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Folhas Do Outono - Vol. 1
Folhas Do Outono - Vol. 1
Folhas Do Outono - Vol. 1
E-book576 páginas6 horas

Folhas Do Outono - Vol. 1

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Sobre este e-book

Memórias de uma história real que abrange cinco gerações. Walkyria é neta orgulhosa dos personagens mais antigos, que viveram no final dos anos 1800, e é avó da galera nascida no final dos 1900. O leitor é levado a uma viagem no tempo, com passagens surpreendentes acontecidas no Paraná, Goiás e Rio de Janeiro ao longo de mais de um século. Folhas do Outono mostra que a vida real é uma aventura que não raro segue por caminhos inusitados, saindo dos trilhos do que se espera e planeja. Este volume contém as partes 1 e 2 da obra completa. A parte 1 abrange um período entre o final do século 19 e o ano 1957. A autora fala de suas origens e conta episódios de sua infância e adolescência. Na parte 2, Walkyria conta detalhes de um período intenso de sua vida, entre dezembro de 1957 e dezembro de 1958, em que tomou decisões que mudaram o rumo de sua história em meio a um romance avassalador.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de jan. de 2023
Folhas Do Outono - Vol. 1

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    Folhas Do Outono - Vol. 1 - Walkyria Gaertner Boz

    Parte 1

    Preâmbulo

    É outono... céu cinzento... folhas ao vento, rolando, rolando, rolando... Vou voltar no tempo, voltar muito! Também estou no outono de minha vida e as lembranças rolam, rolam como aquelas folhas.

    O vento frio que assobia nas árvores faz rodamoinhos de folhas. Da mesma forma, o tempo faz minhas lembranças rodopiarem, subirem, descerem, rolarem e se amontoarem cansadas...

    Esperam, talvez, outra rajada de vento para continuarem a valsa louca, cada vez mais longe de suas origens.

    Estamos em 2018.

    Os anos estão passando céleres...

    Completei 80 anos no final do ano passado. Tive uma vida feliz até aqui, apesar dos altos e baixos, alegrias e tristezas, como todo mundo... Não existe felicidade plena e contínua porque, se assim fosse, a vida seria monótona e sem graça. Por certo, ninguém teria histórias diferentes para contar e talvez nem houvesse a História dos povos, suas lutas e suas glórias.

    O mundo seria um tédio de mesmices...

    A vida é maravilhosa por ser assim, cheia de contrastes e diferenças, sofrimentos e venturas. Há homens fortes e fracos, cada qual diferente do outro, encarando seu destino com bravura ou covardia.

    O que forma a humanidade é sua diversidade de crenças, preconceitos, ambições, aceitações, revoltas e vitórias, sonhos, experiências felizes ou desastrosas...

    Aí está o planeta a nos ensinar a mesma lição: nem um centímetro de terra é igual ao outro! A variedade da geografia do planeta se reflete na história e na diversidade de tudo que nasce e vive na Terra: montanhas e planícies, altos e baixos, florestas e desertos, calor e frio...

    O que me convenceu a escrever este relato foi perceber que minha vida tem muitos episódios interessantes e extraordinários, meus altos e baixos. Tenho certeza que essas histórias vão surpreender a maioria dos meus contemporâneos e vão revelar um mundo desconhecido para os mais jovens.

    Sempre gostei de escrever, mas quase tudo que produzo vai para a gaveta para ser organizado e revisado depois. Quanto depois ainda tenho?

    Fui buscar minhas lembranças lá longe, machucadas, abandonadas, amareladas e esmaecidas pelo tempo, como meus escritos... Vou lançá-las agora ao sol, ao público. E elas rolarão... rolarão pelo mundo ao sabor do vento como...

    Folhas do Outono

    01 - A Linda Rosa Juvenil

    Faz muito tempo que não me disponho a escrever e devo fazê-lo, antes que os assuntos que quero registrar se confundam numa grande maçaroca de letras ou acabem se esmaecendo em minha memória.

    Sempre que conto sobre como meu marido e eu nos conhecemos e do romance cinematográfico que vivemos, me dizem que devo escrever essa história. Relutei muito em fazê-lo, mas hoje percebo que minha vida tem mesmo muitas histórias que merecem ser contadas. Então, mãos à obra!

