Teiko Shimura e a Morte das Divas Cantoras
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Teiko Shimura e a Morte das Divas Cantoras - H. H. M. Mcross
H. H. M. McRoss
TEIKO SHIMURA E A MORTE DAS DIVAS CANTORAS
1ª edição
Rio de Janeiro
Carlos Roberto Teixeira Alves
2018
copyright: Carlos Roberto Teixeira Alves - 2018
Fictional work. All rights reserved. The total and/or partial reproduction, storage or transmission of this book is prohibited, by any means, without prior written authorization.
h.h.m.mcross@gmail.com
twitter @h_mcross
instagram @hhmmcross
ISBN (printed edition): 978-85-4550-292-0
Dedico este livro à minha esposa querida, Gicelia,
e aos meus filhos muito amados: Bernardo, Arthur e Helena.
Que estas histórias encantem a vocês, meus amados,
tanto quanto foi encantador para mim escrevê-las…
C.R.T.A
1. EASTERN DOCKS, LONDRES, 1895
Já passava da meia-noite quando a barcaça começou a descarregar os tonéis no píer. Vários homens transferiam os tonéis da barcaça das águas para dentro de carroças fechadas, tudo na mais completa escuridão. Conversavam a meia voz, eram truculentos uns com os outros, linguagem de ladrões. Agiam com a pouca luz da lua, que escapava das nuvens que cobriam Londres, e os reflexos das luzes da cidade, justamente para não chamar a atenção. Procuravam manter todo o transporte sob a sombra de um grande armazém.
Estavam descarregando contrabando de espírito de álcool. Destilarias por toda Londres, farmácias e pequenos negócios, compravam o contrabando para escaparem de impostos e poderem concorrer nos preços. O álcool vinha da França, contrabandeado em tonéis de fundos falsos, como aqueles agora descarregados.
Havia um capataz entre os bandidos, um que gritava mais e dava ordens mais ameaçadoras. Um tonel soltou-se da pilha e sumiu na sombra. O capataz acertou as costas de um dos bandidos com um taco, xingando.
– Imbecil, Jill! Vá buscar a mercadoria!
Esfregando as costas e xingando baixinho, o tal Jill, um homem alto e desdentado, saiu caminhando. – Sim, senhor…
O capataz ficou olhando o outro ir até o lugar escuro onde o tonel sumira. Depois voltou a cuidar dos outros. Mas o tal ‘Jill’ demorou muito. O capataz avançou um pouco e xingou violentamente o comparsa, exigindo que ele fosse rápido. Nenhuma resposta.
– Jill, eu vou buscar você no inferno, seu maldito! – E avançou para a sombra. Os outros pararam para ver o capataz arrastar o outro a cajadadas. Viram o capataz ser, insolitamente, sugado para dentro da sombra. Primeiro ele andava, mas em um instante algo o puxou. Ele gemeu e sumiu.
Os outros ficaram parados olhando, surpreendidos. Pararam de lidar com os tonéis. Um deles chamou outros dois. Portando pés de cabra os três se aproximaram da escuridão. – Cob! Jill! Seus canalhas! Falem!
Um zumbido saiu das trevas e ficou cada vez mais alto, agora todos os bandidos estavam ali, de pé, com traves na mão, esperando, tentando entender o que acontecia. Então a luz inundou tudo, como o sol nascente, longos segundos. Apagou-se tão de repente quanto surgiu e no meio dos bandidos, ofuscados ainda, desorientados, algo caiu do alto, acocorando-se, planejando o golpe.
Era a Vespa Vermelha. Ela puxou de seu bastão e começou a lutar. Logo de saída deitou três ao solo. Saltou, girou, derrubou outros dois. Gradativamente os homens iam recuperando a visão e partiam para a luta. Ela saltava, eles perdiam os golpes, girando os braços no ar vazio. A Vespa lançava seus artefatos, suas esferas estranhas, que explodiam em farpas que feriam e redes que enrolavam mãos e pés.
Dois brutamontes imensos vieram em sua direção, pés de cabras erguidos para arrebentar a Vespa. Ela saltou, lançando em cada um seu dardo. O brilho azul da faísca elétrica espocou no peito deles e ambos voaram para trás, arremessados por uma força invisível, como se um cavalo os escoiceassem. Ela pousou de volta, em guarda. Girou, olhando tudo. Todos, quase dúzia e meia homens, estavam tombados gemendo. Fora fácil. Não eram verdadeiros lutadores, eram só malandros que sabiam no máximo atirar facas e correr. O erro deles foi não terem seguido o instinto de covardia de todo ladrão e fugido antes da luta acabar.
