O Erro Foi Da Genética
De N. Flores
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O Erro Foi Da Genética - N. Flores
SUMÁRIO
SUMÁRIO
PRÓLOGO
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
EPÍLOGO
PRÓLOGO
Penso que sou diferente (sem arrogância alguma), principalmente no físico, de todos os que me rodeiam. Desde que tive consciência de mim mesma, pude me ver distante na maneira de pensar e sentir a vida. Até hoje, quando escuto ou vejo coisas que considero absurdas, tento controlar meu impulso de mostrar a minha verdade. É como uma coceira exasperante, impossível de se evitar. A muito custo me contenho... o que na verdade é uma exaustiva batalha mental entre o meu eu material e o espiritual. Uma vez ou outra, acabo interferindo e não deixo de considerar, argumentar, sobre o quanto estão errados em persistirem com uma atitude ridícula, para não dizer, inferior, a dos animais. Entretanto, o meu lado desligado e distante, me aconselha a deixar passar.
Afinal... somos todos, diferentes criaturas, de um Criador amoroso e condescendente, não é mesmo?!
Espero que Ele seja indulgente com todos nós, indistintamente.
UM
A noite se despediu com seus segredos e o dia surgia afastando as sombras. Mas o sol parecendo contrariado, se escondeu atrás de nuvens cinzentas e pesadas por vários dias. Na tranquila cidade das Hortênsias, a neblina fria e densa cobria como um véu branco o vibrante verde da natureza. Parecia oferecer um ar de cumplicidade para que certas coisas também continuassem encobertas, ocultas, como um segredo vergonhoso. Enrolada em seu edredom, olhava através do vidro embaçado da janela a fria paisagem lá fora, que se resumia a vultos distorcidos assim como a sua vida. Um arrepio gelado correu pelo corpo de Valéria. Ela sabia que segredos mais tarde ou mais cedo seriam revelados... então, o arrepio se intensificou. Olhou para a cama quente e acolhedora e se enfiou nela, fechou os olhos e orou com um fervor jamais sentido. Ela precisaria de Deus e de todos os santos, muito mais naquele dia. Cansada logo adormeceu.
― Abre a porta Valéria! Vamos, não te faças de tonta, ou chamarei a nossa mãe! ― abriu os olhos assustada. As batidas na porta seguiam insistentes... então não estava sonhando! Valéria... que nome! Poderiam ter escolhido um nome mais atual… Porque não Valéria Messalina¹, então?!
― Vou contar até três… se não abrir, vou buscar a mamãe. E o papai também! Um…
― Melody sua gansa! Por que não me deixa em paz?! Vai arrumar o que fazer! Vai para frente do espelho, como sempre faz!
Melody… de melosa e não de melodia; fecharia mais com ela, refletiu. Pensava dessa forma querendo se vingar dos gritos da irmã àquela hora da manhã.
Sentiu que o dia seria complicado. Já estava irritada, porque tinha quase certeza de que havia cometido uma enorme burrice. E, sua irmã, para completar o quadro dos tormentos, estava ali atrás da porta do seu sagrado quarto, onde sempre podia encontrar um pouco de paz.
Será que o dia do julgamento havia chegado e teria de prestar contas até para Melody?!
― Eu não estou brincando menina! Abre logo essa porta! Dois…
― Para de bater na minha porta! Vais estragar as unhas… vermelhas… Hum… vejamos, quanto pagaste por elas? Trinta reais… cinquenta? Daria para comprar vários litros de leite para os pobres, com esse valor.
― Ah, quanta pieguice! Devias te preocupar mais contigo e não com os pobres. Os pobres sempre vão existir…
― Por isso mesmo! Sempre vão existir, porque pessoas que podem ajudar, jogam dinheiro fora em futilidades ― Valéria também gostava de arrumar as unhas, mas ela mesmo fazia isso, sempre que se lembrava. Não aceitava que outros fizessem coisas que ela mesmo podia fazer, e muito bem.
― Três… última chance. Abre esta porta agora, ou vou descer e chamar o papai!
― Pode ir. Chama também o Presidente, o Papa, o escambau²! E vai para o inferno junto com todos eles! ― além da irritação talvez sentisse um pouco de culpa, admitiu. Mas o que exatamente Melody queria com ela?
Desconfiou de alguma coisa… será?
Podia ouvir os saltos altos da irmã mais velha, batendo no piso de madeira bem encerado do corredor, e depois mais distantes, abafados pelo tapete das escadarias. Imaginava sua expressão, com certeza bufando de raiva. Logo seus pais estariam também batendo na porta. Inferno! Praguejou inquieta. O que viria a seguir?
Queria que a deixassem em paz, que a deixassem viver do seu jeito. Mas todos insistiam em aconselhar, davam opiniões megailusórias que não tinham nada a ver com sua condição física! Sabia que eles agiam dessa forma pensando no melhor para ela. Mas não entendiam que ela foi feita de outra espécie, que pertencia a uma outra genealogia, outro tronco, mutilado, da família. Herdara as características físicas do seu tio Laércio, que vivera até morrer em cima de uma cadeira de rodas, vitimado pela própria doença. Além de paraplégico, no fim da vida ficou totalmente pinel. Infelizmente, suspirou resignada, era o que a esperava no amoroso futuro. Sabia disso, embora todos discordassem. Às vezes, ela quase entrava nessa, acreditando que teria um fim diferente; mas tudo indicava que não. Apesar da doença ter se manifestado mais branda em seu corpo, a situação piorava a cada ano.