    Há doze anos, por insistência de meu filho, meu grande incentivador, comecei a publicar um blog (folhas-do-outono.blogspot.com.br/) contando sobre episódios pitorescos que vivenciei. Esse primeiro Folhas do Outono também registra minhas opiniões e comentários sobre alguns assuntos que me inquietavam.

    Vou começar este novo trabalho no mesmo ponto pelo qual iniciei aquele blog: a época da minha meninice.

    Cantava-se, naquele tempo, uma cantiga de roda na qual ainda hoje eu me vejo espelhada:

    A linda rosa juvenil, juvenil, juvenil,

    Vivia alegre num solar, num solar, num solar...

    A linda rosa juvenil não era tão linda assim, mas era juvenil e cheia de sonhos. Ela via o mundo com olhos confiantes, acreditando que algo a esperava. Lutaria para conseguir o seu lugar. Tinha potencial para isso.

    Éramos três irmãs, com pequena diferença de idade. Não tivemos uma infância e adolescência fácil, apesar do empenho de nossos pais em nos esconder isso, tentando nos dar o melhor que podiam. Meu pai era idoso e doente. Na nossa infância ele conseguia algum recurso fazendo representações e comissões sobre vendas, que não saiam com regularidade. Minha mãe dava aulas em casa, de corte e costura, e costurava muito para fora, para completar o orçamento escasso.

    Naquela época, não enxergávamos a gravidade da situação porque morávamos em Bonsucesso, um subúrbio modesto da zona norte do Rio de Janeiro. Todos que nos rodeavam viviam da mesma maneira simples e nada víamos que nos sinalizasse diferenças. Éramos crianças felizes, ativas e peraltas, mas respeitosas e obedientes, como eram as crianças daqueles idos de 1945.

    Como toda criança, nada sabíamos do passado de nossos pais, nem o porquê de estarmos ali ou de onde viéramos. Não nos importava, sentíamo-nos amparadas, com uma mãe extremosa e um pai presente. Não percebíamos a frustração de nosso pai, que havia sido um homem rico no Paraná e agora amargava o ostracismo.

    Não percebíamos a tristeza de nossa mãe. Ela era muito mais jovem que ele e só tomara conhecimento da real situação financeira do marido bem depois do casamento. Àquela altura, nada mais havia a fazer a não ser ir em frente, já que havia a sorte de três meninas em jogo.

    02 - Minhas origens

    Nascido em 1881, Dario Fagundes dos Reis Gaertner, meu pai, foi militar de carreira. Estudou na Escola Militar de Porto Alegre, seguindo os passos de seu irmão mais velho, Júlio Gaertner, que, mais tarde, eu conheceria como tio coronel Júlio.

    A Escola Militar de Porto Alegre foi criada pelo Imperador D. Pedro II, com o nome de Curso de Infantaria e Cavalaria da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em 20 de setembro de 1851. Foi transformada em Escola Militar Preparatória, para candidatos que aspiravam ingressar na Escola Militar da Corte.

    Seu funcionamento foi interrompido devido à Guerra do Paraguai, e só voltou às atividades em 1874, com o nome de Curso de Infantaria e Cavalaria. Em 1880 o Visconde de Pelotas determinou a transferência para o novo prédio em construção (atual Colégio Militar de Porto Alegre). Passou a funcionar ali a partir de 1883.

    Dario estudou no Curso de Infantaria e Cavalaria. Foi para Porto Alegre aos 16 anos, em 1897.

    1897 - Dario na Escola Militar de Porto Alegre

    Em decorrência de atos de indisciplina dos alunos, envolvidos numa briga com a Guarda Municipal de Porto Alegre em 1898, a escola foi transferida para o município de Rio Pardo, também no Rio Grande do Sul, com o nome de "Escola Prática e Tactica Para Officiaes da Guarda Nacional". Dario estudou ali nessa época, tanto em Porto Alegre quanto em Rio Pardo.

