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O Triunfo Da Borboleta
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O Triunfo Da Borboleta
E-book259 páginas3 horas

O Triunfo Da Borboleta

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Sobre este e-book

A narrativa aborda a súbita perda da consciência do protagonista e o seu reencontro num lugar insólito, muito afastado e desprovido de qualquer significado lógico. A distância da família, aliada à conjugação de fatores imponderáveis, trouxe-lhe inicialmente a franca certeza de que o amanhã nunca chegaria. Perseguições, sonhos e pesadelos passam a dividir o seu cotidiano a partir da mudança. A reconstrução do seu intelecto e razão, mediante o auxílio dos novos companheiros daquele lugar tenebroso, poderá conduzi-lo à tão almejada luz.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de fev. de 2023
O Triunfo Da Borboleta

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    O Triunfo Da Borboleta - Dico B. Arcanjo

    NOTÍCIAS INQUIETANTES

    Gazeta do Litoral Oeste, 23 de novembro de 2.018, sexta-feira: Completou-se hoje um ano do desaparecimento do estudante universitário Charles Narciso Besser. O jovem foi visto pela última vez nas imediações da Praia de Aurora, numa manhã chuvosa pouco convidativa aos tradicionais banhos mornos naquele recanto paradisíaco. Elias Baltazar, um dos integrantes do grupo de cinco amigos acampantes da região próxima à vila de pescadores, testemunhou quando Charles Besser saiu ao final da madrugada alegando que faria leve caminhada e logo retornaria ao ponto de encontro. Jamais cumpriu a promessa. Muitos suspeitam que o inexperiente rapaz morreu afogado nas perigosas águas cristalinas daquele lugarejo e seu corpo foi tragado para o temerário fundo do mar.

    ***

    Jornal da Madrugada, 19 de setembro de 2.019, quinta-feira: A polícia metropolitana da cidade de Tóquio continua à procura do empresário Shaomi Takedo, principal dirigente de importante firma de componentes eletrônicos sediada naquela capital. O homem de negócios saiu de um evento promocional às onze horas da noite da terça-feira passada, na companhia da esposa, e estacionou seu carro num posto de gasolina visando abastecê-lo. Miska Takedo detalhou que o cônjuge caminhou à loja de conveniência e não voltou. Ao adentrar o local na ânsia de encontrá-lo, foi informada pelo atendente que o empresário caminhara ao banheiro. Ao baterem na porta do cubículo, perceberam que o local estava vazio. A janela dos fundos do estabelecimento, por sua vez, encontrava-se aberta. As autoridades desconfiam que o sujeito fugiu do país objetivando ludibriar o fisco, por conta da descoberta do seu envolvimento em inúmeros processos administrativos movidos pela receita federal contra a sua empresa. Parte da fecunda mídia, por sua vez, acredita que integrantes da máfia Yakuza o tenham sequestrado. A esposa e sócia do empreendimento nega essas possibilidades.

    ***

    Notícia Aberta, a verdade nua e crua, 4 de abril de 2.020, sábado: As ruas, avenidas e praças da Cidade do México têm ficado mais limpas depois que um grupo de simpatizantes das boas causas decidiu angariar recursos para saneá-las. Os benevolentes cidadãos passaram a recolher dinheiro junto ao empresariado da grande metrópole e vêm custeando a limpeza urbana nos locais onde o poder público atua de modo deficiente. É o mínimo que podemos fazer pela nossa bela urbe, frisou a líder da agremiação. E quanto à sujeira social?, indagou o repórter à interlocutora. Você se refere aos mendigos e indigentes? Bom, não há muito o que fazer nesse aspecto. Percebemos uma significativa redução do número de pedintes nos últimos tempos, mas continuaremos a vê-los em locais estratégicos da nossa sociedade. Infelizmente!, completou a mulher.

