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O Dia Vermelho
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E-book1.196 páginas16 horas

O Dia Vermelho

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Sobre este e-book

1935. Luiz Carlos Prestes chega ao Brasil, enviado por Moscou, para com uma equipe de agentes soviéticos realizar a Revolução Comunista. Na noite em que secretamente desembarca em São Paulo, a polícia descobre o cadáver do empresário Mário Brunetti. O Comissário Freitas, designado para a investigação do crime, está vivendo o drama pessoal de ser um marido traído, e não vê utilidade nenhuma em sua ocupação senão usar a máquina da polícia para achar e matar sua esposa adúltera e o amante dela. Enquanto os generais mais próximos de Getúlio Vargas se dedicam a caçar Prestes de todos os modos, para se impedir os eventos terríveis da Intentona Comunista, a investigação do Comissário Freitas o leva a enredar a traição da esposa e a morte de Brunetti com o aparelhamento comunista que preparava a Revolução. Ele descobre Prestes, mas contar isso à polícia política levaria à exposição completa de sua vergonha nas páginas dos jornais de todo país...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de ago. de 2022
ISBN9781526041067
O Dia Vermelho

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    O Dia Vermelho - H. H. M. Mcross

    Carlos Roberto Teixeira Alves

    O DIA VERMELHO

    1ª edição

    Rio de Janeiro

    Carlos Roberto Teixeira Alves

    2021

    DEDICATÓRIA...

    Este livro tem sua própria história.

    Comecei a escrevê-lo há 20 anos,

    quando ainda tentava começar um relacionamento

    com aquela que seria minha paciente e heroica esposa.

    Então era o ano 2000;

    escrevi em 10 meses a primeira metade do livro

    e engavetei o projeto, sem nunca mais revisá-lo.

    No Ano da Pandemia de 2020 decidi concluí-lo,

    eu já casado e pai.

    Dedico este livro à Gicelia, esposa amada,

    e a meus filhos queridos Bernardo, Arthur e Helena.

    A história serve para se imaginar o futuro sem erros,

    e tentar fazê-lo.

    Contatos do autor: carlosrtalves@yahoo.com.br

    carlosrtalves@outlook.com

    h.h.m.mcross@gmail.com

    Nós somos os filhos dos anos terríveis da Rússia.

    Boris Pasternak, O Doutor Jivago

    Departamento de Segurança do Estado / Comando / I Região Militar.

    Arquivo 1043/07 – Pasta de Terrorismo e Controle Social/ transcrição de laudas.(ATENÇÃO: PROTOCOLO DE ‘RESERVA INTERNA’ – PROIBIDA A RETIRADA E/OU CONSULTA).

    ……………………………………………………………………………….

    *Início da transcrição (pág. 001):

    (Prólogo)

    Quarta-feira, 11 de Março de 1936:

    16h20min.

    Aeroporto do Calabouço, Rio de Janeiro.

    O Comissário Freitas voltou cabisbaixo, não de tristeza, mas de tanto pensar, como se as ideias tivessem peso. Em vão apalpou os bolsos por um cigarro: achou a carteira vazia jogou-a no chão. Esfregou-se, roupa grudada de suor, o chapéu colado no cabelo. Ainda exsudava nojo de si próprio.

    Livrara-se de uma tipo de dominação, de fardo, de sequestro… Aliviara-se de algo invisível, mas sôfrego, de um tipo de perseguição. Sempre devorara aquela mulher com os olhos, desnudara-a até os ossos. Cristina sempre lhe perseguira – ou ele a buscara sempre? – com o poder mitológico de uma luxúria latente. Ela parecera nunca tomar consciência disso, mas sua beleza assomava como uma montanha na planície, como uma pronúncia destacada, uma palavra nova, uma rima em uma frase monótona.

    Livrara-se de Cristina. Dera-lhe os vinte e dois mil dólares que Filinto Müller, o Chefe da Polícia de Vargas, estava desesperadamente à procura, e a mandara para sua legendária Alemanha. Dali do Calabouço ela iria para Recife tomar o romântico Zeppelin e ir adorar seu Führer, ajudaria a construir seu Reich. Cristina Orocèk sumia: o futuro devorava-a na distância.

    E mesmo aliviado, ainda assim o Comissário Freitas sentiu falta dela, nem bem fugira dez passos. A força que fizera para não se voltar, esgotara-o. Mas respirou, resistiu e conseguiu sair do atracadouro dos hidroaviões para entrar no prédio; cruzou o saguão como um autômato e estacou no meio-fio da rua, exausto. A cabeça pedia um cigarro.

    Viu Olívia na calçada, um táxi parado ao lado. Como era bom vê-la!

    – Leandro... Tudo bem? – Ela chegou-se, serena como um lago, como sempre fora, as mãos postas à frente, juntas. – Ela se foi. Não é?

    Olívia estava linda; Olívia era linda. O Comissário sempre admirara a beleza de anjo de Olívia. Cristina era como o dragão. Olívia, como a fada. As duas – Cristina e Olívia – eram contraditórias. O poder e a brandura. A força e a persistência. O beijo e o sorriso. Cristina o excitava, Olívia o cativava. Contraditórios. E nunca amou Cristina, mas descobriu-se no passeio do Aeroporto do Calabouço – futuro Aeroporto Santos Dumont – que finalmente se apaixonara por Olívia, da maneira única com que se podia amar, amar de coração sincero e vivo, vivo. Então! Ainda havia vida nele! Será? Havia ainda vida no Comissário Freitas?

    Não conseguiu abrir a boca para falar, de novo; sempre assim... Lá estava Olívia e ele não tinha força para falar. Não era timidez, não era desprezo, era sua condição oca, sua natureza de ser sem vida, amassado e esmigalhado pelas escolhas injustas de seu próprio egoísmo, que se recusava a ver como erros. Ele era alguém sem vida.

    Ela sorria e segurou-lhe as mãos. Ela era diferente, ela sabia o que dizer e soube que aquilo feito pelo Comissário Freitas, livrando-se de Cristina, era o gesto definitivo na direção dela.

    – Não se preocupe. Também te amo, Leandro... – e o abraçou.

    Primeiro o Comissário Freitas ficou estático, sem vontade, porque era alguém sem natureza. Mas Olívia era como água que regava a planta seca. Ele cedeu; beijaram-se.

    – Vamos embora, Leandro. Tudo terminou. Vamos embora viver só nós dois. E o restante acabou. Só nós dois agora!

    – Sim... Nós vamos…

    – Nós vamos, Leandro! – Ela quase pulou. Voltou até o táxi, estava feliz – Vamos! Venha comigo! – ela entrou no carro e chamou-o.

    Impossivelmente ele sorria também. O primeiro sorriso em um ano.

    Foi então que Ricardo apareceu. Ele chorava. Observara tudo detrás de uma coluna larga, longe do Comissário Freitas uns cinquenta metros. Gigante que era, veio a passos largos e decididos, ostentando com orgulho o uniforme integralista. Pôs a mão no ombro do Comissário Freitas e puxou-o com violência. Este, desequilibrando-se e apoiando-se no capô do táxi, voltou-se confuso. Fitaram-se e foi o segundo mais longo que o tempo já gerou.

    – Eu disse que te mataria, velho do caralho! – falou Ricardo, o perpétuo apaixonado por aquela Cristina que se fora, e falou com a voz plena da densidade obscura dos fatos tristes e irrevogáveis. Ricardo encostou o revólver na barriga do Comissário Freitas. Um único tiro. O estampido ensurdeceu.

    O Comissário Freitas levou as mãos ao lugar do tiro. Sangue, sangue!

    Começou a morrer…

    Interfácio (um ano antes.)

    1935 / Abril / Dia 4:

    1.

    Estação da Luz, São Paulo.

    02h10min.

    Quem os interceptou fora Olavo, em libré de taxista. Por isso Prestes estranhou: o contato deveria ser outro. Três minutos antes, assim que Prestes deixara o táxi que os trouxera desde Itapetininga, Olavo aproximara-se nervoso e mostrara muito discretamente o cartão do Café Paraventi e Prestes reconheceu no verso a caligrafia de seu amigo, Celestino Paraventi, e o recado de que seguisse com aquele Olavo.

    – Sr. Prestes – sussurrou Olavo –, o ‘Toni’ não virá mais...

