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Cosmion
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E-book290 páginas4 horas

Cosmion

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Sobre este e-book

... Em meio a um pandemônio escalar e envolvente (o nosso), uma ciclística e transgeracional excursão até um geográfico ponto elevado e deslumbrante. Um veraneio que se pretendia despretensioso, nostálgico e bucólico, munido de deliciosos víveres e repleto de inúmeros ensinamentos a serem ministrados. Que o foram, de fato, mas que, impensável, radical, abrupta e tragicamente passam a servir de portal a toda uma escatológica e distópica conjuntura que se instala, pejada de dramaticidade, desespero e superação, mas, também, e paradoxalmente, de realismo e esperança... Nos ínterins, jornadas interligadas de duas criaturas iluminadas, suas respetivas aprendizes e consanguíneas pupilas, e um inimaginável trajeto, primeiro, solitário, depois, evolutivo e longânime de um rapaz do futuro ... Ao final, uma incursão clarividente e descodificadora pela toca do coelho na qual todos fomos, estamos e uns poucos farão para que estejamos, para todo o sempre, inseridos e encerrados...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de mar. de 2023
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    Cosmion - Marco Paulo Silva

    COSMION

    MARCO PAULO SILVA

    C:\Users\pegas\Desktop\LINHA RODAPÉ V.png

    Sem qualquer caráter autoelogioso, sem ponta de vaidade ou réstia narcísica, de forma sui generis, assumo, dedico todo este empreendimento literário à minha pessoa. O motivo?

    Por todas as biográficas adversidades/agruras combatidas, contornadas, superadas (e insuperáveis...); Por acreditar na realização de todas as façanhas que mentalizo/desejo e não desistir em meio a todo um mar de descrédito, solidão intelectual, deserto de ignorância, incompreensão, arrogância e confusão; E por me sentir e me ver sempre defronte a uma intransponível cadeia montanhosa de descaso e invisibilidade onde o eco é o vívido elemento que me acalenta e me resta...

    Ainda que em fado solipsista, creio, firmemente, no legado literário que deixarei a uma supina e ascensional condição de existir na busca de sentido e da verdade...

    COSMION

    Ordenamento do mundo e da sociedade através de símbolos auto-interpretativos e experiências correlatas, individualizadas e diretas, a partir das quais a existência humana adquire ordem e sentido, horizontalidade e profundidade reflexiva e decide partir para uma vertical amplitude e elevação – num transcurso sempre intrínseco e aferente, entenda-se –, o que implica a necessidade e a incontornabilidade de subordinar a sua ontologia, práxis e vontade à verdade substancial e transcendente dum Todo Inteligível.

    Qualquer regime totalitário ou Estado ideológico que se preze, por reconhecer apenas as realidades intramundanas e seculares, sempre substituiu, substitui e substituirá o individualizado cosmion por um cosmologismo coletivista, noosférico e mecanicista como processo de realidade a ser por ele concebido, incorporado, controlado e encerrado. O Homem estatizantemente endeusado tem como única função e escopo enredar os pares numa limitada e asfixiante ilusão. Como um aracnídeo na sua teia de aparências assenta-se o Homem que comanda o Homem – numa invólucra profana, hedonista, passional e utilitária contraforça à infinitude e onisciência divina. O aracnídeo não quer apenas tecer a teia por tecer. Ele quer apanhar a presa, dominá-la e deixá-la à mercê. O ato de surpreender a presa é a grande concupiscência do Homem dominador que dita o que pode e o que não pode ser feito, pensado ou aceite na sociedade por ele edificada e manietada. E aqui se dá a morte espiritual, o amputamento do cosmion, a danação terrena e a catástrofe civilizacional...

    PREFÁCIO

    A presente opus que agora se vos oferta resulta de um repto que me foi feito por parte do excelso Dennys de Andrade – editor e amigo – que, bem vistas as coisas, fora algo que sempre esteve presente, mas, até então, ignoto nas águas profundas da mente deste autor, ainda que, a espaços, se revolvesse e borbulhasse para que fosse trazido à tona, a saber: a possibilidade de AENIGMATA e PHARUS serem dois interlúdios de uma prosa só... Algo que, à data, e em face da imediata sequência individualizada das obras, por certa falta de engenho, arte e insight, é bom que se diga, não fora, pois, devidamente calculado. Tal lacuna passa, então, a estar aqui corrigida e reparada. Não se constituirá, ressalte-se, numa redundância de produção literária, visto que as duas obras citadas, e lidas individualmente, continuarão a manter seu espaço e valor intrínseco imaculado / preservado.

