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O Teorema De Estrasburgo
O Teorema De Estrasburgo
O Teorema De Estrasburgo
E-book401 páginas5 horas

O Teorema De Estrasburgo

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Sobre este e-book

Mágoas, ódios e rancores circulam pelos corredores da renomada Universidade de Estrasburgo depois que, após 50 anos sob controle alemão, retorna às mãos da França e recebe o Congresso Internacional de Matemática de 1920. Durante o Congresso, sete matemáticos cometem suicidio em sete dias diferentes, logo após ocultamente estudarem um trabalho matemático surpreendente e misterioso, cuja fonte é desconhecida. Mademoiselle Jeanne-Marie Duchamp, respeitada matemática do campo da Lógica está presente ao Congresso para sua palestra sobre Filosofia da Matemática. O mistério desafia sua inteligência, e usando apenas de sagacidade lógica e da matemática pura, ela concebe uma equação fabulosa - o Teorema de Estrasburgo - que não só revela que tudo é um horrendo crime, como aponta o verdadeiro culpado e suas razões.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mar. de 2023
O Teorema De Estrasburgo

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    O Teorema De Estrasburgo - H. H. M. Mcross

    H. H. M. McRoss

    O TEOREMA DE

    ESTRASBURGO

    1ª edição

    Rio de Janeiro

    Carlos Roberto Teixeira Alves

    2023

    copyright: Carlos Roberto Teixeira Alves - 2023

    Fictional work. All rights reserved. The total and/or partial reproduction, storage or transmission of this book is prohibited, by any means,

    without prior written authorization.

    carlosrtalves@outlook.com

    twitter @h_mcross

    ISBN (printed edition):  978-65-00-67884-0

    À minha esposa, Gicelia,

    à meus filhos,

    Bernardo,

    Arthur,

    e Helena

    "A Matemática é a disciplina

    onde nunca sabemos do que estamos falando,

    nem se o que estamos dizendo é verdade..."

    Bertrand Russel, filósofo e matemático,

    Mysticism and Logic, 1910.

    1. A CARTA

    De Profa. Dra. Béatrice Hélène Jouve

    Departamento de Lógica e Estatística

    Universidade de Nantes – Nantes — France

    aos cuidados do

    Prof. Dr. A. Doohovsky

    Redação da Revista Mathematics of the USSR: Sbornik

    American Mathematical Society

    Providence – Rhode Island — USA

    Nantes, 22 de setembro de 1970

    Caríssimo Sr. Prof. A. Doohovsky,

    Que coincidência que eu lhe escreva hoje, no aniversário de 50 anos do Congresso Internacional de Matemática de Estrasburgo de 1920.

    Chegou em minhas mãos — trazida por dedicada aluna, Mademoiselle Cousteau, que se lembrou de velhas histórias que, idosa professora, contei — a edição de número 11 da renomada Mathematics of the USSR, para a qual o senhor escreve. Ela me alcançou faceira na escadaria que penosamente eu subia, ela em seu vestidinho de minissaia — que repreendo tanto, em vão! — feliz de me mostrar a revista, apontando orgulhosa que era boa aluna, e que eu poderia aproveitar o artigo para explicá-lo a todas elas (são todas meninas as alunas que tenho!) no lugar da aula usual. Professora, veja o que os soviéticos fizeram!, ela me disse. Satisfeita de uma jovem se lembrar de uma idosa, li assombrada a utilíssima e irreprovável tradução que o senhor fez do artigo desse tão jovem e tão fantástico matemático soviético, Prof. Yuri Vladimirovich Matiyasevich, que ainda tão moço pôde fazer coisa tão maravilhosa; fico a imaginar que coisas mais incríveis vão sair de sua mente nos anos vindouros! Que surpresas ele dará à matemática no futuro? Estou até agora embasbacada, depois de ler a tradução do trabalho dele…

    Então ele resolveu o Décimo Problema de Hilbert? Meu Deus! Eu sempre gostei das Equações Diofantinas, sabia? Quando criança em 1903, ainda com cinco anos, ganhei um livro de história dos números e foi lendo sobre Diofanto que decidi pela matemática para sempre...

