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Além Do Reino De Zirotriz
Além Do Reino De Zirotriz
Além Do Reino De Zirotriz
E-book289 páginas4 horas

Além Do Reino De Zirotriz

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Sobre este e-book

Em decorrência de inúmeros acontecimentos catastróficos que abalaram os pilares da humanidade, um povo futurista vive num reduzido e esquisito mundo onde a convivência entre oprimidos e poderosos tornou-se surreal há séculos, sob a égide do detestável Dispositivo de Braimer e ao amparo da hiperbólica Redoma de Proceris. O jovem Jos Salude sente-se imensamente incomodado em face dos abundantes dissabores contrários à civilidade. Idas e vindas de planos mirabolantes resultam em parco tempo para o resgate da vida do pai, cuja finitude é certeira. Ele e seus inseparáveis companheiros terão que enfrentar o prestigioso sistema absoluto, a bruxa carniceira e o temerário monstro do continente. A difícil missão rumo ao desconhecido parece quimérica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jan. de 2021
Além Do Reino De Zirotriz

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    Além Do Reino De Zirotriz - Dico B. Arcanjo

    Primeira Edição

    Fortaleza/CE

    © Dico B. Arcanjo

    Janeiro/2021

    Copyright  © Dico B. Arcanjo

    Título: Além do Reino de Zirotriz

    Capa: Mirando o horizonte

    Todos os direitos reservados

    ALÉM DO

    REINO DE

    ZIROTRIZ

    DICO B. ARCANJO

    A vantagem de não envelhecermos consiste do fato de que não perderemos a memória, desconheceremos o acúmulo de rugas e ficaremos distantes dos cabelos brancos e dos ossos frágeis.

    Zoa Vitalde

    Eu sonhei que existia. Caminhava pacífica pelas cercanias de um jardim florido, dentre sublimes roseiras, margaridas e orquídeas, cujos aromas misturavam-se inebriantes para deleite dos meus primorosos sentidos. Ouvia o cantarejar mavioso dos pintassilgos amarelos, quietos sobre galhos silvestres, e tomava banho sob a chuva amiga, despreocupada quanto aos incertos dias e crepúsculos vindouros. Apreciava o iminente descanso do Sol ao final de uma acomodada tarde morena. Teimava em observar a majestosa Lua mudando de lugar cabreira a cada noite, e as distantes estrelas piscando incessantes sobre o admirável céu aberto, como se pretendessem apresentar algum recado implícito e pertinente.

    Quem me dera jamais acordar. Eu sonhei que existia.