    Prestes não moveu um músculo (era um soldado bem treinado), mas internamente alarmou-se. O ‘Toni’, Fernando Augustino Maia, membro do PCB do Rio de Janeiro, seria o contato, e mais: o codinome ‘Toni’ era restrito ao Rio de Janeiro, em São Paulo ninguém devia saber. Só Prestes sabia, avisado em Montevidéu por telegrama enviado pelo ‘Miranda’ Secretário-geral do PCB. A função do ‘Toni’ era preparar uma residência para eles – Prestes e Olga – em São Paulo, onde ficariam até o ‘Miranda’ autorizar a partida para o Rio. Aliás, o contato deveria ser feito lá dentro da Estação, no hall superior, Prestes sabia disso desde Montevidéu, e havia uma senha: um fragmento de Otelo de Shakespeare, para garantir que estava tudo bem, que era realmente o ‘Toni’ quem falava (Prestes não conhecia o rosto dele) e que tudo estava seguro e certo. Prestes olhava em volta tentando ver a tocaia da polícia, o porquê de não haver nem ‘Toni’ nem trocas de senhas… Olga, atrás de Prestes, alerta, recuou e olhou em volta.

    – Cadê o ‘Toni’? – perguntou Prestes, rilhando: – Quem mais sabe?

    O taxista respondeu que tudo estava bem, pediu um pouco de paciência, que esperassem coisa de quinze minutos, que tivera de trocar de carro e que o outro estava longe, e que precisaria ir a pé até lá, mas que esperassem, que estava tudo bem. E saiu correndo, prometendo voltar. Prestes começou a temer por sua segurança e a de Olga.

    Havia um pequeno Café ao lado da estação. Prestes e Olga, a jovem alemã, agora sua esposa definitivamente (não mais apenas por disfarce), foram para lá. Mal haviam pousado nas praias de Florianópolis, vindos de Montevidéu, únicos passageiros a bordo do hidroavião Santos Dumont, da firma francesa de transporte postal Letécoère, já tomavam um táxi até Curitiba. Em seguida outro táxi até São Paulo, que só os levou até Itapetininga porque Prestes dispensou o taxista criador de caso. Outro táxi os trouxe até ali, Estação da Luz. Não tinham bagagem, exceto a bolsa de Olga, seus passaportes eram falsos, em nome de Antônio e Maria Bergner Villar, comerciantes portugueses. Estavam exaustos. Prestes consultou o relógio do café: 02h20min. Haveria alguma coisa aberta em São Paulo àquela hora? Aquela cidade mudara em dez anos ou continuava provinciana? Seria como Nova Iorque, onde passara a lua de mel com Olga? Nova Iorque nunca dormia...

    Olga não aguentou, buscou rapidamente um banco no café que a permitisse recostar-se de encontro à parede. ‘Pobre Olga’, Prestes compadeceu-se dela. Era uma corajosa militante, mas também se cansava. Ele era mais forte: chegara a virar noites seguidas durante os meses da Coluna de 1924 a 1926, quando percorreu 25 mil quilômetros por dentro do Brasil sendo caçado com seu exército, fugindo, combatendo e resistindo às tropas do governo do Presidente Arthur Bernardes, sem nunca ser derrotado.

    Um aparelho Ericson tocava o samba de André Filho que se tornara o sucesso do último carnaval carioca e um sucesso nacional:

    Cidade maravilhosa,

    Cheia de encantos mil!

    Cidade maravilhosa,

    Coração do meu Brasil!

    A Cidade Maravilhosa era o Rio de Janeiro e aquele samba de baque gostoso o perseguia desde que ele entrara no Brasil. Foi bom matar a saudade do toque do samba. Mas via na marchinha a mão do getulismo: o Rio de Janeiro era o coração do Brasil porque lá vivia e mandava Getúlio Vargas.

    – ...PRF-três, Rádio Difusora de São Paulo, ondas tropicais, novecentos e sessenta kilohertz, trezentos e treze metros. Avenida Paulista, quinta-feira, quatro de Abril de mil novecentos e trinta e cinco. Tempo bom, madrugada fresca, dezoito graus. O ouvinte da Radio Difusora é um apreciador das vozes belas e marcantes das ‘Cantoras do Rádio’? Uma boa notícia para quem quiser apreciar novamente a visão encantadora de duas delas, a nossa querida Carmen Miranda, que estrela e canta no filme ‘Alô, Alô, Brasil’, ao lado de Dircinha Batista, outra fenomenal cantora. Um filme de João de Barro e Alberto Ribeiro que estreia hoje em São Paulo no Cine Odeon. Mas atenção: não haverá matinê. Nossa programação continua com Noel Rosa e Vadico em ‘Pra Que Mentir?’…

    ‘Pra que mentir?’, concordou Prestes, lembrando-se de Vargas e das antigas e frustradas combinações que teve com aquele mentiroso... Olga mexeu-se muito, tentando ficar alerta. Chegou para Prestes um café puro.

    O instinto de soldado bateu forte; puxou por Olga, retirando-se dali: não iria esperar por aquele tal ‘Olavo’. Era arriscar demais. Sabia o que fazer, tinha o ‘Plano B’ combinado em Montevidéu com Ghioldi: procurar um hotel afastado (escolheria um no Largo do Arouche), e buscar o diretório de São Paulo do PCB. O ‘Toni’ não viera; o esquema furara perigosamente...

    2.

    Avenida São João, São Paulo.

    04h35min.

    O problema era que ali era ponto de boemia: como ninguém notara nada, só um vadio? Impossível! Tinha de se achar ao menos mais um vagabundo que vira algo, caralho! E com a chegada das viaturas, um aglomerado de boêmios altos de cachaça se amontoavam para ver o acontecido.

    – Essa gente só sabe encher o rabo de cachaça, Comissário – falou o investigador Matias, um tipo bem alto, comprido mesmo, muito magrelo, com um bigode fino, bem preto, tremendo sob o nariz. – Ninguém diz ter visto nada e só vamos ter aquele vagabundo mesmo para depoimento. E aí?

    – Não me torra o saco, Matias… – O Comissário lançou a guimba acesa.

    O Comissário Leandro de Freitas Mourão estava com as mãos no bolso do seu casaco horrível, parado diante do Cadillac V16 LaSalle bege, novinho, com um morto estrangulado ao volante. O carro estava estacionado no meio-fio, como indo para o Largo do Paissandú. O homem era rico, seus documentos diziam que se chamava Mário Afonso Brunetti. Trajava um sobretudo cinza, conjunto de terno italiano, sapatos pretos de verniz. Tinha um relógio de pulso de ouro Cartier, aliança de casamento, caneta de ouro Parker no bolso do sobretudo, talonário de cheques do Banco de Mauá, 1 conto e 760 mil réis na carteira. No banco detrás, caído no chão, acharam uma pasta com documentos do Instituto do Café. Houvera luta: o chapéu do empresário estava amassado e caído entre os dois bancos da frente, o corpo dele estava torcido, a cabeça apoiada de lado sobre o volante. Fora estrangulado com um pedaço de corda de pouco menos de um metro, largado ali dentro do carro. Para piorar, os bancos detrás estavam tombados para caber uma bagagem macabra: um segundo corpo, o de uma jovem, cabelos negros, longos, cacheados, presos por um enfeite feito de laço verde de cetim, uns 20 anos, nua e enrolada em um grande tapete amarrado fortemente pelas pontas. Fora morta com um projétil no peito. Manchas de barro na roupa do morto dava a entender que o assassino era o carona (no lado do carona havia lama no chão, banco, painel, maçanetas internas e externas, a mesma lama que sujava as rodas do carro). O assassino caminhou tranquilo indo embora, o sereno da calçada foi dissolvendo o barro e a polícia acompanhou seus passos até o vestígio desaparecer na Avenida Ipiranga. Quem achara a cena do crime fora um vagabundo que pensou em pedir dinheiro ao motorista que dormia. Não obtendo resposta, julgou-o – acertadamente – morto. Procurou um policial e foi preso. Em 1935 vadiagem era crime.

