emoções, como se se se pudesse ultrapassar os limites e ver e dizer o indizível, sem a mediação das palavras, o que quem escreve quis dizer, qual aprendiz escolhido do Instituto de Osaka.

    Carlos Lourenço Cunha

    I – Ética

    Do alto da arquitetura futurista de uma fortaleza imponente, eu contemplava as colinas verdes de ambos os lados de uma deslumbrante baía em forma de lua; a única lembrança de um meteorito que, milhões de anos antes, embatera do Nordeste, destruindo uma parte dos fiordes que eram o vestígio de uma glaciação centenas de vezes mais antiga e criando uma cratera que o mar não tardou em preencher. O terreno acidentado, coberto quase na sua totalidade por árvores gigantescas, era interrompido apenas pelo rio que se formou com o tempo, fluindo para nordeste como se amaldiçoasse a memória daquele meteorito pré-histórico.

    Naquele lugar, era um hóspede que procurava apreciar a beleza de tudo o que lhe era revelado, mas via-me constrangido pela urgência de assimilar uma avalanche de informação que contradizia toda a lógica e, ao mesmo tempo, manter a coragem para assumir o papel do maior líder militar de toda a história na guerra que se avizinhava. Já pouco fazia sentido; eu agarrava-me ao que ainda ia compreendendo. Ouvi aquela mulher majestosa aproximar-se de mim por trás e parar ao meu lado, colocando a mão no meu ombro, mas não lhe voltei o olhar.

    – Eu sei que não é fácil – murmurou-me ela ao ouvido. – O inimigo é implacável… Mas nenhuma outra pessoa podia estar no teu lugar… e eu estarei sempre contigo.

    Não respondi com palavras; deixei que os meus olhos falassem por mim quando encontraram os dela, lindos, brilhantes, e deixámos que o nosso abraço terno, sincero, forte, comunicasse toda a gratidão que não cabia nas nossas palavras. A nossa gratidão era por muitas coisas; a dela, pela minha presença, e a minha, por ser bem-vindo… Mas ambos, acima de tudo, estávamos gratos pelo nosso amor milagroso que a sociedade, a política, a guerra e até o próprio universo pareciam proibir. Os movimentos lentos dos nossos corpos, os nossos corações que celebravam a união, as carícias nos cabelos e a respiração profunda, eram a prova dessa gratidão. O abraço prolongou-se até finalmente se transformar num beijo testemunhado apenas pelo sol que subia para iluminar ambos os lados daquela baía. Só perdido no regaço daquela rainha conseguia encontrar consolo de tudo o que me pesava na alma; nos restantes momentos, concentrava-me para compreender, com a ajuda dela, tudo o que acontecera.

    Foi no Japão, em 16 de agosto de 2012, que o mundo começou a mudar. Ao doutor Shirakawa, inerte numa cama de convalescença, regressava a vitalidade. Perante a insólita missão de redefinir o cérebro do mais virtuoso cientista do Instituto de Osaka, garantira-se a execução impecável da operação. Respirava mais fundo. Os olhos abriam-se. Formava-se a perceção do que acontecera: já não era um simples ser humano. A primeira coisa que ouviu foi a voz da professora Kobayashi, que lhe vigiara os sinais vitais.

    – É bom tê-lo de volta, doutor Shirakawa. Como se sente?

    – Olá… Estou bem, obrigado – respondeu ele, aliviado por poder dizer aquilo.

    – Ótimo – disse a professora, com um sorriso de idolatria. – Vamos fazer o teste?

    Ainda deitado, fechou os olhos e tentou concentrar-se. Ela tirou aleatoriamente uma carta de um baralho francês incompleto, com apenas as doze cartas com figuras, nas quais escrevera em Katakana o nome da personagem ocidental associada a cada figura.

    – Atena – disse ele, referindo-se à dama de espadas.

    Com os olhos a brilhar, ela tirou outra carta.

    – Então, só calham gregos? – brincou, referindo-se a Alexandre o Grande, representado pelo rei de paus. – Espero que o próximo não seja o valete de ouros.

    Ela, rindo-se com a alegria de uma criança, tirou a terceira carta. Ainda mal conseguia ver que se tratava do rei de copas, Carlos Magno, e já ele respondia com naturalidade perante o pasmo dela, como se a telepatia fosse uma autêntica brincadeira:

    – Hmm… Sabia, professora Kobayashi, que a palavra rei em várias línguas europeias vem do nome Carlos? Por exemplo, Król em polaco, Kral em búlgaro, Korol em russo e Király em húngaro. É um paralelo interessante com a palavra César, do latim, que deu origem a Kaiser em alemão e a Czar em russo…

    O doutor Shirakawa, diretor do Instituto de Investigação Especial de Osaka, era um homem respeitado e famoso pela sua riqueza tanto intelectual como material. Procurando compreender a condição humana, construíra ao longo da vida uma reputação de solidariedade. Todos conheciam o seu fascínio pela história, sobretudo da Europa, embora ninguém soubesse porquê. A desolação da Segunda Guerra Mundial, a miséria da sua própria família, a determinação com que todos lutavam para sobreviver e o orgulho quando escaparam às garras da pobreza, tudo isto foram as causas do adoecimento do doutor Shirakawa. Adoecimento moral, psicológico, emocional e espiritual. Fechou-se, nunca deixando transparecer o que sentia. Mas em breve teria de agir. Aproximava-se o tempo em que não haveria segredos, para ninguém, nunca mais.