    Minha admiração é maior porque sou matemática antiga, senhor, dama da ‘Velha Escola’, quando era importante para a Matemática mais além do que apenas as provas definitivas e conjecturas fabulosas; um tempo em que também as implicações filosóficas para essa nossa ciência eram muito importantes. Desejo dizer com isso que há muitas consequências nessa prova que esse menino russo fez. A principal delas é a completa falência do Programa de Hilbert para a Matemática. Há tanto tempo não se discute Filosofia entre os matemáticos, a tanto tempo eles andam bastante felizes e confiantes, achando mesmo que ‘o prédio aguenta tempestades’, que não escuto mais os alunos debaterem princípios e fundações para a Matemática — que é uma dama elegante e caprichosa — e não esperam ser surpreendidos, até que um pedaço do céu lhes caia na cabeça. Essa ausência de debates filosóficos me obriga fazer lembrar (não que eu julgue que o senhor desconheça, perdão!) que o Programa de Hilbert exigia que o Décimo Problema fosse resolvido com um ‘sim’: ‘que sim, que há um método usando sequências finitas de operações que diga se uma equação pode ou não ser solucionada em inteiros racionais’. Lamento bastante que definitivamente, afinal, o jovem Prof. Matiyasevich tenha mostrado ‘que não, que não há tal método’… Como Lógica, eu acreditava no Programa de Hilbert, mesmo com os reveses problemáticos das soluções do Primeiro e Segundo Problemas.

    Imagino que o senhor rindo ao ler essas coisas. Sim, sou um ‘velho dinossauro’, sobrevivente dessa classe antiga e desprezada dos Lógicos. Somos velhos demais para os novos matemáticos virem aqui nos consultar, mas nós Lógicos já sabemos há um século dos caprichos recorrentes dessa Musa Antiga, que começou encantando Tales e que agora recebeu flores desse jovem russo fantástico.

    Talvez entre os motivos de seus risos, senhor Prof. Doohovsky, esteja o fato de ler essa minha ‘metáfora do feminino’, da Matemática como dama caprichosa que ganha flores... Sabe, não é fácil ser mulher, e é muito difícil ser mulher entre matemáticos. Por favor, compreenda minha posição enquanto lê esta minha missiva. Tenho setenta e dois anos, doem muito minhas pernas e costas quando subo os degraus do Departamento de Matemática desta Universidade de Nantes para ensinar as duas ou três alunas  surpreendentes interessadas nesse ramo ingrato, a Lógica e a Filosofia da Matemática. Gosto do que faço, por isso ignoro as dores… Estou seguindo os passos de minha professora, minha orientadora, a Prof. Dra. Madame Jeanne-Marie Duchamp, Doutora em Matemática, em Filosofia, Cientista da Lógica, grande mente, talvez a mulher mais inteligente de seu tempo. Foi difícil para ela também: sua mente maravilhosa florescia em resultados surpreendentes, mas ela era mulher e os homens nunca acharam que a Musa Antiga — dama como nós — era para nossas mentes femininas. Ela foi interrompida muitas vezes, porque é hábito instituído que se interrompa uma mulher. Ela não foi levada a sério muitas vezes, porque como todas nós, consumia muito tempo escolhendo um chapéu e isso já era prova para os homens de que seu espírito era frívolo e pouco concentrado para ter a genialidade para a matemática, como se querer ser bela incluísse dispensar a inteligência... Mas, bem me lembro, vieram buscar socorro junto dela: eu estava ao lado dela quando vieram buscá-la para resolver o mistério terrível e mortal. Estávamos ambas em Estrasburgo em 1920, eu então aluna, querendo aprender com ela essa arte maravilhosa da Lógica.