    Loreni Teodori

    SUMÁRIO

    A ILHA DE GASLEBHAN 8

    AS VIELAS DE  GOTHENDE 10

    FIM DOS TEMPOS 12

    REINÍCIO DOS TEMPOS 15

    GRUPO VIRTUOSO 16

    ANJO DA GUARDA 20

    A REDOMA DE PROCERIS 26

    AMIZADE BRIOSA 29

    O DISPOSITIVO DE BRAIMER 38

    EXTREMA SINGELEZA 43

    MERITÓRIO GESTO 51

    ÁGUAS TÉPIDAS 53

    MANJAR A CINCO 65

    FIM DA LINHA 77

    O CASTELO DE ASTREIDON 78

    CONFISSÃO PÚBLICA 86

    O REI DESPIDO 92

    PROGRAMA PERDÍVEL 108

    SONHOS INFANTES 114

    COORDENADAS PERIGOSAS 121

    TRAÇADO AO OCULTO 129

    ALCOVA BELICOSA 145

    MASMORRA FUGAZ 154

    DUELO DE TITÃS 164

    ENCONTRO AUDAZ 170

    DESEJOS IMPETUOSOS 184

    MOMENTOS OBSCUROS 190

    ULTIMATO FEBRIL 200

    VITÓRIA E SOFRIMENTO 206

    DA COR DO MORANGO 215

    APREÇO PLENO 229

    DÁDIVA PATERNA 238

    HÓSPEDE INDESEJÁVEL 242

    OLHOS VERDES 255

    CONTAGEM REGRESSIVA 273

    PILHAGEM CERTEIRA 284

    SUPREMO ACHADO 296

    DURA DECISÃO 308

    O MAGO ABSOLUTO 311

    DESFECHO GLORIOSO 320

    UNIÃO ETERNA 330

    BÔNUS 333

    A ILHA DE GASLEBHAN

    Nos confins do remoto arquipélago de Gizarve, banhado pelas turbulentas águas quentes do oceano de Triczon, a ilha de Gaslebhan despontava serena com suas planícies de vegetação desvalida encravadas dentre nanicas montanhas. As demais ilhotas circunvizinhas reuniam somente rochas, areia clara e glebas improdutivas, distanciando a proliferação da vida terrestre naquele ermo relevo. Numa extremidade de Gaslebhan apareciam os restos materiais do istmo de Guegja, uma estreita faixa de terra e pedras, a qual interligava no passado a lacônica península ao continente abandonado. Aquele comprimido canal fora destruído pelos ancestrais do atual monarca daquele reino — Thercio Menelau IX, o generoso —, o que resultou na definitiva separação da ilha principal e seus miúdos anexos da superfície do imenso torrão, tornando-o simples vestígio aos olhos dos infrequentes observadores.

    Deslocando-se da praia deserta ao centro de Gaslebhan, vencidos caminhos inospitaleiros, atingia-se a aldeia de Gothende, reduto da plebe sitiada. Ali coabitavam pacificamente os impassíveis moradores da ilha em seus domicílios padronizados feitos de construções em semiesferas arquitetadas sobre o duro solo. As portas e janelas dos iglus levantados de tijolos também apresentavam visual arredondado. As moradas eram apelidadas pelos inquilinos de iglumes. Por dentro, o modesto imóvel abrigava sala, cozinha, dois dormitórios e um banheiro. Alguns dispunham de comedido quintal. A cor cinza dominava a pintura externa daqueles ambientes em formato de cúpula, em cujas áreas frontais os nativos cultivavam espécimes de cactos, apequenados arbustos e apessoados jardins. Visto das alturas, o desenho da aldeia de Gothende mostrava-se incomparável: um templo religioso lembrava a figura geométrica de uma pirâmide de quatro lados e ficava na região mediana da vila, cercado por três diferentes praças e pelo prédio do mercado. Cada integrante desse quarteto de estruturas em triângulo apontava para uma direção diferente, bem como cada praça possuía público cativo específico: o primeiro espaço de lazer voltava-se às crianças, outro aos adolescentes e o último aos adultos. A partir daquele conjunto de obras centrais, as residências esferoides formavam fileira em espiral composta de centenas de unidades. A casa defronte ao mercado exibia o número um, seguida do imóvel número três, depois cinco, sete e assim por diante. Da zona cêntrica do caracol urbano ao extremo do povoado de Gothende atingia-se a morada seiscentos e oitenta e nove, a derradeira delas. Previamente, por volta da plaqueta indicativa do imóvel quinhentos e noventa e cinco, aparecia nas imediações a entrada do vistoso castelo de Astreidon, após a passagem sobre uma estreitada ponte feita de madeira sobre o fosso de Tesliten. O elevado muro em volta da grandiosa edificação impedia o acesso de intrusos e segregava os povos em duas categorias distintas: os pacatos residentes do vilarejo de Gothende viviam na ala aberta dentro dos seus habitáculos convexos moldados em espiral. A pomposa casta real e a inseparável aristocracia, inclusive políticos aliados e homens da segurança armada, moravam no interior da fortaleza. Aquele majestoso palácio guardada segredos inconfessos.