    ***

    Almanaque da Encruzilhada, edição de janeiro de 2.021: (...) o primo Angel afirmou que o seu tio Arnemi, o pai Rodolph e o amigo Cosier desceram da montanha principal por volta das 14 horas. Ele aguardava pelos alpinistas no acampamento montado na superfície. Fazia temperatura gélida naquela tarde suíça. Os três aventureiros chegaram desgastados em função do longo percurso desde o cume. Quando avistaram Angel, emotivos ao extremo, todos começaram a chorar. Tio Arnemi, onde está o Fenner? Ele não desceu junto com o grupo?, teria indagado o garoto de quinze anos. O homem não apresentou condições psicológicas de lhe responder, dirigindo-se rapidamente à sua barraca de lona. Rodolph,  inseparável irmão, correu para o mesmo alojamento desejando acudi-lo. O atlético Cosier, tão jovem quanto Angel, aproximou-se dele e o conduziu às adjacências de providencial fogueira. Angel, não sabemos o que aconteceu com o seu primo Fenner, explicou Cosier, retirando os calçados dos pés exaustos. Estávamos a uns três quilômetros deste módulo, na parte baixa da cordilheira, ocasião em que o perdemos de vista. Foi de tal maneira rápida, tal intensidade estranha, comentou ele, olhando em volta como se reunisse esperança em vê-lo novamente. O senhor Arnemi e o pai Rodolph gritaram desesperados. Eu temo que aqueles precipícios traiçoeiros o tenham levado para sempre, apontou o moço, cabisbaixo. O primo Angel dirigiu o olhar pensativo para o alto e não disse uma palavra. Fenner jamais reapareceu.

    ***

    Portal da Mídia Eletrônica, a notícia digital vinte e quatro horas por dia, 15 de março de 2.022, terça-feira: Esgotaram-se as buscas promovidas em decorrência do sumiço da ciclista Roani Nordanq, cujo último avistamento ocorreu há vinte dias nas proximidades da rodovia MJ-33, na cidade de Flores de Prata. Acostumada a longos percursos da espécie, ela pedalava na companhia de nove atletas naquela noite tranquila. Por volta da metade do trajeto, nas imediações da ponte sobre o rio San Juan, iniciou-se uma chuva torrencial. Os participantes interromperam provisoriamente a conclusão do objetivo e acamparam num vilarejo próximo. Josh Tecles, líder do certame noturno naquele ensejo, contou que os desportistas aproveitaram o ensejo para calibrar os pneus das bicicletas, fazer pequenos ajustes nos equipamentos e antecipar o horário do rotineiro lanche grupal. Sob a proteção de surradas cabanas feitas de palha, eles formaram duas turmas de cinco participantes cada, tendo Roani Nordanq ficado na equipe contendo os ciclistas menos experientes. Três deles eram iniciantes no ramo. Alycia Rames, esposa de Roani, informou ao esquadrão de resgate que a trupe permaneceu naquele lugar sereno por cerca de uma hora. De posse das respectivas bicicletas, os primeiros contendores retornaram à pista escorregadia no começo da madrugada. A retardatária Roani auxiliou os novatos a retomarem às suas posições junto à agremiação dianteira, acelerando as pedaladas. Duda Cortez, a última atleta a vê-la, disse que ambas corriam no acostamento lado a lado. Recorda-se de que Roani reduziu a velocidade, talvez devido a algum problema na  sua magrela, ou tenha sofrido repentina fisgada na perna. Duda assobiou com o intuito de chamar a atenção dos demais integrantes do passeio e parou nas adjacências de um posto de abastecimento. Ela e os outros companheiros logo sentiram a falta de Roani Nordanq, que não apareceu nos minutos posteriores. A bicicleta da jovem, entretanto, foi encontrada solitária a poucos metros daquele ponto. Alycia Rames organizou os esforços preliminares tencionando reencontrar a sua cara metade, vencendo com dificuldade a densa mata local a pé. A intensa caçada perdurou por horas e trouxe a luz do Sol à tona. Esse foi o segundo desaparecimento ocorrido às margens da rodovia MJ-33 nos últimos sete anos.