    Quando policiais comunicaram o distrito, o Comissário Freitas fazia plantão para ficar em paz, não para ver cena de crime. Fora ao local muito contrariado e, em vista do que achara, mandara comunicar o pessoal da Delegacia de Técnica Policial, que já se sabia só chegaria de manhã (e um guarda teria de ficar de pé do lado do carro até a Técnica chegar). Nem se deu ao trabalho de olhar, mandou Matias anotar o que fosse interessante e depois se distanciara mentalmente. Tinha de remoer os eventos recentes de sua vida desgraçada: era um marido traído, carregando o título de ‘corno’, e, com certeza, motivo de falatório e piadas feitas pelas costas por companheiros e vizinhos. Enxergava a si sem amigos, só cercado de zombadores. O pior é que nunca ouvira zombarias ou piadas e por isso não conseguia saber quem era amigo ou não. Antes: estudava os olhares e frases que lhe dirigiam para captar um sinal de que era objeto de troça. O Comissário Freitas sempre fora um pouco fechado. A traição da mulher o fechara mais ainda e o deixara em um estado de constante humilhação, raiva e desejo de vingança. Tornara-se intratável.

    – Comissário... – chamou Matias. – Tem um vadio aqui que disse ter acendido o cigarro de um homem que subia a Ipiranga, com a calça suja de barro. Intimo ele ou o senhor quer ouvi-lo agora?

    – Não quero ouvir ninguém…

    – Mas é que ele já está aqui e pensei...

    – Não quero falar com ninguém, caralho! Esse é seu serviço! Manda ele comparecer na delegacia, puta que o pariu!

    Matias estalou a língua. Não tinha culpa do Comissário ser corno. E agora? Tinha que perguntar do repórter d’A Gazeta... – Tem aquele repórter ali com a máquina de tirar foto...

    – Manda ele tirar foto do cu!

    O Comissário Freitas afastou-se para ir fumar outro cigarro.

    3.

    Gabinete da Segurança Presidencial, Palácio do Catete, Rio.

    07h35min.

    O General Pantaleão da Silva Pessoa tivera uma boa noite de sono, feliz com a votação do Congresso, e já cedo, como era usual, estava no Catete. Chamou o barbeiro a seu gabinete para afeitar-se. Mas ficara carrancudo logo: leu no jornal o discurso besta do Deputado João Neves da Fontoura criticando Vargas. Aquela oposição de bosta fazia sua bílis ferver.

    – Bando de bostas... – murmurava; a navalha lambia seu pescoço.

    Lia agora a lista datilografada, preparada pelo seu pessoal, que elencava todos os deputados federais que votaram a favor do governo na questão da Lei de Segurança Nacional. Na outra página estava a lista das abstinências e os deputados da oposição. Os da oposição – Neves da Fontoura abria a lista – estavam datilografados de vermelho. Na mesa, o Correio da Manhã descansava com a manchete:

    VARGAS SANCIONA HOJE LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

    Não foi fácil fazer a lei ser votada; foi completo esforço do General Pantaleão. Ele dera um jeito de, às custas do erário, trazer o máximo de deputados governistas para a votação, o mais rapidamente possível, até mesmo de hidroavião. Tudo porque era costume que o ano legislativo da Câmara só começasse em Maio, porque o Brasil era imenso, sem infraestrutura. Os deputados de cada Estado vinham de barco ou trem, semanas de viagem. E havia tantas coisas necessárias para serem votadas! Mas ao menos a meia dúzia de gatos-pingados de deputados que chegara ao Rio, sob pressão de Getúlio, se submeteram a uma convocação da Câmara para votação em caráter de urgência da Lei de Segurança Nacional – a LSN. E ele, General Pantaleão Pessoa, fez questão de estar lá e assistir à votação, pois a guerra contra os ‘vermelhos’, os comunistas, urgia.

    – O senhor leu os pontos da ANL? – falara a Vargas antes da votação. – Os filhos da puta querem fazer do Brasil outra União Soviética!

    Tinha intimidade com o Presidente, passe livre no Palácio do Catete (seu gabinete ficava ali no térreo do Palácio). Era o chefe da Casa Militar e responsável pela segurança pessoal do Presidente. Pantaleão forçara a criação do Conselho de Segurança Nacional, ainda em 1934, e formou uma rede pessoal de espiões e informantes – a ‘União’ – que se infiltravam em partidos políticos, órgãos do governo e instituições, inclusive na polícia do Capitão Filinto Müller.

    A ameaça comunista era uma obsessão em sua vida. No ano anterior havia fundado a Liga de Defesa Nacional, que filiara à própria Entente Internacional, contrária à Terceira Internacional dos Comunistas. O Cone Sul estava infestado de gente vermelha. Montevidéu era o coração da podridão comunista. Dali, José Bernardino de Câmara Canto (seu espião na embaixada brasileira) enviava relatórios periódicos a Vargas, lidos por Pantaleão primeiro, que informavam a atividade comunista. Os vermelhos fervilhavam igual a vermes na carne podre...

    Por isso a LSN fora absolutamente necessária. Por culpa de uns deputados de merda, a LSN ficara tramitando no Congresso desde o ano anterior. Mas agora a estavam engolindo a seco! Sim! No dia 27 de Março aquela cambada de ‘come-dorme’ filhos de uma puta a aprovaram. Não fizeram mais que a obrigação! Com a ANL – a Aliança Nacional Libertadora – falando merdas e escolhendo Prestes para Presidente de Honra? O Congresso que ficasse enrolando com a LSN mais um ano para verem só!

    – Vagabundos... Era melhor fechar essa bosta de Congresso.

    A navalha lambia o pescoço, devagar... Os ausentes governistas na lista eram todos de muito longe, Amazonas, Acre, Pará, Ceará. Mas lera o nome de Mariano Costa, deputado de São Paulo, entre os ausentes. Bateu a lista com violência na beirada da cadeira, o tenente que a trouxera recolheu-a.

    – O que esse bosta estava fazendo fora do Rio? – O barbeiro parou o trabalho, navalha no ar, recuando. Pantaleão continuou: – Ele não sabia que tinha que aprovar a LSN? Vagabundo! Quero a ficha deste deputado paulista filho de uma puta na minha mesa, hoje!

    – Saberei lhe informar ainda hoje, senhor. – O tenente bateu continência e saiu.

    Havia vermelhos filhos da puta por todo lado! Quem podia dizer quem era vermelho ou não? Principalmente entre os deputados, que já tinham simpatias bestas pela ANL.

    – A ANL precisa é da mesma ilegalidade do PCB... – murmurou.

    Acenou ao barbeiro. A navalha voltou a lamber-lhe o pescoço.

    4.

    Morro da Mangueira, Rio.

    08h00min.

    A mulher de Gervásio Rodrigo, Luzia, mostrou de novo a ele a lata de arroz quase vazia. O que havia ele de fazer? Ele não era de beber, não jogava – por mais que o ambiente da caserna promovesse –, o soldo que recebia como cabo do exército, ele dava tudo ali. Faltava comida porque eram pobres, ora!

    Já fardado, sentado na cadeira velha, à mesa bamba calçada com pedaços de tabuinhas, ouvia a reclamação da mulher. Eram pretos, tinham três filhos, moravam no alto do morro em um barraco de madeira de três cômodos, coberto de telhas francesas e folhas de zinco, sem forro, junto de outros barracos. Em 1935 as favelas já eram cenário integrante do Rio, o lugar onde os ‘pobres dos pobres’ moravam, sem iluminação, sem água, com risco de desabamento na época das chuvas.

    No barraco de Gervásio, a cozinha era a sala de reunião da família. Duas crianças queriam sintonizar uma estação em um rádio horroroso, feita de várias peças sucateadas de aparelhos diferentes, amarrados com arame, tudo montado em uma caixa de cebolas. No colo de Luzia o bebê chorava.

    – Hoje o seu João vem buscar o dinheiro desse rádio, de novo – reclamou ela. – Estou quase mandando ele levar essa coisa embora.

    – Não, mãe! – reclamaram as crianças.

    – Mas já paguei uma parte – falou Gervásio.

    – Só que ele quer o restante, Gervásio! – Luzia bateu a colher de pau na panela onde fervia leite. Estava revoltada. Luzia sempre estava revoltada. – A gente não tem dinheiro nem para comer e você compra esse rádio!

    – Ora, Luzia, e não posso? Rádio é só para rico?

    – Quem mora aqui na Mangueira não precisa de rádio, não, Gervásio! Precisa de comer!

    O rádio espocou: ..ondas tropicais, Rádio Guanabara. Você quer comer o mais delicioso rosbife do Rio de Janeiro?...

    – QUERO! – gritaram e riram contentes as crianças. Para eles o rádio era uma maravilha sem conta, que os fazia esquecer até da fome.