    AS VIELAS DE  GOTHENDE

    Narrou-se que cada integrante do quarteto de estruturas em formato triangular no centro de Gothende apontava para posições diferentes. Assim, existiam caminhos que conduziam os moradores a quatro regiões localizadas em pontos cardeais distintos. A praça utilizada pelos adultos indicava a região Leste e uma ruela conduzia o caminhante ao portão do castelo de  Astreidon, após atravessar uma ponte sobre o fosso. Adiante, o espaço de entretenimento atribuído aos jovens incluía uma via com destino ao ponto Sul, nascedouro da pequena floresta de Todemize e do lago que garantia água bebível a um contingente dos habitantes da ilha.  Na vizinhança desse bosque, em lado antagônico à lagoa, ficava o desinteressante cemitério de Galaos. Sequencialmente, a trilha endereçada à localidade Oeste partia da praça das crianças e abrigava uma sinalização vertical contendo a expressão proibido, montada no trecho final da via urbana. Daquela fração em diante atingia-se o arriscado Morro dos Lamentos, no qual a sombria Caverna de Zismone aparecia nas proximidades do litoral. O desfeito istmo de Guegja — finado elo entre a ilha de Gaslebhan e o continente esquecido —  posicionava-se a curta distância dali. A faixa Norte, por fim, zarpava do mercado em forma de triângulo ao campo destinado às atividades agropecuárias desenvolvidas naquele território. Numa parte dessa lavoura desenvolvia-se o cultivo de batata, milho e soja, noutro pedaço extraiam-se frutas e verduras. Havia também o manejo de animais direcionados ao abatedouro e posterior consumo. Esse espaço rural era ladeado pelos titânicos umidificadores de Oletrin esquerdo e direito, responsáveis pela refrigeração do oxigênio daquele ambiente. O ingente dessalinizador de Ozmoser ficava colado ao umidificador destro.

    Os homens, mulheres e crianças de Gothende desfrutavam de relativa independência e conviviam em franca harmonia. Geralmente não lhes faltavam alimentos básicos e demais insumos voltados à sobrevivência da espécie, porém a tradição rezava que todos os pais deveriam contar aos filhos sobre a conturbada história envolvendo aquela civilização. O próspero povoado de Gothende, situado na ilha de Gaslebhan, envolta no arquipélago de Gizarve, guardava tristes recordações oriundas de um passado tenebroso.

    FIM DOS TEMPOS

    Conta-se que, há séculos e mais séculos, numa distante época em que nuvens escuras sobrevoavam o céu de modo corriqueiro, trazendo incessantes relâmpagos e trovões acompanhados de pouquíssima chuva, o planeta iniciou o ensaio de ferrenhas transformações climáticas. Acentuadas mudanças geológicas resultantes desses distúrbios do clima, somadas ao desmatamento indiscriminado das florestas tropicais e poluição desenfreada, fizeram os lugares frios conhecerem calor exacerbado, o qual derreteu gigantescas camadas de gelo polares, abarrotando os oceanos com notável volume adicional d'água. Descomunais inundações tornaram-se comuns nas zonas continentais, ceifando milhões de inocentes vidas. Os efeitos nocivos desses tsunamis perduraram por estações a fio. As regiões quentes, por outro lado, testemunharam impotentes os efeitos perigosos do aumento da temperatura ambiental, o que culminou na erupção de vulcões antes adormecidos, disseminação de terremotos e ampliação de incontáveis áreas desérticas. A frágil camada de ozônio do planeta perdeu força dia após dia, enquanto os famigerados raios ultravioleta penetraram na atmosfera em troca da vida remanescente. Terras cultiváveis acabaram-se em minguados anos, plantas e animais desapareceram, males e doenças multiplicaram-se. O fim dos seres vivos aproximou-se terrivelmente.

    — A nossa extinção esteve muito próxima. Escapamos por um triz. — reconheceu o senhor Sal Riquelo, olhando a ponta do castelo de Astreidon através da janela oval da sua vivenda.

