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A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público
A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público
A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público
E-book491 páginas8 horas

A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público

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Sobre este e-book

Em A escola não é uma empresa, o sociólogo Christian Laval discute a crise de legitimidade da escola em tempos de avanço neoliberal e coloca em xeque os valores embutidos em termos hoje correntes na educação, como "inovação" e "eficiência". A obra faz um diagnóstico geral das mudanças nos sistemas educacionais influenciadas pelo chamado neoliberalismo escolar. Laval mostra como o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, entre outros órgãos, pressionam os sistemas de educação nacionais a fazer com que as instituições de ensino e os profissionais que nelas trabalham se moldem às necessidades do capitalismo contemporâneo. Vendidas como modernizadoras, medidas como as provas padronizadas e ideias como as de capital humano e de competências e habilidades se prestam mais a atender interesses do mercado que à formação e emancipação dos estudantes. A Boitempo publica esta obra pioneira, que serviu de alerta para a luta em defesa da escola pública na França, em nova tradução e com um prefácio inédito do autor, que atualiza as questões discutidas na obra e as relaciona ao contexto brasileiro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de dez. de 2019
ISBN9788575597231
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    A escola não é uma empresa - Christian Laval

    I

    A PRODUÇÃO DE CAPITAL HUMANO A SERVIÇO DA EMPRESA

    1

    NOVO CAPITALISMO E EDUCAÇÃO

    É previsível que a educação seja cada vez menos um ambiente fechado, distinto do ambiente profissional como outro ambiente fechado, e que ambos desapareçam em nome de uma trágica formação continuada, de um controle permanente sobre o operário colegial ou o executivo universitário.

    Gilles Deleuze, Pourparlers,

    Paris, Minuit, 1990

    O novo modelo escolar e educacional que tende a se impor se baseia, em primeiro lugar, em uma sujeição mais direta da escola à razão econômica. Está ligado a um economicismo aparentemente simplista, cujo principal axioma é que as instituições em geral e a escola em particular só têm sentido com base no serviço que devem prestar às empresas e à economia. O homem flexível e o trabalhador autônomo são as referências do novo ideal pedagógico.

    Uma dupla transformação tende a redefinir a articulação entre escola e economia em um sentido radicalmente utilitarista: de um lado, a forte concorrência dentro de um espaço econômico globalizado; de outro, o papel cada vez mais determinante da qualificação e do conhecimento na concepção, na produção e na venda de bens e serviços. As organizações internacionais de ideologia liberal, nesse aspecto acompanhadas da maioria dos governos dos países desenvolvidos (que incentivaram essa concepção de escola), transformaram a competitividade no axioma dominante dos sistemas educacionais: Competitividade econômica é também competitividade do sistema educacional[1]. A questão estratégica da massa cinzenta ou dos recursos humanos se tornou cada vez mais importante na competição entre as empresas transnacionais e entre as economias nacionais. Pelo que dizem os especialistas internacionais convocados pela OCDE, estamos entrando em um novo modelo educacional. Um desses especialistas, James W. Guthrie, apresenta da seguinte maneira as principais características desse novo modelo:

    A inteligência, valorizada agora pela educação, ou seja, "o capital humano, está rapidamente se tornando um recurso econômico primordial, e pode ser que esse imperativo" aos poucos dê lugar a um modelo educacional internacional. Os países-membros da OCDE esperam que seus sistemas educacionais e os diversos programas de formação profissionalizante contribuam em peso para o crescimento econômico, e estão realizando reformas para que isso aconteça.[2]

    Não poderíamos explicitar melhor o sentido dessa evolução. O controle direto e mais estrito da formação fundamental e profissionalizante é um dos grandes objetivos dos meios econômicos. Essa formação não somente vai determinar o nível de eficácia econômica e o dinamismo da inovação como vai fornecer um mercado muito promissor às empresas. A educação não dá apenas uma contribuição fundamental à economia, não é apenas um input em uma função de produção, mas é entendida como fator cujas condições de produção devem se submeter plenamente à lógica econômica. Por essa razão, é considerada uma atividade com custo e retorno, cujo produto se assemelha a uma mercadoria. Como dizia com seu costumeiro à-propos o ex-ministro francês da Educação Claude Allègre, o ensino é o grande mercado do próximo século.