    O martírio do pós-guerra fizera-o desejar a vingança. Porque sofrera tanto o Japão? Quem eram aqueles ocidentais que tanto interferiam nos assuntos japoneses? A mente dele era um labirinto de perguntas, dúvidas e frustrações só momentaneamente aliviadas com a aprendizagem constante, a qual acabava por suscitar ainda mais perguntas, causando uma fixação pela Europa, aquela parte do mundo tão distante que se autodestruía sistematicamente, num ciclo infinito de novas lendas florindo das cinzas das vencidas. Fazia da Europa um passatempo, devorando os escritos clássicos, colecionando mapas cronológicos, quase vivendo as guerras que estudava, nutrindo em sonhos um afeto por todo aquele antigo mundo que nunca poderia ver… Aquele fascínio era, na verdade, uma obsessão associada a perigosas fantasias, pelo que ninguém poderia descortinar o seu mundo privado.

    A Europa padecia de uma ganância crónica desde o princípio dos tempos. Nem marchando e navegando à procura de novas terras alcançou ela a paz pela qual ansiava; apenas contagiou cada canto do mundo a que chegava, alastrando a sua doença perpétua como um Toque de Midas. Os portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses, belgas, alemães... Não conseguia compreender como podia existir tamanha contradição de sentimentos: ora repudiava a ganância da Europa, com cada império que caía, ora glorificava a sua multiplicidade, com cada império que nascia. Embora odiasse a hipocrisia dos dirigentes políticos e religiosos que sempre infernizaram a vida dos seus súbditos, permanecia uma solidariedade profunda, um desejo altruísta de que as coisas tivessem acontecido de outra forma, sem tanta violência… Decerto a vida hoje seria diferente para todos se tivesse sido ele a mandar nas coisas. Talvez o Japão nunca tivesse sequer sentido a cruel humilhação das bombas atómicas dos filhos da Europa.

    Mandar. Isto é, não no Japão, mas sim na Europa. Desde o princípio dos tempos. Reescrever toda a história. Impedir todos os crimes. A viagem no tempo é outro debate… Tornara-se possível reescrever, pelo menos, o futuro. Já era tarde para que essa reescrita não fosse um processo atroz para o mundo inteiro… No entanto, acreditava ele, tinha de ser feito.

    A sua maior admiradora, a professora Kobayashi, também tinha um sonho: a telepatia, a magia da comunicação direta entre cérebros humanos. Sempre receara confidenciar esse sonho a outrem, pensando que todos o achariam absurdo. Queria descobrir como materializar a telepatia, mas também compreender o seu impacto na sociedade. As conclusões assustadoras eram outra razão para guardar segredo. Ela sabia que essa magia que procurava era, de facto, magia negra.

    A sua grande preocupação era encontrar uma forma ética de aplicar aquele conhecimento. Intrinsecamente, a capacidade de ler mentes alheias equivale a um perigo mortal: no contexto de uma sociedade, a privacidade e o segredo perdem todo o significado. Qualquer telepata conheceria os segredos mais íntimos e obscuros de qualquer outra pessoa. Bastaria o simples ato de pensar, de por mero acaso se lembrar de algo que um dia tivesse feito ou testemunhado, e no momento seguinte o mundo inteiro saberia tudo, sendo depois impossível negá-lo. Obviamente, se o mundo inteiro se tornasse repentinamente uma sociedade telepata, destruir-nos-íamos por completo; as pessoas de quem mais gostamos e em quem mais confiamos, as causas que mais acerrimamente defendemos, as certezas em que alicerçamos os planos… Morreríamos todos, simplesmente, do choque de percebermos quanto disso é falso, ou então na consequente descarga de indignação, nojo e ódio mútuo. Os afortunados oportunistas sobreviventes tornar-se-iam os líderes dos últimos fragmentos de uma sociedade hipócrita condenada à autodestruição eterna.

    Mas isso não era nem metade do perigo. A telepatia não é só um sexto sentido unidirecional, como a visão ou a audição; estes permitem-nos captar informação, mas não possibilitam só por si partilhá-la. A telepatia é uma forma de comunicação; tem inerentemente dois sentidos. Consiste não só em sentir, ouvir ou ler nas mentes alheias imagens, sons, ideias, palavras, emoções e até mesmo intenções, mas também escrever, projetar essas mesmas coisas no sentido inverso. Portanto, os indivíduos intelectualmente mais fortes podem, temporária ou permanentemente e com total impunidade, tomar o controlo das mentes alheias, obrigá-las a seguir qualquer ordem, corrompê-las de tal modo que a identidade perde qualquer significado. Os atos de uma pessoa sob controlo mental podem fazê-la parecer alguém inteiramente diferente, arruinando a sua reputação e fazendo-a arcar com a culpa dos crimes mais hediondos, cujo verdadeiro culpado ninguém desconfia sequer que existe; a pior forma de manipulação imaginável.