    — O senhor já me contou essa história umas trezentas vezes, pai. Os continentes foram destruídos, muitas pessoas morreram em função dos efeitos perversos ocasionados pelas alterações climáticas e da consequente proliferação da fome e da sede. Excesso de água salgada em várias regiões, seca imperdoável noutras. Até que, num certo dia nublado, um homem descobriu a estrada da salvação. — narrou o jovem Jos Salude, pondo alimentos colhidos na campina sobre a mesa de madeira.

    O moço exibia um cordão feito por intermédio de um barbante preto colocado em volta do seu pescoço, o qual trazia um indefectível pingente metálico na forma de um losango, onde aparecia uma letra consoante do alfabeto. A exclusiva camisa estampada revelava cores diversas estabelecidas em interessantes figuras de animais extintos há séculos.

    — Trezentas, quinhentas, mil vezes. Nunca é demais repetirmos essa narrativa. Ela está impregnada na nossa comida de ontem, hoje e amanhã. Devemos aprendê-la e ensiná-la. Por sinal, você já tem vinte e um anos de idade — eu farei quarenta e nove em breve! — e ainda não me comprometeu um neto.

    — São apenas vinte e um anos de idade, pai! Eu não me vejo preparado para a paternidade. O senhor conhece o meu posicionamento acerca desse assunto. Fico estremecido quando falamos sobre isso.

    — Eu devo me conscientizar: não conhecerei um possível e desejado neto. — lastimou-se o senhor Sal Riquelo, passando a mão sobre os cabelos pouco grisalhos.

    Pai e filho interromperam a conversa no momento em que a senhora Zui Riquelo adentrou a sala. Ele se apoderou das sacolas contendo batatas e cenouras.

    — Jos, discutindo novamente com o seu pai? Fiquem calmos os dois. Como foi a colheita hoje? Trouxe somente batatas e cenouras?

    — Estávamos apenas conversando. — justificou-se Jos Salude, alisando a barba rala. — O trabalho no campo foi monótono e não consegui trazer frutas do mercado. A fila estava enorme! No resto fiz do mesmo jeito das vezes anteriores: três sacos conosco, igual quantidade para a cooperativa e o restante ao arrecadador.  

    — Ele vem cobrando quanto? — indagou o senhor  Sal Riquelo.

    — O arrecadador dividiu a produção de batatas e cenouras em três partes. Dez sacos distribuídos por três resulta-se num trio para cada um, sobrando uma unidade. Esse excedente coube a ele. — explicou Jos Salude, indignado.

    REINÍCIO DOS TEMPOS

    A inquietante história contada pelo senhor Sal Riquelo expunha que o extermínio de todos os seres vivos aproximou-se terrivelmente. — Escapamos por um triz. — dissera ele. Após a ocorrência dos graves desastres provocados pelas frequentes alterações climáticas, a grande massa de terra global conheceu a finitude. Antes do iminente caos total, num aquecido dia em que as nuvens negras aumentaram suas peregrinações pelos ares do globo,  um homem desafiou a visível catástrofe ao tentar escapar do continente em chamas. Conheceu um estreito canal de terra sem nome, na época hodierno, surgido em consequência de um chocante terremoto ocorrido na região. Seguiu a pé durante dias até a ilha principal do arquipélago que se apresentou na extremidade do caminho. O firme desbravador visualizou ali a redenção. Discrepante dos demais lugares transformados em inóspitos, o clima quente aturado naquela ilha podia abrigar a vida. Havia uma rudimentar selva e pouca tema agricultável. Mas havia. Decidido, ele retornou às terras tomadas de labaredas e trouxe um punhado de obstinados sobreviventes, levando-os em companhia ao desejado paraíso. Conduziram sementes, animais domésticos e exemplares de rebanhos. Alguns indivíduos não sobreviveram à árdua travessia e foram abandonados ao longo da jornada.