    O caráter fundamental da nova ordem educacional está ligado à perda progressiva de autonomia da escola, acompanhada de uma valorização da empresa, que é elevada a ideal normativo. Nessa parceria generalizada, a própria empresa se torna qualificadora e envolvida no aprendizado e acaba se confundindo com a instituição escolar em estruturas de aprendizagem flexíveis[3]. O Livro branco da Comissão das Comunidades Europeias resume bem essa tendência:

    Há consenso entre os Estados-membros sobre a necessidade de maior envolvimento do setor privado nos sistemas de educação e/ou formação profissional e na formulação das políticas de educação e formação para atender às necessidades do mercado e das circunstâncias locais, por exemplo, sob a forma de incentivo à colaboração das empresas com o sistema de educação e formação e à incorporação da formação continuada nos planos estratégicos das empresas.[4]

    Momentos da escola

    As mutações do capitalismo permitem explicar, ao menos em parte, a natureza das reformas em curso. O nascimento e o desenvolvimento de um aparelho de educação e instrução separado da família e do ambiente de trabalho constituem uma das grandes transformações no Ocidente. Essa tendência faz parte de uma mudança de conjunto dessas sociedades, marcada pela autonomização das diferentes ordens (religião, política, economia e pensamento). Essa desincrustação (disembeddedness) geral das esferas sociais, segundo o termo de Karl Polanyi, é acompanhada da racionalização delas[5]. Embora o desenvolvimento de uma instituição especialmente destinada à difusão do saber tenha tido como razão primeira não a formação de mão de obra, e sim a construção de burocracias políticas e religiosas, o que implicava estender a cultura escrita a ministrantes diretos, assim como a muitos dos que mantinham relações de comunicação com elas, ele será cada vez mais incentivado e orientado, a partir dos primórdios da Revolução Industrial, pela demanda da indústria e da administração pública no que diz respeito à qualificação[6].

    Na França essa mudança ficou algo encoberta pela preponderância de longa data das finalidades culturais e políticas da escola, o que explica o fato de ela durante muito tempo ter sido considerada um fundamento da identidade nacional e um pilar da ordem republicana. Sabemos que o Estado se definiu a partir de um momento, em primeiro lugar, como um educador da Nação em luta contra a Igreja para assegurar sua hegemonia simbólica e ideológica, e que, para realizar essa grande obra, não hesitou em copiar o adversário tanto no plano organizacional como no plano pedagógico[7]. Contudo, por meio de uma combinação sutil, e dependendo da esfera e da época, a escola sempre teve laços mais ou menos diretos com o universo do trabalho. O próprio crescimento da escolarização dependeu em larga medida dos recursos advindos do desenvolvimento econômico, com algumas defasagens mais ou menos significativas entre as fases de forte crescimento econômico e o aumento da escolarização[8]. Em suas formas e seus materiais, em sua moral e suas feições pedagógicas, o sistema escolar soube abrir espaço, na sociedade industrial, para os valores do trabalho e para a orientação profissional diferenciada dos estudantes. A partir da segunda metade do século XIX, em paralelo ao ensino secundário clássico, surgiram carreiras, departamentos e estabelecimentos cuja missão era elevar o nível profissional da mão de obra e fornecer executivos à indústria e ao comércio. Contudo, apesar de essa via profissionalizante ter avançado entre as duas grandes guerras, a lógica dominante da escola continuou a ser durante muito tempo a que Bernard Charlot classificou de político-cultural[9].