    – … "Então visite o Restaurante Glória à Rua do Ouvidor, sessenta e cinco, e peça pela especialidade da casa. Restaurante Glória! A Glória do Paladar!"

    Gervásio lamentou em silêncio. Tinha que arranjar dinheiro para comprar arroz e para pagar a última parte do rádio de caixa de cebolas. E pior: a bateria era emprestada. Mas ele iria dar um jeito de conseguir uma bateria velha na oficina do Quartel da Escola de Aviação de Campo dos Afonsos, onde estava lotado.

    Ele era Cabo lá. Mas que grande merda: seu soldo só vinha no final do mês e acabava em quatro dias. Uma merreca de 72 mil réis. Depois era aquela penúria: fiado em todo lugar, até cortarem o crédito. Vida de merda... Mas era Cabo do Exército! Seu uniforme estava impecável! A barra da calça estava dobrada e no momento ele não calçava o coturno, mas um mocassim velho (levava o coturno engraxado num saco de pano e depois de descer o morro trocava os calçados).

    Ele devia se orgulhar de ser Cabo, mas estava ficando difícil. Perdera as esperanças na carreira militar por causa da volta da lei de jubilamento: muito tempo sem promoção resultava em baixa, em retorno à vida civil.

    Rádio é para rico? Pois sim... Pobre também tinha direito. Queria que a mulher prestasse mais atenção no que ele falava. As massas operárias e de soldados organizadas podiam virar o jogo. Revolução. Para todos terem direito a um rádio que não fosse de caixa de cebolas.

    Gervásio ergueu-se. – Já vou. Cumpro escala. Vou dormir no Quartel, ouviu…?

    Luzia não respondeu. O menino de colo parara de chorar, olhando arregalado para a alegria dos irmãos diante do rádio.

    Dia 5:

    1.

    Alameda das Campanulas, Cambuci, São Paulo.

    07h50min.

    Como no dia anterior trocara o plantão diurno pela noite (para evitar o pessoal do dia, que sabia que ele era corno, o que não adiantava: todo mundo sabia que ele era corno), ele não aparecera na delegacia o dia todo, preferira andar por aí e beber, e decidiu não ir de noite também. Mas não podia mais trocar o horário assim.

    A vida dele era uma bosta, ele era um bosta, um chifrudo e por isso não queria ver ninguém… O Comissário Freitas tornara-se negligente com o serviço, ele não era assim antes da Rosana o largar.

    Em casa quis dormir, mas não conseguiu. Era corno, o peso dos cornos não deixava ele dormir… Ficou se revirando no meio das ruínas de sua vida, no meio da desordem que virara sua casa: tudo fedia a urina e gordura, tudo apagado, roupa para todo lado, poeira nos móveis…. Havia pouco mais de uma semana que a mulher o largara para fugir com outro. Ela, Rosana, a vagabunda, a safada, a vaca, a puta, a piranha desgraçada, a maldita… Ela ligara para ele na delegacia. Ele não podia atender, estava ocupado. Quem atendera fora um policial. Então a vagabunda deixou o recado:

    – Diz para ele que estou fugindo com meu amante.

    E o policial deu o recado, meio sem jeito. O que podia fazer? O Comissário Freitas ficou em um estado lamentoso, cara de bunda. Vituperou. Ofendeu o policial despropositado. O infeliz era uma besta? Que recado era aquele? Fosse para o inferno! E é claro que o policial, depois disso, não deixou de contar a outros. Tudo era público: ele tornara-se corno público.

    Deitado na cama com a roupa que já usava havia dias, a barba crescida, olhando o teto com olhos esbugalhados, não sabia o que fazer. Só tinha ódio, ódio, ódio! Seu casamento fora uma merda, Rosana vivia triste e o Comissário era dedicado ao trabalho. Falavam-se pouco, não saíam, ele ia para casa fazer sexo com ela e encontrar roupa lavada e passada, comida feita.

    Enchi o rabo daquela piranha com meu salário, remoeu o Comissário.

    Agora ele era corno. Não podia viver com aquilo, ele sentia um fogo na testa, uma coceira. Ele era corno! CORNO! OS CHIFRES COÇAVAM!

    Consultou seu relógio. Foi fazer a barba; puxou a descarga da privada, mas pareceu que o cheiro da urina subiu mais ainda. Saiu, mas não queria trabalhar; queria só sair, para ver se esquecia de tudo.

    2.

    Palácio São Joaquim, Mitra Arquiepiscopal, Rua da Glória, Rio.

    08h20min.

    O locutorium era uma sala ampla, de rica mobília, no térreo de alto pé direito do Palácio São Joaquim – o palácio do Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme de Oliveira Cintra. Alceu Amoroso Lima compareceu ao gabinete de Dom Leme à hora marcada. Um gênio de seu tempo (apesar de sua simpatia pelo integralismo), era o responsável pela LEC – Liga Eleitoral Católica – e presidia o Centro Dom Vidal, além de ser o redator-chefe do principal jornal católico, A Ordem. Era o braço direito de Dom Leme no trabalho laico da Igreja. Catedrático de Sociologia da Escola Normal do Rio de Janeiro e de Economia Política da Faculdade Nacional de Direito, como ‘Alceu Amoroso Lima’ ficou pouco conhecido: a história da intelectualidade se lembra de seu pseudônimo, ‘Tristão de Athayde’.

    Sua principal cruzada agora vinha sendo contra a ideia de Anísio Teixeira, Secretário da Educação do Distrito Federal do governo do Prefeito Pedro Ernesto, de criar a Universidade do Distrito Federal. Primeiro que Anísio Teixeira era seguidor do pensador e pedagogo norte-americano ateu, o pragmatista John Dewey, um tipo claramente comunista. E depois que o próprio Pedro Ernesto sentava à mesa do demônio, conversando com a esquerda. Amoroso Lima não podia concordar com a possibilidade de um centro de educação superior que ensinasse o Comunismo e vinha sistematicamente escrevendo isso no A Ordem. Mas não era por causa daquilo que Dom Leme o convocara.

    – Sente-se, Alceu. O caso é sério.

    Os casos eram sempre sérios no trabalho do pastor espiritual do povo católico do Rio de Janeiro e do Brasil. A Igreja Católica constituía, inegavelmente, um dos pilares da sociedade brasileira. Se alguém sabia como ‘funcionava’ aquela ‘Terra de Santa Cruz’ era a Igreja Católica, pois desde que o Frei Henrique de Coimbra celebrara a primeira missa ali, em Abril de 1500, relatórios periódicos do ‘funcionamento do Brasil’ eram mandados para Roma: 435 anos de relatórios.

    Dom Leme vivera na ‘linha de frente’ o momento grave da mudança histórica do ‘Brasil Velho’ para o ‘Novo Brasil’. Na madrugada de 24 de Outubro de 1930 recebera o telegrama do forte revoltoso de Copacabana onde o General-de-Divisão Augusto Trasso Fragoso, o General Leite de Castro, o General-de-Brigada João de Deus Mena Barreto, o General Firmino Borba e o General Pantaleão Teles pediam ao cardeal que intercedesse em convencer Washington Luiz a renunciar ao cargo de Presidente da República. Dom Sebastião Leme ligou para Otávio Mangabeira, no Palácio da Guanabara, mas quem atendera fora a mulher de Mangabeira. Num instante seu esposo chegou ao telefone. Dom Leme pediu a Mangabeira que falasse com Washington Luiz, deu garantia que se ele viesse se refugiar ali no palácio São Joaquim sua vida não correria risco, insistiu que o melhor era renunciar, que o Guanabara seria bombardeado pelos aviões... Foi um longo dia aquele 24 de Outubro de 1930. No fim da tarde um Washington Luiz deposto por golpe militar acompanhou o cardeal de automóvel até o Palácio São Joaquim. Dom Leme impressionou-se com a serenidade do rosto do paulista, mas enxergou em seus olhos a bílis da raiva, do ódio, da revolta por tamanha humilhação. E ainda mais com aquele palhaço do repórter Roberto Marinho – herdeiro daquele jornaleco, O Globo – que jogou galhos de árvores na rua frente o carro, só para pararem e ele tirar uma foto do Presidente deposto! Que vergonha! Roberto Marinho se atracou com um dos policiais, criou uma bagunça! Não era necessário nada daquilo, tudo já era tão grave!