    Foi em Estrasburgo, a solução estava em Estrasburgo. É disso o que eu quero falar, Prof. Doohovsky.  O que eu quero dizer é que o Décimo Problema de Hilbert foi resolvido ali, muito antes dos trabalhos do Prof. Post, do Prof. Davis, da Profa. Julia Robinson, do Prof. Putnam, do Prof. Nikolai Vorob’ev e, finalmente e definitivamente agora, do Prof. Matiyasevich. Foi resolvido lá, naquele Congresso Internacional de Matemática de Estrasburgo de 1920; não estou mentindo, eu vi, eu peguei o manuscrito nas mãos e o folheei, e Mademoiselle Duchamp o explicou para mim, maravilhada. E ainda que fosse fabulosa a mente dela, ela se recusou tentar reescrever os resultados. Porque o eventos foram assustadores, tristes demais.

    O senhor não sabe a história, Prof. Doohovsky, talvez por causa disso: porque era necessário que tudo se mantivesse em discrição, para se preservar reputações, e porque teriam de admitir a genialidade de uma mulher… Também havia muito perigo envolvido… Entenda: havia apenas dois anos que a Grande Guerra havia acabado, ainda se discutia se a Matemática podia ser arma e que tipo de arma seria. Como eu disse, era um tempo que discutíamos Filosofia na esperança de entender o que Matemática era e que projeto ela devia cumprir. Era um tempo perigoso demais, não havia inocentes, a Guerra matara a inocência… Mademoiselle Duchamp fora enfermeira na Guerra. A Guerra a marcara demais.

    Estou lhe escrevendo não para tirar o mérito do jovem Prof.  Matiyasevich. Não. Minha intenção é fazer jus à memória da Professora Duchamp. Ela foi brilhante naqueles dias, surpreendente onde não se esperava que matemáticos seriam. Naqueles dias terríveis, quando os mortos apareceram uns depois dos outros, quando o crime rondava o Congresso e todos os encarregados de resolver o mistério tateavam às cegas, Mademoiselle Duchamp superou a todos. Não me surpreendo: ela era uma lógica, a melhor entre os lógicos de seu tempo. Sua desvantagem foi, então (e ainda hoje infelizmente se dá assim…), ter nascida mulher. Veja o senhor, Prof.  Doohovsky, neste mundo onde os homens mandam, ainda isso é desvantagem hoje para nós outras…

    Mademoiselle Anne Cousteau, minha aluna, que me trouxe seu artigo, fez o favor de datilografar um antigo caderno onde eu narrei os eventos daqueles dez dias do Congresso de 1920. Ela também me entrevistou para expandir mais o manuscrito. O senhor receberá uma cópia. Mademoiselle Cousteau encarregou-se de buscar um editor em Paris. Mas foi sua tradução, professor, que me despertou as velhas lembranças, então acho justo que os senhor possa ler primeiro que todos.

    Atenciosamente,

    Professora Doutora Madame B. H. Jouve.

    2. O DESCONHECIDO SOLDADO JEAN

    Eu era só Béatrice, então, em 1920, bacharel em matemática com um trabalho de conclusão de graduação sobre Teoria dos Grupos, aluna de doutorado na Sorbonne, sob orientação da Professora Mademoiselle Jeanne-Marie Duchamp, Doutora em Matemática nas áreas da Lógica e da Filosofia da Matemática. Eu tinha uma dupla razão para ter muito orgulho de estar sendo orientada por ela. Primeiro, por ser ela genial: todos comentavam a grande capacidade analítica de sua mente, sempre detentora de notas invejáveis quando estudava, palestrante cativante e muitas vezes ainda aluna convidada a dar aulas no lugar do professor. Depois, porque era eu sua primeira aluna de Doutorado, o que era muito especial: por ser mulher, Mademoiselle Duchamp tinha de escolher o melhor aluno para orientar, para conseguir o melhor trabalho possível; como mulher tinha ela de superar todos os outros colegas homens, uma vez que todos esperavam sempre pouco de uma mulher. Tive muito medo no começo, mas ela sorriu-me:

    — Faremos um trabalho digno de nós mesmas.