    Na esteira desse autor, podemos distinguir três períodos históricos: um período em que a principal função da escola era integrar o indivíduo moral, política e linguisticamente à Nação; um período em que o imperativo industrial nacional ditou as finalidades da instituição; e o período atual, em que a sociedade de mercado determina mais diretamente as transformações da escola. No entanto, a evolução da escola não pode ser vista como um movimento linear. Desde o século XVI, afirmou-se uma concepção utilitarista da educação que alimentou continuamente a crítica aos sistemas escolares estabelecidos. Com o surgimento de uma sociedade menos religiosa e mais técnica e científica, menos tradicional e mais produtiva, as formas e os conteúdos escolares herdados do passado foram contestados pouco a pouco. O próprio saber passou por uma grande transformação quando começou a ser visto como ferramenta capaz de resolver problemas[10]. Foi sem dúvida Francis Bacon que, na aurora do século XVII, formulou de maneira mais clara a virada utilitarista que demorará séculos para se concluir: "Knowledge is power, saber é poder. O indivíduo deseja saber para melhorar seu destino, e isso desde suas primeiras experiências de infância. O homem em busca de felicidade aumenta a capacidade de suas faculdades aprimorando seu saber. A grande rebelião baconiana" contra a escolástica, segundo a expressão de Spencer[11], concebia o saber como um estoque, como um capital acumulado cuja função é aumentar a capacidade humana de dominação da natureza a fim de fazê-la servir melhor a seu bem-estar. Essa é a grande proposição moderna, e nunca é demais enfatizar sua importância. Nec plus ultra da representação que farão de si mesmas as novas classes ativas da indústria – burguesia e proletariado –, ela é a base comum do liberalismo e do socialismo. A partir da revelação do trabalho e da felicidade terrena, a crítica utilitarista atacará as formas e os conteúdos pedagógicos da civilização cristã e da cultura clássica do humanismo, denunciará o distanciamento do saber escolar em relação à prática, seu isolamento em relação à vida cotidiana, a abstração dos conhecimentos. Esses defeitos demonstrariam a natureza essencialmente aristocrática e ornamental do conhecimento transmitido até então. Ao contrário, os critérios da eficiência na produção e no comércio responderiam às exigências democráticas e populares: para seu bem-estar, o povo necessita de conhecimentos ligados à prática. Os demais, inúteis para ele, não são valorizados.

    O neoliberalismo atual não veio para transformar a escola de uma hora para outra. Desde bem cedo, muitos autores se dedicaram a definir e construir uma escola que coincidisse ponto por ponto com o espírito do capitalismo. A mutação presente é apenas a atualização, numa fase mais madura da sociedade de mercado, de uma tendência ativa há muito tempo. Basta reler os clássicos para se dar conta. Por exemplo, em Spencer, um dos principais teóricos utilitaristas da educação em meados do século XIX[12], encontramos argumentos a favor de uma educação para a vida completa que foram desenvolvidos muito antes dele por Benjamin Franklin, Rousseau e vários outros. O que é mais negligenciado em nossas escolas é justamente aquilo de que mais necessitamos na vida[13], diz Spencer. E, entre essas necessidades, as mais importantes são as relacionadas às profissões e aos negócios. Também encontramos o que Adam Smith já ressaltara quando pretendeu introduzir uma dimensão mercantil nas relações entre indivíduos e estabelecimentos de ensino: se queremos que as escolas ensinem coisas úteis, elas devem obedecer à demanda, e não ao conformismo da corporação ou ao capricho dos superiores. O mercado é o melhor estímulo para o zelo dos chefes, pois permite que seus interesses se confundam com seus deveres[14].

    Uma escola a serviço da economia

    Essas concepções utilitaristas e liberais se impõem em etapas. Após a Segunda Guerra Mundial, houve um período de forte crescimento econômico caracterizado pela exigência de mão de obra por uma indústria de alto desempenho e pelo aumento expressivo de efetivos escolarizados em todos os níveis, salvo no fundamental 1: ensino infantil, fundamental 2, médio e superior. A época do grande compromisso do welfare state assistiu ao crescimento extensivo do sistema escolar entre 1946 e 1973, no qual imperava a lógica quantitativa, tanto no número de alunos como nos investimentos. Esse período foi marcado pela aspiração à igualdade de condições e pela orientação mais clara e direta do aparelho escolar pelo sistema produtivo. Os anos 1960 e 1970 foram dominados pela obsessão de fornecer trabalhadores qualificados em número suficiente à indústria francesa e de formar futuros consumidores capazes de utilizar os produtos mais complexos fabricados pelo sistema industrial. Outros fatores, em particular os de natureza ideológica, tiveram grande influência, a começar pela crença progressista na identidade entre crescimento econômico, democracia política e progresso social, expressa, por exemplo, pelo Plano Langevin-Wallon, principal referência da esquerda política e sindical no pós-guerra[15].