    E quando Vargas chegou em seu luxuoso carro-salão na Estação Dom Pedro II e seguiu para o Catete, Dom Leme estava lá. Era preciso garantir que os interesses da Igreja permanecessem intactos. E mais agora, em uma cruzada corajosa na guerra anticomunista.

    A Igreja Católica não podia fugir às pressões dos novos tempos. Foi com atraso que surgiu um Papa, Leão XIII, que viu um homem novo, o operário no galpão da fábrica, esperando ouvir o consolo da pregação cristã. A encíclica Rerum Novarum de 1889 veio a esse encontro: era melhor que uma missão fosse feita lá dentro da fábrica do que se ver o evangelho ser trocado pela Manifesto do Partido Comunista. O Papa Pio XI reforçou a ação social operária católica com a encíclica Quadragesimo Anno, de 1931. A Igreja fundou muitos movimentos pastorais operários, o melhor sucedido foi a Juventude Operária Católica – JOC – do padre belga Cardjin. Dom Leme conhecia a JOC, mas sabia que ela não tinha ainda estrutura para se fixar com firmeza no Brasil. Dom Leme não tinha padres em condições de imitar a devoção de Cardjin à sua causa missionária, que arranjava empregos em fábricas para trabalhar enquanto cantava hinos marianos e, nas horas vagas, catequizava e convertia operários, caminhando com eles, comendo com eles, recebendo com eles nas filas seu salário de operário. Mas no Brasil fundara, desde 1932, sua Confederação dos Operários Católicos – a COC. Faltava agora investir na Educação.

    Na Assembleia Constituinte que forneceu a Constituição de 1934, deputados sob orientação de Dom Leme, lutaram por um ensino religioso católico obrigatório nas escolas, porém veio a derrota nesse ponto: o ensino religioso existiria, mas seria facultativo. Alceu Amoroso Lima empenhara seu discurso no A Ordem para denunciar a falta de visão dos deputados, mas foi em vão. Ele começou a atacar, então, outros núcleos de ensino autorizados pelos deputados e prefeitos, como a Universidade do Prefeito do Rio.

    – A resistência toda é de Vargas, Eminência. Todos sabemos. É ele que não quer, nem deixa os deputados quererem.

    Dom Leme já estava cansado de remexer em guerra perdida: se não haveria ensino católico obrigatório, era preciso atacar em outra frente.

    – Alceu, não vamos brigar com Vargas. Ele passará e a Igreja vai ficar. Precisamos, sim, proteger nosso laicato, lá nas bases. Precisamos incentivar a denúncia dos aparelhos comunistas lá na base, onde os comunistas falam aos fiéis operários católicos, proteger os operários das COCs. Quero que cada católico seja convidado a apontar o mal, para que esse mal seja destruído. Um novo profetismo, desta vez contra o Comunismo. Nós precisamos garantir que o governo, e a polícia principalmente (que é néscia e incompetente), essa polícia ignorante, não confunda e prenda os operários dos sindicatos católicos como se fossem comunistas.

    Dom Leme puxou de uns papéis do bolso. Eram folhetos de propaganda comunista que haviam sido distribuídos havia cerca de uns quinze dias entre camponeses da zona rural de Ribeira, no Litoral Paulista. Quem lhe enviara fora seu amigo Dom Leopoldo, arcebispo de São Paulo. Fiéis católicos da roça, analfabetos, acharam que aquilo era coisa boa de se ler, talvez a vida de algum santo, e levaram ao padre. O padre recolhera tudo, repreendera corretamente seu rebanho e fizeram os folhetos chegarem a Dom Leopoldo. Aquilo era a prova que os comunistas estavam bem infiltrados nas camadas mais simples da população brasileira, no campo, lá onde escapavam à vigilância da polícia. Ou seja, se a polícia não podia ver os vermelhos escondidos entre os camponeses, era tarefa da Igreja denunciá-los.

    – A denúncia destas coisas é o novo profetismo da Igreja, Alceu. Vou agendar uma reunião com os bispos e confio em você para fazer nossos interesses valerem junto ao Ministro Macedo Soares, com quem você vai conversar, levando para ele nossas preocupações, principalmente à luz dessa Lei de Segurança Nacional recém-aprovada.

    Alceu Amoroso Lima ficou honrado com a missão. Naquela manhã mesmo apareceria ao gabinete do Ministro das Relações Exteriores, Macedo Soares, católico praticante convicto e alguém de influência no governo Vargas, para expor como a Igreja do Brasil queria ajudar na luta anticomunista.

    3.

    Delegacia do 3º Distrito, Rua Sta. Ifigênia, São Paulo.

    09h00min.

    Quando chegou ao Distrito, a balburdia estava montada frente sua delegacia: fotógrafos e repórteres. Vindo a pé pela Rua Sta. Ifigênia, o Comissário Freitas de longe já vira o amontoado da imprensa e sentiu um gosto ruim subir-lhe pela garganta. Aquele monte de putos tiraria seu retrato. E outro corno de algum policial (não podia ser o único corno do mundo, não era possível!!) informaria a eles de sua filiação involuntária àquele maldito ‘Clube do Chifre’. Com certeza, algum bosta de um policial já devia ter dito aos repórteres: o Comissário Freitas ainda não chegou porque é corno. Ah, ele é corno, podemos anotar?. Sim, corno de primeira. Desde quando?. Ele sempre foi corno.

    Filhos da puta...

    Mas por que tudo aquilo, tanto repórter? Quem era o idiota que morrera naquele Cadillac LaSalle?

    Baixou a cabeça, puxou o chapéu mais para a frente, procurou ser discreto, invisível, apalpou seu comprido sobretudo fino cinza, procurando seus cigarros. Alguém apontou-o. Os repórteres correram. Flashes: Senhor Comissário! Uma declaração!, Qual a posição da polícia no momento?, Quem matou Mário Brunetti?, A polícia já tem um suspeito?, E a jovem que estava com ele? Quem era?...

    O Comissário Freitas procurava abrir caminho, prensado contra o muro. Estava ficando nervoso. Sabia que o real motivo daquelas perguntas era descobrir se ele era mesmo corno. Um repórter tapava-lhe de forma acirrada a passagem: – Sr. Comissário! A polícia já tem ideia do motivo do crime?

    Impedido de passar, o Comissário encolerizou-se.– Vá se foder!

    Empurrou o repórter com tanta força que o homem quase caiu. Foi trancar-se em sua sala: não queria ver ninguém, não queria falar com ninguém.

    Matias veio com cuidado sondar o humor do chefe. Falou que a viúva já reconhecera o corpo no dia anterior e que só faltava a assinatura do Comissário para ser liberado para o funeral. Falou que era um crime de gente graúda, que havia providências a tomar, alguns papéis para assinar e pôr em ordem... Comissário Freitas olhava pela janela de sua sala, que dava para um corredor lateral. Fumava.

    – Não me encha o saco, Matias... – falou sem olhar o detetive. – Ponha ordem em tudo você mesmo, traga que eu assino...

    4.

    Quartel da Escola de Aviação do Campo dos Afonsos, Rio.

    17h10min.

    Foi bem contrariado que o colega cabo Hermenegildo Assis Brasil emprestou cinco mil-réis para Gervásio. Na hora do almoço Gervásio veio procurá-lo. Na verdade nunca sabia se a aproximação de Gervásio era por causa da militância ou se era por causa de dinheiro. Os dois eram militantes do PCB dentro da caserna, Hermenegildo mais ainda.

    Hermenegildo era gaúcho de São Gabriel, de pais ruralistas, donos de uma fazenda pequena e uma casa na cidade, não ricos, mas gente de influência que podia se dar a luxos. Até um parente (distante!) já fora Ministro da Agricultura de Vargas. Era também o secretário político da célula do CMR na Unidade de Infantaria de Guarda da Escola de Aviação do Campo dos Afonsos. O CMR – Comitê Militar Revolucionário – era um departamento do PCB criado para formar células comunistas dentro dos quartéis, desde os anos 1920. Agentes comunistas militares, discretamente, agremiavam filiados entre os militares. As reuniões só podiam ser fora dos quartéis, na casa de algum simpatizante – civil ou militar. Dentro da célula que se reunia, a patente não importava: recruta, soldado, cabo, sargento, tenente, todos eram ‘companheiros’. Seu principal órgão de divulgação ali na Escola de Aviação era o jornal Asas Vermelhas, publicado pelo PCB, e passado de mão em mão muito secretamente. Dentro dos quartéis o comportamento devia ser o mais discreto possível e as conversas breves e dissimuladas. Na rua, porém, encontravam-se amiúde, saudavam-se com o gesto comunista: braço direito erguido de punho fechado.

