Contos tortos
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Contos tortos - Airton Paschoa
O trono
Já pensei jogá-lo fora e desisto, receio não ter força ou ele não passe pela porta. Às vezes lamento a indecisão, que me obriga ao exercício penoso de recolher as pernas e me dobrar sobre a mesa pra escrever. O esforço é tamanho que às vezes me estico sobre ela, a ponto de ficar assim um tempo incalculável, imóvel, pra descansar. Quando dou por mim, volto imediatamente à posição original e recomeço. Quero dizer, não tão imediatamente, porque exige opinião largar uma posição confortável e recompor-se de novo, de joelhos. Demoro um pouco, confesso, e acho que estou demorando cada vez um pouco mais, mas me curvo, porque me impele o senso de dever enérgico. Bem, já fora mais. Não, minto, ele continua enérgico. É que às vezes ao acordar, o que é próprio e horrível dessa fase, tudo me parece menos sólido, imponderável, remoto. A mesa larga e comprida é quase uma estrada, na ponta da qual diviso cai-não-cai o lápis, da grossura de um tronco. Às vezes acordo a tempo ainda de ver a última folha aterrizando no horizonte, como nuvem. Eu, lento, pesado, não anelo senão espreguiçar e tão perpetuamente que parece não ter mais fim o cansaço, o corpo. E eis que sobrevém a tarefa pior, descer e localizar e capturar os fugitivos e subir no trono novamente e tentar me acomodar pra outra investida. Faço-o me arrastando, literalmente. Às vezes a sorte me brinda e, a despeito do susto de me topar no chão, chego a sorrir quase, não sei se com o meio caminho de repente andado ou com o fato de ter sobrevivido na queda. Mesmo assim tão brutal permanece o esforço de reavê-los que apenas retorno e me deito ao largo no carvalho úmido, frio, sereno, durmo. Ou não durmo, porque não sei exatamente como fico. Acho que fico encantado com a floresta de sombras nascente, de vento, de água, de vozes, rumorosa, até que a lua pega fogo e me obriga a achar refúgio num canto do trono. Ali, geralmente, fico cantando baixinho, encolhido, engrolando, pra adormecer a dor ou essa impressão dolorosa na altura do ventre, fundo. E fatalmente entraria na eternidade sem dar conta se um clarão repentino, seguido de um trovão medonho, não espantasse minhas noites de sossego. Me assola um sol eterno, selvagem, e o vento violento, que não para de soprar. Renuncio ao trono e busco abrigo pra salvar a pele. Palmilho o território todo, inutilmente, no meio do redemoinho infernal dos reféns. Me imagino em carne viva, horrendo. Mas não, me paralisa um medo infundado ao passar por ele, consigo me erguer e olhar no espelho, alto, que vem do teto ao piso, quase. É tarde também. O sol eterno apagou, tão subitamente quanto acendeu, e cresce a impressão dolorosa, essa dor, que nada pode aplacar, nem mesmo o líquido que sinto escorrer ao longo do corpo. Espero sinceramente estar morto amanhã.
O padrinho
Conseguira passar pela senhoria sem ser visto, enfiara pelo corredor como uma sombra, e agora tomava fôlego, rápido, antes de bater à porta.
Bateu leve, receoso... nada. Quando decidira, finalmente, imprimir um pouco mais de força, a porta abriu-se, e ela elevou o indicador aos lábios. As crianças dormiam.
Entrou, pisando em ovos e brinquedos. Ela sorriu, a desculpar-se, recolhendo-os, e apontou-lhe a cadeira.
— Cumprimenta o padrinho, sussurrou.
E uma menina de uns cinco, seis anos, moreninha, quase índia, a cara da mãe escrito, saiu de debaixo da mesa, amuada.
— Esta não dorme...
O padrinho pegou-lhe o bracinho estendido, levou a mão ao bolso, num gesto de quem busca alguma coisa, deixou-a lá... paralisado! Trocara de paletó à saída, achando que combinava mais, e esquecera de retirar as balas. Olhou pra menina, desenxavido, passou-lhe a mão na cabeça, sorriu, sem ser correspondido.