Apitos da polícia. A Vespa correu e desapareceu nas sombras, subindo os hangares escuros. Logo dezenas de policiais estavam ali. Prenderam todos. A Yard orgulhou-se de anunciar pela manhã que fizera a maior prisão de gangues da história da polícia de Londres, mas as manchetes dos jornais já estavam prontas (havia informantes dos repórteres dentro da polícia). Os jornais só falavam da Vigilante de Londres:
VESPA VERMELHA ATACA NOVAMENTE!
– a heroína desmantelou gangue do álcool em Eastern Docks –
No café da manhã na mansão de Lord Ellesworth, essa manchete foi lida com certo desprezo pelo lorde. Os detetives japoneses Teiko Shimura e Wasaru Watanabe estavam à mesa, bem como Lady Vanessa Neverness, bastante disposta naquela manhã.
– Vespa Vermelha! Pois sim! – falou Lord Ellesworth. – Temos a melhor polícia do mundo, não precisamos de saltadores em roupa de circo. Não acha, minha princesa?
– Ora, tio! – falou Lady Neverness, servindo-se de leite. – Deveria dar uma chance para a moça. Ela é corajosa.
– Ora, ora! Acha que uma mulher faria isso? Está dando asas demais a sua imaginação, querida. – Ergueu-se. – Devo ir, cavalheiros, muitos negócios. Nos vemos à noite. Iremos à ópera hoje, lembram-se?
– Claro, milorde – falou Shimura. O tio de Lady Neverness deixou a mesa. Só ficaram eles ali, Shimura, Wasaru, Lady Neverness e a prestativa aia, Miss Caledwin. Eram eles os Quatro Audazes. Shimura sorveu seu leite e dirigiu-se à Lady Neverness, batendo o dedo sobre o jornal.
– Parabéns, Vespa. Bom trabalho.
Ela sorriu orgulhosa.
2. CARMEN, DE BIZET
Foram à ópera, todos, acompanhando Lord Emerson Ellesworth: Teiko Shimura e Wasaru Watanabe, detetives da polícia Metropolitana de Tóquio em visita oficial de cooperação com a Scotland Yard, também Lady Vanessa Neverness, a sobrinha de Lord Ellesworth. Em vista de uma proximidade motivada pelo próprio Lord Ellesworth (quando trouxera os detetives do Japão e se esforçara para o laço cooperativo entre as polícias de Tóquio e de Londres), também Lestrade, Inspetor-chefe da Scotland Yard. Todos desceram das caleças de propriedade de Lord Ellesworth na área reservada à elite, ao lado do magnífico Royal Opera House.
Claro, não era a primeira vez de Teiko Shimura na ópera. Assistira a apresentação da Aida, de Verdi, em Berlim, quando era jovem, quando visitou a Europa junto da delegação oficial do governo japonês chefiada por General Kawaji Toshiyoshi, quase trinta anos atrás, para conhecer as polícias do Ocidente. Mas Wasaru nunca havia assistido ao teatro ocidental e nem estava familiarizado com a ópera. Shimura disse que não se preocupasse com etiquetas.
– Imite a mim e a Lord Ellesworth, Wasaru-san – falou Shimura, em japonês. – Procure entender a história só a partir das imagens e tente captar a emoção em cada momento a partir da música e do canto. Nos intervalos confira o libreto, para saber se entendeu corretamente.
– Hai, sensei.
Wasaru ainda mantinha a combinação de fingir não entender inglês, acertada com seu mentor, Teiko Shimura, ainda no Japão, para que Shimura tivesse a oportunidade de secretamente tecer em japonês considerações com seu colega, mesmo à frente de qualquer um, inclusive dos investigadores da Scotland Yard. Passaram-se poucas semanas desde que resolveram o terrível caso do ‘Gigante Assassino’, como a mídia noticiou de maneira escandalosa o caso da morte violenta por espancamento de pessoas influentes da elite londrina por um assassino tomado de demência. Os detetives japoneses foram assediados pela imprensa nos primeiros dias, com elogios à colaboração com a Scotland Yard, e a polícia londrina ganhou com a solução do caso, revelando detalhes das operações de investigação em associação com Shimura e como capturaram o assassino. A Scotland Yard limpou sua imagem depois do evento terrível da destruição do luxuoso Hotel Savoy, na luta entre o assassino e a ‘Vespa Vermelha’, a Vigilante de Londres.