    1898 - Dario na Escola Militar de Porto Alegre

    Casou-se com Carlota Castelo Branco, pouco depois de se formar, em 1901. Em seguida, foi chamado a servir no Rio de Janeiro, onde prestou serviço no Palácio do Catete, como Fiscal da Guarda Presidencial no governo do presidente Rodrigues Alves (15/11/1902 a 15/11/1906). Creio que continuou nesse trabalho ainda sob o governo de Afonso Pena (15/11/1906 a 14/06/1909) e talvez também pelo governo de Nilo Peçanha (14/06/1909 a 15/11/1910).

    1905 - Carlota e Dario, cinco anos de casados

    Quando morava no Rio, Dario procurou por uma tia que também morava lá. Era uma irmã de sua mãe, que se chamava Julieta. Fora casada com um rico comerciante português, bem mais velho que ela. O marido falecera havia tempo e eles não tiveram filhos. A tia se encantou com o sobrinho atencioso e passaram a se visitar com frequência.

    O convívio de Dario e esposa com a tia Julieta ia muito bem, até que ela adoeceu e veio a falecer. Para surpresa de Dario, ela lhe deixou toda a sua herança, com a condição que a repartisse com seus irmãos

    Ele distribuiu a herança, mas ficou com a maior parte. Era o que diziam alguns parentes. Não sei até onde é verdade, mas o fato é que Dario se tornou um homem de muitas posses.

    2018 - Aspecto atual do sobrado da Rua Benjamin Constant nº.30 no Arrabalde da Glória no Rio de Janeiro, onde Dario e Carlota moravam em 1906.

    (Fonte: Google Street View)

    1916 - Lembrança da Quinta (da Boa Vista), no Rio de Janeiro: Arnaldo Kalkmann, Carlota (esposa de Dario), Tereza (esposa de Arnaldo, irmã de Dario), Dario Gaertner e a pequena Eunice

    Na volta para Curitiba, meados de 1909 ou começo de 1910, Dario foi convidado a participar da Guarda Civil de Curitiba, que estava em organização. Conforme consta no acervo da Câmara Municipal de Curitiba:

    "No Paraná, o artigo 8º da Lei Estadual 1041/1911 autorizou o presidente do estado Francisco Xavier da Silva a criar a Guarda Civil. Ela foi instituída pelo decreto 262 de 17/06/1911 e passou a atuar com sede num dos prédios do entorno da Praça Zacarias. A inauguração desse local se deu em 25/11/1911.

    Com a presença do presidente do Estado Affonso Alves de Camargo e Joaquim Macedo, prefeito de Curitiba, foi instalada a Guarda Civil na Praça. Zacarias. Tinha como Inspector Guilherme Marques de Souza Soares, major reformado do exército e como Sub-inspector Dario Fagundes Gaertner."

    O regimento contava inicialmente com 60 guardas e, dentre eles, estava o irmão de Dario, João Gaertner.

    Dario assumiu o comando pouco depois e esteve à frente da corporação por algum tempo. Ele era instrutor de artes marciais como jiu-jitsu, novidade que implantou na corporação.

    1911 - Dario no comando da Guarda Civil de Curitiba

    1911 - Dario passando em revista a corporação.

    Muitos anos depois, quando Getúlio Vargas esteve em Curitiba em 20 de outubro de 1930, Dario fez parte da sua segurança. Na foto, ele aparece perto do revolucionário gaúcho na sacada da estação Ferroviária da RVPSC (Rede Viação Paraná Santa Catarina), na Av. Sete de Setembro.

    1930 - Dario como segurança de Getúlio Vargas

    Nessa época, Dario convivia com personagens da esfera governamental e da alta sociedade do estado. Anos depois, já no Rio de Janeiro, eu já tinha uns 8 ou 9 anos, quando tínhamos visita de parentes do Paraná, podíamos ouvi-lo citando com certa intimidade os nomes de Afonso Camargo, Caetano Munhoz da Rocha, Ney Leprevost, Manoel Ribas e outros personagens que hoje fazem parte da história e são nomes de ruas e logradouros em Curitiba

    Décadas de 1900 e 1910 - Dario em fase próspera

    03 - O Piano

    Com os recursos da herança da tia, Dario montou três cinemas em Curitiba, no final da primeira década dos anos 1900. Era o tempo do cinema mudo, ainda uma novidade acessível para poucos. Tornou-se a distração favorita da sociedade, onde as famílias se encontravam e as senhoras tinham oportunidade para mostrar seus vestidos e penteados. O saguão também era, claro, o local para comentarem as últimas novidades (e maldades) que ocorriam.