    GRUPO VIRTUOSO

    Os jovens do arraial de  Gothende divertiam-se despretensiosos na praça ao sul no final da tarde amorenada. Uns disputavam o jogo do braço manco, no qual um artefato em forma de esfera manufaturado de borracha era disputado por oito concorrentes divididos em dois grupos. Quatro desportistas usavam camisetas vermelhas, enquanto os demais vestiam-se de amarelo. A engenharia embutida na brincadeira demonstrava-se simplória: uma dupla de jogadores de times diferentes posicionava-se em cada pedaço de uma quadra cortada em quatro partes iguais. No primeiro quadrante ficava um jogador de vermelho e outro de amarelo. No segundo, terceiro e quarto, idem. Uma nova partida começava para deleite dos espectadores. Após a realização de um sorteio visando definir quem iniciaria o jogo, o escolhido trajado de amarelo do terceiro quadrante lançou o objeto redondo para que o companheiro do primeiro quadrante o segurasse. Os adversários de vermelho possuíam a missão de impedi-los — tanto no arremesso quanto na recepção. A rivalidade acirrada permitia empurrões e troca de insultos sob medida. Se o colega de amarelo do primeiro quadrante conseguisse dominar a esfera, essa equipe marcaria um ponto. Caso negativo, a pontuação caberia à equipe encarnada. A conquista pioneira de uma dezena de pontos indicaria o vencedor do certame.

    — Esse passatempo intratável não me agrada aos olhos. O garoto avermelhado quase arruinou o adversário. Olha a perna dele! É muita violência para o meu gosto. — opinou Lis Fortuni, uma bela moça de cabelos compridos entrançados, diferentemente púrpuras, virando o rosto para o lado. Ela se fazia acompanhar de três propínquos amigos, cada qual munido de uma porção de cartas de baralho.

    — Eu disputei alguns desses agressivos jogos durante a minha adolescência. Veja essas cicatrizes nos meus joelhos. Poderia ser pior, Lis: imagine se pudéssemos utilizar os dois braços no intuito de derrubarmos os adversários! O jogo estrearia com oito atletas e terminaria com apenas cinco ou menos. Por isso, o nome da brincadeira é jogo do braço manco. Só é permitida a utilização de apenas um dos braços, devendo-se manter o outro colado ao corpo. — esclareceu Mol Tranquili, o careca da turma, um moço alto e atlético devido aos costumeiros exercícios físicos praticados diariamente. Ele soltou uma das suas cartas sobre a bancada central.

    Os joelhos do rapaz mostravam lembranças de notáveis rasgos ganhos na adolescência e um deles apresentava uma marca cujo aspecto lembrava um coração, vestígio das antigas abalroadas esportivas.

    — É o meu sinal preferido. — informou Mol Tranquili, piscando o olho direito para a atraente colega. Ela balançou a cabeça, passou a palma da mão sobre os longos cabelos coloridos e disse-lhe, desinteressada:

    — Coitado. Quero outra carta.

    — A sua visível cicatriz na nuca também é chamativa. Deveria encobri-la. Ela me causa enjoo. — anunciou Jos Salude, olhando para a calvície do amigo.

    — Uma tatuagem? Boa ideia, Jos. Farei o adorno de um orbicrone por cima desse vestígio de nascença. — opinou Mol Tranquili, pondo um dos dedos sobre o sinal atrás da cabeça raspada. — A cicatriz de vocês não é tão saliente quanto a minha.

    — Um orbicrone?! Deixe a marca original mesmo. — opinou Lis Fortuni, ajustando o encaixe do seu short comprido junto ao corpo, o qual mostrava tamanho diferente de um lado da perna em relação ao outro. — A sua feiura é suficiente. — completou ela.

    Os cinco botões da blusa tricolor da moça exibiam aspectos únicos: uma peça quadrada, outra na forma de um triângulo, depois um círculo, em seguida um pentágono e, por último, a representação da letra A.