Sobre a ‘Vespa’, uns jornais diziam ser um homem, outros uma mulher. Tinha poderes incríveis: voava, brilhava, saltava vários andares, soltava fogo, tinha golpes poderosos que jogavam adversário a distâncias enormes. Em várias oportunidades o ‘Gigante Assassino’, que era ninguém menos que o demoníaco Mr. Hyde, e a Vespa Vermelha lutaram batalhas homéricas, mas a polícia omitiu tudo em seu relatório oficial, tanto para arquivo do caso quanto para a imprensa, por ser a verdade fantástica demais para ser aceita em um tribunal. Daí que a Scotland Yard, com pleno acordo de Teiko Shimura, compôs um relatório mais palatável, sem lutas, Monstros e Vespas, onde o ianque Dr. Hendly – agora preso no Asilo Lorklahn de Westcliff em vista de ser claramente um demente – planejara tudo ‘treinando’ um doente mental de força descomunal, um condenado foragido chamado Nedd O’lligan. A verdade de fato ficou só para os arquivos pessoais de Teiko Shimura, que redigira com cuidado e detalhes, para levar para o Japão e usar quando viesse a fundar e chefiar a Divisão de Crimes Especiais de Tóquio. Entre os segredos que pretendia levar consigo era a verdadeira identidade da Vespa Vermelha. Não era ela ninguém menos que a doce, mas impetuosa, Lady Vanessa Neverness.
Ninguém que a olhasse agora, em seu longo vestido de passeio, sempre acompanhada de sua aia de confiança, Miss Caledwin, diria que fora ela que agira em Eastern Docks, prendendo toda uma quadrilha de contrabandistas de álcool. Lady Neverness, muito sociável, conhecia todos, a todos cumprimentava e apresentava tanto os famosos detetives japoneses que estavam hospedados na Mansão Ellesworth quanto Lestrade, o inteligente Inspetor-chefe da Scotland Yard.
Em especial, Lady Neverness trouxe pelo braço para junto do grupo a soprano da ópera, Mademoiselle Pauline Fouchécourt, uma jovem muito bonita, francesa, filha do empresário do teatro Jean-Paul Fouchécourt, fundador e patrono financeiro da Troupe Théâtrale de L'Opéra de Toulon, a companhia de teatro que estava fazendo aquela montagem de Carmen, de Bizet, que estava em sua última semana no Royal Opera House de Londres. A doce jovem francesa foi toda mesuras e Lady Neverness deixou-a muito à vontade, conduzindo a conversa com elegância, mas deixando-a ir logo: a soprano precisava se preparar para a noite. Lord Ellesworth por sua vez conseguiu do pai da moça o compromisso de ir jantar em sua mansão, antes de partirem para Roma, destino da companhia.
E todos foram para o teatro, os acompanhantes de Lord Ellesworth para o camarote privativo. Fez-se silêncio, a orquestra deu a entender que começaria a ópera pontualmente no horário, e de fato as luzes se apagaram e o a ópera teve início. Todos apreciavam muito a beleza do espetáculo e ninguém esperava pelos estranhos eventos incômodos que atrapalhariam a noite.
3. A ENTIDADE MISTERIOSA
Tudo correu bem até o Segundo Ato. No Terceiro Ato, exatamente quando se inicia a luta de navalhas entre Don José e o Toureiro Escamillo, as luzes oscilaram. O profissionalismo não deixou os atores sequer se dignarem alterar o ritmo, e o respeito e o hábito da assistência, frequentadora da ópera, sequer emitiu um som, para que a praxe do silêncio na plateia se mantivesse incólume.
Depois, quando veio a cena do retorno dos contrabandistas, o cenário do fundo da ópera se movimentou violentamente e até o estrondo do baque das roldanas foi ouvido. De novo o profissionalismo valeu.
Em seguida, assim que Micaela apareceu, sacos de areia desabaram no meio do palco, e desta vez não foi possível ser frio e profissional. Os atores estacaram indecisos e o canto entrou fora do tempo da orquestra. A habilidade dos cantores e a inteligência do maestro fez tudo se casar de novo, mas os imensos sacos de areia de couro vermelho no meio do palco tiravam a atenção de quem assistia, já constrangidos pelos fenômenos.
Quando Don José deixou a cena e Carmem começava a cantar, as luzes oscilaram de novo. Mademoiselle Pauline não se deixou abater e cantou como se nada estivesse acontecendo. Então algo assustador ocorreu. A orquestra desafinou, perdeu o tom. Todos viram quando uma força invisível arrancou das mãos de vários músicos seus instrumentos que, depois de voarem por um instante no ar junto com os suportes das partituras, caíram com estrondo.