— Marcus… Deus, que vergonha… — gemeu baixinhos. O que ele estaria pensando dela?
― Filha, é o papai. Abre a porta, precisamos conversar... Sei que está passando por uma fase difícil e… bem, estou aqui para te ajudar ― mesmo com paredes e portas fechadas, sentia a preocupação do pai. Até podia imaginar seu rosto, a expressão preocupada, mas cautelosa.
Paulo assumia uma atitude precavida diante das maluquices da filha, a mesma atitude que teria diante de um animal selvagem ferido. Ele era um homem de aparência poderosa, temido e respeitado por todos; mas também, era reconhecido por sua generosidade e afeto quando necessário, era o amigo em quem se podia confiar inteiramente se um problema surgisse. Fazia questão de participar de todos os momentos, importantes ou não, na vida de todos da família. Principalmente na vida de Valéria. Mas naquele momento ela queria ficar só, para poder digerir a embrulhada em que se metera na noite passada.
― Pai... por favor… quero ficar só, um pouco. Pode ser?
― Querida, quero te ajudar… ― ele resmunga alguma coisa. ― Tudo bem. Quando precisar falar com alguém, estarei bem aqui, certo?
― Certo. Obrigada, pai.
As pisadas fortes do pai se afastaram pelo corredor. Agora o silêncio, dentro e fora daquele quarto, quase doía. Enquanto eles falavam e insistiam, conseguiu por alguns minutos, mascarar a lembrança da atitude impensada que tivera na noite passada.
De repente o doloroso silêncio é quebrado por vozes alteradas. Valéria pula da cama e do comiserado drama, que se insinuava a se apoderar de seus pensamentos. Tentava escutar encostada na porta a coisa toda; não conseguindo, sai para o corredor.
― Eu preciso falar com ela! ― soou uma voz grave.
Marcus… oh, não!
― Exatamente o que tu tens para falar com minha irmã? Que eu saiba, nunca foste muito fraternal com ela… ou estou enganada? ― Melody diz esganiçada.
― Olha, é melhor outro dia. Seja lá o que tinhas para falar, poderá esperar. Ela não está querendo falar com ninguém… ― Paulo tentava dissuadir Marcus. Ela podia imaginar a cena toda, seu pai levando Marcus pelo braço em direção à saída, educadamente, mas com total firmeza. Valéria queria ser uma formiguinha, não para presenciar a cena que de longe escutava, e sim, escapar para bem longe de todos e dela mesma, se fosse possível. A culpada do tumulto naquela casa, era ela. Sentia-se como um obstáculo intransponível e perturbador na vida deles todos. E agora, na vida de Marcus também.
― Sr. Paulo, me escute. Preciso muito falar com Valéria… eu prometo ao senhor, depois que falar com ela, explicarei tudo…
― Valéria aprontou alguma coisa Marcus? ― naquele momento ela tremeu, quando a mãe em sua sutileza começou o interrogatório. Em pânico, correu para o quarto e procurou um canto para se esconder. Olhou para baixo da cama, para o closet… A sacada!
Colocou um casacão por cima do pijama, a boina branca, enfiou os óculos e calçou as botas ortopédicas o mais rápido possível, enquanto passos intimidantes se aproximavam pelo corredor. Abriu as portas francesas, que davam para a sacada, e se lançou afobada pela treliça de madeira emaranhada de Alamandas amarelas. O perfume das flores entranhou no seu nariz e seus ramos arranharam seu rosto; nada que precisasse de uma intervenção cirúrgica! Pensava enquanto seguia na frenética descida. O que eram alguns aranhões, comparados com a confusão que havia provocado?
Já com o terreno do jardim ganho a sua frente, mancando desencadeou numa corrida sem tréguas. Ultrapassou os imponentes portões que limitavam a entrada de qualquer um na mansão da família, por serem de ferro, pesados e por estarem sempre dramaticamente fechados, que naquele momento estavam escancarados. Agradeceu a Marcus por essa facilidade, pois certamente sua visita inesperada proporcionara o esquecimento de fecharem os portões a tempo. Desceu pela rua íngreme, em curva, da quadra que rodeava a casa, já com dificuldade. O pé torto não facilitava nada para ela porque, indiferente, arrastava no chão mesmo ela precisando dele naquela hora. Ela não conseguia elevar o pé como fazia normalmente com o esquerdo. Maldito pé direito aleijado!
― Valéria! Espera!
Merda! Marcus!