    Ela calculou que a comunicação simples entre mentes humanas não seria nociva para o organismo; no entanto, o controlo mental também poderia consistir num ataque, tão grave e doloroso como uma agressão física, causando danos mentais severos e permanentes, ou no mínimo traumas psicológicos, perda total da força de vontade, insónia e até mesmo amnésia. Em casos extremos, o sistema nervoso poderia ser fisicamente danificado, causando a perda de funções corporais ou até mesmo a morte cerebral. Isto dependeria de vários fatores: a força mental do controlador (dependente do QI), a resistência mental do controlado (também dependente do QI), a duração do controlo mental, a intensidade do controlo mental (se o atacante atua de uma forma muito, pouco ou nada agressiva), a eficácia do controlo mental (se o atacante sabe por natureza ser manipulador ou não) e, acima de tudo, a natureza das ações às quais o indivíduo controlado fosse obrigado durante o controlo mental. A confusão extrema, a sensação de se perder o controlo, o não compreender porquê, o não conseguir resistir: aí estaria o risco de trauma, sobretudo nas situações que envolvessem a morte, ou a possibilidade de morte, do indivíduo controlado ou das suas vítimas, sobretudo amigos ou parentes. Por exemplo: obrigar alguém a pegar num copo de água e bebê-lo, uma ação muito simples e sem consequências, só deveria ser grave pelo susto de não compreender o que causou aquilo; mas obrigar uma pessoa a matar alguém, ou tentar o suicídio, claramente seria muito pior.

    Em conclusão: muito antes de começar a investigação, a professora Kobayashi compreendeu o perigo extremo da telepatia, por possibilitar tanto ler o que não deve ser lido como escrever o que não deve ser escrito: por um lado, a destruição absoluta da privacidade, e pelo outro lado, o risco de controlo mental. Mas quando o doutor Shirakawa soube do sonho da jovem professora, apesar de não querer expor os seus segredos, ficou deslumbrado com a ideia e formou uma equipa de investigação dedicada àquele assunto. Com base naqueles pressupostos, os cientistas fizeram um juramento: ter sempre plena consciência do perigo inerente àquela tecnologia e nunca a usar para tirar proveito de alguém, independentemente das circunstâncias. Ela tinha a visão; ele tinha os contactos e os fundos.

    Numa das suas primeiras teorizações sobre a telepatia, a professora perguntou ao doutor se achava possível um telepata compreender qualquer diálogo entre duas pessoas, mesmo que não falasse a linguagem deles.

    – Com certeza – respondeu ele. – Não antevejo nisso qualquer dificuldade. Mas vamos usar a palavra língua em vez de linguagem. Devíamos pensar na linguagem como uma aptidão humana, não um sistema.

    – Muito bem. Mas como, doutor Shirakawa? Um diálogo numa língua desconhecida? As pessoas não pensam com palavras das línguas que conhecem?

    – Não – insistiu ele. – Não pensam só com palavras. Já alguma vez leu Saussure? A linguística ensina-nos a dicotomia entre significado e significante: ou seja, cada pensamento humano só pode ser comunicado fisicamente ao ser, por assim dizer, traduzido em algum tipo de sinais: palavras, símbolos, imagens, desenhos, sons… Na telepatia, também existe a mesma dicotomia fundamental: o significado é a ideia, a imagem mental, abstrata, sem forma física, e que não pode sair da mente; o significante é a palavra, o objeto físico que exprime a ideia para fora da mente. A comunicação, em qualquer das suas formas, é necessariamente um ato físico: o emissor produz um sinal físico e, por outro lado, o recetor interpreta fisicamente esse sinal com os seus sentidos. Se eu não falar, ou escrever, ou gesticular, ou fizer sequer a menor expressão facial, ou se houver um obstáculo entre nós, você tem alguma maneira de saber o que me vai na mente?

    – Claramente não, doutor.

    – Exato, porque você depende de sinais físicos, tangíveis, em vez de se concentrar no pensamento em si. O pensamento, de facto, também é um ato físico no sentido em que corresponde a impulsos elétricos nos cérebros dos seres vivos. Mas o que temos de desenvolver é uma forma de transcender os canais físicos convencionais: tornar os nossos cérebros capazes de detetar e interpretar esses impulsos elétricos, assim como emitir novos sinais elétricos que alcancem os cérebros alheios atravessando qualquer obstáculo entre eles. Atingindo os cérebros alheios, esses sinais elétricos provocarão uma ressonância que mapeará os neurónios, as sinapses e a informação armazenada nesses cérebros, como um sonar que mapeia o fundo do oceano.