    ‘Redução da Aritmética de Peano ao Calculo Proposicional de Primeira Ordem’, esse era nosso trabalho, coisa de que se falava muito à época: reduzir a Matemática à Lógica, devido ao peso epistemológico poderoso da Filosofia Analítica, moda do tempo. Depois esse programa não deu em nada, diga-o Gödel, mas então todos estávamos enfiados de cabeça nesse barco.

    Ela estava na banca de meu mestrado, sobre o debate logicista da natureza da Matemática e a Teoria dos Tipos de Russell, e foi assim que a atenção dela veio sobre mim. Ingressei no Doutorado sob a orientação daquela jovem professora assistente do Programa de Matemática e Lógica, e estávamos juntas em Bruxelas, em 1919, quando se dispensou Estocolmo e se escolheu Estrasburgo para o Congresso Internacional de Matemática de 1920. Ela quis inscrever meu trabalho como comunicação no Congresso, e ele foi aceito. E foi assim que nos achávamos em Estrasburgo a 21 de Setembro, véspera do Congresso Internacional de Matemática.

    O viajante que chegava de Paris naquele tempo desembarcava na estação central da Ferrovia Alsácia-Lorena, a oeste da cidade ‘fora-dos-muros’.  Era nossa primeira vez em Estrasburgo e, vendo a empolgação de duas moças (Mademoiselle Duchamp era jovem, certamente seria tomada como minha irmã mais velha — e devo ser delicada, por consideração a ela, e ser sabiamente vaga quanto a sua idade!), o rapaz das malas que era claramente alemão, explicou-nos orgulhoso que prestássemos atenção nos afrescos do hall da estação, onde ‘os grandes imperadores figuravam’. De fato, dois afrescos frente a frente representavam um ao Imperador Frederico Barbarossa recebendo a homenagem de seus feudatários em Haguenau e o dístico Im alten Reich (isto é: ‘No antigo Reino’), e o outro mostrava Guilherme I recebendo uma copa de dois alsacianos, na presença de notáveis e camponeses, e o dístico Im neuen Reich, isto é: ‘No novo Reino’. Devo dizer que esse afrescos não existem mais, mas na época estavam ali, mesmo a cidade não sendo mais alemã. Porque fora recente a retomada de Estrasburgo pela França: depois de 50 anos de dominação imperial, devolvida nas condições humilhantes do Tratado de Versailles sobre a Alemanha derrotada. Aqueles afrescos eram testemunhas, na época em que lá estive, de que a ‘francesa Estrasburgo’ tinha muito de alemã; era uma cidade diferente, de duas nacionalidades, onde alemães e franceses tiveram de dividir as ruas mesmo durante a Guerra, o que deve ter sido muito estranho para ambas as populações. Tenho comigo que eles nem se consideravam franceses, nem alemães, mas alsacianos e isso deve ter deixado as coisas mais ou menos suportáveis. Afinal, Estrasburgo estava na beirada entre o histórico Reino dos Francos e o Sacro-Império Romano Germânico. Era já de sua natureza pertencer ora a um, ora a outro, ao sabor dos reis…

    O local dos táxis, fora da estação, ficava sob dois postes de bronze polido gigantescos, monstruosos, no centro da amplíssima Benholf Platz, ostentando então, mas ora não mais, o brasão imperial. Enormes postes de luz se espalhavam pela praça, onde carros e bondes elétricos disputavam espaço. Fomos abordadas já na saída do passeio; dois alsacianos brigaram pelas nossas malas usando uma mistura de francês com xingamentos em alemão: todos queriam ganhar. O vencedor fora um senhor de amplo sorriso e o perdedor não se ofendeu muito, porque saiu acenando e rindo também. Coisas de Estrasburgo! Nossas malas foram empilhadas no capô do táxi a gasolina — coisa rara ainda dois anos do fim do Conflito, porque todos os carros a gasolina foram devorados pela Guerra e estavam sendo aos poucos repostos. Ganhamos não só um chofer, mas também um cicerone…

