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Anônimos Em Fuga
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E-book119 páginas1 hora

Anônimos Em Fuga

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Sobre este e-book

A obra conta a singular história de um sujeito anônimo que vive enclausurado numa conjuntura adversa, motivada pela ausência de perspectivas motivadoras. Pouco estudo, emprego ruim e talentos ocultos. Em confrontação, quase todas as pessoas do mundo respiram as inovadoras funcionalidades trazidas por um promissor aparelho eletrônico que permite ao usuário experimentar as inúmeras realidades paralelas disponíveis no Universo. Ainda sem rumo definido, ele se apaixona por uma moça aparentemente intocável e assiste ao melhor amigo saborear as consequências de um perigoso jogo ficcional posto ao crivo da verdade. Finalmente, desprezado por uma sociedade egoísta, vê-se isolado e patético diante da lastimosa finitude posta à sua espera. Além do improvável retorno da paixão proibida, o que mais poderia livrá-lo da decadência total?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de nov. de 2023
Anônimos Em Fuga

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    Anônimos Em Fuga - Dico B. Arcanjo

    CONJUNTURA SURGENTE

    Os anos iniciais do novo século pretendido entregavam vastos progressos tecnológicos, frutos dos memoráveis avanços científicos vivenciados nos últimos tempos. A vitoriosa humanidade controlou os efeitos nocivos de algumas doenças regulares, estabilizou a temperatura ambiental média do planeta num patamar aceitável e a paz entre as nações civilizadas vivia momentos de aura. O incremental desuso dos combustíveis fósseis popularizou os automóveis movidos a eletricidade, os quais enchiam as ruas da metrópole em menor quantidade do que os veículos voadores, visíveis artigos de luxo destinados a poucos e sortudos compradores. Prédios espelhados gigantescos cheios de luminosos cartazes publicitários, infinitos estabelecimentos comerciais a todo vapor e corpulentas estações de metrô lotadas de correria desenfreada, traziam beleza exótica àquela próspera e florescente cidade.

    Estávamos num presente repleto de expectativas e surpresas. Eu assistia aos passos largos e velozes das pessoas defronte a uma banca de jornais, revistas e periódicos impressos ― ponto de encontro obrigatório dos saudosistas metropolitanos ―, no aguardo da breve chegada do valoroso colega de andanças. Através da vitrine transparente desse logradouro fixo, podia apreciar inúmeras publicações colocadas à venda, a maioria datada de expressivas décadas atrás. A edição especial de número trezentos do tabloide intitulado "A Ressurreição do Antúrio Hidráulico", folheto satírico trimestral lançado na época dos meus avós, aparecia sob volumosa cópia da Bíblia Sagrada. Que título esquisito! A vivaz capa da publicação continha a imagem de uma estupenda planta de coloração bastante rubra, com aspecto figurativo do coração, que trazia uma haste botânica da cor amarela em sua parte inferior e folhas intensamente verdes no caule. A absurda alcunha O Renascimento do Vegetal Mecânico, versão inventada por mim no debochado flagrante, coube bem naquele treco. Qual recado proporcionaria a antiga gazeta de nome bizarro? O preço pouco convidativo indicava a existência de algum valor na peça. "Quando tiver tempo e dinheiro disponíveis, comprarei esse duvidoso impresso", afirmei confioso. De certo modo, ao possuí-lo, infiltrando-me nos costumes, ideias e doutrinas vividos naquela fase áurea da humanidade, seria uma grata visita ao passado. Uma fabulosa máquina do tempo movida à leitura e divertimento!

    As câmeras de vídeo do monitoramento digital miraram na minha posição por conta do demasiado tempo observando os produtos sem adquiri-los. Pressuroso, regressei aos arredores do benevolente poste inserido junto à loja de artigos longevos feitos de papel. O expectável amigo logo chegará aqui.

    O meu expediente no escritório localizado no pavimento térreo da enorme torre de esquina iniciava-se às oito horas da manhã e terminava ao final do dia. Vendia pacotes de viagens numa tradicional agência de turismo de renome nacional. Os encantos de Roma, Paris e Nova Iorque apareciam diariamente para deleite dos meus olhos castanhos. Visitara uma centena de vezes a Cidade do Vaticano, unicamente por meio de persuasivas palavras mercantis discorridas aos sedentos clientes sobre os encantos do lugarejo sacro. O comunicativo Papa em vigor era meu camarada. Eu mostrava a exuberante vista do alto da Torre Eiffel por intermédio de vídeos especialmente preparados para cortejá-la. De tanto frequentá-los em diálogos promocionais, as movimentadas ruas e logradouros de interesse das principais cidades mundiais passaram a fazer parte do meu cotidiano. Pondo-se a realidade à prova, no entanto, o repetitivo caminho da minha casa suburbana ao local de trabalho primordial, e vice-versa, era o que me sobrava todos os dias, semanas e meses.