    – Sim, isso faz sentido. Mas o que me confunde é: na minha aceção inicial da telepatia, imaginava palavras na mente do emissor. Por exemplo, se eu pensasse em água, você só seria capaz de saber isso quando eu na minha mente visualizasse a palavra água. Foi isso o que fiz no teste das cartas; imaginei o som dos nomes das figuras.

    – Não, professora, nem sequer isso. É verdade que eu poderia ouvir e reconhecer na sua mente a imagem, ou o som, de uma palavra que já me fosse familiar, o que facilitaria a compreensão. Você podia pensar em água, concentrar-se em imaginar o som dessa palavra na sua mente, e seria isso o que um telepata estrangeiro conseguiria de alguma forma… ouvir. Mas mesmo assim, ele não compreenderia esse som, nem sequer a escrita, se não conhecesse a nossa palavra para água. O estrangeiro veria ou ouviria, ou melhor, sentiria alguma coisa, mas não teria a menor ideia do que fazer com essa informação. Idem para uma imagem ou um símbolo visual. Já eu, seria capaz de interpretar qualquer ideia em qualquer língua.

    – Certo. Mas então, como?

    – Cada ideia corresponderá a um sinal elétrico específico. Tal como Saussure disse, a forma física das palavras é arbitrária: grupos diferentes criam palavras, gramáticas e sintaxes diferentes para falar das mesmas coisas. Mas, para cada pensamento, o conceito básico é exatamente o mesmo, seja em que língua for, e está sempre associado à mesma imagem mental, a qual pode ser lida, ou detetada, por meio da telepatia. Por exemplo, uma árvore é uma árvore seja em que língua for. Diferentes povos podem chamar-lhe os nomes mais estranhos que quiserem, mas nunca vai deixar de ser uma árvore por causa disso. Quando alguns deles disserem aproximem-se da árvore nas suas respetivas línguas, vai a multidão inteira encontrar-se no mesmo sítio apesar de não se conhecerem nem fazerem a mínima ideia das línguas uns dos outros. Certo? Conhecem todos a árvore, e é isso o que têm em comum! Assim, quando os nossos sinais elétricos ressoarem nos cérebros alheios, produzirão o mesmo padrão vibratório em qualquer língua, com possíveis diferenças meramente circunstanciais: uma pessoa pode estar a pensar num eucalipto e outra numa palmeira. O que importa isso? São apenas árvores!

    – Então, se bem compreendi, as palavras são apenas algo físico, do qual nos temos de tentar abstrair, mesmo sendo a própria telepatia uma forma de comunicação. Ou seja, não confundir o veículo da comunicação com o ato em si de comunicar.

    – Exatamente. O objeto exclusivo da nossa concentração são as ideias, no seu estado puro, nas mentes humanas: pensamentos, desejos, necessidades, sentimentos, emoções… Isto refere-se à aptidão humana da linguagem, logo está acima de qualquer língua; não esquecer que língua e linguagem não são a mesma coisa. As palavras em si são uma ferramenta indispensável da comunicação, e são uma das maiores manifestações do magnífico intelecto humano até hoje. No entanto, não são o objetivo aqui, porque não passam de símbolos arbitrários, cuja utilidade está sempre limitada ao contexto das suas respetivas línguas. O que todas as pessoas do mundo têm em comum é que pensam com imagens mentais, abstrações e emoções. Portanto, a nossa dicotomia neste estudo será o físico contra o mental; o tangível contra o abstrato; a palavra contra o pensamento.

    – A palavra fulcral a reter aqui é ideias, no seu estado puro – concluiu ela, para se assegurar de ter compreendido. – Antes de serem expressas em palavras ou outros símbolos. Certo?

    – Precisamente, professora Kobayashi. O conceito de comunicação é sempre o mesmo: nas mentes dos indivíduos existem ideias que precisam de ser transferidas para as mentes de outros. Mas a comunicação nem sempre é verbal. Veja, também há a linguagem corporal e os sinais de trânsito, por exemplo. E o que nós estamos aqui a fazer é ambicioso; estamos a acrescentar ao fascinante portfólio humano mais uma forma de comunicação, que também tem o potencial de ajudar a compreender o funcionamento fundamental, puro, das nossas mentes. Para fazer isto, temos de começar por nos libertarmos da nossa dependência daquilo a que Saussure chamava os significantes, ou seja, as palavras, e buscar exclusivamente os significados: a noção de que há sempre algo, há sempre ideias nas mentes humanas, que não têm de ser exteriorizadas em palavras, mas que nós próprios podemos ir lá buscar na sua forma pura, sem palavras, nem desenhos, nem qualquer outra forma convencional de comunicação, e que nós temos de saber ler e compreender no seu estado puro. Mais tarde, aí sim, poderemos parar de nos limitarmos aos conceitos puros e voltar a recorrer às palavras, lendo-as nas mentes humanas à medida que surgem, para acelerar o processo… Mas as palavras, de facto, não são em si mesmas as ideias humanas; são uma maneira de contornar um problema, como uma ponte entre as mentes. Não podemos dar-nos ao luxo de atravessar essa ponte.