    Nesse tempo, contava Dario, ele vivia correndo os bares atrás dos músicos que contratara para tocar durante as sessões de cinema. Os filmes não tinham som, mas havia música ao vivo nas salas de exibição. A música enriquecia a experiência de ir ao cinema. Os bons músicos conseguiam, com canções adequadas a cada momento, intensificar as emoções das cenas que se viam na tela. Entretanto, em geral eles eram boêmios e Dario se desesperava, pois era comum estarem alcoolizados e terem que ser levados praticamente à força para cumprir seus compromissos nos cinemas.

    Dario era luterano, neto do pastor Johann Friederich Gaertner, que migrara da Alemanha para o Brasil em meados do século 19. Sua congregação foi pioneira dessa religião no Paraná. Dario não era religioso praticante mas respeitava as tradições rígidas do luteranismo: não fumava, nem bebia. Na verdade, menosprezava com veemência, sem esconder, os viciados nessas drogas.

    Atento às notícias do mundo, tomou conhecimento da existência de uma novidade incrível: pianos que tocavam sozinhos. Eram fabricados nos Estados Unidos e tinham um mecanismo de ar comprimido que pressionava as teclas e executava as peças musicais. Para tocar as músicas, usava rolos de papel especial com perfurações. O papel deslizava e os furinhos deixavam o ar passar no momento exato de tocar cada nota. Uma máquina incrível mesmo para os padrões modernos, pois nem sequer usava eletricidade. Tudo que precisava era da força de um homem para pedalar foles que comprimiam o ar. Esse operador se sentava ao piano como se fosse o pianista, mas não precisava tocar nada, bastava pedalar e instalar um novo rolo quando cada música terminasse.

    Cansado de se aborrecer com os músicos, Dario importou um desses pianos e mais trezentos rolos de músicas. Era uma coleção bem diversificada, que incluía trechos famosos de óperas, valsas e schottische famosos da época. O schottische é uma palavra alemã que significa escocesa. Referia-se à polca escocesa e está na origem, tanto no ritmo quanto no nome, do xote brasileiro.

    O delicado instrumento chegou de navio no porto de Paranaguá. Foi transportado para Curitiba num carroção puxado por muitos cavalos. Subiu pela Serra da Graciosa, até então a única via de acesso a Curitiba. Veio acolchoado por xaxins, para não sofrer com os solavancos da íngreme estrada, construída na época do império com calçamento de paralelepípedos.

    A chegada a Curitiba foi muito divulgada e Dario contava, rindo, que enfeitaram o carroção com fitas coloridas e guirlandas de flores. Contratou, então, o Benedito, um negro reforçado muito conhecido na cidade, e o ensinou a lidar com os pedais.

    Instalaram no piano um rolo de valsas e desfilaram com alarido pela Rua XV de Novembro, coração da cidade. O Benedito pedalava a todo vapor, sorridente e fingia tocar. Um moleque jogava balas para a multidão surpresa e extasiada que assistia à cena. Um terceiro contratado, de voz tonitruante, anunciava a presença da maravilhosa máquina nas sessões do América Cine que, soubemos depois, estava localizado na esquina da Praça Tiradentes com a Rua Cândido Lopes, onde hoje está a sede do Banco do Brasil.

    Benedito era um benquisto bonachão, um faz-tudo com habilidade em diversos serviços manuais, mas... ninguém sabia que ele tocava piano, muito menos com tanta naturalidade e perfeição, mesmo que em cima de um carroção, desfilando pela cidade. Todos se perguntavam se era mesmo o Benedito, ou se seria um sósia. Não sei se é verdade, mas Dario dizia que foi nesse dia que surgiu a expressão popular "Será o Benedito?".

    O sucesso foi estrondoso! O investimento retornou em pouco tempo.

    Pode parecer estranho que eu saiba de tantos detalhes, mas sempre fui muito curiosa e gostava de ouvir as histórias de meu pai. Ele gostava da minha companhia porque eu ficava muito atenta e era paciente. Eu ouvia e registrava na memória os acontecimentos que ele narrava

    Esse período foi o auge na vida de meu pai, pelo menos no que diz respeito ao seu patrimônio. São coisas que aconteceram muito antes de eu nascer, não vivi nada disso. Na época em que eu era criança, ouvia dele essas histórias e a do piano era uma delas...