    — Mol, você disse que oito atletas começariam o jogo e cinco ou menos restariam?! Não exagera. A barbárie não chegaria a tanto. Nossos antepassados perpetraram coisas bem piores. Disseram-me que, nos idos de uma era perdida, os homens chegaram ao cúmulo de utilizar cabeças decepadas no lugar das bolas de borracha. Isso sim era esporte brutal. — comentou Vex Aprazimo, rapaz cabeludo dono de impressionantes olhos alaranjados. Ele conferiu seu baralho e jogou uma carta para o grupo.

    — Poxa, eu não gostaria de participar de um jogo desses. Bastam as minhas grandes cicatrizes nos joelhos. — opinou Mol Tranquili, dizendo ainda: —  A violência está em toda parte. Acreditem se quiser: numa tarde destas, preguiçosa e sonolenta, eu estava na praça dedicada às crianças e um bando de garotos e garotas me expulsou de lá. Disseram que ali não era o meu lugar! Que absurdo!

    Lis Fortuni e Vex Aprazimo riram da história contada pelo companheiro forte, enxotado pelas inofensivas crianças.

    — Comédia, Mol. Um sujeito do seu tamanho sendo avacalhado por gente miúda. — zombou Lis Fortuni, percebendo aparente distração por parte de Jos Salude, sentado junto a eles num banco daquela praça. Ele olhava para a imagem de uma figura histórica reproduzida numa estátua montada adiante do templo. Havia inscrições desautorizadas feitas a tinta bege no corpo da escultura de aparência sombria.

    — Jos, por que não riu da piada? É a sua vez de jogar uma carta. No que você está pensando? — indagou a moça, intentando espreitar o jogo do amigo.

    — Sim, eu ouvi o relato e achei engraçado. — explicou o rapaz, colocando duas cartas sobre as outras. — Mas eu estava refletindo noutro aspecto. Aquele homem exibido na estátua parece que nos observa a todo momento. Seus compenetrados olhos miram o horizonte, entretanto, quando o encaramos de modo categórico, logo percebemos que nós somos o horizonte. — ponderou ele, notando implícita admiração por parte dela e estranheza no olhar dos rapazes. — Bobagem minha. Não era sobre isso que eu gostaria de ter comentado. Vejam, colegas: ali temos o espaço de entretenimento dispensado às crianças, local onde o Mol fora expulso; cá estamos na praça oferecida aos jovens, embora já não sejamos adolescentes; e adiante dispomos da área de lazer consagrada aos adultos: poderíamos estar lá ao invés daqui. Mas falta algo, é óbvio. Não há espaço ofertado aos idosos! — observou  Jos Salude, cultivando o hábito de coçar o queixo mediante o uso simultâneo do polegar e do dedo indicador da mão esquerda.

    — É lógico que não dispomos de praça exclusiva dedicada aos velhos, Jos. Você deseja que eu explique ou prefere um desenho feito no chão da praça? —  reagiu Mol Tranquili, contumaz intolerante.

    — Mol, velhos não. Idosos! — ensinou Vex Aprazimo, continuando: — Eu ganhei: esta foi a minha última carta! — disparou o jovem, recrutando as peças do baralho que se encontravam em poder dos outros.

    — Correto, Vex. — corroborou Lis Fortuni. — Idosos seriam adultos. — ponderou ela, chutando o pé do descortês Mol Tranquili.

    — Eu sei, companheiros. Idosos seriam adultos. Às vezes divago e penso nisso: nós não temos idosos nesta aldeia, portanto não se faz necessária uma praça somente para eles.

    ANJO DA GUARDA

    O eminente templo piramidal continha inúmeros bancos de madeira enfileirados, suficientes à acomodação de centenas de fiéis. As tábuas situadas na ala dianteira guardavam preferência para os adultos, enquanto jovens e crianças ocupavam os espaços intermediários e finais da abadia. O corpulento sacerdote aguardou a entrada dos últimos visitantes e pediu o livro sagrado ao tacanho ajudante, ambos  vestidos de preto e posicionados na tribuna montada defronte ao cativo público.