            A cada trecho, período ou parágrafo em que condenso pensamentos e formulações nas formas mais esfíngicas e tétricas, trechos, esses, com os quais vós, leitores, se verão confrontados, envolvidos e tragados, estejam preparados e conscientes da enorme complexidade que ocultam e revelam, e de que não haverá forma mais simplificada ou simplista dos abordar...

    Fiquem, pois, com a projetada interligação de dois mundos ficcionados que, a breve trecho, e de modo irremediável e inescapável, será, metafórica ou literalmente (Who knows?...), a interface a se operar nesta insana concretude em que todos nós, clarividentes e néscios, fomos enredados...

    C:\Users\pegas\Desktop\PARTE I.jpg

    I

    Os ponteiros do tempo convencional indicavam cinco e trinta da manhã quando Irus acordou com o cheiro de pão proveniente do forno a lenha de seu avô. Ambos haviam combinado um passeio de bicicleta que teria como escala final o mirante natural da montanha, consubstanciado com o melhor pão com linguiça que a humanidade já degustou (palavras de Irus) e outros víveres essenciais a um delicioso piquenique que se preze.

    Irus havia completado 15 anos de idade e, Ocram, seu avô paterno, quis ofertar-lhe um dia de escape, prazeroso, inesquecível e pleno de revelações. Um lenitivo, um dia de fuga da realidade civilizacional como um todo que, há muito, se encontrava numa progressiva, escalar, macro, global e globalizante beligerância difusa e multivetorial, aliando, em diversos, circunscritos e regionalizados pontos, o velho, convencional e clássico confronto bélico (a componente manifesta e diversionista), com a toxicidade, adulteração e botulismo químico, biológico, farmacológico, genético, bacteriológico-viral, sanitário e ambiental de recursos, alimentos e pessoas – um extermínio silente e paulatino –, e com a guerra cibernética, informacional, de narrativas, psicológica, de inteligências e especulativo-financeira (a componente latente à esmagadora maioria da população). Para um comum mortal, um conflito – o convencional citado – cujos antagonistas lhe pareciam facilmente identificáveis, muito por conta e intermédio de uma Mídia massificada e massificante que o programava, manipulava e levava a tomar partido de uma das partes, demonizando naturalmente a outra (que fingia ser opositora e adversária), mas tão só cortinas de fumaça (entre prolíferas outras) que camuflavam as reais motivações, causas, fitos, desideratos, autorias, coautorias, cumplicidades e colaborações de um único e vampiresco projeto...

    Ocram, esse, há muito o descortinara, quer pela sua natural e aguçada clarividência, quer mediante as inesquecíveis e inigualáveis aulas de um seminário de filosofia que cursara, e das incontáveis e posteriores conversas que tinha, e vinha mantendo, com o professor que o ministrava – o ermitão Merlin, assim o adjetivava carinhosamente –, do qual, inclusive, se tornou fiel e dileto amigo. Ainda que, sensivelmente, vinte anos mais novo, no conceito e concepção de Ocram, o magister constituía-se como um virtuoso sábio nas áreas de humanas, metafísica e geopolítica. Um escrutinador ímpar dos insondáveis domínios da consciência humana, sociológica e universal. Uma catedrática entidade, ainda de acordo com o nosso ancião, que possuía uma verdadeira obsessão por entender o mundo à sua volta – e além dele –, observar tanto as situações reais humanas como os resultados que advém de suas escolhas e ações, na plena tentativa de tudo compreender de forma absoluta e contagiante – e como contagiou... Aquele tipo de encontro que, inopinada e fortuitamente, a vida faz questão de patrocinar e promover, e que resvala para um tipo de amizade que, ainda que tardia ou recente, se torna mais sólida e despretensiosa que qualquer outra, porventura, mais antiga, duradoura ou convivencial... Quando Irus concluir o seu ciclo escolar e superior (às tantas, pensava), se essa for sua vontade e desejo, um dia levá-la-ei até ele para conhecê-lo e para se inscrever no bendito e agraciado curso. Ela possui e porta um potencial enorme... Será como juntar a fome com a vontade de comer...

