Sangue De Lobisomem
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Sangue De Lobisomem - Camila Fernandes
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes Prefácio
O mundo é assombrado pelas mais variadas lendas. O ser humano tem a cultura de criar personagens folclóricos para aquilo que não consegue explicar logicamente. Talvez porque os filósofos naturais — até então — ainda não tenham descoberto o que causou este ou aquele fenômeno, ou essa nova espécie de animal, ou até essa doença.
Mesmo assim, em algumas épocas, os que tentaram e conseguiram encontrar uma resposta foram chamados de loucos pelos mais ignorantes. Muitos foram queimados na fogueira. Pessoas, sábios que tinham muito a oferecer.
Novas descobertas, revelações. Tornando a humanidade um pouco menos simplória. Viram a sua genialidade desperdiçada em cima de um cadafalso. Enfim, tudo o que é desconhecido para o ser humano é sempre envolvido por uma lenda, um personagem irreal, absurdo.
Em discordância com tudo isto, eu algumas vezes buscava ser moderada. Pois sempre havia uma razão lógica para tudo, e se ninguém ainda a soubesse, alguém um dia a saberia.
Todavia, a minha história me fez mudar esse conceito, essa minha falta de fé em algumas coisas, e que em tudo há obra ou ação diabólica. Afinal, o que os meus olhos viram foi algo que eu reputava ser impossível humanamente. Algo que, se eu o revelasse a algum médico, certamente seria levada para o desterro, ou alguma casa de misericórdia, onde pudesse ser tratada como uma enferma. Algo que pasmaria muitos doutores afeiçoados por anatomia. Espero que o leitor goste e aprenda que, quando algué[m
8 ] lhe aconselhar a sair de
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes algum lugar, vosmecê sai. Não contrarie a quem conhece os perigos que vosmecê desconhece, e saiba que, às vezes, o que vosmecê julga ser irreal, pode ser mais real do que imagina.
Elizabetta Vettori
15 de Fevereiro de 1559
[
9 ]
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes Carta Que Elizabetta Recebera Na Semana Anterior Salvatori Vettori
Lupercádia, Itália
15 de setembro de 1556
Elisabetta Vettori
Monteverde, Itália
Cara netinha,
Espero que esta carta a encontre bem. Permita-me expressar a profunda ansiedade que me consome ao escrever esta carta para poder ter o prazer de vê-la.
Desde a partida de seu pai, tenho sentido imensamente sua ausência. Informo-lhe que na próxima segunda-feira um cocheiro estará indo buscá-la em sua residência, e Adrianus estará aguardando para acompanhá-la até aqui. Esteja pronta para partir.
Com amor,
Seu avô
[ 11 ]
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes A Lenda da Besta de Lupercádia
A grande porta de carvalho estava entreaberta, e com um simples empurrão, ela rangeu, abrindo-se completamente e expondo toda a beleza arquitetônica da sala principal. Dois jovens entraram na mansão lentamente, úmidos da chuva que castigava a noite com ventos e trovões aterrorizantes. A construção parecia abandonada há anos, com muita poeira impregnando os móveis e teias de aranha espalhadas por todos os cantos. Apesar disso, era um bom lugar para quem precisava se refugiar de uma noite tempestuosa, como era o caso daqueles jovens.
Será que não há ninguém morando aqui?
, indagou a moça, tremendo de frio.
Se tivermos cuidado, talvez não sejamos percebidos
, respondeu o rapaz, elevando os olhos para o andar de cima como se pudesse prever algum mal. Mas aconteça o que acontecer nesta noite, quero que se esconda bem e, se tudo der certo, podemos dormir aqui hoje. Amanhã eu a levo de volta.
Enquanto isso, em um dos quartos do segundo andar, um homem repousava sobre uma luxuosa cadeira.
