Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia – Volume 1
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Pedagogia histórico-crítica - Ana Carolina Galvão
Capítulo 1
FUNDAMENTOS DA DIDÁTICA HISTÓRICO-CRÍTICA: SUPERANDO LIMITES E RECOLOCANDO DESAFIOS
Tiago Nicola Lavoura
¹
Ana Carolina Galvão
²
Este texto é resultado da participação de seus autores no congresso Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia, realizado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em setembro de 2019. Na oportunidade, organizamos nossa intervenção de modo a apresentar os limites e os desafios (inspirados pelo pressuposto metodológico da superação por incorporação
) da problemática da didática, no interior da pedagogia histórico-crítica.
Com efeito, o conteúdo de nossas exposições sustentou-se no acúmulo de estudos e debates acadêmicos realizados nos últimos anos, cuja síntese encontra-se na mais recente obra por nós publicada, Fundamentos da didática histórico-crítica (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019).
Levando isso em consideração, o presente texto apresenta alguns dos aspectos desenvolvidos no aludido trabalho já publicado. Partimos de uma lógica expositiva, cuja organização trata, em um primeiro momento, dos limites reconhecidos quanto à questão da didática no atual estágio de desenvolvimento das práticas pedagógicas, cuja intencionalidade remonta ao ato de ensinar histórico-crítico. Em momento posterior, reafirmamos alguns dos principais elementos por nós considerados como imprescindíveis para o avanço e superação dos desafios (re)colocados no âmbito de nossa teoria pedagógica.
Antes, no entanto, de finalizarmos a introdução, gostaríamos de fazer alusão a dois aspectos referentes ao fazer pedagógico na educação escolar, que têm nos saltado aos olhos com mais evidência nos últimos anos, nas consecutivas experiências de trabalhos desenvolvidos em secretarias de educação, congressos e demais intervenções com professores da educação básica.
Primeiro, os professores buscam soluções e caminhos para fazerem o melhor trabalho pedagógico possível, mesmo considerando, muitas vezes, o fato de que as condições de trabalho docente e o percurso de suas formações profissionais não lhes tenham possibilitado um estudo minimamente satisfatório e certo domínio das teorias pedagógicas críticas (com destaque para a pedagogia histórico-crítica).
Nesse sentido, destacamos a pedagogia histórico-crítica como a teoria pedagógica mais avançada (o que significa mais rica em determinações teóricas) tanto para pensarmos sobre a educação do país e os problemas educacionais brasileiros quanto para contribuir para o desenvolvimento formativo da classe trabalhadora em termos de humanização. Salientamos, entretanto, que a formação inicial de professores tem negado o acesso às bases teóricas da pedagogia histórico-crítica, inviabilizando a adesão a ela e, assim, esvaziando as práticas de ensino nas salas de aula.
A título de exemplificação, em levantamento realizado pelo Grupo de Pesquisa Pedagogia histórico-crítica e educação escolar da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) em todas as instituições públicas brasileiras com cursos de licenciatura (institutos e universidades) e projetos político pedagógicos e ementas disponíveis on- line, conseguiu-se analisar 759 ementas de cursos de licenciatura, sendo que a pedagogia histórico-crítica aparece apenas em cerca de 20% delas (90 ementas).
Outro aspecto, os professores não estão absolutamente confortáveis e seguros de suas práticas pedagógicas quando buscam fundamentá-las nas perspectivas teóricas pós-críticas, hegemônicas na educação atual³, centradas no referencial da epistemologia da prática e da formação por competências. Tais perspectivas desqualificam, a um só tempo, o ato de ensinar, o papel do professor e a função social da escola. Isso significa que há resistência!
E é na direção da resistência que precisamos colocar-nos. Para tanto, o primeiro passo é compreender os limites de uma interpretação mecanicista do método pedagógico histórico-crítico.
1. A DISSEMINAÇÃO DE UMA DIDÁTICA PARA A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: CONTRIBUIÇÕES E LIMITES
Sem nenhum tipo de tergiversação, reafirmamos a impossibilidade atual de se pensar e se discutir a problemática da didática e do ensino no âmbito da pedagogia histórico-crítica sem citar a tentativa pioneira de João Luiz Gasparin, com o livro Uma didática para a pedagogia histórico-crítica, publicado em 2002.
A despeito do fato de Gasparin (2012) ter ensaiado uma transposição direta do método pedagógico, expresso em cinco passos, para efeitos de sugestão de procedimentos didáticos a serem realizados pelos professores em processos de ensino, reconhecemos que seu trabalho foi de suma importância para debater e enfrentar a questão tão reiteradamente colocada do como ensinar, com base na teoria pedagógica histórico-crítica.
Ademais, devemos atribuir a essa primeira tentativa desenvolvida por Gasparin (2012) o fato – e isto não é qualquer coisa – de a teoria pedagógica passar a ser discutida e pensada como uma possibilidade efetiva de implementação prática em diversas redes municipais e estaduais do ensino público do nosso país.
Por fim, destacamos ainda outro elemento que para nós torna-se um dos principais, em termos de reconhecimento e consideração sobre a obra do professor Gasparin, sobretudo na atual conjuntura política brasileira: em tempos de recrudescimento das políticas educacionais com vistas a efetivar o direito à educação pública de qualidade, de disseminação do obscurantismo, de negação do direito ao exercício livre de pensamento, de tentativas de silenciar e eliminar do horizonte as teorias e práticas de fundamentação crítica, seria um grave erro teórico e político considerar a obra de João Luiz Gasparin como uma espécie de teoria inimiga a ser abatida.