Estava frio e começava a cair uma chuva fininha, muito comum nessa época do ano. Mas Valéria não podia parar de correr, precisava estar bem longe daquele homem. Homem, que na noite anterior, a transportou para um mundo cheio de cores e sensações incríveis e jamais imaginadas. Infelizmente, era o homem errado; mesmo sendo o homem mais bonito em que colocou seus olhos de deficiente carente. Quanto mais corria, mais parecia que a paisagem não mudava. Ao redor, as coisas estavam quase estáticas, como em câmera lenta, muito lenta. A imagem das árvores, na lateral oposta da rua estreita de paralelepípedos, ora ficava retorcida ora apagada, pelo chuvisco que inflexível embaçava as grossas lentes dos seus óculos. Mas não podia se deter nos detalhes da paisagem, tinha que escapar daquele que, energicamente, a perseguia. Ela precisava procurar um esconderijo, urgente.
Seria ótimo encontrar asilo em outro país…
Cansada e sem fôlego, não estava encontrando uma saída. As ideias afloravam, mas não podia acatá-las como se fossem úteis. Num momento corria, noutro, dois braços fortes a suspendiam e a apertavam firmemente contra um peito musculoso e protetor.
― Querida… não precisa ficar com medo. Eu estou aqui e não a deixarei sozinha.
― Marcus…
― Shhh... quietinha ― ela aconchegou o rosto no peito quente e acolhedor e fechou os olhos rendida.
Não abriu os olhos nem quando ele passou entre seus pais e sua irmã carregando-a escadaria acima. Mas pôde imaginar a cena, a cara de assombro de todos. Riria se não estivesse inserida dos pés à cabeça naquele contexto. Deixou-se levar por um sentimento que era proibido para ela por dois motivos: Primeiro, uma aleijada de quatro olhos não tinha direito a uma vida normal e feliz. Segundo, Marcus era o namorado da sua irmã… E isso soava meio esquisito, tipo um incesto... em alguns países o incesto era considerado crime, tinha virado uma criminosa? Que droga pensamento é esse? Não havia parentesco consanguíneo entre eles! Refletiu enquanto ele a colocava sentada na cama.
Valéria observava o homem bonito que cuidava dela com carinho. Ele tinha muita prática, pensou. Estava nervosa, sentia culpa por ter roubado o namorado de irmã, e não sabia o que fazer. Nunca um admirador de Melody tinha chamado sua atenção, não se importava com a existência deles. Com Marcus foi diferente.
Cauteloso, Marcus tira as botas, o casacão e a boina que Valéria vestia, cuidadosamente guardou os óculos na mesinha ao lado, e depois dá um largo sorriso olhando para o pijama que ela vestia. Na verdade, era uma camiseta e um cuecão, brancos. Paulo havia ganhado o dito pijama da mãe dele em um aniversário. Vovó Luíza era campeã em encontrar roupas e objetos da era medieval. Eles não tinham a mínima ideia onde ela arranjava tais coisas. Talvez ela as conservasse bem guardadas em seu baú, porque cheiravam a naftalina. Lembrou quando seu pai abraçou a mãe dele agradecendo o presente. Logo depois, se virou e fazendo uma careta de horror pediu que ela o guardasse. Entendia que o sr. Paulo, que transpirava masculinidade até pelos poros, jamais usaria um cuecão canelado e justinho, tipo uma legging. A camiseta também canelada, ele até poderia usar. Mas o pijama acabou esquecido em suas gavetas e num dia frio, pensou, por que não? Era bem quentinho. A partir daí, era o seu preferido.
Marcus, ainda com um sorriso zombador cobre Valéria docemente com o edredom e a beija na testa. ― Estás muito sexy com esse pijama… ― ela quis protestar, mas ele a impede com os dedos em sua boca. ― Shhh... Procura descansar. Permaneça nessa cama até que eu decida que já foi o suficiente, ok? ― Valéria consentiu meio contrariada. ― Boa menina! ― ele disse se encaminhando para a porta.
― Marcus… o que viestes fazer aqui a esta hora da manhã…? ― ele se voltou olhando sério para ela, e se aproximou novamente.
― Acordei e não te achei… então, resolvi ver como estavas. Se estava tudo bem… na verdade, fiquei preocupado, quando saístes estava amanhecendo… tinhas caído, te machucaste e poderias cair novamente… Como estão os ferimentos? ― ela quase gritou decepcionada. Ele não veio porque queria estar com ela e sim preocupado com a deficiência que ela carregava… poderias cair novamente… ressoou como uma praga na cabeça de Valéria. Por que as pessoas se preocupavam tanto com seu defeito congênito?
― Ah, pelo amor de Deus, Marcus! Isto não são ferimentos, são arranhões leves. Amanhã já terão desaparecido.
― Tudo bem, que bom que foram leves ― ele afagou seu rosto com carinho. ― Vou tentar explicar para os teus pais o que aconteceu…
― Marcus… ― apreensiva, ela senta na cama empurrando as cobertas. ― Não precisa fazer nada que tu não queiras. Não estás obrigado a nada, foi eu quem se enfiou na cama contigo…
― Valéria, sei quantos anos tens e quantos eu tenho… ― ela arregalou seus grandes olhos azuis sem saber o que dizer. ― Sei quem carrega a inocência aqui ― ele a empurra suavemente