A pobre soprano emudeceu. Então as luzes se apagaram. Houve um momento longo de escuridão, o burburinho começou. As luzes voltaram, havia confusão no palco, funcionários do teatro e atores misturados. Então as luzes elétricas foram diminuindo devagar e quando tudo ficou escuro, exceto o palco, surgiu uma forma humana, semitransparente, uma mulher fantasmagórica, de rosto medonho, que uivava um choro terrível. Ela flutuou no ar pelo teatro e enquanto passava, todos sentiram mãos misteriosas puxarem suas roupas, puxarem mãos e braços, puxarem pés. O pânico tomou conta de todos. Então a aparição escancarou uma boca gigantesca e gritou:
– FACIAM TE AD INFERNUM!
E desapareceu. Então as luzes retornaram. O teatro virou um caos. Todos abandonavam desesperados o lugar, atropelando-se, ferindo-se.
No camarote de Lord Ellesworth, todos estavam assustados. O terror estava estampado no rosto das mulheres. Lord Ellesworth estava mais seguro de si, mas os mais controlados eram os detetives. Shimura, Wasaru e Lestrade se postaram na entrada do camarote, para que o pânico não tivesse lugar e ninguém se ferisse. Estavam assustados também, mesmo os japoneses, tão reservados, tinham os olhos arregalados.
Quando tudo ficou mais calmo, os detetives deram a saída do camarote.
4. O JANTAR NA MANSÃO ELLESWORTH
Na manhã seguinte as manchetes de que um espírito fantasmagórico causou pânico no Royal Opera House estavam estampadas em todos os jornais, mesmos os jornais de comércio. Os detalhes eram descritos ao exagero. Mesmo os jornais mais sérios não puderam evitar falar de assombrações e mãos fantasmagóricas que puxaram as roupas de quem estava na assistência.
Monsieur Fouchécourt publicou uma nota dizendo que todos os que se sentiram prejudicados por não terem assistido a ópera até o fim que se apresentassem ao guichê do Royal Opera House para serem ressarcidos do valor do ingresso. Ainda explicou que tinha certeza que todo o problema fora um defeito elétrico, que tudo seria resolvido pelos funcionários da renomada casa e que os transtornos daquela infeliz noite não se repetiriam. Que ainda estava de pé as duas últimas apresentações da ópera antes da companhia seguir para Roma e que os que não puderam ver o espetáculo, que o fizessem pois haviam ingressos à venda para as galerias. Monsieur Fouchécourt temeu que a casa esvaziasse com o triste fenômeno, mas se deu o contrário: os ingressos restantes venderam-se todos e foram publicados anúncios de interessados em negociar ingressos já vendidos, se alguém quisesse abrir mão de ver a ópera. A curiosidade de talvez ver tudo se repetir encheu a casa.
Por seu lado, Monsieur Fouchécourt reagiu buscando culpados. Naquela noite mesmo não dormira. Convocara tudo e todos, exigindo explicações. Funcionários, técnicos, atores, todos saíram à caça da causa daquele show de horrores. O sistema de luzes foi verificado, as caixas de energia elétrica, os transmissores, os dínamos e os motores a vapor desses dínamos, as roldanas do cenário, os cabrestantes de cena, tudo. Monsieur Fouchécourt acompanhou os diretores da peça nessa vistoria, mas não encontraram nada de anormal. Mesmo as cordas que sustinham os sacos de areia estavam em ordem, as carretilhas haviam sido apenas abertas, como se alguém negligente tivesse ido até os comandos e soltado as travas. Nada de defeitos, cordas gastas, molas quebradas. Tudo em ordem.
– Em ordem, não! Em ordem, não! – reclamou Monsieur Fouchécourt. – Se não tem causa, então não se pode prevenir e isso não admito!
E repetiu isso à mesa do jantar de Lord Ellesworth, quando lamentaram os eventos tristes daquela noite. Estavam à mesa Monsieur Fouchécourt, sua filha Pauline, Lady Neverness, os detetives japoneses Shimura e Wasaru, além do próprio Lord Ellesworth. O anfitrião da casa esmerou-se em educação a fim de que a conversa não se referisse aos eventos tristes da recente apresentação de Carmen. Falou da França, falou de Calais, falou de Toulon, falou de Marselha, de todos os portos que recebiam seus navios, elogiou o teatro francês, elogiou a ópera francesa, elogiou a turnê da companhia de Fouchécourt. Creditou-a insuperável em beleza e originalidade, principalmente pela jovem soprano da troupe, Mademoiselle Pauline. A jovem foi educada e contida.
– Merci, monsieur.
– Quero deixar claro que a posição dela nas vozes não se deve ao parentesco, oui? – falou o pai.
Claro! Todos, sinceramente, disseram que nunca pensaram assim. De fato a voz da