    Mas os quinze anos da neta, naquele preciso dia, pautar-se-iam por um assunto tabu e proibitivo. Conversariam sobre tudo menos da infausta vivência babélica descrita, suas circunstâncias e minudências que tanto vinham assolando o mundo, num padrão histórico, constante e algorítmico, é certo, mas que na contemporaneidade parecia caminhar para um bíblico desfecho apocalíptico. No fundo, ele queria resgatar, ainda que por um minguado dia, e num mero ciclístico passeio, uma fugaz e harmoniosa realidade pré-existente. Presenteá-la, pois, com uma experiência bucólica e vintage vivida pela humanidade, não há tanto tempo assim, aonde, apesar dos pesares e periodicamente, a temerária paz, espiritual e terrena, era sentida, as pessoas viviam em comunidade e como uma rede de apoio – conviviam –, eram relativamente felizes e saudáveis, e a tecnologia, essa, vinha servindo, somente, como suporte e mera ferramenta facilitadora, de conforto e incremento de qualidade de vida – jamais a tirânica estrutura e o paradigma donde, a dada altura e num ápice, a malha civilizacional se viu totalmente manietada e sob o qual foram subjugados todos os affaires e cosmions humanos... Para se ter uma mísera ideia, já não se vislumbravam pássaros no ar, somente drones e mais drones com os mais variados fins e escopos. O trabalho era esmagadoramente realizado à distância, em home office, e as relações interpessoais (se é que assim se poderiam agora definir) decorriam na virtualidade celular e nas assépticas telas. Encontros físicos só a espaços e dentro do estritamente necessário. Quanto aos utilitários automóveis elétricos – não mais a combustão –, já vinham, também eles, e cada vez mais, a perder espaço para as mais ágeis, práticas e rápidas aeronaves de todos os tamanhos, gostos e feitios.

    Uma perambulação higiênica, detox e de purificação no atol paradisíaco em que resolvera se refugiar na derradeira trajetória da sua vida, era, portanto, o que ele, unicamente, pretendia. Todo o entorno geográfico em que a sua casa estava fundeada preservava uma paisagem rara e quase extinta. Natureza, arquitetura e infraestrutura em estado quase bruto, com pouca ou nenhuma intervenção, conspurcação e destruição humana. Na dita casa havia zero aparelhos de televisão e ele rejeitava, liminarmente, por parte de quem quer que fosse, qualquer ato ou intenção de convencimento para os ter. Somente, e por estrita necessidade, um celular e um modem de internet que, no momento desta narrativa, já assumia uma velocidade de processamento de dados avassaladora, interligando e edificando tudo e todos... A garota, essa, apesar de já pertencer a um biônico mundo, adorava visitar o casebre do avô e aquele oásis que, literalmente, parara e havia sido preservado no tempo. Trazia-lhe um bem estar e vigor (pudera) que não conseguia traduzir em palavras... Uma candura, ela, desde que nascera e existia, e que, ainda que juvenil, já era uma daquelas criaturas que reunia a finess e a plenitude estética do eterno feminino. Além desse atributo era dotada, igualmente, de uma pulsão epistemofílica (curiosidade, paixão e anseio por saber e entender sobre tudo) – herdada de Ocram – qualidades que coexistiam, em seu ser e estar, com a doçura angelical das tenras idades. Não espantava, pois, a admiração imensurável que nutria pelo Vô Ocram (assim o tratava) que, visto e tido como um homem comum, reunia inúmeros e impressionantes dons, à cabeça, uma gabaritada clarividência e sabedoria extraterrenas. Noutras ocasiões e momentos partilhados, a neta sempre lhe perguntava, onde e como, ele aprendera sobre tanta coisa. Ocram sempre respondia com a mesma máxima: temos que saber ver, ouvir, sentir e ler a vida em todas as suas formas e expressões, principalmente, nos momentos mais difíceis e dolorosos, aprendendo com todos os sábios que já passaram por este mundo, e com um ou outro que, porventura, venhamos a conhecer e a relacionarmo-nos – privilégio com que fui abençoado e brindado... Ademais, (acrescentava), não herdaste essa paixão pelo saber à toa.