    – Temos de atravessar o rio a nado, não é?

    – Não, professora. Temos de atravessar o rio a andar, com os pés sempre a tocar no fundo, não importa durante quanto tempo fiquem submersas as cabeças. De outra forma, nunca compreenderemos o que é que há lá no fundo.

    – Mas… assim afogamo-nos.

    – Ninguém disse que não podemos usar tecnologia para nos ajudar a respirar.

    E assim foi. O projeto foi desenvolvido em segredo quase absoluto, até que o doutor Shirakawa se tornou a primeira pessoa no mundo capaz de ler, e controlar, mentes alheias. Foi demonstrando as suas novas capacidades, tais como traduzir um diálogo de dois colegas africanos em suaíli, assistir aos sonhos de uma colega adormecida, fazer um recém-nascido cantar e até mesmo fazer um colega americano produzir uma autêntica dissertação em japonês, lentamente, mas sem o menor erro. Ela admirava-o mais do que nunca; ele sempre a apoiou e encorajou até juntos conseguirem realizar o sonho dela… Mas ela não sabia que já estava a viver o seu mais turbulento pesadelo.

    Passados sete meses, quando tudo ia de vento em popa, de repente ele não viera trabalhar, não dera qualquer aviso e estava incontactável. Era impossível continuar normalmente a investigação sem ele. Além disso, pela grande estima que a equipa inteira tinha por ele, ficaram preocupados a nível pessoal. Como era possível que ninguém soubesse onde estava ele? A situação foi participada à polícia e ao governo; o trabalho continuou, embora muito lentamente, e com a moral destroçada. A situação repetiu-se no dia seguinte. Tentaram por tudo encontrá-lo e saber notícias dele, mas ele desaparecera sem deixar rasto.

    O Instituto de Investigação Especial de Osaka, um centro de pesquisa sob o comando direto do governo japonês nos arredores da cidade, parecia uma grande universidade quando observado desde o exterior. O que não era aparente era a extensa rede secreta de túneis, laboratórios, culturas hidropónicas e armazéns que fora construída no subterrâneo, muito menos o que lá se passava. Da janela de um dos edifícios que ocultavam toda aquela operação, via-se a paisagem montanhosa de um dia húmido do princípio da primavera japonesa. A metrópole assistira a um paradisíaco nascer do sol; porém, estava sob a ameaça das nuvens que se aproximavam. Ouviu-se no corredor um praguejo em japonês, claramente audível mesmo vindo detrás de uma porta fechada.

    O jovem professor Higashiyama, um dos mais dinâmicos discípulos do doutor Shirakawa, terminara furiosamente uma chamada na qual recebera a notícia de que o seu mentor continuava desaparecido. Habitualmente estoico e contemplativo, habituado às dificuldades, era um jovem oficial cujo talento em tantas diversas áreas do saber, demonstrado ao serviço da força aérea japonesa, o levara a uma colaboração mais próxima com o Instituto de Osaka. Sempre se esforçara ao máximo, almejando a perfeição em tudo; quando não estava a treinar para acumular horas de voo, estava a investigar a telepatia ou a dar aulas de matemática, química e física, especializando-se na aerodinâmica. Porém, naquele dia, a sua compostura vacilava face ao crescente nervosismo. Que incompetência era aquela? Como podia ser que ninguém encontrasse o doutor Shirakawa, o mais importante de todos? O desaparecimento dele poderia ter consequências graves para toda a equipa de investigação. Chegara o momento de resolver o problema pelas próprias mãos. Saiu do seu gabinete com um cartão de acesso especial, notificando o seu superior das suas intenções ao mesmo tempo. Para ter acesso ao espaço privado do doutor Shirakawa com um cartão que não fosse o do próprio, o sistema emitiria automaticamente um sinal de alarme que colocaria todo o Instituto em alerta amarelo.

    O interior do pequeno, mas luxuoso, apartamento revelava muito, ainda que não tudo, o que ia dentro da mente do doutor Shirakawa. As paredes estavam decoradas com quadros animados que representavam cenas na natureza, como quedas de água e noites com chuvas de estrelas, as quais seriam acompanhadas pelo sistema de som que reproduziria os ruídos ambientes correspondentes, ou música suave conforme a vontade, para criar o ambiente mais relaxante possível. Aqui e ali, relíquias culturais e recordações de países exóticos prestavam testemunho à dimensão e à variedade do nosso mundo, e algumas plantas artificiais acrescentavam ainda mais profundidade a todo aquele cenário. O sistema de ar condicionado silencioso, para além de regular a temperatura, purificava e humidificava o ar. No entanto, todo o restante espaço nas paredes estava preenchido com mapas e fotografias. Uma inspeção mais cuidadosa revelava que aqueles mapas descreviam países com fronteiras muito diferentes das reais, e que muitos países haviam inclusive deixado de existir. Os mapas mostravam, aliás, uma aparente sucessão de realidades alternativas, começando nos mapas mais simples que mostravam países maiores e progredindo para mapas mais complexos, com países cada vez mais pequenos e numerosos. Alguns dos papéis afixados nas paredes apresentavam também bandeiras fictícias ou menos conhecidas, associando-as a hipotéticos estados soberanos.