    O gaúcho gostava do empenho militante de Gervásio. Quanto ao dinheiro, emprestava sim; mas isso incomodava pela frequência. Emprestou só cinco mil-réis de propósito: cinco mil-réis não adiantavam de nada a Gervásio e o obrigaria a procurar mais fontes.

    Era envergonhado que Gervásio pegava o dinheiro, sempre estava em dificuldades. O que podia fazer? Mas sempre pagava os empréstimos.

    –  Obrigado, Hermenegildo. Pago na fila do soldo.

    – Está vendo porquê precisamos lutar, Gervásio? Seu soldo não dá para pagar uma puta, quanto mais sustentar uma família. – E em troca do favor de emprestar, Hermenegildo exigia mais trabalho dele: – Você vai na reunião dos operários da Light, no sábado, viu? Vai um membro do partido lá falar. Você vai representar a posição dos soldados na luta.

    Gervásio suspirou, envergonhado, coçando a cabeça. Para acabar com o constrangimento do amigo, Hermenegildo mudou de assunto:

    – E a bosta do rancho? Hoje foi de novo aquele macarrão amarelo! Dá para comer aquilo? Estava bichado, senti o gosto ruim… – Bateu no ombro do camarada, foi cuidar da vida.

    Gervásio ficou coçando a cabeça. Cinco mil-réis compra a comida, meditou Gervásio. Mas e o radiozinho? Puxa vida! E o rádio de caixa de cebolas...? Saiu cabisbaixo.

    5.

    Mansão Brunetti, Avenida Paulista, São Paulo.

    22h15min.

    O velório seguia à moda ianque, com buffet de salgados e vinho. Laura Brunetti, a viúva, não perdera a oportunidade de aproveitar sua liberdade inusitada (sim, estava secretamente feliz com a morte do marido) e projetava-se socialmente já no velório. Havia um tom de sarcasmo naquele velório a moda de estrelas e listras: parecia que ela festejava a morte de Brunetti (e realmente era o que fazia). Laura era discretamente toda atenciosa com todos, e o véu que descia do chapéu para velar-lhe o rosto não deixava ver se ela chorava ou não. Havia o burburinho baixo e fofocas. Laura aproveitava: tudo era vida social, inclusive circular à volta do caixão do marido.

    O ex-deputado federal por São Paulo, o ex-embaixador brasileiro na Conferência Internacional de Desarmamento em Genebra e membro da Associação Comercial Paulista, o atual Ministro das Relações Exteriores, Sr. José Carlos de Macedo Soares estava presente. Ele tinha suas dívidas políticas com o empresariado cafeeiro: era praticamente obrigado a estar presente ao velório. Assim que chegara a São Paulo à tarde, no vagão de luxo do Expresso de Prata da Railway Company – o ‘trem dos deputados’, – já um telefonema do Rio de Janeiro o aguardava. Seu colega, o deputado Manuel César de Góis Monteiro, lhe pedira para sondar o deputado Mariano Costa sobre sua ausência na votação da LSN. Mariano Costa era um articulador importante da Aliança Liberal, o principal partido paulista, além de ser classista (representante do empresariado do café) e nome cogitado para pastas no governo. A mácula de sua abstenção na votação da LSN tinha que ser explicada.

    Mariano Costa estava no velório. Fazia também, muito discretamente, sua propaganda política, indo de grupo em grupo, desses grupos que se formam aqui e ali nos velórios. O corpo do empresário estava em uma das pontas da sala ladeado pela bandeira do Estado e pelo brasão do Instituto do Café. Havia poetas e literatos. Macedo Soares esperou uma hora em que Mariano Costa estivesse sozinho, quando Costa aproximou-se do caixão. Macedo Soares aproximou-se dele, tocou no assunto da ausência.

    Costa fez uma careta: – A LSN seria aprovada de todo jeito.

    O ministro falou baixinho: que pesou mal ele não estar na votação, que havia muitos rumores de agentes vermelhos infiltrados na política…

    – Tornei-me comunista, agora, Sr. Ministro? Consegue entender que vim arrecadar fundos de campanha? É isso que importa. Olhe este senhor Brunetti que o senhor conhecia melhor do que eu. Era uma gorda fonte de renda para minha campanha. Você acha que estou aqui compadecido por ele? Desse Brunetti mais vi os cheques do que o rosto. O que vim fazer aqui é garantir-me com a viúva. Ela é dona do talonário agora.

    Macedo Soares balançou a cabeça, contrariado. – Mariano, você precisa se explicar com o Manoel, irmão do Góis. A preocupação é dele.

    – Está bem, converso com ele, Sr. Ministro, muito obrigado.

    Costa afastou-se, largando Macedo Soares com o morto.

    Dia 6:

    1.

    Delegacia do 3º Distrito, Rua Sta. Ifigênia, São Paulo;

    09h10min.

    Em 1935, sábado era dia normal de trabalho, inclusive para as delegacias, que entravam em escala de plantão para o fim de semana. O depoimento da única testemunha encontrada por Matias fora marcada para aquela manhã. A viúva teria de depor também, mas isso só se conseguiria, obviamente, após o funeral do empresário.

    O depoente era um mulato magro, sorridente, boêmio, pessoa alegre, cobrador de bonde. O Comissário Freitas tentou encontrar algo nele que o identificasse como corno. Não era possível que ele, o Comissário, fosse o único corno do mundo e por isso algum sinal externo tinha que denunciar a classe dos boçais que sustentavam vagabundas.

    Seu depoimento ajudara pouco. O cobrador tocava cavaquinho em um bar que costumava frequentar à noite. O bar fechava às dez horas, mas quem estava dentro não precisava sair até de madrugada. Este era o caso dele. Saiu por volta das duas horas da manhã, parou um instante para acender um cigarro, quando foi abordado. Um desconhecido, com as calças sujas de barro até o meio das canelas, pedira fogo para um cigarro. O boêmio não pode ver o rosto por ter o suspeito ficado contra a luz do poste. Mas era um tipo alto, chapéu e terno pretos. Algum detalhe especial?, perguntou o Comissário Freitas. Não, nada, exceto muita lama nas calças. O Comissário insistiu, o mulato forçou a memória:

    – Ele falava chiado... Igual ao Luiz Jatobá do ‘Programa Nacional’!

    O Comissário Freitas ficou fitando o mulato. Que comparação ridícula! Devia ser coisa de corno… O boêmio foi dispensado. O Comissário Freitas chamou Matias: queria informações sobre as vítimas.

    – Não precisei investigar nada, Comissário – falou Matias. – Todos os jornais só falam disso. O homem é Mário Afonso Brunetti, empresário do café. Parece que lida com exportação e tal… É muito grã-fino, tem coisa com a Câmara Comercial do Café e era membro do Instituto do Café. Tem escritório em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro.

    – Então marca o depoimento da viúva. E a garota nua? Vai esperar para ler no jornal ou vai trabalhar?

    Matias balançou a cabeça, sem gostar. Ele trabalhava, sim, ele estava todo dia ali. – Ainda estou esperando o relatório da perícia...

    – Hum… – Comissário Freitas colocou o chapéu para sair, mas, de repente, estacou. Xingando baixinho, lembrou dos repórteres: ainda haviam alguns montando campana nas vizinhanças da delegacia, esperando ele sair. Queria tomar uma pinga. Decidiu sair pelas garagens.

    2.

    Rua Quinze de Novembro, Arouche, São Paulo.

    11h40min.

    Celestino Paraventi era um milionário excêntrico, industrial, dono de dezenas de imóveis residenciais e comerciais em toda São Paulo, dono da maior torrefação de café da capital que havia anos fabricava uma impressionante novidade: café torrado, moído e embalado a vácuo, com prazo de validade de meses. Toda revista e jornal paulista tinham a propaganda do Café Paraventi. Além da riqueza, herdara de seu pai um xodó: o Café tipo parisiense na Rua Quinze de Novembro. Ali era seu escritório. Aberto a noite toda, boêmios, artistas e intelectuais viviam por ali, boa parte deles comunistas. Claro, todo boêmio – intelectual ou não, artista ou não, comunista ou não – vez por outra se endivida. Paraventi sempre socorreu essa gente que vinha lhe pedir ajuda. Uma dívida de gratidão se estabelecia, o que colocava Paraventi em vantagem: conseguia informações, aquela que quisesse. Se exigiam, podia pagar por ela. As pessoas não lhe negavam, pois também era comunista e fascinado pela figura de Prestes. Em 1926 chegou mesmo a ameaçar desfazer-se de suas posses para dar o dinheiro para Prestes voltar ao Brasil, reconstruir a Coluna, e tomar o poder.