    Disciplinado, metódico, irrequieto, com uma postura e nobreza de caráter, Ocram projetava na vida prática, pública e relacional, sem rodeios e sem filtros, toda a magnificência de sua índole. Uma alma itinerante, inconformada e idealista que buscava, a todo o tempo, e em tudo o que se propunha fazer, o aperfeiçoamento, a excelência e a verdade. Além de todas as valências citadas, que fazem toda a diferença na concretude, reparava bicicletas como poucos e sabia fazer um pão com linguiça de ir às lágrimas qualquer um que o tragasse. Um alimento de confecção artesanal que, ainda que condimentado e salpicado de pedaços de um embutido/enchido, destoava de todo o alimento enlatado e artificial que, há muito, tomava conta dos mercados e dos hábitos alimentares das famílias. Neste quesito, o piquenique, também ele, seria à moda antiga, natureba (assim foi por ele adjetivado), excetuando a citada linguiça e algumas irresistíveis frituras. Irus sabia disso tudo e sentia-se uma privilegiada. Sem embargo, uma das exigências que fez ao avô, quando este lhe manifestou o desejo de lhe oferecer um passeio emblemático (assim o designou), como presente de aniversário, foi, ipsis verbis, o de degustar aquele pão urdido pela inspiração dos deuses.

    Haviam acordado que a saída em direção ao mirante se daria às seis da manhã. Apesar da rústica casa de Ocram, que muitos, sabe-se lá por que, jocosamente adjetivavam de antiga, velha, modesta e indigna de receber visitas mais ilustres, mas que ele, sempre jactante, alegava que era o espelho da sua alma – a coisa em si, tal como ela é e deverá ser –, apesar de, dizíamos, estar situada nas proximidades do dorso montanhoso da região, em campesino quadro paisagístico, a distância até ao ponto desejado, em tempo e de bicicleta, duraria cerca de hora e meia, pois que, em alguns trechos, face ao desnível topográfico e à qualidade e estreiteza da trilha, seria necessário apearem-se e deslocarem-se com as bicicletas à mão. No planejamento meticuloso do ancião todo o script estava religiosamente traçado. E quando ele o esboçava, em qualquer circunstância, nem céus e terra o fariam mudar. A jornada iria durar o dia inteiro, com regresso projetado para antes do crepúsculo. Ele já previa que a neta viria com um compêndio de questionamentos. Assim, para além da ida e da volta, seria preciso estar preparado, e haver tempo hábil, para não fraudar as expectativas de Irus. No seu íntimo guardava a secreta esperança de poder ser um dia marcante e inolvidável na vida da neta. Um dia para fazer toda a diferença em seu futuro que ele, apesar de apreensivo, angustiado e pessimista torcia para que fosse o mais longevo, alvissareiro e repleto de alegrias, conquistas e realizações...

    O desjejum madrugador decorreu em silêncio, como demanda qualquer sanígena interconexão neuronal que procede à ação retemperadora dos braços de Morfeu. Acondicionaram, em duas mochilas, as provisões que iriam saciar o intolerante estômago, com especial cuidado para o divinal pãozinho, de forma a se manter quente e suculento, e todos os necessários utensílios. Colocaram vestimentas adequadas à empreitada e lá se puseram a caminho nas respectivas kalangas.

    Logo às primeiras pedaladas Irus dava o mote e mostrava ao que vinha:

    , os nossos nomes incomuns têm origem mesopotâmica, certo? Alguma relevância a assinalar na motivação da escolha dos mesmos?

    Ocram foi curto e peremptório:

    – Mais precisamente hebraico-sumeriano. A relevância abrange qualquer nome, pois ele é o primeiro, o derradeiro e imutável referente da identidade intransmissível da pessoa. No nosso caso específico, os nossos nomes têm uma linhagem cuja origem provém de um berço milenar de toda a civilização. Haverá outros, com certeza. A Mesopotâmia, ao colocarmos o planeta Terra numa perspetiva planisférica, ocupa uma área geodésica central de onde todas as outras coordenadas são praticamente equidistantes. Foi lá que surgiram as três principais religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, esta última, fez um parêntese, para ser preciso e rigoroso, na Península Arábica que lhe faz fronteira. E é lá, também, o secular palco de tantas convulsões geo-estrategico-etnico-políticas, de repercussão planetária, que demoraria mais de um dia para explicá-las... Em suma, a região onde as pessoas começaram a formar uma comunidade, uma coletividade, uma sociedade e uma cultura nos moldes em que, apesar dos pesares, ainda hoje nos inserimos. Há, todavia, divergências e posicionamentos outros. Seja como for (concluiu), o que nunca devemos negar, à partida, é aquilo que desconhecemos, até porque, ao contrário daquilo que sempre irás ouvir, são os mitos e lendas que enformam a realidade concreta e não o contrário. Assim como a práxis político-social sobreveio à literatura, assim como muita coisa do devir histórico e sociológico sobreveio à ficção e ao entretenimento. Guarda isto com todo o carinho, pois voltaremos a falar acerca (enfatizou).

    Enquanto Irus refletia sobre a concentrada informação que acabara de receber e a tentava processar (o ancião tinha essa tremenda capacidade de falar algo que continha e abarcava um cem número de informes e conjecturas), Ocram visualizava mentalmente o seu mirante natural de eleição (assim o tinha em seu conceito), já por ele visitado dezenas de vezes, desde os seus verdes anos, no qual ele buscava refúgio, respostas às inquietações da existência, paz e alento energético. Animado pelo fato da neta ir ali pela primeira vez, inconscientemente, entusiasmou-se e acelerou a cadência. Veio a si quando Irus, ofegante, falou:

    – Mais devagar, avô!

    – Ah, desculpa, querida! Passa tu prá frente! Ditas o ritmo e sinto mais segurança.

    Nesse mesmíssimo instante começaram a sentir na face um eólico sopro balsâmico. Apesar do tênue desnível da estrada de mão dupla por onde seguiam – aquilo que, comumente, se designa de falsa subida –, o mesmo impunha uma expectável dificuldade aos dois veraneantes e ciclistas de ocasião. A vegetação, à medida que a altitude, gradualmente, aumentava, tornava-se menos exuberante. O céu, esse, era de brigadeiro, pronunciando um idílico pano de fundo para o giro físico e deambulação mental arquitetada pelo ancião, em homenagem à sua discípula.

    Concentrada na cadência motora a levar a cabo e na gestão de seu esforço, Irus confrontou-se com a visão, do outro lado da faixa de rodagem, de um porco espinho, ou o que restava dele, esmigalhado no asfalto. Atropelado (pensou). E, acometida de uma imediata inquietude introspectiva herdada do avô ao seu lado, pôs-se a divagar sobre a fragilidade da vida. De desfrutar, plena e incondicionalmente, junto daqueles que estimamos e amamos, pois nunca sabemos até quando estaremos em sua companhia. Irus revelava aqui uma precoce e pujante maturação escamoteada e ignorada pela maioria das pessoas. Ocram, lendo, sagazmente, o semblante da neta e adivinhando seu pensamento desde o momento em que ela vislumbrou o animal morto, verbalizou do alto da sua hermética forma de ser:

    – Tudo nesta vida terrena é efêmero, transitório, volúvel, fugaz, inconstante, frágil, precário e passageiro. Constatações trágicas, sem dúvida, da nossa consciente condição.

    Irus, incrédula, percebeu que seu avô havia entrado em sua mente.

    – Mas (Ocram prosseguia), enquanto esse sopro evanescente se fizer sentir uma possibilidade infinitesimal de oportunidades, experiências e realizações se abrirão. Paradoxal? (Ele adorava expressar-se através de indagações esfíngicas, parábolas e metáforas). A pergunta é o melhor estimulante para a reflexão (sempre dizia). E, sim, paradoxal como só a vida sabe ser (rematou).

    – Como adivinhaste aquilo que eu estava pensando?

    – Aptidões que irás adquirir com a experiência, o convívio social e a interpretação da alma humana – nada de sobrenatural, fica tranquila! (respondeu com altivez). Vamos fazer uma parada estratégica para beber água e descansar um pouco?

    – Ansiava que o dissesses (frisou, patenteando um amarelado sorriso de alívio).