    ***

    PARTE 1: CATARSE

    DESPERTAR INSÓLITO

    Ofegante, abri os olhos confusos e me deparei esticado numa módica cama feita para solteiro. Não era o confortável móvel de outrora, cujo espaçoso colchão de casal me trazia prazer e satisfação incomuns. Tive a súbita sensação de que estava naquela estranha mobília há dias. O ar chegava aos pulmões de maneira diferente. Parecia seco e possuía cheiro de algo estranho, um odor característico não reconhecido de pronto. Fazia frio intenso. Sentia cansaço nas extremidades dos braços e das pernas, simulando um pretenso atleta olímpico após a prática de vultosos exercícios físicos. Vi que as minhas roupas se limitavam a uma espécie de pijama alvo: calça e camisa folgados. Olhei para cima e, num lapso de divagação, imaginei o brilho de estrelas cintilantes no céu próximo, como se fosse possível eu me encontrar no vácuo do espaço sideral dentre objetos estelares! Na realidade, percebi que se tratava de miúdas luzes instaladas no teto branco de um pequeno quarto. Assemelhava-se a um alojamento hospitalar, talvez o leito de vulgar clínica médica. A suspeita confirmara-se pela constatação de um fino tubo plástico que saía do meu braço e chegava ao recipiente montado no alto de um suporte horizontal, junto à cama, bem como pelos inúmeros condutores que ligavam o meu corpo a alguns supostos aparelhos hospitalares. O que eu fazia ali deitado, sem-par e caótico? Teria sofrido um acidente automobilístico, uma queda dentro do banheiro de casa que me fez perder a consciência ou algo do gênero?

    Relembro-me de que me encontrava nas instalações do meu local de trabalho ― um escritório especializado na venda de seguros de vida, situado no centro da cidade ― na companhia dos colegas de profissão. Sexta-feira! Isso, era véspera de fim de semana. Ao término daquele tranquilo expediente ― recordo-me agora nitidamente, afinal, os meus membros doíam, todavia o cérebro funcionava perfeitamente! ― falávamos sobre as possibilidades do nosso time de futebol alcançar a zona de pontuação extra do campeonato nacional. Caso vencesse a próxima partida por dois tentos de diferença ― uma missão quase impossível, opinou no ensejo o gerente comercial Mosez Canhestro ― a série principal do certame ficaria menos distante. Esse jogo ocorreria naquela mesma noite.

    Sim, naquela mesma noite! Eu precisava de acesso à internet, de um aparelho de televisão ou de um simples rádio movido a pilha.

    Mosez Canhestro era o típico sujeito chato, merecedor de respeito apenas pela sua temporária condição de chefe. O acentuado abdômen demonstrava total despreparo físico, inimigo número um das academias de plantão. Ele falava demais, ria à toa e caçoava dos incautos menos afortunados. Rememoro que, num certo dia, a empresa contratara um novo estagiário. "Se você fosse um pouco mais baixo, caberia num chaveiro de bolso. Pode começar amanhã, bebê", dissera Mosez Canhestro ao pequeno novato, promovendo gargalhada geral. O nome do contratado era Georgen. Um pacato moço extremamente esperto. Ele sorriu em virtude da piada infame. Um sorriso da cor do girassol.

    Ainda deitado na cama estreita, abandonei temporariamente a afoita ânsia de conhecer o placar do jogo ― afinal havia preocupações maiores naquele desconhecido contexto em que eu estava. Em primeiro lugar, precisava descobrir a motivação para me encontrar naquele suposto hospital. Myrtes e Ludnyla deveriam reunir aflição a mil em função desse quadro. Elas estariam na sala de espera do outro lado do quarto clínico, ansiosas pela minha alta? Ou permaneciam em casa à espreita da campainha do telefone, o qual tocaria avisando-as de que eu estava fora de risco e logo retornaria ao convívio familiar?

    Eu não as vi depois daquele entardecer vivenciado no trabalho. Relembro-me de ter caminhado à garagem do prédio empresarial e assumido a condução do veículo. Razoáveis minutos depois, fui a um estabelecimento comercial situado no caminho da minha residência programando adquirir algumas latas de cerveja. Apanhei uma dúzia do produto de procedência holandesa na seção das bebidas e observei a oferta de flores coloridas noutro segmento. De imediato, trouxe um buquê de rosas vermelhas. Aquela cor enigmática e o aroma exclusivo e agradável proporcionariam momentos mágicos. Abri no regresso uma das vasilhas geladas, retornei satisfeito à porta do automóvel e ingeri um vigoroso gole do precioso líquido dourado. Uma idosa trajando vestido azul transitou lentamente a alguns metros dali carregando um carrinho de compras. Por sorte, ela não me viu e adentrou seu volumoso carro. Não havia dúvida: a mulher reprovaria a visível mistura de álcool, câmbio e volante. "É mais fácil um relâmpago cair na minha cabeça duas vezes do que eu ficar tonto por causa dessa inocente transgressão", meditei, sorrindo na sequência. Retornei a vista ao interior do meu próprio transporte e, daquele momento em diante, a minha memória desapareceu. Não guardo inteira certeza, porém creio que o meu telefone celular tocou no exato instante do apagão mental.