    As dívidas dos emissários do ‘Miranda’ em São Paulo lhe deram a hora e o local da chegada de Prestes.

    Aconteceu que o ‘Miranda’, Secretário-geral do PCB, no Rio de Janeiro, por razão que só se explica por ser ele dono de uma mente imbecil, montou um esquema de contato com Prestes usando de gente desqualificada. O ‘Toni’ viera a São Paulo com dinheiro do PCB para organizar a chegada de Prestes e, no esquema, um certo ‘Cabeção’ viria em seguida, também do Rio, dar apoio na recepção cuidadosa e secreta de Prestes. Mas tanto o ‘Toni’ quanto o ‘Cabeção’ apareceram enrolados com assuntos particulares confusos e perigosos. O ‘Toni’ gastara todo o dinheiro posando de grã-fino antes do ‘Cabeção’ chegar. Endividou-se em bancas de jogo. Agiotas vieram atrás dele e ele veio pedir dinheiro ali no Café. Paraventi pagou a conta, mas negociou informações e substituiu os trapalhões na segurança de Prestes.

    Paraventi colocou seu motorista, Olavo, entre ele e Prestes e os comunistas trapalhões. Olavo arranjou casa para todos e depois deu um jeito de dispensar ‘Toni’ e ‘Cabeção’, para os manter tanto longe de Prestes quanto fazê-los irem logo embora, de volta para o Rio.

    E fora dinheiro que abrira a boca do taxista que levara Prestes e Olga de madrugada da Luz para o Arouche. Naquele dia 6, antes do meio-dia, o contínuo do hotel levou ao casal uma nota assinada pelo próprio Paraventi solicitando que viessem ao seu Café. O rapaz avisou ainda que uma luxuosíssima limusine Lincoln preta, do ano, aguardava na portaria do hotel.

    Prestes e Olga se agitaram. Ele conhecia Paraventi. Durante um ano o empresário enviara-lhe café enlatado a vácuo como contrabando para sustentá-lo em seu exílio em Buenos Aires. Prestes exportava o café, também clandestinamente, e manteve assim a si e a muitos comunistas argentinos. Paraventi era amigo.

    Quando desceram, o motorista do Lincoln era Olavo, em libré. O rapaz ficou sem jeito, sorriu agitado. Prestes o fitou duro.

    – Está tudo bem – balbuciou abrindo o carro. – É o Sr. Paraventi…

    No Café, o estabelecimento estava cheio. Uma máquina nova, italiana, a vapor, fazia café expresso e era a grande sensação. A novidade prendia cada vez mais gente no lugar. Paraventi veio recebê-los e a oportunidade de, pela primeira vez, apertar a mão de seu herói, Luiz Carlos Prestes, deixou-o exultante. Controlou-se o que pode para não denunciar as visitas, mas, efusivo, abraçou-os com força. Depois os levou para uma mesa reservada e distante o bastante para conversarem. Para susto de Prestes, o homem mostrou-se conhecedor de muitos detalhes, detalhes demais, da missão de Prestes e Olga no Brasil. Prestes cortou-o:

    – O que aconteceu com o ‘Toni’, Sr. Paraventi?

    – Sr. Luiz, o Comitern é muito inteligente no que planeja, mas depende muito do pessoal dos PCs do mundo todo. E o pessoal daqui se enganou quanto ao ‘Toni’. Não era o melhor contato de vocês aqui em São Paulo. Eu mesmo falei com o PCB para que me dessem esse trabalho, de receptá-los assim que chegassem ao Brasil. O Sr. ‘Miranda’ negou-me terminantemente Mas sua missão é importante demais para que incapazes a ponham a perder.

    – A polícia sabe? Estamos correndo risco?

    – Risco nenhum. Comigo estão seguros! Eu vou hospedá-los e cuidar que sigam em segurança e em tempo oportuno para o Rio.

    Paraventi convenceu-os a ir viverem em sua casa de campo em Santo Amaro até que pudesse tirá-los de São Paulo em completo segredo.

    Na saída, o Lincoln aguardava de portas abertas, com Olavo ao lado. Devido à situação crítica, Prestes não conseguia ter simpatia pelo motorista. Este adiantou-se um passo e entregou uma caixinha de couro a Prestes, que abriu-a. Eram óculos de lentes verde-escuras, franceses, os primeiros precursores dos futuros óculos escuros.

    – O senhor Paraventi quer que use, para dificultar ser reconhecido.

    Prestes retirou os óculos, as lentes manchavam com facilidade à oleosidade dos dedos. Devolveu-os. Pensou que óculos verdes chamariam mais a atenção do que sem eles.

    – Não quero. Fique para você.

    3.

    Alameda das Campanulas, Cambuci, São Paulo.

    16h50min.

    Se ele pudesse, sumiria. Todos o olhavam. Claro! Ele era um corno.

    Tinha vergonha de chegar em sua própria casa. Em 1935 os paulistanos tinham uma curiosa mania: no fim do dia os vizinhos levavam as cadeiras da cozinha para a calçada e ficavam papeando enquanto as crianças brincavam no meio da rua. Enfrentar aqueles olhos, aquela gente, era uma tortura indescritível ao Comissário Freitas

    O que Rosana lhe fizera era como uma deformidade horrenda. Todos viam, todos comentavam.

    Por que o fizera? Ele merecia ser corno? Não fora um marido decente? Depois de casado nunca mais procurou uma puta. Nunca, jamais, passara por sua cabeça trair. Nunca.

    Agora ele era corno...

    De sobrolho franzido, via as crianças correrem. Elas decerto brincavam de ‘quem é corno e quem não é?’ Ou de ‘quem tem coragem de ir xingar o Comissário de corno?’. As pessoas papeando sentadas à calçada, com certeza conversavam: Você viu? Ele é corno; Eu vi. Eu já sabia. Todo mundo sabia; É. Só ele que não. Foi o último a saber; Todo corno é desse jeito: o último a saber...

    Filhos da puta. Bostas. Viados. Gentinha fodida, por que não estão dentro das suas casas?

    As crianças riram… Decerto riam dele!

    Moleques filhos da puta...

    Alguém apontou na direção do carro, um senhor levantou da cadeira para ver melhor.

    Velho fodido, filho da puta, quer olhar o quê, seu viado?

    O Comissário Freitas xingava a todos de dentro do silêncio do Ford da polícia. Chegara no carro do distrito, estacionara frente sua casa e ficara paralisado, sem descer. Sua vergonha era imensa.

    Ele sentia, ele sabia que todos o olhavam. Lá longe balançaram a cabeça, apontado... Ele queria sumir, sumir; queria que o chão se abrisse e o engolisse…

    Dia 7:

    1.

    Palácio Episcopal Arquidiocesano, Bela Vista, São Paulo.

    11h00min.

    O Ministro Macedo Soares tinha uma visita agendada havia tempo, mesmo antes da morte de Brunetti, com o arcebispo Dom Duarte Leopoldo e Silva. Foi recebido no Palácio Episcopal, depois da missa. O encontro tornou-se mais grave devido ao telefonema de Alceu Amoroso Lima, do Rio, insistindo que deveria haver uma apoio do governo aos projetos católicos e que em sinal de que o governo se interessava pelo trabalho da Igreja, que o Ministro intermediasse um encontro entre os dois cardeais – Dom Duarte e Dom Leme – para logo, para antes de Dom Leme viajar para Roma. O Ministro se comprometeu.

    Dom Leopoldo era também ativo membro da LEC – a Liga Eleitoral Católica, fundada por Dom Sebastião Leme em 1933, no ano da Constituinte, uma entidade que determinava que os padres fizessem oficialmente sermões políticos nas missas de Domingo, apoiando e convidando os fiéis a apoiarem deputados que defendessem as tradições católicas da família brasileira. Dom Leopoldo mesmo, além das diretrizes da LEC, ainda incentivava a formação de sindicatos cristãos e fazia sua parte junto aos governos municipais e estaduais no que dizia respeito no combate ao Comunismo. Com a conversa de Macedo Soares, suspirou preocupado.