    Parando e usufruindo da acalentadora e providencial sombra de uma árvore que beirava a senda, avô e neta, com seu respectivo cantil, hidratavam-se com o vital e insubstituível líquido. Contundente e lancinante, Ocram rompeu o mutismo homeostático:

    – Netinha, acabaste de completar 15 anos e daqui a nada a realidade emergirá aos teus olhos sem contemplações e com toda a sua pujança, compressão e inexorabilidade. Utilizei há pouco a palavra trágica. Sim, a nossa condição ontológica de nascer, crescer e perecer é, por si só, autoexplicativa. É trágica porque, ao que se sabe, somos os únicos seres que consciencializamos e antecipamos todo esse  processo. Em face dessa irreversibilidade não há alternativa. Viver é um permanente devir onde caminhamos sobre brasas que se desinflamam ou se ateiam por múltiplos fatores, randômicos ou não. Também não adianta racionalizar, controlar ou tentar calcular cada passada. Num ápice, tudo se esvai. Terás, pois, que viver com esta inextinguível resignação, instintiva e evidente, como organismo superior, pensante e reflexivo que és, com milhares e milhares de anos de pressão desiderativa de sobreviver e se perpetuar, e com a qual jamais te irás conciliar.  O foco é o que realizar nesse ínterim vital que tens ao teu dispor e buscar, a todo o tempo, a harmonia do momento que concentra ausência de dor física ou psíquica, a liberdade corporal e de pensamento, o afeto e a fé... O aqui e agora é o período espaço-temporal que, definitivamente, tens que enfatizar e te ater, mas jamais esqueças, e esse é o alento e o conforto que terás que desenvolver e acreditar, de que tudo o que faças, vivencies ou sintas estará inserido num supra propósito espiritual. Se assim pensares, se assentares nesta perspectiva, transformarás a imanência trágica e inescapável sentida, num processo transcendente infindável. Não te parece auspicioso? (concluiu perguntando).

    Sentados à sombra da árvore, avô e neta viviam estados de espírito, obviamente, distintos. Irus, tentando entender o alcance e o significado de tudo aquilo que o seu avô acabava de lhe falar, numa forma e conteúdo que nunca ouvira até então. Ocram, por seu turno, sentindo que acabara de lançar as sementes e pôr em marcha o plano de fazer a mágica acontecer.

    – O que significa imanência?

    – Plano da realidade concreta e material que vês, percepcionas, escutas, cheiras e que podes tatear.

    II

    – Vamos! Pedala! (ordenou Ocram, depois de se assegurar que nenhum veículo se aproximava da berma onde retomavam a passeata). Irus, de modo atabalhoado, lá se projetou na sua bicicleta e restabeleceu, através do movimento propulsor dos pedais, o desejável equilíbrio cinestésico responsável por evitar uma queda. Em fluída toada, para a qual a qualidade do asfalto – um autêntico tapete – dava a sua quota de contribuição, Irus, matutando uma forma de não melindrar o avô, falou:

    – Tu sabes que os meus pais não acreditam em Deus e que eu tenho crescido inserida nesse contexto e paradigma...

    Ocram, após um compasso de espera, retrucou:

    – Eu sei! Metade da minha vida, e durante a educação de teu pai, eu era um ferrenho ateu... Não acreditava em destino e coisas do gênero. Revoltado e tolo sempre dizia para mim mesmo: se existe Deus, por que Ele não conserta um mundo tão disruptivo e caótico como este que estamos inseridos? Achava que sabia tudo e tinha o dom da verdade. Que era tudo uma ilusão, assim pensava. Mas o que seria de nós sem ilusões? Passei, então, a pensar a partir de determinada altura... (Loquaz, continuou a dissertar): É como a noção de Tempo. A fluência não se vê em si, só de modo indireto, em nós, no outro e nas coisas que nos cercam. Mas, ele existe. Para uns, é uma dimensão, para outros, um conceito convencional. Subjetivo, dirão aqueloutros. O mais importante conceito que desejo que tenhas acerca do mesmo é que, pelo menos, neste palco terreno o tempo é cíclico e frui em espiral – não linear, portanto. A discussão aparenta ser inócua, mas se não nos dermos tempo, claro está, para pensá-la, para agir nas mais variadíssimas formas, jamais o sentiremos e/ou desfrutaremos dele – do Tempo – ou entenderemos sua função,

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