    O piano passeou muito... Depois que Dario se desfez dos cinemas, o piano ficou com a família e nele estudaram as sobrinhas e a filha adotiva que ele e dona Carlota criaram. Mais tarde, ele foi para Ponta Grossa e passou muito tempo na casa dos meus avós. Depois, na época da minha infância, foi para o Rio de Janeiro. Foi quando descobri o que se podia extrair do instrumento e resolvi que queria estudar piano. Tive plena aprovação de meus pais, mas não fui muito longe, pois eu queria muitas coisas além do piano! Consegui progredir até ser capaz de tocar umas favoritas, e parei ao que correspondia, naquela época, ao sexto ano de piano. Fiz também o curso de teoria e quase completei os cursos de harmonia, canto coral e canto lírico, na Escola Nacional de Música. A Escola, que ficava na Rua do Passeio, pertencia à Universidade Federal. Isso me permitiu receber entradas para assistir concertos, óperas e ballets no Teatro Municipal. Foi muito importante para minha formação, pois aprendi a apreciar música erudita e pude assistir a eventos importantes.

    Meu pai já estava bem doente, mas ao me ouvir ao piano, ele vinha silenciosamente, e se sentava no sofá ao lado para escutar. Ele ficava ouvindo mesmo quando eu estava estudando, ou seja, treinando escalas repetitivas e tocando peças que eu ainda não dominava. Quando eu terminava os estudos (um tanto por causa dele estar ali), tocava uma valsa ou outra música que ele gostasse. Ele me olhava sorridente e, em silêncio, batia palmas...

    Nesse tempo o autopiano não funcionava mais, apesar de o equipamento continuar em seu interior. Os foles do mecanismo eram de pele de carneiro e haviam se ressecado. Estavam rachados e secos, não obedeciam mais aos pedais. Sem os foles, não se produzia o ar comprimido que devia ser soprado pelos furinhos dos rolos para acionar as teclas e produzir as melodias. Não existia nada que pudesse substituir os couros macios de que eram feitos os foles. Ainda não tínhamos entrado na era dos plásticos e outros derivados macios do petróleo... O piano ainda funcionava, mas como um piano comum.

    Meu pai sonhava restaurá-lo, porque guardava ainda uma grande quantidade de rolos de música, acomodados em caixotes de madeira.

    Um dia, quando eu tinha uns quinze anos, ele resolveu recuperar a máquina maravilhosa. Agendou a vinda de um famoso restaurador de pianos, o Sr. Medina, para fazer uma avaliação. O homem chegou e examinou detalhadamente o instrumento com a nossa assistência silenciosa e preocupada. Custaria muito caro? Papai teria como pagá-lo?

    Finalmente ele recolocou as peças que tinha retirado do piano e falou para meu pai, na maior tranquilidade, que comprava o piano. Dario disse:

    Mas... eu não estou vendendo o piano! Quero restaurá-lo!

    Aí começou uma discussão acalorada que foi subindo de tom gradativamente. Ele queria comprar, meu pai não queria vender...

    Não me lembro bem das quantias. Sei que ele ofereceu um valor até atraente pelo piano. Meu pai riu e perguntou:

    ...E quanto o senhor quer para consertar?

    Para nossa surpresa ele pediu o dobro do que oferecera para comprar... Dario ficou indignado e, aos gritos, pôs o homem a correr escada abaixo, para fora da casa. Estava furioso! Chamou as três filhas e, esbravejando, começou a retirar de dentro do piano as peças do mecanismo automático:

    Joguem tudo lá fora! Vamos! Isto não presta mais, é um estorvo! Vamos! Vamos! Levem essa porcaria daqui!

    Ele seguiu arrancando cada parte do mecanismo. Para meu desespero, às vezes batia com o martelo e atirava os cacos ao chão. Nós íamos pegando os pedaços e, silenciosamente, descíamos as escadas carregando-os. Jogamos tudo no fundo do quintal. Foi um momento horrível para nós três e para a mamãe. Nunca vira meu pai tão furioso...