    Um computador portátil desligado, mas ainda aberto, continha uma pista; pousado sobre o teclado estava o retrato de uma mulher. Pegando nele para o examinar melhor, o professor Higashiyama reconheceu-a sem dificuldade: um tabu do doutor Shirakawa, uma antiga paixão que nunca aceitara os avanços dele, em grande parte por o doutor Shirakawa ser bastante mais velho. Só quando se falava dela deixava ele de ser o simpático e caridoso cientista de sempre, passando a deixar escapar sinais de um profundo e velho rancor. Teria ele então partido para estar com ela? Assim parecia, mas que sentido faria isso se ela não queria estar com ele? Estaria ele desesperado? Ou procurava convencê-la?... Convencê-la, como? E porquê agora?… Foi então que o professor Higashiyama, horrorizado, compreendeu a terrível verdade.

    Contactou imediatamente o seu superior, reportando tudo o que descobrira, pedindo ajuda para localizar aquela mulher e recomendando o envio imediato de agentes especiais para a proteger. Depois, desfardou-se rapidamente e saiu de carro do Instituto; sabia que a vivenda daquela mulher estava a oeste de Osaka, embora não soubesse bem onde. Agindo por instinto, foi acelerando por uma estrada que atravessava bosques e montanhas até finalmente alcançar a morada que o seu superior, entretanto, lhe comunicara. Chegou lá pouco depois da polícia, que já cercara o local, e juntou-se depois aos agentes especiais que se preparavam para entrar naquela casa. Já anoitecera e chovia intensamente, o que reduzia a visibilidade e facilitava a fuga do criminoso caso ainda lá estivesse.

    Avançaram de armas em riste e com aparelhos de visão térmica. A pretendida do doutor Shirakawa era, também ela, rica; a sua propriedade estava protegida por uma equipa de guarda-costas. No entanto, a visão térmica dos agentes especiais não acusava a presença de ninguém naquele lugar, e ficaram perplexos ao ver porquê: estavam mortos, já frios, caídos no chão em diferentes pontos da propriedade, muitos deles claramente abatidos por armas de fogo. Um deles, que jazia no meio do pátio, fora alvejado no peito várias vezes; a chuva intensa misturava-se-lhe com o sangue seco na camisa, fazendo uma parte deste voltar a fluir, diluído, até ser absorvido pela terra. Ao lado da mão morta jazia a pistola-metralhadora com que tentara impedir o seu atacante. Os abundantes invólucros de 9mm, espalhados pelo chão em vários pontos da propriedade, revelavam que o tiroteio fora prolongado e atroador. Várias janelas e paredes apresentavam buracos de bala, provas de rajadas disparadas em fúria contra quem ripostava do interior do edifício. Não seria normalmente necessário disparar tantos tiros, o que revelava que as rajadas tinham sido descontroladas, como se os guardas estivessem a sofrer alucinações.

    Atravessaram o pátio e entraram no edifício, espalhando-se para investigar diferentes divisões. Encontraram a mulher na cama, debaixo de uma colcha quente. Parecia estar a dormir, mas não respondeu quando tentaram acordá-la. Os sinais vitais estavam fracos. Foi levada imediatamente para a ambulância enquanto a polícia acabava de revistar a casa. Não havia sinal do doutor Shirakawa; a foto no teclado do portátil era a única pista que ele deixara, para que eles recordassem aquele dia como o prelúdio de uma distopia, mas nada indicava o seu destino seguinte. Devido ao secretismo daquela situação, a mulher não foi levada para um hospital, mas sim para o Instituto. Estava numa espécie de coma, certamente induzido pela intrusão mental do doutor Shirakawa. No entanto, na sua mente adormecida ainda estavam registados os acontecimentos do dia anterior. A sua escassa atividade cerebral tornava difícil discernir tudo com exatidão, mas a professora Kobayashi, já iniciada na telepatia e com o auxílio de protótipos que amplificavam as suas capacidades, conseguiu ver o que acontecera.