    Demos nosso destino, o charmoso e moderno Hotel Hannong, mas o motorista fez de propósito desvios pelo caminho, assim que notou que estávamos embevecidas pelo aspecto antigo e pitoresco da cidade, com sua estranha mistura de coisas antigas e novas, de modernidade e tradição, casas em estilo francês em uma travessa, em estilo alemão em outra, os grandes edifícios antigos da época de Luís XV, da Revolução e da Terceira República, os grandiosos prédios novos no estilo neo-clássico dos extintos Hohenzollern que governaram desde que tomaram a cidade em 1870. Ficávamos impressionadas de como nomes franceses se sucediam a nomes alemães numa mistura que só os estrasburgueses sabiam explicar: Lange Strassc, Pariser Staden, Broglie Platz, Münstergasse, An den Gewerbslauben… As placas das lojas eram da moda alemã, mesmo quando a casa era francesa: enormes, tapando largamente a fachada, com letras de cores gritantes, que de noite, de tão iluminadas, machucavam os olhos.

    Havia muitos militares nas ruas: seis regimentos de infantaria, dois regimentos de cavalaria, quatro regimentos de artilharia, um batalhão ferroviário e um batalhão de engenheiros, disse-nos nosso cicerone. Era justo: ali do outro lado do Reno estava a Alemanha, nossa eterna inimiga desde a Idade Média, desde quando Frederico da Áustria lutara contra o Papa francês João XXII de Avignon. E a Guerra terminara havia só dois anos... A França tinha outros inimigos, mas a natureza os afastara: o mar deixava os ingleses isolados e os Pirineus mantinham longe os espanhóis; mas aquele Reno que congelava todos os anos nunca fora uma barreira de verdade...

    Passamos pela velha Estrasburgo francesa, sua maravilhosa catedral, o rio Ill, verde e manso com seus piers e canais pitorescos, suas praças e suas muralhas, suas casas antigas, o Jardin du Contades, a velha cidadela de Vauban, o Orangerie, o Parque Robertsau e a velha ponte suspensa de Kehl; ou para cobrar mais ou para de fato nos encantar, o motorista rodou por mais ruas que as necessárias para chegarmos ao hotel. No caminho nos apontava as casas. Pela nossa conversa percebeu que eramos professoras

    —  Vieram para o Congresso? — tinha ele forte sotaque alsaciano, com aquelas características vogais muito longas antes do ‘b’, do ‘d’ e do ‘g’, vogais que no francês de Paris são breves. — Então entendem de matemática?

    Oui, respondemos sem querer levar avante aquela conversa: já estávamos acostumadas a ser uma surpresa sermos mulheres matemáticas...

    — Os professores de Paris agitaram a cidade! — continuou o motorista.

    Entendemos, então, porque o táxi era mais caro que em Paris: os nativos estavam lucrando com os visitantes de fora, inflacionando os preços. Não havia o que se fazer: nos próximos dias percebemos que para tudo havia um preço para os nativos e outro para quem tinha sotaque de Paris. Nos últimos dias do Congresso isso foi benéfico, pois havia tantos querendo ganhar com os professores que já iam embora, que a concorrência tombou os preços, e as coisas que não compramos porque eram antes um absurdo de caro, adquirimos muito mais em conta ao irmos embora.

    À medida que avançávamos mais, fomos nos surpreendendo com certa ‘confusão’ própria de Estrasburgo, com as coisas mais diversas se esbarrando e se sobrepondo sem cerimônia e formando uma bizarra mistura: não havia uma rua das roupas, uma rua dos coureiros, uma rua dos moveleiros, uma rua das luminárias… tudo era vendido junto e ao mesmo tempo. Os bondes elétricos serviam as ruas principais e seus grandes postes muito feios destacavam-se horrivelmente contra as elegantes fachadas de casas e prédios públicos. Em todo lugar todo mundo falava francês e alemão misturado. Cidade de dupla nacionalidade, e nacionalidades inimigas, mas vejam só: La Marseillaise — ainda que cantada a plenos pulmões na Revolução pela divisão Marselhesa — fora composta pelo oficial Rouget de Lisle da divisão de Estrasburgo! A maior contribuição ao patriotismo francês nasceu naquela bagunçada cidade franco-teutônica.