    Não me recordo de ter sofrido um acidente. Sequer entrei no interior do carro! Provavelmente desmaiei no pátio do supermercado ou me acertaram na nuca. Não, não. Afora as incômodas dores nos braços e nas pernas ― já as sinto menores ― não creio que bateram em mim naquele local ermo.

    O aparelho telefônico portátil não estava comigo no quarto, aliás me tiraram a aliança, o costumeiro relógio de pulso, os óculos de grau e uma bela caneta esferográfica de tinta marrom, uma preciosidade ofertada pela minha filha Ludnyla no transcurso do meu aniversário de trinta e três anos de idade. Ela possuía cinco anos naquela ocasião, hoje tem sete. Uma princesa e tanto. Preciso vê-la o quanto antes! Voltar a observá-la da porta entreaberta do dormitório lilás com seus brinquedos preferidos. Aproximar-se dela e dar-lhe um beijo carinhoso naquele rosto angelical, acariciando seus compridos cabelos da cor do Sol. Quanta saudade!

    Talvez Myrtes recebesse as flores com raro desdém ― e onde estão elas?! ―, criticando-me pelas inúmeras faltas cometidas por mim nos últimos tempos. É verdade que naquele dia eu chegaria cedo em casa, fato raro devido aos múltiplos afazeres profissionais. Às vezes, confesso, a motivação para a demora no retorno ao querido lar era outra, um motivo distante do teclado e do monitor laboral. É que, ocasionalmente, saíamos eu, Mosez Canhestro e alguns colegas do escritório para os bares localizados do setor sul da metrópole. Sinuca, bebidas e conversas despretensiosas rolavam à solta. O estoque de harmoniosas fêmeas colocadas à disposição dos nossos instintos era imenso. Nesses encontros voltados ao divertimento extraconjugal, a bateria do meu telefone celular sempre descarregava cedo. Ao término do salutar convívio social, eu sempre buscava calcular o peso das fortes cenas vindouras. A pior bronca ocorreu numa véspera de feriado, noite chuvosa repleta de baderneiros trovões e belos relâmpagos. Abri a porta da minha residência quase no início da madrugada ― exagerei naquela oportunidade! ― e Myrtes me aguardava sentada na poltrona de couro, diante do televisor desligado. O cãozinho Intrepidus fazia companhia a ela e balançou o rabo animoso quando me viu defesso. Myrtes não moveu um músculo. Seus olhos pareciam lacrimejantes e dispensaram quaisquer palavras. Na manhã seguinte, a viagem que fizemos à praia de Alta Vista na companhia de Ludnyla rendeu intermináveis discussões acaloradas. Era difícil conciliar as atribuições de pai de família exemplar com as de um profissional de alto nível, dependente de subordinados e superiores. No meu subconsciente,  aquele estado de espírito era condição imprescindível à permanência no emprego. Para alívio da patroa, as ocasionais noitadas decorrentes daquele status quo, diga-se de passagem, tornavam-se cada vez menos frequentes.

    Quiçá Myrtes recebesse as frágeis rosas com carinho e afeto, agradecendo-me pelo bondoso ato. No fundo, ela me amava e tolerava os ingratos escorregões. "Nada é perfeito neste mundo", rezava ela. Myrtes era perfeita! Seus olhos rubros em situações de fúria constituíam-se, verdadeiramente, num par de pedras preciosas circulares da cor do firmamento, recobertos por marcantes cílios cuja delicada aparência enaltecia a peculiar e incomparável beleza feminina. A anatomia estonteante dos seus lábios delineados dispensava adereços, mas, quando os enfeitava mediante o uso de algum batom ― não importava a tonalidade! ― o conceito de sensualidade ganhava novos ares. O perfume natural do seu corpo esbelto suplantava o aroma das agradáveis fragrâncias extraídas dos miúdos frascos guardados em seu guarda-roupa. Essas lembranças penalizavam o meu ego!

    Eu precisava me aproximar novamente dela para dar-lhe um beijo caloroso, acariciando seus volumosos cabelos loiros, cópia fiel das tranças da pequena Ludnyla. Sinto enorme falta das duas beldades! Elas não estavam ali ao meu lado. Eu me encontrava sozinho num dormitório esbranquiçado, envolvo em incontáveis questionamentos preocupantes.