    Além disso, a partir dos anos 1960, o Estado adota categorias de análise e ferramentas de gestão para regular e adequar os fluxos de mão de obra. Essa industrialização da formação requer não apenas investimentos financeiros, mas também investimentos simbólicos, isto é, criação de formas institucionais e classificações para estruturar a relação salarial: diplomas e qualificações, níveis de formação e medidas de orientação dos alunos, por exemplo. A partir do IV Plano (1960-1965) surgiram as primeiras tentativas de planejamento coordenado de mão de obra e ensino, prolongadas e ampliadas pelo V Plano (1965-1970). A ideia principal era determinar com mais precisão, por extrapolação das tendências observadas, um ajuste ótimo entre mão de obra e necessidades da economia. A análise da relação educação formal-emprego devia determinar a estrutura e o tamanho ótimo do sistema educacional em função das necessidades das empresas[16].

    Esse período é marcado por uma crítica de inspiração tecnocrática ao chamado ensino tradicional ou clássico que encontramos nos relatórios do plano e em certos meios sindicais e patronais, a qual muitas vezes se confunde com uma crítica política e sociológica de um sistema não igualitário. Ela aparece também em organizações internacionais e, em particular, em trabalhos da OCDE que hoje são considerados pioneiros. A obra Indústria do ensino, de Lê Thành Khôi, resume essa argumentação no início dos anos 1970[17]. O autor constata que hoje em dia o ensino, que em várias etapas se tornou uma verdadeira indústria de massa, só pode ser descrito sistematicamente com a ajuda de categorias econômicas. Essa interpretação do ensino distingue três funções na educação moderna: formação de mão de obra qualificada; mudança cultural que suplanta o que é herdado; e formação de cidadãos responsáveis[18]. Para o autor, essa mutação marca o fim do humanismo clássico, baseado no altruísmo e na livre atividade humana. A primeira função é imposta pelo crescimento econômico e pelo desenvolvimento do bem-estar. A escola, que não é mais a única fonte de saber, deve aprender a aprender para que a criança seja capaz de ordenar e fazer a triagem da informação confusa, lacunar e tendenciosa da cultura comercializada de massa. Essa primeira educação escolar é apenas o prelúdio de uma educação permanente, uma formação no dia a dia, associada a reciclagens periódicas – a cada três ou cinco anos, conforme a área –, a fim de que o produtor ponha seus conhecimentos em dia e se adapte a uma tecnologia em movimento[19]. Além disso, a universidade deve gerar conhecimentos novos, e não se contentar em transmitir o que herda das gerações passadas. Dessa exigência, o autor conclui que a escola e a universidade devem se tornar quase empresas, com um funcionamento calcado no modelo das companhias privadas e com a obrigação de alcançar máximo desempenho. O autor ressalta ainda o rendimento do ensino como variável importante – garantida pelas novas tecnologias – e o imperativo de adequação do ensino à modernidade para evitar o desperdício e a perda de tempo: a escola não é nada se não preparar para a vida, diz o autor, desenterrando sem querer o utilitarismo de Spencer[20]. Certamente não é uma referência à privatização nem à rentabilidade em sentido propriamente mercantil. O papel da oferta de ensino como serviço público parece ser preponderante para ele, pois espera que o Estado contribua para a modernização da sociedade e para a eficiência global da economia. Contudo, convém chamarmos a atenção para o fato de que esse discurso modernizador é historicamente uma maneira de redefinir o sistema de ensino, contra o humanismo tradicional, como uma máquina produtiva subordinada a modos de raciocínio e abordagem que podem ser aplicados a outros setores da produção. Muitos progressistas não viram dificuldade em aderir a esse discurso, pois parecia ir ao encontro dos promissores avanços da ciência e do desenvolvimento das forças produtivas.