    A Place Kléber apareceu de repente e o táxi manobrou desesperadamente, brigando com os bondes elétricos, o motorista buzinando e xingando em alemão e sacudindo o braço contra os condutores, para enfiar-se pelas ruas estreitas e chegar pela rua Hannong ao novíssimo e moderno Hotel Hannong, inaugurado naquele mesmo ano de 1920. O táxi parou na larga Rue du Vingt-Deux Novembre e o chofer gritava por moleques que carregassem as malas, esbofeteando-os zangado na nuca. Professora Mademoiselle Duchamp foi auxiliada descer primeiro, depois eu.

    Muito alta, de porte nobre e superior, não por isso trazia no rosto traços de petulância e pouco caso. Antes, seu semblante era tranquilo, pacífico, e sempre aberto a um sorriso discreto e um olhar vivaz. Tinha ela modos contidos e parecia nunca ter pressa. Cabelos louros, sempre presos em coque, ela falava só depois de muito ouvir. Enquanto ouvia, inclinava a cabeça muito de leve e fazia notar que dava muita atenção. Era bastante polida, não tratava ninguém com intimidade, e raramente tocava alguém. Quando falava, detestava ser interrompida e, quando isso se dava (que era infelizmente amiúde em um círculo de homens), ela calava-se imediatamente e não concluía. Mantinha-se respeitosamente em guarda e fazia ver que foram rude com ela, sem um único gesto, apenas elevando o queixo e olhando quem a interrompera. O poder desse olhar era tão pesado que quem o fizera, se tinha um mínimo de tato, se desculpava e pedia que ela continuasse. Então retomava de modo a concluir rapidamente, como quem diz; se desejam saber mais, terão de pedir. Em geral, lembro-me bem, os que lhe deixavam discorrer encontravam nela uma mulher muito sábia naquele universo da matemática e, sendo ela estimada professora, mesmo entres seus pares falava de modo claro e didático: notas corridas de suas conversas em um café serviriam de textos para aulas inteiras, sem precisar de correção.

    Ela era linda e jovem. Mas seu ar um pouco sério a fazia parecer mais velha. A Guerra a fizera grave e silenciosa. Ela servira como enfermeira e viu coisas horríveis demais. Conheci amigas dela do passado que me disseram que já fora, antes, mais animada, seu sorriso fora muito largo, que pestanejava os olhos nas falas alegres. A Guerra a fez se tornar menos vivaz, mais reflexiva, mais ouvinte que falante, com gestos mais contidos, como uma grande mãe consoladora e presente seria. Ela segurou a mão de muitos soldados, cantarolando baixinho no ouvido deles, para morrerem em paz…

    Não quero que se tenha dela uma imagem de que era triste. Não. Tinha ela um porte de rainha, cuja presença fazia se darem ao respeito diante dela, e seu rosto pacífico e seu olhar curioso e atento sempre produzia um agradável bem estar nos círculos de conversa.

    Quanto a mim, moça de meus 23 anos porque ingressei precoce na faculdade, não podia concorrer com ela em altura, acabava sempre notada só depois, se chegávamos juntas. Mas tinha eu meus dotes e era eu feliz, de olhar vivo e aberta à conversa, sabendo ser pró-ativa e segura como toda firme parisiense. E como firme parisiense, não cedia fácil proximidade aos rapazes: eles tinham que fazer por merecer! Eu era jovem, linda e feliz!