    Estávamos assustadas e eu até esqueci de chorar. Não acreditava no que estava vendo...

    E o desastre continuou.

    Havia os caixotes cheios de rolos e, para nosso horror, já estavam cheios de baratas. Meu pai foi mexer com eles e era barata para todo lado! Aos gritos, nós três e mamãe, íamos matando como podíamos. Para nosso desespero, muitas escaparam para dentro da casa e daí... outro nojento trabalhão! Haja vassoura e chinelo... e gritos...

    À noite, Dario desceu e ficou esperando os lixeiros. Falou a respeito dos caixotes e eles, desconfiados, tentaram desconversar e ir embora. Meu pai insistiu e eles quiseram ver do que se tratava. Dois deles entraram em casa, sob nossa assistência. Olharam e olharam, coçaram a cabeça, pediram água... e nós esperávamos caladas.

    Ao fim disseram que não podiam levar a carga. Meu pai já estava se alterando, mas resistiu e continuou insistindo. Depois de um troca-troca de ofertas e negativas, Dario pagou o que eles pediram. Levaram os quase trezentos rolos de músicas preciosas. Foram jogados como lixo no caminhão... Que tragédia!

    Os pobres lixeiros não tinham a menor ideia do que estavam levando... Nunca tinham visto nada igual, nem compreendiam a fortuna que estava ali, agora estragada e inutilizada.

    Nós sequer pensamos em contestar papai e sua drástica atitude. Nunca fazíamos isso, muito menos com ele tão bravo...

    Ele sabia que o piano era uma raridade e que os rolos continham preciosidades. Se o piano fosse consertado, as músicas ainda poderiam ser apreciadas por muito tempo...

    Todavia, Dario não tinha mais condições financeiras de arcar com a restauração. Qualquer quantia que o Sr. Medina pedisse seria impraticável. Toda a braveza e gritaria dele eram para extravasar uma raiva de si mesmo por ver que, depois de ser um homem rico, agora estava arruinado. Em minha infância, Dario amargava a tristeza de um erro que o deixara pobre e o marcara para sempre. Vou contar sobre isso nos próximos capítulos.

    2018 - O piano centenário

    04 - Louis Gaertner, Dona Tutula e Prole

    Dario era filho de Maria Tertuliana Fagundes dos Reis Gaertner (06/04/1857 - 28/02/1902), mais conhecida como Tutula, e Louis Gaertner (30/11/1844 - 18/04/1922). Casaram-se em 1871 ou 1872 e tiveram 14 filhos, dos quais quatro morreram ainda bebês (Octavio, Flor, Maria Ide e Aurora), conforme anotações de Dario numa velha Bíblia que tenho em meu poder.

    Os outros dez são: Otto (1873 - faleceu aos 21 anos), Júlio (1875), Thereza (1877), Octavio (1879 - faleceu em 1880), Dario (1881), Luiz (1883), João Frederico (1885), Flor (1887 - faleceu em 1889), Maria Ide (1889 - faleceu em 1890), Leonor (1891), Aurora (1893 - faleceu em 1894), Octacilia (1895), Horácio (1897) e Erasto (1900).

    Dario era dos mais velhos, o quinto filho. Todos os outros que sobreviveram, se criaram e foram desenvolvendo suas vocações, estudando e trabalhando como puderam, se integrando à sociedade nas mais diversas profissões.

    Meu avô Louis era exímio marceneiro e entalhador. Passava para a madeira, a canivete, cenas e paisagens, dando-lhes até o formato em terceira dimensão, sobrepondo imagens, com resultados incríveis. Dario dizia que ele era muito procurado por fazer bolas de bilhar perfeitas, tinha mãos sensíveis e habilidosas. A imagem abaixo é da capa de um álbum de fotografias, esculpida por Louis Gaertner em madeira.

    1885 (data provável) - Louis Gaertner e Dona Tutula

    com um dos filhos, talvez Dario

    O álbum foi um presente de aniversário para Tutula. Esse álbum esteve em meu poder até 2017, muito sofrido pelas muitas mudanças, com as folhas cheias de fotografias se soltando, até que o passei para meu sobrinho Paulo César Gaertner Simões, filho de minha irmã Walmyra, que reside em Los Angeles, USA. Paulo Cesar refez inteiramente esse álbum, com maestria e delicadeza, e ele agora está inteiramente novo, idêntico ao original.