    De repente, os pontos de luzes brandas colocados no teto do aposento clínico apagaram-se e cederam lugar a uma iluminação fluorescente. Tomei leve susto quando ouvi uma delicada voz feminina desbravando aquele silêncio perturbador. Bom dia, caro senhor Welter Kosten. O áudio provinha de um lugar ignorado ― embaixo da cama, no teto ou rente à parede. Tanto faz ― pensei ― importa apenas que a enfermeira ou médica de plantão surgiu no recinto por meio da sua aliciadora voz. Não demorou muito para que eu percebesse o óbvio: a sonoridade digital era uma autêntica reprodução do timbre vocal humano: a charmosa voz de uma mulher produzida por uma máquina. Logo me veio à mente a questão do desemprego, grave problema social tão comum atualmente. Dispensam-se as pessoas delineando a contratação de sofisticados sistemas operacionais, ditou certa vez o diligente contratado Georgen. Demitem-se indivíduos de carne e osso para seleção de programas de computador; excluem-se trabalhadores reais com a intenção de incluir novos softwares e hardwares no mercado. Estaremos fritos no breve futuro, previra o anêmico rapaz de baixa estatura.

    O meu pensamento me trouxe a nítida recordação  daquele expediente matinal, onde Georgen manuseara uma pilha de relatórios junto à impressora. Não exagera, garoto, desdenhara um colega do trabalho próximo da aposentadoria. Homens são homens, máquinas são máquinas. Um não substitui o outro, determinara o veterano. Eu tenho as minhas dúvidas, questionara Georgen, consumido. Dentre esforçados  trabalhadores assalariados ou máquinas que labutam de graça, quais são os preferidos dos patrões?, perguntou o moço, sentando-se provisoriamente. Pior que sempre foi assim na história: os fracos abaixo dos ricos e poderosos, a maioria subjugada pela minoria da casta dominante, formando uma pirâmide social onde o topo estreito esmaga a grossa superfície. As gigantescas pirâmides são exemplos clássicos desta dura assertiva. Faustosas obras arquitetônicas construídas por escravos sob o calor do deserto para satisfazer a ânsia de magnitude dos reis e faraós. Nos dias atuais, em Dubai, os imensos arranha-céus espelhados perpetuam essa trágica realidade do mundo capitalista, explicara o aprendiz Georgen, percebendo a entrada do chefe Mosez Canhestro no escritório. Essas avançadas torres erguidas por trabalhadores em finas cidades planejadas, cujos dedicados homens habitualmente estampam desfavoráveis condições remuneratórias, compõem a moderna escravidão contemporânea. Observamos reduzidos retornos financeiros e sociais às camadas inferiores, possibilitando o incremento da concentração de renda e do poder absoluto no cume piramidal, concluíra o sapiente moço. Cume piramidal?! De que assunto você está falando?, indagara o chato Mosez Canhestro ao rapaz, despistando tímido arroto. Não precisa se justificar. Volte ao trabalho, bebê. Traga-me agora um café quente e as cópias dos relatórios no final desta tarde.

    Aquelas vívidas lembranças ficaram rondando a minha mente. Do meu birô de madeira, eu ficara observando a rápida palestra proporcionada pelo inexperiente Georgen. Havia percebido ali que ele tinha razão nos muitos argumentos expostos: trabalho semiescravo legalizado, disseminação de salários simbólicos e forte acumulação de riqueza nas classes mais abastadas. Mas, afinal, do que ele reclamava?! Estamos no planeta Terra! O valor do capital em todo o tempo desbancou a dignidade humana. Aqui sempre foi e será desse modo. Infelizmente!

    De volta ao meu pequeno e restrito mundo abrigado por quatro paredes, constatei que a moça eletrônica ― algoz e instrumento desse perigoso modelo de relação trabalhista oposto por Georgen ― perguntou se eu estava me sentindo bem e orientou que eu me sentasse na borda da cama.

    ― O que faço neste hospital? O que aconteceu comigo? Eu estava em estado de coma? Há quanto tempo? Onde está a minha família? ― indaguei a ela no atacado.

    A voz mecânica informou que as minhas indagações seriam esclarecidas oportunamente. Requisitou o posicionamento do meu braço num orifício

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