    Apesar das críticas, durante muito tempo houve certa acomodação entre a missão cultural e política da escola e o novo imperativo econômico, o que fez muitos acreditarem que, no futuro, a mão visível do Estado seria capaz de unir harmoniosamente os progressos do espírito e o desenvolvimento da produção, desde que centrasse menos os estudos nas humanidades antigas e abandonasse a ilusão a respeito do altruísmo da cultura. No entanto, esse grande acordo histórico, que pretendia combinar o desenvolvimento econômico da nação com a idealização de uma burocracia francesa educadora do espírito, serviu de preparação para a contestação neoliberal dos anos 1980 e 1990.

    Por uma escola neoliberal

    As reformas impostas à educação serão cada vez mais guiadas pela preocupação com a competição econômica entre os sistemas sociais e educativos e pela adequação às condições sociais e subjetivas da mobilização econômica geral. O objetivo das reformas orientadas para a competitividade (competitiveness-driven reforms) é, portanto, melhorar a produtividade econômica ao melhorar a qualidade do trabalho[21]. A padronização de objetivos e controles, a descentralização, a mutação da gestão educacional e a formação de professores são reformas focadas na produtividade (productivity-centred). No entanto, a escola neoliberal também pretende melhorar a qualidade da força de trabalho em seu conjunto sem aumentar impostos e, na medida do possível, reduzindo o gasto público. Daí as campanhas e as políticas, implantadas na mesma época tanto nacional como mundialmente e em todos os níveis da atividade educacional, para diversificar o financiamento do sistema educacional (clamando muito mais abertamente pelo gasto privado), administrar mais eficazmente a escola (como fazem as empresas), reduzir a cultura ensinada na escola às competências indispensáveis para a empregabilidade dos assalariados, promover a lógica de mercado na escola e a competição entre famílias e estudantes pelo bem escasso (e, consequentemente, caro) da educação.

    A partir dos anos 1980, surge uma concepção ao mesmo tempo mais individualista e mais mercadológica da escola. Essa nova fase corresponde à desestruturação da sociedade industrial que os economistas chamam de fordista e de seu padrão característico de emprego. Após a virada de 180º do governo socialista, o Estado francês deixa que as lógicas de mercado ajam mais abertamente, tenta reduzir seu próprio raio de ação e adota o modelo da empresa privada. Na administração escolar, a tendência também é de descentralização, diversificação, gerenciamento moderno e gestão por demanda. Nesse período, o imperativo de eficiência imposto à escola começa a se tornar preponderante, primeiro para controlar custos, depois por uma questão de concorrência entre países e entre empresas e, por fim, por razões propriamente ideológicas: a escola é vista cada vez mais como apenas mais uma empresa, obrigada a acompanhar a evolução econômica e a obedecer às exigências do mercado. A retórica gerencial dos responsáveis pelo mundo político e pela alta administração escolar se torna cada vez mais invasiva. O Estado regulador, segundo a expressão proposta por Bernard Charlot, tende não só a delegar aos escalões inferiores e a serviços descentralizados a ação cotidiana racionalizada de acordo com as regras da gestão dita participativa e segundo o esquema de contratualidade entre níveis e tipos de administração, mas também a generalizar parcerias entre atores de todos os tipos. Esse Estado, guiado pelos novos princípios da ação pública, define as grandes perspectivas e avalia a posteriori os resultados dessa gestão mais autônoma com o auxílio de um instrumental estatístico rigoroso, que permite o comando das unidades locais e periféricas. A descentralização do sistema escolar foi pensada e desenvolvida segundo esse mesmo esquema[22].