Totalmente desarrumado, desgrenhado e manchado de sangue. No chão, uma taça suja e várias garrafas de vinho vazias denunciavam a sua tamanha embriaguez. Certamente, ele iria acordar somente no dia seguinte, talvez aqueles jovens não fossem descobertos. Por hora, os mesmos resolveram explorar a bela casa, talvez em busca de roupas e principalmente de aposentos nos quais pudessem pernoitar tranquilamente. O rapaz subia a escadaria que o levaria diretamente para os quartos do segundo andar, onde, em um deles, dormia o seu anfitrião desconhecido.
[ 12 ]
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes A moça seguiu pelo vasto corredor do andar de baixo, muito amedrontada, assustando-se sempre com os trovões, demonstrando assim a sua extrema fobia de raios e possivelmente também de chuvas densas.
De repente, um vento forte abriu algumas janelas centrais, espalhando pelos corredores o cheiro suave da terra úmida e eliminando, em alguns quartos, o odor ruim do mofo. O homem sentiu uma brisa entrar no cômodo onde estava, trazendo consigo o aroma dos seus novos inquilinos. Ele acordou naquele instante. Seus olhos verdes se abriram e logo se avermelharam de raiva. Ele se transformava em uma criatura horrível, um monstro infernal que só existia em pinturas, desenhos ou livros de mitologia, mas que agora era vivo e real. Imagens dos jovens que invadiram a sua casa lhe vieram à mente, despertando uma vontade cruel, uma sede de morte, que ele não conseguia controlar. Um grito aterrorizante cortou a noite, quebrando o silêncio que reinava antes.
Andréa?
, murmurou a moça, ainda mais amedrontada, em prantos, pois era quase certo de que seu amigo estava morto. O perigo a rondava. Sua vez estava prestes a chegar. Desesperada, ela pôs-se a correr, enfurnando-se ainda mais, envolvida pelas sombras do corredor,
[ 13 ]
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes correndo apavoradamente, procurando algum refúgio, tentando se esconder e salvar a sua vida.
Ela ouviu os passos pesados da criatura se aproximando pelo corredor escuro. Era um Lobisomem, uma mistura horrível de homem e lobo, que possivelmente havia acabado de matar o seu amigo. Ela correu em pânico, procurando uma saída. Tentou abrir a primeira porta que viu, mas estava trancada. Continuou correndo, ofuscada pela escuridão, e tentou outra porta. Também estava trancada. Na terceira tentativa, a porta se abriu. Ela entrou rápido e empurrou alguns móveis para bloquear a entrada. Escondeu-se atrás de uma arca de madeira, encolhida e chorando. Torcia para que o monstro não a encontrasse.
Nesse mesmo momento, o ribombo da primeira porta sendo arrombada invadiu o corredor, seguido pelo som irritante de unhas raspando a parede. Ela estremeceu, arrepiada, cheia de pavor e aversão. A morte aproximava-se cada vez mais, essa, talvez, fosse a sua única certeza.
Rezava para que o monstro não a encontrasse ali. A chuva continuava caindo lá fora, refletindo a sua própria angústia e temor. Ela sabia que enfrentaria as barbaridades nefastas da vida naquela noite, e torcia para sobreviver. Contudo, a quietude novamente reinou, intercalada apenas pela chuva densa que descia, umedecendo o solo. Provavelmente ele havia recuado.
Entretanto, ela permaneceu parada, aguardando. Não queria se arriscar, precisava ter a certeza de que ele havia realmente afastado.
