A Gente Era Assim
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Pré-visualização do livro
A Gente Era Assim - Luiz Antonio Aguiar
luiz antonio aguiar
a gente era assim
1ª edição
rio de janeiro
2023
Sumário
a gente era assim
ficha técnica
ao leitor
1967
meu pai
1968
rosa
20 de julho de 1969
luiz antonio aguiar
ficha técnica
texto
luiz antonio aguiar
revisão
ian quint leisner
projeto gráfico e diagramação
axel giller
©2023 Luiz Antonio Aguiar
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito do autor.
Formato: ePub
Fonte utilizada: Archer
Para:
Profas. Dulce e Maria Luiza,
da EM Penedo, em Copacabana, Rio-RJ, anos 1960,
Prof. João Pompílio da Hora,
Prof. Sérgio de Regina,
Paulo Rebouças Monteiro,
Wania Cidade
Agradecimentos:
Marisa Sobral,
Rosa Amanda Struasz,
Alex Gomes
e Camila Werner,
pelas leituras, críticas, sugestões
e pelos carinhosos, preocupados,
pedidos de cautela.
ao leitor
Eu precisei escrever este livro.
Eu precisei publicar este livro.
Embora o tom seja autobiográfico, é ficção.
Ao mesmo tempo, não é.
Porque muito do que vivemos no Brasil, nos últimos quatro anos até 2022, eu só pude entender olhando para trás. Vi, então, uma multidão de cenas. Que no entanto não era uma multidão. Havia e há um sentido. Foram cenas que deram no que vivemos neste país. E no que temos de transformar para ter o país fraterno, próspero, iluminado e iluminista, múltiplo, que sonhamos.
Mas que não é o sonho de muita gente brasileira. Algo que não começou agora, nem em 2019. Algo que já existia, quando eu era criança. Na minha família. Na minha mente e no meu espírito.
Pelo menos, desde quando comecei a vivenciar este Brasil de hoje. Entendi o presente, olhando o passado, e entendi o passado, costurei as cenas que assombravam minha memória, a partir da linha e sentido que ganharam neste presente.
O reacionarismo que tentou nos isolar do mundo, do conhecimento, das descobertas, avanços e maravilhosas revelações da ciência, e do ímpeto civilizatório – o fluir irresistível do tempo –, que tenta nos arrastar para trás e nos ancorar ao que não se pode mais suportar, nem admitir, eu o conheci, quando ainda não tinha rosto tão formado, e fui entranhado por ele, assim como comecei a me amputar dele, ali, anos atrás.
Mas e as ameaças de cancelamentos?... tive dúvidas, hesitei, senti medo de publicar este livro.
Mas foi mais forte a necessidade de dizer que eu era assim. E dizer sem retoques, nem omissões, até me doendo escrever. Foi o que fiz aqui – confesso, tomado por uma nostalgia estranha. Sem querer retornar, mas tendo saudade do que eu fui, ou do que foi. Rejeitando a saudade. Sentindo saudade. Sabendo, então, que descobria, ao escrever este livro, que só pude me tornar diferente tendo enxergado o que eu era.
Não significa que superei os conflitos íntimos entre passado e presente, e que não lute, cotidianamente e até em meus sonhos (e pesadelos) com o que se mantém, desses anos, dentro de mim.
É parte de mim. Afetivamente, é algo que continua em mim. Sendo eu. Por isso, para mim, e para transformar, é tão crucial reconhecer...
A gente era assim!
Luiz Antonio Aguiar
meu lugar de fala é a Literatura! (LAA)
Você é a ovelha negra da família
Rita Lee
...apesar de termos
feito tudo o que fizemos,
ainda somos os mesmos
e vivemos...
Ainda somos os mesmos
e vivemos...
Belchior
... não fale, não lembre,
não chore, Meu Bem.
Dolores Duran
1967
Foi nos meses finais daquele ano que entrei, sorrateiro, pela primeira vez, no quarto de empregada. Abri, no armário velho, a porta descascada, empenada, e a seguir a gaveta das roupas de Rosa, a filha da nossa empregada. Vi, toquei, remexi. Num canto da gaveta, emboladas, havia três ou quatro calcinhas de algodão ralo. Empelotadas. Desbotadas.
Quando saí dali, ofegante, na vertigem do medo prometi a mim mesmo que não repetiria a aventura. Que fora uma brincadeira, piada, uma graça, uma arte (me chamavam muito de arteiro)... no entanto, sabia que mentia. A impressão fora tão forte – acima do que eu vinha imaginando. Nem o pavor de ser apanhado conseguiria me impedir de reincidir muitas vezes nas semanas e meses por vir.
Éramos três irmãos. João Fernando, João Francisco, João Frederico. 11 anos. 9 anos. 6 anos.
Um herdava a roupa de Primeira Comunhão, toda branca, do outro. Eu, o primeiro a usá-la, a herdei de um primo, mais velho do que eu, que mal conhecia – era sobrinho do meu pai, e ele era pouco ligado a sua família de origem. Na verdade, meu pai sentiu-se humilhado por eu estar fazendo a Primeira Comunhão com roupa usada. Já minha mãe aceitou de bom grado o presente. Enxoval completo – terninho, com bermudas, camisa de tecido fino, com babados discretos, gravatinha, meias, tudo branco, menos os sapatos de cadarço – era caro, e cada menino usava-o uma única vez, por poucas horas: missa, a foto sozinho com o lírio e a vela, depois com os pais, talvez com padrinhos, outros familiares – e lá ia, esperar o próximo herdeiro num canto do armário, uma sacola de papelão ou caixa. Portanto, veio mesmo a roupa emprestada – uma ou outra manchinha, que eu tiro no vinagre com água morna
, receitou minha mãe. Meu pai, nisso, ruminava. Grunhia.
– É de graça! – enfatizou ela.
Meu pai abandonou a rinha.
Lembro bem dessas roupas. Todas os meninos usavam mais ou menos o mesmo modelo, e as meninas tinham o delas. Então, o que me ficou na memória foram na verdade duas sensações. Uma, que a roupa, como era de praxe, na época, era super engomada, e a gola da camisa, de tão dura, me machucava. Outra, o cheiro de mofo e naftalina que nem as lavagens, ou seja lá o que se fazia mais, disfarçava. Me lembrava quando abriam a gaveta onde eram guardadas coisas da minha avó, mãe da minha mãe, então já falecida, como se eu estivesse carregando a lembrança dela, minha avó, tão religiosa, junto comigo.
Agora, era a vez do Francisco. Herdava-se até a vela, que somente seria acesa na entrada da igreja, três, quatro minutos, nem gastava o pavio; só