    Quanto à inteligência, tinha eu a minha, muito elogiável, mas Mademoiselle Duchamp exibiu a sua de um modo novo para mim, que me deixou muito impressionada, e serviu de amostra mínima de sua capacidade intelectual, reclamada depois a enfrentar o mistério horrível que cercou o Congresso.

    Seguimos os garotos com as bagagens até a entrado do charmoso prédio retangular, muito diferente da arquitetura imperial alemã, pintado de cor-de-laranja. Enquanto esperamos empregados de libré na calçada, fixei meus olhos em um rapaz em rotas roupas de domingo, triste, que revirava na mão uma folha amassada; ele estava encostado na parede de um restaurante defronte o hotel. Madamoiselle Duchamp veio por trás de mim (alta, ela falava sobre minha cabeça).

    — Pobre Jean, a Guerra o feriu demais, na alma e no corpo, agora não fica em nenhum emprego… E a moça que devia ser sua noiva não quer mais nada com ele; mas fica aí, esperando por ela, relendo sua carta…

    Fiquei surpresa. Sabia que ela nunca viera antes a Estrasburgo, e agora  descobria que ela conhecia um morador dali, aquele rapaz triste. Seria isso?

    Mademoiselle! A senhora o conhece?

    — Não, Béatrice, não sei quem é...

    E afastou-se. Fiquei admirada: não podia ser. Como o rapaz passasse a me olhar de onde estava, ensaiei ir até ele. Mademoiselle Duchamp então me chamou, suave:

    —  Béatrice, não vá… O rapaz está caído de carência, vê-se nos olhos, e se der um dedo de atenção a ele, não se verá livre de importunações todo dia. Ele passará a te seguir.

    Eu estaquei sem saber ao certo o que fazer. De fato eu iria mesmo lá saber do rapaz, se era mesmo algum ‘Jean’, se era mesmo soldado ferido na Guerra, se a noiva o deixara... A hesitação me deteve.

    — Venha,  Béatrice — chamou Mademoiselle Duchamp.

    Adentramos no hotel para sabermos de nossas acomodações, já reservadas por um agente de Paris. Eu não resisti, segurei a manga da libré de um rapaz de serviço do hotel e perguntei, apontando o rapaz triste, porta além.

    — Por favor, monsieur, aquele rapaz ali, vê? Quem é?

    — Ali, mademoiselle? Hum… é Jean… Ele a importunou?

    Admirei-me do nome. — Não, não é isso…

    — Se a importunou, perdoe-o, por favor. Ele não trabalha, mas não é pessoa má. É que a Guerra destruiu a cabeça dele, ficou maluco. Nem a noiva suportou, e o deixou. Agora ele fica ali, todo dia… Ele fica lendo e relendo a carta de rompimento dela, vê? Pobre Jean… Com licença, mademoiselle!

    O rapaz se foi. Fiquei boquiaberta. Minha curiosidade foi imensa, mas não perturbei imediatamente Profa. Duchamp com aquilo até mais tarde, quando fomos passear pela cidade.

    3. O PASSEIO AGRADÁVEL

    O Hotel Hannong de cinco andares e águas furtadas era muito charmoso. Como ele era muito novo, tudo nele ainda estava sendo usado pela primeira vez, os donos estavam orgulhosos demais de contar tudo sobre o prédio, principalmente quando elogiamos na entrada a aparência limpa e muito nova de tudo. Eles, presentes no momento, eram os famosos arquitetos Paul e André Horn que, ainda na época imperial da cidade, 1905, haviam sido encarregados de pensar a vasta reforma urbanística chamada de La Grande Perceé, que demoliu muitas casas do centro histórico antigo e medieval de Estrasburgo para abrir espaço para grandes praças e boulevares. Monsieurs Horn se exibiram explicando que o prédio nem sempre fora um hotel, mas no século XVIII havia ali uma fábrica de cerâmica que pertencia a uma família holandesa de Maastricht, descendentes de um aventureiro holandês da Companhia das Índias Orientais, um certo Jacob van Outwater, que viveu na China por 15 anos fazendo fortuna em Hanzhong e mudando o próprio nome para Pieter-Hendrick Hannong. Quando seus descendentes vieram a Estrasburgo fabricar cerâmicas, a rua ganhou o nome do estabelecimento (que o hotel conservou). Monsieurs Horn apontavam orgulhosos os outros edifícios da rua: eles foram os arquitetos que desenharam todos aqueles prédios novos da alargada Rue du Vingt-Deux Novembre. Explicaram que trouxeram uma renomada artista suíça, Sophie Taeuber, para decorar o salão de festas no primeiro andar do hotel, um espaço amplo de alto pé direito.