    Meu bisavô, Johann Friedrich Gaertner, era pastor luterano. Deixou a Alemanha com a esposa Caroline Louise e cinco filhos: August (21 anos), Friedrich (18 anos), Wilhelm (14 anos), Louis (13 anos), Franz (11 anos) e Carolina (9 anos). Saíram de Gramzin, estado de Mecklenburg, com o navio Elise, chegando ao Rio de Janeiro em 02 de agosto de 1858 e desembarcaram mais tarde em São Francisco do Sul, estado de Santa Catarina. Veio para o Brasil como líder espiritual de 250 famílias de sua congregação, que o acompanhavam na viagem, a convite de Dom Pedro II. Mais tarde, muitas famílias vieram para Curitiba, onde meu bisavô instalou a primeira comunidade luterana no Paraná, provavelmente nos anos 1860.

    1900 - Álbum de fotografias com capa de madeira.

    cena entalhada por Louis Gaertner

    Contava Dario que, quando os alemães chegaram à Curitiba, houve muita rejeição a eles, por serem luteranos no meio duma comunidade quase totalmente católica. Ficaram à margem também por não se preocuparem muito em aprender o português e se relacionarem mais entre si. E os casamentos também entre as famílias de origem alemã eram comuns

    Uma das sanções que sofreram foi não poder enterrar os seus mortos no cemitério católico que havia no alto da Rua Trajano Reis, o Cemitério Municipal, que já era longe do centro da cidade. Deram-lhes, então, um grande terreno mais distante, onde é agora o bairro Alto da Glória, com um dos lados encostando na atual Avenida João Gualberto.

    Anos depois, aproveitando uma ponta do mesmo terreno, se construiu ali a igreja católica de N. Sra. do Perpétuo Socorro. O terreno doado aos luteranos tornou-se o Cemitério da Comunidade Luterana de Curitiba, onde estão enterrados meus bisavós, Johann Friedrich Gaertner e Caroline Louise Tennius Gaertner,

    A princípio, os luteranos não tinham onde realizar seus cultos e se sentiam marginalizados pela população. Tempos depois, os padres da igreja da Ordem Terceira de São Francisco (a igreja do Largo da Ordem) permitiram que os luteranos realizassem seus cultos nessa igreja católica. Estavam compadecidos dos novos moradores e sensibilizados pelo comportamento respeitoso dos alemães.

    Isso foi feito por algum tempo, até que se terminasse o templo que os luteranos ergueram na Rua Inácio Lustosa, existente até hoje. Bem mais tarde, construíram outro maior, na esquina da Trajano Reis com a Carlos Cavalcanti, num grande terreno, agora também ocupado pelo Colégio Martinus, de confissão luterana.

    Meus avós frequentaram esses cultos luteranos realizados na igreja católica do Largo da Ordem. O altar dessa igreja é um belíssimo trabalho em madeira entalhada. Conta-se, que foi meu avô Louis que o realizou, patrocinado por seus patrícios, em agradecimento pelos tempos que ali realizaram seus cultos.

    2018 - Altar da igreja do Largo da Ordem em Curitiba

    (Fonte: http://www.fotografandocuritiba.com.br)

    2018 - Entalhes na madeira realizados por Louis Gaertner

    (Fonte: http://www.fotografandocuritiba.com.br)

    Como minha avó morreu cedo e as histórias geralmente são as mulheres que passam aos filhos, e também a marcenaria era o trabalho de meu avô, que estava sempre lidando em lugares diferentes, ninguém se deu conta disso e a família só descobriu muitos anos depois.

    Quando Erasto Gaertner era prefeito de Curitiba (1951-1953), o vigário dessa igreja o chamou para lhe mostrar que o nome de Louis Gaertner (pai de Erasto e meu avô) estava gravado num canto do belo móvel. A obra está assinada!

    Minha avó, Dona Tutula era firme e enérgica. Tinha que cuidar com severidade de um orçamento modesto para alimentar tantas crianças. Era luterana praticante e educava os filhos dentro das normas religiosas de obediência, respeito e honestidade.