    A mulher estava a dormir quando foi despertada pela sensação de uma presença ominosa no seu quarto. Vendo o rosto do doutor Shirakawa, compreendendo apenas que ele de alguma forma tivera acesso ao seu espaço privado, viu o perigo que corria e quis gritar por socorro…, mas não conseguiu. Nem gritar, nem fugir, nem resistir, não conseguiu reagir de maneira nenhuma. Só compreendia o pânico de sentir que algo, um impulso inexplicável e involuntário, a obrigava a levantar-se e descobrir-se perante ele. Nunca sentira uma dor de cabeça tão avassaladora. Os olhos dela choravam e imploravam por piedade naquele seu momento mais vulnerável. Ele não desperdiçou palavras, nem teve de fazer uso da força para a obrigar a submeter-se. O corpo dela estava à mercê dele, por muito que ela tentasse resistir-lhe com toda a sua força de vontade. Ele não a magoou. Nunca quisera magoá-la. Quisera apenas possuí-la. Mas o desespero, a agonia de uma mente quebrantada incapaz de resistir, foi infinitamente pior do que normalmente teria sido a dor física de uma violação. Ficou com ela horas a fio, fazendo dela o que queria, obrigando-a a revelar o próprio corpo de inúmeras maneiras diferentes, e só parou quando sentiu que os guardas dela começavam a ficar desconfiados por ela estar a demorar tanto a sair do quarto. Foi então que ele pôs em marcha a atrocidade que o sistema de videovigilância depois revelou ao professor Higashiyama.

    As câmaras captaram a chegada do doutor Shirakawa à casa dela de manhã cedo, identificando-se como uma visita, mas era invisível a forma como ele obrigou o mordomo a deixá-lo entrar sem o anunciar. Em vez disso, o mordomo transmitiu falsas instruções da mulher aos guarda-costas para não interferirem. Antes de ir na direção dela, passeou pela propriedade para localizar os guarda-costas. Foi por isso que foi captado por várias câmaras de segurança em pontos diferentes da propriedade, parecendo perdido, mas revelando por vezes o olhar malévolo de quem tem um plano. Os guarda-costas mandavam-no voltar para trás, mas não compreendiam que ele quisera aproximar-se deles para poder invadir-lhes as mentes. Já no dia seguinte, quando ela demorava a sair do quarto, as câmaras registaram o princípio do tiroteio: o Shirakawa passara a noite a sondar e quebrantar as mentes deles à distância, saturando-as com impulsos selvagens e ilógicos. Foi por isso que as câmaras, em vez de gravarem uma qualquer força externa a atacar aquela casa, gravaram os guardas a chacinarem-se uns aos outros, até ao suicídio dos últimos. Ela, já tão entorpecida, nem se apercebeu do ruído infernal na sua própria casa.

    Quando ele finalmente a deixou, colocou uma colcha sobre o corpo dela para que não adoecesse por causa do frio até ser encontrada, ali abandonada e condenada a nunca mais voltar a ser a mesma. Mais tarde viriam a descobrir também que ele aproveitara a oportunidade para se apoderar de toda a riqueza dela, falsificando ordens de transferências em nome dela, deixando-a sem nada. A polícia, o Instituto de Osaka e o governo foram obrigados a inventar uma narrativa qualquer sobre como aquilo fora algum ajuste de contas perpetuado pela máfia japonesa.

    Juntando toda aquela informação, a professora Kobayashi e o professor Higashiyama não precisariam de ler as mentes de ninguém para compreender o sucedido. Eles tinham criado um monstro que os usara e traíra. Amaldiçoando a confiança que nele tinham depositado, apressaram-se a relatar o sucedido a todos os outros. Todos tinham perfeita noção da gravidade do problema: andava à solta um louco, inteligente demais para deixar qualquer rasto, que ninguém conseguia encontrar e que tinha o poder de fazer o que quisesse a quem quisesse. Só poderia ser detetado de duas maneiras: ou identificando qualquer atividade suspeita que pudesse ser obra dele… ou fazendo alguém tornar-se um telepata suficientemente forte para conseguir comunicar com ele; encontrá-lo pelo pensamento, como um cão encontra pelo cheiro algo invisível.

    À equipa do Instituto, era impreterível encontrar as pessoas mais aptas do mundo, as mais ambiciosas e energéticas e inteligentes de todas, na esperança de formar uma pequena equipa de supertelepatas que conseguissem encontrar o doutor Shirakawa. Mas esses teriam de ser pessoas com mentes abertas para aceitar o desafio de testar tecnologias novas e potencialmente perigosas, e também responsáveis para usarem eticamente essa tecnologia, sem se tornarem pequenos Shirakawas. Encontrar essas pessoas não seria fácil e demoraria tempo. Muito tempo. E cada segundo que passava era mais uma oportunidade para o doutor Shirakawa, com todos os seus contactos e fundos, ir aonde quisesse e cometer com total impunidade os crimes mais horríveis que se pode imaginar. E ele tinha ambição para fazer muito mais do que apenas violar velhas paixões. Quem poderia impedi-lo de obrigar qualquer pessoa a cometer qualquer crime por ele, mantendo ele o seu nome limpo enquanto pessoas inocentes pagavam o preço? Identificá-lo sem que ele iludisse as mentes alheias, fazendo-as pensar tratar-se de outra pessoa? Impedi-lo de controlar economistas e magnatas, fazendo-os desviar todo o dinheiro que quisesse, para onde quisesse? Impedi-lo de dominar a mente de políticos e falsificar ordens, virando os países uns contra os outros e começando guerras sem provocação em qualquer lugar? Demonstrar qualquer relação entre ele e qualquer um destes crimes, sendo que o conceito de telepatia não teria credibilidade alguma em qualquer tribunal do mundo?