    Ele estava por vir. Provavelmente, constituía-se no melhor amigo humano, porventura o único. Eu não reunia o hábito de acumular simpatizantes, fruto de uma postura retraída e avessa à badalação, sendo por isso muitas vezes qualificado à condição de pessoa chata e irredutível. Ele mesmo dizia que, eventualmente, eu me comportava feito os rapazes chatos e intransigentes. Além dele, frise-se, somente um sujeito que conviveu comigo na época em que ambos possuíamos uns dezoito anos de idade ― parece que foi ontem! ― podia ser equiparado a um partidário de verdade.

    Esse outro personagem esquecido usava espessos óculos de grau, gozava de sapiência acima da média e manifestava o estranho cacoete de mostrar a língua pontuda a cada frase pronunciada. Os outros o consideravam mentalmente perturbado, comparação que ganhou certa densidade após a evidenciação de um grave distúrbio psíquico sofrido pela irmã caçula. Diziam que o DNA da família era problemático, que a piração era congênita e genética, dentre outras barbaridades da espécie. Eu, ao contrário dos descartáveis elementos preconceituosos, o tratava de maneira respeitosa e recebia idêntica aceitação. Até o dia em que optamos pela adoção de caminhos diferentes, seguindo nossos respectivos rumos. Nunca mais o vi desde então.

    Daí, tempos depois, conheci o meu atual e exclusivo amigo humano. Em breve, explicarei o porquê da utilização do termo humano. Ele trabalhava no mesmo endereço urbano em que eu labutava, entretanto, o seu escritório situava-se no quinto andar do prédio, noutra empresa do ramo de comunicação visual. Exibia-se como um moço franzino de estatura similar à minha, vultosa cabeleira escura e nariz arredondado, cuja ausência do antebraço esquerdo o diferenciava das pessoais julgadas normais. Eu o considerava inteligente e manhoso. Chegava ao trabalho junto a mim e saía uma hora depois. Não dispúnhamos de salário fixo, o desejável ganho equilibrado às horas dispendidas na labuta. As comissões e eventuais gorjetas representavam o nosso ganha-pão diário, tão instáveis quanto as erupções do famigerado vulcão Etna. Num determinado mês,  podíamos abastecer cem créditos no bolso. Noutro período semelhante, o mesmo bolso apresentava-se totalmente vazio. A equação matemática revelava-se elementar, digna das liberais políticas trabalhistas servidas à moda dos insaciáveis patrões: (Profissões Medianas + Serviços Árduos) = (Módica Remuneração  − Falta de Assistência Pública)². E pensar que, caso desistíssemos dos empregos banais por suposta causa sublime, uma fila de alegres pretendentes formar-se-ia vertiginosa na dianteira das portas dos escritórios.

    Eu já havia tentado exercer outros empregos nos primórdios da minha curta vida profissional: fui assistente de barbeiro durante alguns meses, atendente experimental numa rude lanchonete e auxiliar de cozinheiro num popular restaurante da capital. Confesso que não gostava de desempenhar as elementares profissões praticadas, pois pareciam regradas demais para o meu gosto. Por exemplo, o pequeno corte acidental produzido pela afiada lâmina na orelha de um cliente cabeludo ― um raspão mínimo! ― foi o suficiente para a perda definitiva da primeira ocupação. Em sábia permuta, consegui uma vaga disponível num quiosque de lanches rápidos montado defronte à prefeitura municipal. A quantidade diária de clientes apresentava-se simétrica ao expressivo volume de contestações.  Houve um dia em que um consumidor pançudo reclamou da qualidade do alimento servido no prato, cujo cheiro, segundo ele, mostrou-se desagradável ― como se eu tivesse alguma culpa sobre aquilo! Ele me chamou de inútil, nojento e malandro. Esses predicados caberiam ao cozinheiro ou ao proprietário do negócio. Eu, de outro modo, nada mais era do que um reles atendente em regime de treinamento. Ele ameaçou denunciar o empreendimento alimentício à saúde pública. Não pude demonstrar reação alguma, haja vista a máxima de que o cliente sempre dispõe de razão.  Por isso, desisti do serviço após a rebelião da minha serenidade em face da duradoura persistência dos enfurecedores protestos. Outrossim, restou o último trabalho praticado no restaurante oriental.  Lembro-me de que o ambiente repleto de decoração escarlate me causava náuseas ao final das tardes, devido às múltiplas doses de pimenta e temperos extravagantes contidos nas porções servidas aos exigentes fregueses tietes de Hong Kong. O meu tênue organismo periférico detestava condimentos extrafortes ou fora do comum.

    Sobrara a atual laboração exercida na agência de viagens. Não me agradava o padrão do austero uniforme, constituído de uma camisa feita de tecido fino na cor verde e uma calça apertada azul-marinho, bem como sapatos a gosto, dizia o regulamento. "Desde

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