    Eram muitas crianças, saudáveis e arteiras. Precisavam comer, andar limpas e agasalhadas, num tempo em que não havia água encanada, as roupas eram feitas em casa e os fogões eram a lenha. Isso exigia muito trabalho e organização. Ela tinha apenas 14 anos quando se casou...

    Meu pai sempre contava que o respeito à comida era uma das exigências mais cobradas. À refeição modesta se seguia, às vezes, uma sobremesa, esperada ansiosamente pela garotada. Contudo, só ganhavam sobremesa os que limpassem o prato, podendo virá-lo de boca para baixo, sem deixar nem um grão de arroz cair à mesa. No fundo do prato é que se punha a sobremesa que, normalmente, eram feitas de frutas da época, marmelada, goiabada, figada.

    Ele nos contava também que detestava quibebe de abóbora e se recusava a comer quando esse prato fazia parte da refeição do dia. Ficava emburrado, fazendo malcriação. Tutula brigava com ele, que resistia em obedecer. Aos domingos o cardápio era melhorado e, certa vez, Tutula fez um almoço especial. Falava dele enquanto o preparava, para criar expectativa nas crianças, que escutavam atentas.

    Quando todos estavam à mesa, ela foi fazendo e servindo os pratos de cada filho. Todos murmuravam alegres com as iguarias. Dario estranhou... o seu estava ficando por último... e ele esperando...

    Todos já comiam, exceto Dario. Tutula, então, voltou ao fogão e trouxe de lá uma panela, colocando-a sobre a mesa. Com uma colher, pôs-se a fazer o prato de Dario com porções do que havia na panela.

    Aqui está o macarrão, o arroz de forno, as batatas e a carne... dizia ela a cada colherada. E coma tudo!

    Dario olhava estupefato! Os irmãos, assustados, pararam as colheres a meio caminho da boca.

    Tudo que havia no prato de Dario era quibebe de abóbora...

    A partir daí, nunca mais houve rejeição ao quibebe. Dario aceitava tranquilo a apresentação desse prato às refeições.

    Minha avó Tutula teve seu último filho, Erasto, em 1900. Ela faleceu aos quarenta e cinco anos, em 1902, antes dele ter dois anos.

    1900 (data provável) - Louis Gaertner e Dona Tutula

    Dario tinha 19 anos quando sua mãe teve o último filho. Ele sempre demonstrou uma predileção especial pelo irmãozinho caçula, que ficara órfão tão cedo. Erasto foi criado por sua tia Cecília, irmã de Tutula. Cecília era filha do 2º casamento de minha bisavó Catarina, portanto irmã de minha avó Tutula por parte de mãe. Tia Cecília era casada com o sogro de Dario, Firmino Castelo Branco. Esses entrelaçamentos incríveis eram muito comuns naqueles tempos. Firmino se casou com Cecília depois de ficar viúvo da mãe de dona Carlota. Tiveram duas filhas, Maria da Conceição (que tinha o apelido de Lêco) e Rosalba, que se criaram como irmãs de Erasto.

    Dario os visitava com frequência e assumiu a educação do irmão. Sendo quase 20 anos mais velho, Dario tinha por Erasto o afeto que teria por um filho, que ele não teve e sempre desejou. Tenho comigo um cartão-postal, datado de 23/01/1909, que Erasto enviou para Dario no Rio de Janeiro. Não tinha ainda 9 anos.

    Meu querido irmão.

    Saudações.

    Muito satisfeito fiquei ao receber o teu cartão, prova de que ainda não me esqueceste. Eu felizmente sahi bem nos exames, e continuo a estudar para o anno sahir melhor. Este anno vou começar a estudar violino e piano. Dê por mim um apertado abraço no Nhonhô e na Carlotinha, e você queira aceitar outro do teu irmão

    Erasto

    Nhonhô era o apelido do irmão Horácio Gaertner, que também morava no Rio.

    Dario via no irmão Erasto um garoto inteligente, com boas perspectivas de uma carreira promissora. Erasto, quando adolescente, foi trabalhar nos Correios. Dario achou bom Erasto ter um trabalho, mas não aceitava que se acomodasse nesse emprego. Para ele, Erasto estava desperdiçando seus talentos. Intuía no irmão um grande potencial.

    Dario lidou e insistiu até convencer

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