    Afora a desculpa dos inúmeros e cada vez mais patentes defeitos do aparelho burocrático hipertrofiado e massificado no longo período do Estado desenvolvimentista, cresceu a pressão por introduzir mecanismos de mercado e métodos de gestão inspirados na lógica empresarial, em nome da eficiência e da democracia. Na prática, a política de territorialização abriu caminho para uma desregulação escolar que, supostamente, deveria atender às novas necessidades sociais, versão soft da mão invisível dos liberais:

    A doutrina dominante inverte a proposta anterior: na educação como em outros domínios, a questão não é mais corrigir as imperfeições do mercado por meio da intervenção do Estado, mas remediar as falhas do Estado pela promoção de um mercado supostamente autorregulador, isto é, estabelecer a superioridade ética da agregação das preferências individuais por processos mercadológicos sobre a deliberação como modo de elaboração das escolhas sociais.[23]

    O papel tutelar do Estado educador é contestado quando a escolha das famílias é reconhecida e incentivada pela dessetorização dos estabelecimentos escolares, por seu ranqueamento e por todas as formas de responsabilizar o indivíduo. O modelo do mercado tende a se impor, ao menos como referência ideológica, e de maneira muito eufemística quando a esquerda envereda por esse caminho. A instituição escolar, nesse novo contexto, deve produzir uma oferta que vise à satisfação de uma demanda de consumidores bem informados. No fim dos anos 1990, a fria constatação se impõe: A ofensiva neoliberal na escola é um processo já avançado[24].

    Essa mutação deve ser situada no contexto mais geral das transformações do capitalismo a partir dos anos 1980: globalização do comércio, financeirização das economias, desobrigação do Estado, privatização das empresas públicas e transformação dos serviços públicos em quase empresas, ampliação dos processos de mercadorização ao lazer e à cultura, mobilização geral dos assalariados numa guerra econômica generalizada, contestação das proteções dos assalariados e disciplinarização pelo medo do desemprego. Muito mais que uma crise passageira, o que presenciamos é uma mutação do capitalismo. O que está em jogo é o enfraquecimento de tudo que serve de contrapeso ao poder do capital e tudo que institucionalmente, juridicamente e culturalmente limita sua expansão social[25]. Todas as instituições, além da economia, foram afetadas por essa mutação, inclusive a instituição da subjetividade humana: o neoliberalismo visa a eliminação de toda rigidez, inclusive a psíquica, em nome da adaptação às situações mais variadas com que o indivíduo depara no trabalho e na vida. Mais que nunca a economia ocupa o centro da vida individual e coletiva, os únicos valores sociais legítimos são a eficiência produtiva, a mobilidade intelectual, mental e afetiva, e o sucesso pessoal. Isso não pode deixar incólume o sistema normativo da sociedade e seu sistema de educação.

    A escola flexível

    As transformações da organização do trabalho, em parte reais e em parte idealizadas no discurso oficial, explicam em grande medida o tipo de mutação escolar que as forças econômicas e políticas dominantes exigem. A referência ideal da escola passou a ser o trabalhador flexível, de acordo com os cânones da nova representação da gestão. O empregador não espera mais do assalariado uma obediência passiva a instruções precisas: ele quer que o assalariado utilize as novas tecnologias, compreenda melhor o sistema de produção ou comercialização no qual sua função está inserida, deseja que ele seja capaz de enfrentar as incertezas e demonstre liberdade, iniciativa e autonomia. Em resumo, o empregador quer que, em vez de obedecer cegamente às ordens superiores, o assalariado seja capaz de discernir e analisar para impor a si mesmo uma conduta eficiente, como se esta última fosse ditada pelas exigências do próprio real. A autonomia que se espera do assalariado, que consiste em ele se dar ordens e se autodisciplinar, não acontece sem um certo saber. Em outros termos, o assalariado tem de integrar num universo mais complexo os modos de fazer e os conhecimentos necessários ao tratamento dos problemas, segundo as fórmulas em vigor. Por isso autodisciplina e autoaprendizagem andam de mãos dadas. A hierarquia burocrática e o taylorismo de tipo clássico tendem a desaparecer diante do autocontrole generalizado. A nova regulação no trabalho reside em uma maior margem de ação da periferia e em um controle baseado no cumprimento de metas. Paralelamente, e em conformidade com a doutrina do capital humano, o trabalhador tem de se armar de conhecimentos e competências durante toda a vida e não pode mais se definir por um emprego estável ou um estatuto específico: Na era da informação, o trabalhador não se define mais em termos de emprego, mas em termos de aprendizado acumulado e aptidão para aplicar esse aprendizado em situações diversas dentro e fora do local de trabalho tradicional[26]. A diretriz é a empregabilidade

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