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[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes A porta começou a tremer com a força do monstro que tentava arrombá-la. Os móveis que a bloqueavam foram lançados para o lado, quando a porta se abriu com um estrondo. Ela se deparou com a monstruosidade, um corpo imenso, coberto de pelos e músculos. A cabeça era semelhante à de um husky siberiano, porém mais selvagem e aterrorizante, com garras afiadas e dentes pontiagudos. Ela ouviu um tilintar perto de seus pés. Era um enfeite pontudo que se soltara de um dos móveis. Ela o pegou, pensando em usá-lo como uma arma. O lobisomem investiu contra ela, mas ela foi rápida e cravou o enfeite em seu pescoço. Ele a derrubou no chão, mas recuou, urrando de dor. Ela se levantou, pronta para enfrentá-lo de novo. Ele atacou, furioso, mas ela o golpeou mais uma vez. Ele tombou, sangrando, e começou a se transformar. Em seu lugar, jazia o homem que antes dormia sossegado em sua cadeira, nu e morto. Ela o havia matado, livrando- se da fera.
Ela ficou paralisada, olhando para o corpo sem vida do homem que ela tinha matado. Saiu correndo do quarto, voltando para o corredor escuro. Agora, ela só queria escapar daquele lugar maldito, sem se importar com a tempestade e os raios que a assustavam antes. Depois de ver aquele horror, nada mais a amedrontava. Ela tropeçou em algo, mas se equilibrou antes de cair. Foi então que ela viu uma sombra se mover na sua frente. Dois olhos vermelhos brilharam na escuridão. Ela sentiu um arrepio, aterrorizada. Era outro lobisomem.
[ 15 ]
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes Antes da cena de horror atingir o auge, Elisabetta despertou, ofegante e atemorizada. Viu a lua brilhando através da janela, como um alívio em noites frequentemente assombradas por pesadelos. Era mais um dos tantos que ela teve durante as últimas semanas.
Sua madrinha ainda dormia pesadamente ao lado do marido no outro leito, e havia um silêncio medonho pairando no ar. Mas, desta vez, conseguiu dormir novamente após algumas horas e despertou com a luz do sol, ansiosa pela viagem que faria naquela manhã. Seu avô, e único parente de sangue vivo, havia adoecido e ela precisava cuidar dele. Mesmo com pouco contato, aprendeu a amá-lo e viu essa oportunidade como um novo começo.
Era o ano de 1556, e a Itália estava atravessando um período cheio de conflitos. Uma guerra ganhava força levando o caos pelas ruas e campos, enquanto diversas facções lutavam pelo controle e poder sobre as cidades-estados.
Nápoles, famosa por seu forte cenário artístico e por sua opulência, estava sendo devastada pela batalha entre as forças espanholas e as tropas. A cidade estava tomada por uma aura de ansiedade e pavor, enquanto suas fortificações eram atacadas e sua população se via refém dos conflitos.
Ao mesmo tempo, em Florença, a situação não era tão diferente. A cidade fora fragmentada entre facções
[ 16 ]
[Sangue de Lobisomem, A Besta de Lupercádia], por [Camila Fernandes políticas rivais, as quais lutavam pelo controle do governo. O
duque governava com firmeza, tentando impor sua soberania e restaurar a paz na cidade. Contudo, as tensões continuavam, alimentados pelos motins de grupos que se erguiam contra ele.
Em Veneza, tudo parecia seguir para um caminho diferente, pois, a República havia chegado ao seu cume, regendo um grande império marítimo que se estendia além dos mares da Itália. Em contrapartida, intrigas e rivalidades políticas agitavam o governo, mostrando que nem tudo estava tão bem como parecia estar.
Enquanto isso, na capital, Roma, o papado enfrentava uma crise moral e política. A Igreja Católica Romana estava sendo impactada pela Reforma Protestante, que se espalhava pela Europa, ganhando cada vez mais adeptos.
Levantando dúvidas sobre a honra da igreja e desafiando sua autoridade.
Em meio a tudo isso, Elisabetta, se via preocupada não somente com o seu avô, mas com o seu próprio destino.
Era um misto de medos e incertezas que ela tentava administrar com a esperança de que para onde estava indo o cenário seria diferente. Sua madrinha também estava de mudança para um lugar mais seguro, tentado se proteger dos conflitos.
Não me deixe sem notícias
, pediu a madrinha.