    Outros matemáticos também estavam hospedados e então fomos objeto de curiosidade dos empregados por sermos mulheres e matemáticas no Congresso. Já esperávamos por isso: Matemáticas! Mulheres que lidam com a ciência dos Professores! Professora Duchamp era agradável e nobre: não explicava motivos nem dava razões. Como se, por ser mulher, lidar com matemática fosse uma culpa! Os donos do hotel estavam empolgados com o evento ‘internacional’.

    Fomos para nosso quarto, no segundo andar, mais ou menos arrumamos nossa bagagem. Ainda era cedo, estava quase no fim do café da manhã, mas o hotel ainda estava servindo. Apressamo-nos, pois Mademoiselle Duchamp queria logo seguir para o Palais Universitaire, como era chamado o prédio principal da Universidade de Estrasburgo.

    Fofocas nos chegaram à mesa junto com o suco. Os empregados, para animar a conversa (vejam só!) puxaram por um assunto horrível: um dos professores do Congresso havia se suicidado!

    — Um professor de Paris, de onde as senhoras são — falava a empregada, a meia voz, como se toda Estrasburgo não estivesse falando só daquilo. — Acharam-no pela manhã, no jardim do Observatório, pulsos cortados; parece que a navalha ainda estava com o sangue escorrendo…

    Professora Duchamp fez por onde não continuar a conversa, esperando só que a empregada nos servisse, cortando polidamente o assunto. Vi que o tema não a estava deixando confortável e eu, claro, não me arriscaria insistir nisso.

    Nosso café foi ligeiro e frugal, só suco e frutas. Professora Duchamp ficou um momento contemplativa olhando para fora pelas janelas amplas do refeitório no primeiro andar. Eu falava de nossa comunicação, que seria dali seis dias. Ela parecia absorta e distante, mas estava prestando atenção.

    — Não fique preocupada, Béatrice. Os professores disputarão cadeiras para nos ouvir pelos vinte minutos que teremos. — acrescentou irônica: — Somos animais exótico,  mulheres falando ‘conversa de adulto’. Não se preocupe. Apenas vamos expor a quantas andam os resultados de sua tese…

    — Nosso resultado é importante, não é?

    — Nosso resultado é interessante, Béatrice. Achar caminhos para reduzir a Matemática à Lógica é coisa elegante. Os matemáticos buscam já há muito esse resultado, esse é o ‘Programa de Hilbert’. Isso é uma das coisas que se discutirá aqui, neste Congresso.

    Silêncio. É que na minha cabeça só vinha a conversa sobre o suicídio. Como podia Professora Duchamp não ter curiosidade de nada? Depois descobri que tinha, sim, curiosidade imensa. O que ela não achava importante era conjecturar em voz alta. Ela sempre dizia: as hipóteses se formulam diante de sistemas. Queria dizer que antes de termos tudo o disponível para se tratar de um objeto (não tudo sobre o objeto, mas ao menos o disponível...) não podemos levantar conjecturas sobre o objeto, com o risco de perder tempo e viciar os argumentos.

    Ela queria andar. Do Hotel Hannog até o Palais Universitaire seriam uma boa meia hora de suave e bem despreocupada caminhada, com tempo olhando a arquitetura da cidade. O sol era leve, o ar fresco, estávamos

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