— Pronto, mamãe?
A mulher, reprimindo o sorriso de orgulho, fez que sim com a cabeça, e a menina retornou ao esconderijo.
— Não está muito escuro? balbuciou o padrinho.
Ela fez que não ouviu, ele sussurrou mais alto. Tão escuro achava, para o crochê... Ela estava acostumada, ou não ligava, ou que não era crochê, era tricô, ou que ela precisava terminar aquela pecinha, tudo isso parecia indicar o negaceio de cabeça suave.
— E sua mulher, melhorou?
Tirou os óculos pra vê-lo melhor. Ele agradeceu, calado, e não foi apenas à delicadeza da pergunta, foi sobretudo a seus olhos livres, luminosos, daquela doçura que ele tanto lutava por explicar, que agradecia, comovido.
Recolocou-os, ameaçou recolocá-los, pensando reiniciar a tarefa, deteve-se. Tinha razão, talvez estivesse escuro, e soltou o cabelo, que lhe caiu ombro abaixo, como um manto.
Fitaram-se, e antes que enlaçassem as mãos, ou ela levantasse pra coar o café, surgiu do quarto, tropeçando, esfregando os olhos, um menino de uns três aninhos, choroso.
— Descalço, meu anjo... Por que não pôs os chinelinhos?
Queria colo. Ela pegou-o e beijou-o, muito.
— Não cumprimenta o padrinho agora? encarando-o, fingindo-se séria.
O menino, estremunhando embora, fez que não, decidido. Depois, começou a bater as pernas, queria descer, brincar, e antes da reprimenda da mãe o padrinho interveio mansamente em seu favor.
Ela pôs a mesa e preparou o café.
O padrinho recusou o pãozinho com margarina, nem a bolacha de maisena, nada, um cafezinho apenas, com muito gosto. Não queria sujar os dentes.
— Esmeralda...
Gostava de pronunciá-lo, quase à toa, mais ainda depois de lhe terem lembrado que era nome de pedra preciosa... Esmeralda.
Esmeralda terminara de dar café às duas crianças, e mandava-as ao quarto, ao outro cômodo da casa, brincarem, mas sem acordarem o irmãozinho menor.
— Chamei, eu? Ah, sim... estou falando com o chefe... lá do escritório... talvez um lugar na fábrica... o serviço é duro, trabalham em pé, as coitadas... mas como você insiste...
Ela ajoelhou-se a seus pés, pegou-lhe na mão, beijou-a, depois depositou nela a face, em novo beijo, demorado e sem lábios. O padrinho esteve a pique de violentá-la. A humildade exasperava-lhe o desejo, os ciúmes. Ciúmes do chefe a que ia obedecer, ciúmes do patrão que ia explorá-la, ciúmes do cobrador que ia tocar-lhe os dedos, ciúmes das amigas que ia arrumar, ciúmes de tudo, de todos, do marido, que deixara no interior, dos filhos, que a sugavam...
— Não... por favor... o que é isso, meu Deus? ergueu-se e ergueu-a. É tão pouco o que faço...
Entraram as crianças, a menina carregando o irmãozinho de colo, misteriosamente quieto, defendendo-o do outro, que queria carregá-lo também. O padrinho aproveitou pra deixar, precipitado, um rolinho de notas no cesto de costura.
— Ele acordou sozinho, ia perguntando Esmeralda, tentando fazer cara feia, ou foram vocês que...
— Ele disse que quer mamar, mamãe, respondeu a menina.
Esmeralda torceu a custo o riso, tomou-o dos braços da menina, ainda dormindo quase, beijou-o e sentou-se, rodeada dos filhos, que queriam ver mamando o caçulinha. Mimou-o um pouco, corada. O padrinho baixou os olhos, voltou a sentar-se, de lado. Mas, pouco a pouco, foi virando-se, virando-se,