    – Os comunistas se aproximam como gente de bem, que quer promover um tipo de justiça – falou. – Narram que toda a miséria que os colonos passam é exploração injusta do fazendeiro. Fundam essas células camponesas satânicas que chamam de BOC. ‘Bloco Operário e Camponês’.

    – A Igreja as localizou, Eminência?

    – Não é fácil localizá-las e é isso que me assusta: as comunidades rurais são pequenas, todo mundo sabe o que acontece com todo mundo. Como é possível a essas células se manterem secretas? Só pode ser mesmo pelo poder do mal… Mas a Lei de Segurança Nacional vai ajudar muito. Vamos orientar os párocos que incentivem os fiéis a denunciarem, mesmo anonimamente, essas células. Olhe, recentemente, coisa de uns vinte dias, estive no Vale do Ribeira. O pároco de Registro me mostrou um maço de papéis e jornais que um comunista andou distribuindo por lá. Parte mandei queimar, mas retirei vários exemplares dos panfletos para saber se eram do mesmo tipo de outros lugares. Mandei uns para o Cardeal Dom Leme, no Rio. A questão é: quem faz esses papéis? Quem os distribui? Diga-me, Sr. Macedo, o papel de jornal não é importado? Como esses comunistas conseguem material para imprimir? Roubam? Ou será que existem colaboradores nas alfândegas?

    – É bem possível...

    – O que quero dizer é que a Igreja não pode fazer o trabalho da polícia. E a polícia não pode fazer o da Igreja. O governo tem de permitir que a Igreja possa ensinar dentro das escolas, Sr. Ministro. O senhor tem de convencer ao Ministro Capanema de que a única coisa que salvará o Brasil é o ensino católico obrigatório nas escolas públicas. Conto com o senhor nesse sentido. A Igreja conta.

    – Claro, claro… Peço que Vossa Eminência ligue para Dom Leme e confirme que insisti para que ambos se reunissem.

    – Sim, farei.

    Macedo Soares beijou o anel do cardeal e se despediu.

    2.

    Alameda das Campanulas, Cambuci, São Paulo.

    14h30min.

    Naquele Domingo o fedor na casa chegou a um ponto que nem o Comissário Freitas aguentava mais. Não teve jeito. Teve de ir até a vizinha, dona Matilda, uma senhora, e pagou a ela dez mil-réis para limpar sua casa, mesmo sendo Domingo. A velha falava muito. Da hora que entrou à hora que terminou a limpeza não parara de tagarelar um minuto. O Comissário ora fugia da sala para a cozinha, ora da cozinha para o quarto, conforme o cômodo da casa que ela limpava. Finalmente a casa ficou limpa, cheirando à essência de lavanda.

    – Prepara um almoço.

    Não fora um pedido, fora uma ordem. O Comissário não estava para pedidos. Mas a velha, tagarelando, nem prestou atenção nisso. Mais uma hora e o Comissário comia pela primeira vez em duas semanas, macarronada e bife acebolado (carne que a velha fora buscar em sua própria casa).

    Enquanto comia, estava tomado de silenciosa e grave reflexão. A velha continuava falando pelos cotovelos. Ele sabia ser ela a mais fofoqueira da rua e que especulava da vida de todo mundo. Todos já sabiam que ele era corno, então não fazia diferença perguntar.

    – Como era o tipo?

    Dona Matilda fora interrompida no meio de uma frase. Sem cerimônia ela também havia se servido de um prato e almoçava. – Oi?

    – Como era ele? O vagabundo que fugiu com a puta da Rosana.

    A velha ficou sem jeito. – Seu Leandro, eu... Não é que se fale… Eu te juro, eu nunca reparei em nada.

    – Ele tinha carro?

    A velha começou a mexer a refeição, sem comê-la – Bem, ele chegou de carro umas duas vezes… Sempre de noite...

    – Como era ele?

    – ... Nunca vi direito, Seu Leandro…

    – Era alto, baixo? Mais alto que eu?

    – Mais alto.

    – Alinhado? Bem-vestido? Afeitado? O carro era dele?

    – Era táxi. Era bem-vestido, não tinha barba…

    – Ele ficava aqui? A Rosana saía com ele?

    – Saía, sim...

    Vagabunda!; filha da puta!… O Comissário Freitas tremia de raiva. – Para onde ela ia?

    – Não sei. Acho que atrás dele.

    – Estou falando do lugar, mulher! – Ele rilhava os dentes. – Onde se encontravam?

    – Não sei. Eles saíam.

    – Fugiram como? De táxi?

    – Foi. O táxi veio buscar ela.

    Vagabunda, vagabunda, vaca... – Desde quando ela me traía?

    – Bem... – a velha hesitou muito.

    – Desde quando, caralho?!

    A velha recuou assustada. – Desde Fevereiro.

    O Comissário ergueu-se, derrubando a cadeira. Transtornado, começou a andar de um lado para outro na cozinha. Tomou de uma colher de pau no fogão e jogou na pia, tomou de um copo na pia e pôs no armário. Estava se segurando para não cometer uma violência. Voltou com o rosto enfurecido.

    – VAGABUNDA! VAGABUNDA!

    – Calma, seu Leandro…

    – CALA A BOCA VOCÊ, SUA VELHA DE MERDA! Se você me tivesse dito da primeira vez que a vagabunda saiu, eu tinha matado aquela vaca e o amante dela! SAI DAQUI, VELHA DO CARALHO! SAI DAQUI!

    Tirou da carteira dez mil-réis e jogou à velha; o dinheiro caiu no prato de comida dela. Dona Matilde saiu correndo, agarrando o dinheiro. Depois foi ele quem saiu, a passos largos e violentos, deixando a casa aberta. Não tinha rumo, não sabia o que fazer, não tinha para onde ir. Só queria sair, queria destruir, queria matar, queria queimar, arruinar, rasgar!

    Saiu louco. Passou o resto do Domingo se acabando em um boteco.

    Dia 8:

    1.

    Palácio do Catete, Rio.

    08h30min.

    Chovia torrencialmente e o General Pantaleão Pessoa estava no alto da escadaria da entrada do Palácio do Catete. Recebera um telefonema sigiloso do General Ribeiro Filho, Comandante da I Região Militar: precisavam se falar, mas ninguém podia ver. Quando chovia, os telefones viravam uma chiadeira só, mas conseguiram combinar se encontrar na chuva mesmo, diante do Palácio (Ribeiro Filho não sairia do carro).

    A limousine veio, um empregado de libré, abriu um grande guarda-chuva e protegeu Pantaleão Pessoa que foi até o carro. O vidro baixou e Ribeiro Filho passou às mãos de Pantaleão um memorando secretíssimo de autoria de Góis Monteiro. Góis estava intimando Ribeiro Filho a uma reunião para a manhã do dia seguinte com todo o alto escalão para tomarem posições rígidas contra o Congresso e, se preciso, enfrentar até o Vargas, sobre as questões do aumento dos vencimentos.

    Enfrentar o Congresso? Pessoa torceu a boca... Ele, sim, tinha força para enfrentar o Congresso. Todo mundo naquela Câmara tinha o rabo preso com ele, principalmente os deputados paulistas. Muitos ali sobreviveram ao golpe de Getúlio para tirar Washington Luiz porque vieram beijar sua mão. Quem era aquele ‘Góis-de-Merda’ para mandar no Congresso dele?

    – Tire suas próprias conclusões, Pessoa – falou Ribeiro Filho. – Ninguém pode saber que te mostrei isso. Veio agora de manhã das mãos do próprio Góis, saiu da máquina da secretária dele. A pressa é decerto para você não ficar sabendo.

    – Filho de uma puta... Não me basta os vermelhos.

    – O Góis queria ser presidente, você sabe. Se eu fosse você, mandava o Filinto na reunião. Ele e o Góis não se topam mesmo. Vai parecer que o caso vazou para a equipe do Filinto.

    Ribeiro Filho fechou o vidro e a limousine partiu.

    2.

    Delegacia do 3º Distrito, Rua Sta. Ifigênia, São Paulo.

    09h20min

    O Comissário Freitas estava evitando os jornais desde a semana anterior, por causa do crime famoso. Sabia que sua delegacia virara foco da mídia e que os malditos repórteres estavam fazendo perguntas até para quem morava ali na

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