Com efeito, submeter à crítica um trabalho cujo autor consideramos estar do nosso lado em termos de campo teórico e político não significa almejar sua destruição ou seu cancelamento. Partimos do pressuposto metodológico marxiano de superação por incorporação, cuja significação máxima concretiza-se a partir do movimento teórico de análise e síntese de verificação dos limites, das insuficiências e das inconsistências de uma dada formulação já existente. Assim, partindo dessa verificação, cabe a nós formular, desenvolver e fazer avançar a compreensão e explicação até então existente sobre um determinado objeto (no caso em questão, o objeto é a didática histórico-crítica).
Estamos, portanto, seguindo a orientação dada pelo próprio professor Dermeval Saviani, ao afirmar os três momentos que toda e qualquer teoria verdadeiramente crítica deve conter, anunciando que o avanço dela e de qualquer teoria está condicionado, necessariamente, ao crivo da própria crítica, aprofundando as determinações de seus aspectos teóricos. Saviani destaca, assim, que um ponto crucial é a análise crítica das tentativas que vêm sendo encetadas de aplicação da pedagogia histórico-crítica nos vários campos de atuação educativa no contexto brasileiro atual
(SAVIANI, 2017, p. 723).
Dito isso, procuraremos sintetizar aquilo que compreendemos ser o limite central da tentativa de Gasparin (2012) em apresentar uma didática à pedagogia histórico-crítica, considerando a exposição dessa crítica publicada em Galvão, Lavoura e Martins (2019), conforme já anunciamos.
O problema geral da elaboração de Gasparin (2012) reside no fato de realizar uma conversão direta do método pedagógico em procedimento de ensino. O equívoco da procedimentalização⁴ do método carrega consigo outras consequências, não menos importantes, tais como: formalização do método, engessamento do caráter de dialeticidade, movimento contraditório do seu desenvolvimento e concreção na prática pedagógica, reducionismo teórico e didático em termos de imediata adoção de regras e técnicas de ensino, entre outras.
Desse problema geral, duas graves consequências têm tido preocupante disseminação no interior do campo da pedagogia histórico-crítica, notadamente quando o objeto em questão é a didática: i- uma inapropriada compreensão das dimensões categoriais do método materialista histórico-dialético de síncrese-análise-síntese e consequente associação dessas perspectivas a uma concepção pragmática de prática-teoria-prática; e ii- um esquematismo didático de organização de processos e ações de ensino em cinco passos rigidamente estabelecidos e delimitados em termos de tempo e espaço didático-pedagógico.
Com relação à primeira consequência do equívoco da procedimentalização do método, Gasparin (2012) chega mesmo a anunciar sua proposta de construção de uma didática para a pedagogia histórico-crítica com a afirmação de que a primeira tarefa a ser feita pelos professores em situações de ensino é verificar e situar a prática social dos sujeitos da educação. A segunda tarefa consiste na teorização sobre essa prática social. Por fim, o terceiro momento dessa metodologia de ensino é o retorno à prática para transformá-la, considerando que depois de passar pela teoria, isto é, pelo abstrato, o educando poderia posicionar-se de maneira diferente em relação à prática.
Desse modo, o autor acaba por associar o movimento do método dialético da síncrese à síntese pela mediação da análise a um reduzido esquema que consistem em: partir da prática, ir para a teoria e retornar à prática. Tal esquema, por sua vez, parece estar muito mais próximo em termos metodológicos da formulação feita pela pedagogia da formação reflexiva de ação-reflexão-ação⁵.
Quanto à segunda consequência, Gasparin (2012) acaba transformando os chamados momentos constitutivos do método pedagógico (prática social inicial, problematização, instrumentalização, catarse e prática social final) em ações de ensino rigidamente formuladas por passos formalmente sequenciados, imputando uma correspondência linear entre método e organização de procedimentos didáticos temporalmente delimitados em planejamentos de ensino e planos de aula.
A indevida e generalizada formalização esquemática do método pedagógico histórico-crítico tem culminado em um nocivo reducionismo do desafio de se pensar uma didática da pedagogia histórico-crítica. Voltemo-nos, pois, àqueles que consideramos alguns dos nossos principais desafios no tempo presente.
2. DESAFIOS DA DIDÁTICA HISTÓRICO-CRÍTICA
Com certa recorrência, temos sinalizado em nossas intervenções profissionais e publicações acadêmicas que um dos desafios centrais da didática na pedagogia histórico-crítica diz respeito à questão do método e do resgate de seus fundamentos no âmbito do materialismo histórico-dialético.
Recorrendo às categorias metodológicas elaboradas e desenvolvidas por Marx (2011) e sustentando nossas análises em autores do chamado campo marxista que se dedicaram ao desenvolvimento de análises de caráter metodológico (CHEPTULIN, 1982; GOLDMANN, 1967; KONDER, 1981; KOPNIN, 1978; MARKUS, 1974; NETTO, 2011; PINTO, 1979, entre outros) temos afirmado a imprescindibilidade da distinção entre método (pedagógico) e procedimentos (de ensino).
É nesse sentido que delimitamos o método pedagógico como um conjunto articulado de fundamentos lógicos, os quais alicerçam toda a organização e o desenvolvimento do trabalho educativo com vistas a orientar o agir de professores na apreensão das múltiplas determinações constitutivas da dinâmica, da processualidade e das contradições da relação entre o ensino e a aprendizagem (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019).
Também é nessa perspectiva de análise que compreendemos os chamados cinco momentos da didática da pedagogia histórico-crítica não como procedimentos práticos de ação em sala de aula, mas como categorias lógicas⁶ do método pedagógico, que expressam diferentes graus de determinações das relações mais particulares entre ensino e aprendizagem e mais universais entre educação e sociedade (a prática social como ponto de partida e de chegada do ato educativo, sendo problematização, instrumentalização e catarse seus momentos