    — Omanem, senhoras e senhores. Sejam bem-vindos à celebração desta noite. — proferiu o homem, selecionando a página inicial do livro. A maioria dos simpatizantes ergueu um dos braços e, mostrando atos coordenados, abriu e fechou a mão direita por três vezes.

    — Omanem! — repetiu o nanico auxiliar, fazendo o mesmo ritual com a própria mão.

    — Hoje é o septingentésimo trigésimo nono aniversário da nossa abonada sociedade. — iniciou o clérigo, olhando para frente e para os lados.

    — Traduzindo: setecentos e trinta e nove marcações de transcursos temporais. — explicou  Vex Aprazimo em voz baixa, sendo repreendido por Lis Fortuni:

    — Silêncio, Vex. O pároco está falando.

    Os quatro parceiros encontravam-se sentados na extremidade de um banco localizado na retaguarda do local do culto. Jos Salude na ponta, Lis Fortuni ao seu lado, Mol Tranquili compondo o terceiro lugar e Vex  Aprazimo complementando o grupo.

    — O Jos sempre escolhe aquele lugar do assento, próximo ao corredor lateral. O último a entrar e o primeiro a sair, faça chuva ou calor. Aliás, faça calor  franzino ou robusto, pois chuva é improvável nesta ilha. — arbitrou Mol Tranquili.

    — Silêncio, Mol. Seremos expulsos deste santuário. Si-lên-cio! — requisitou a moça, pondo o dedo indicador sobre os lábios. O sacerdote continuava seu discurso a partir dos ensinamentos contidos no texto abençoado:

    — Somos bem-aventurados! A novel civilização da ilha de Gaslebhan nasceu em função da resistência de bravos guerreiros, intolerantes aos nocivos efeitos do caos. Coube ao pioneiro Mosse Gaslebhan — daí o nome do lugar evidenciado em sua homenagem —, a árdua missão de explorar os redutos antes intocáveis deste aglomerado de terra, vencendo desafios inimagináveis. Ele e seus companheiros de labuta conheceram a fome e a desilusão nos primeiros anos de convivência no novo oásis. Experimentaram a dor e o sofrimento. Mas venceram. A dúzia de perspicazes batalhadores construiu as primeiras casas, idealizou a providencial área agrícola do imaturo território e viu crescer rapidamente a comunidade da vila de Gothende. Somos bem-aventurados, senhoras e senhores! — alardeou o pároco. —  Omanem!  Omanem!

    As pessoas levantaram seus braços e abriram suas mãos, fechando-as na sequência e repetindo aquela ação por algumas vezes. — Omanem, omanem! — gritaram elas, radiantes.  

    — Por que você não faz o mesmo, Jos?! — indagou Lis Fortuni ao amigo, recebendo uma antipática resposta em troca.

    — Eu preciso respirar por um momento. Retornarei em breve. — disse ele, levantando-se do banco.

    — Espere, eu vou com você. — disse a donzela, sendo observada pelos dois companheiros que permaneceram sentados.

    Jos Salude saiu pela porta que dava acesso à praça da juventude e sentou-se num apoio horizontal de duas vagas. O nome Mosse Gaslebhan figurava numa vistosa placa colocada nas imediações sob uma desmedida estátua feita de pedra. Lis Fortuni acomodou-se ao seu lado. Um anjo da guarda espreitou o casal das alturas.

    — Eu sei porque você saiu do interior da capela. Aquela história enfadonha também me encheu o saco. — confessou ela, olhando para cima. — Tomara que os deuses não me ouçam.  

    — O problema é que ele não conta toda a nossa história. Sempre fica pela metade, aquele amontoado de frases de efeito. — disse Jos Salude, tentando visualizar o caminho de acesso à região Oeste da viela, o qual começava na praça dos pequenos.

    — Nem precisa contá-la, Jos. Todos nós sabemos o início, meio e fim da nossa trajetória até aqui: os antigos precursores ergueram a cidade em que moramos e, em face

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