    Sem exagero nem eufemismo: o Shirakawa podia, se quisesse, destruir o mundo inteiro. E eu… Só queria paz. Aproveitar a juventude, viver a vida, dar-me bem com toda a gente. Só desejava, ao mundo inteiro, prosperidade e harmonia. Era, e serei sempre, contra o ódio em todas as suas formas, mesmo que isso pareça duvidoso por eu me ter tornado um soldado em nada alheio ao combate. Rejeito toda a violência desnecessária e sinto remorsos por cada ato violento, por muito necessário que tenha sido.

    Às vezes vejo-me ao espelho e sinto que apenas estou a mentir a mim próprio. Nunca matei ninguém que não tivesse sido, como eu, obrigado a combater, mas tenho vergonha de admitir que isso aconteceu. Por muito que tente suavizar e racionalizar a situação com a necessidade da violência, a verdade é que houve violência e não consigo perdoar-me por isso. Nunca deixei de sentir que cada soldado inimigo era, também ele, alguém inocente cuja vida devia ter sido salva. Quantos combates não podiam ter sido evitados? Quantas vidas poderiam ter sido poupadas? Será que todos aqueles que ainda hoje me seguem o fazem porque de facto represento algo de bom, ou fazem-no por medo? Ou estarão só a tentar aproximar-se de mim para tentarem matar-me? E será que os que não me seguem me odeiam, convictos de ser eu a causa do seu sofrimento? Não tenho como saber as respostas porque não os conheço a todos.

    É nesse momento que sinto que, por muito que quisesse evitá-lo, acabei por me tornar algo ainda pior do que aquilo que tentava combater. Um monstro. Um assassino. Um déspota. E é no momento seguinte que tenho de me lembrar, mais uma vez, da promessa que fiz a mim próprio: nunca esquecer que, pensem o que pensarem de mim, a minha intervenção foi necessária; caso contrário, tudo teria sido infinitamente pior. Eu represento uma segunda oportunidade para todos aqueles cujas vidas foram destruídas pelo Shirakawa e por… aqueles que ele, em segredo, temia.

    Alheio a tudo o que acontecera no Japão, nem imaginava as mudanças que atravessaria, a pessoa em que acabaria por me transformar, por causa de um louco do outro lado do mundo. Só quase oito anos depois, na transição para a vida adulta, viria eu próprio a estar envolvido, descobrindo a verdade aos poucos. Seria esse o momento que definiria o meu caráter e o meu destino. Deixaria o meu país, sem deixar de lhe chamar casa, mas expandindo enormemente o meu conceito de casa. Aprenderia a ser o guerreiro mais forte que pudesse ser. Lutaria para sobreviver. Acabaria por construir um novo lar muito, muito longe das minhas origens, apesar de insistir em não as esquecer; em todas as minhas viagens, levaria no meu coração pesado o nome de Portugal.

    II – Xadrez

    Ogonh¹!!

    À minha ordem, gritada em russo, começara um tiroteio desenfreado. A força atacante, avançando sobre a nossa base, viu-se obrigada a procurar abrigo atrás de qualquer pedra, arbusto ou parede em redor; mas dispersavam-se, ficando à mercê das equipas destacadas para os cercar imediatamente pelos flancos. Pensando que cobriam adequadamente os flancos, não viram que os meus destacamentos estavam escondidos a uma distância segura. Encurralados, os restantes não tiveram escolha senão manter-se onde estavam e retribuir fogo como pudessem. A parte difícil seria resistir aos ataques seguintes. Contra-atacar em massa era impossível; a defesa irredutível era a única opção.

    Eu comandava uma força de sete equipas, composta por indivíduos das mais diversas origens. Havia três línguas universais: o português, o russo e o inglês. As primeiras quatro equipas, todas envolvidas na emboscada, eram comandadas por um bielorrusso, dois ucranianos e um moldavo. As restantes três, com maior mobilidade, eram comandadas por anglófonos: um escocês, um canadiano e um australiano. Destas, as duas primeiras defendiam o perímetro dos ataques secundários, e a terceira manter-se-ia perto de mim, para o que desse e viesse.

    Estávamos em desvantagem à partida. Éramos vinte e sete numa unidade pouco ortodoxa, desconexa, de pessoas que mal se conheciam e ainda pior se compreendiam; eu tinha de fazer daquelas pessoas uma unidade capaz de resistir a uma força com quase o dobro do tamanho, sem barreiras linguísticas e cujo comandante era um oficial veterano, respeitado, sábio… e o meu rival pessoal. Tanto na minha unidade

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