Pedro, O Cobrador
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Pedro, O Cobrador - Renato Mendonça
PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO
Depois de seis anos da primeira publicação, senti que era o tempo para fazer uma reanálise do livro para consertar o que havia deixado escapar inadvertidamente na primeira edição e fazer uma nova diagramação, para deixá-lo mais agradável aos olhos.
Para isso, contei com a colaboração sempre zelosa e competente do professor Eduardo Roberto de Souza, que merecidamente consta dos créditos da Folha de Rosto do livro como o Revisor Textual. Com uma lupa e um lume no olho, ele corrigiu os desvios ortográficos e debateu valores semânticos de algumas palavras.
O enredo em si permanece inalterado, não há razão para profanar o que foi gestado originalmente — uma história que transita entre a visão simbólica e a consciência onírica do garoto —, nem haveria outro modo de descrevê-lo com elegância e denodo. O que se inseriu foi a compreensão do está descrito de modo subliminar nos diálogos ou nas atitudes dos personagens. Mostrar ao leitor a construção interpessoal na experiência de fé do pequeno Cobrador e, porventura, algum fator adjacente que o tenha abastecido espiritualmente, e tenha contribuído decisivamente para o desfecho descrito no último capítulo.
Essa releitura intensa e profunda ensejou reescrever de forma diligente a conversa particular, no adro da igreja, com a cliente especial e interlocutora, que lhe promove ensinos filosóficos. Dentro de um clima de partilha de gestos de afeição e de sentimentos de empatia, ela o subsidia a sustentar a realidade da vida e o conduz a uma conexão profunda com tudo o que ele viveu.
Fazendo uma analogia com a Aurora Boreal, poderemos dizer que alguns fragmentos (partículas etéreas) foram arremessados sobre o campo magnético do livro, endereçaram-se aos polos (começo e fim), ocasionando alguns espetáculos de luzes, efêmeros, mas cristalinos, para iluminar quem sabe as entrelinhas e o caminho percorrido pela bicicleta do garoto.
Espero que a reescrita atenda a expectativa dos leitores e confirme que valeu a pena fazer uma reestruturação no miolo do livro.
Boa leitura!
O Autor
PRÓLOGO DA 1ª EDIÇÃO
Pedro, o Cobrador é para ser considerado, antes de tudo, um Livro de Cabeceira. A fascinante narrativa, embora linear, traz em cada capítulo lições de vida, individualizando cada etapa conquistada com muito suor, literalmente. De uma vida que nos leva a profundas reflexões, imaginando o ambiente, a locação, os costumes, a situação episódica ocorrida há cinquenta anos. O autor ainda nos presenteia com diversos relatos sobre a origem de alguns bairros, que o garoto visitava durante o seu trabalho diário, e, obviamente, se encaixam no contexto histórico da cidade de Manaus; pormenoriza algumas construções imponentes e monumentos históricos erigidos nos tempos áureos da borracha — fins do sec. XIX e início do séc. XX.
O conteúdo do livro nos mostra um autor sem pretensões de narrar apenas, senão manter o propósito de nos fazer viajar, protagonizar junto com o garoto, para exercer tão bem seu ofício de Cobrador de Quadros. Assim como em seus livros anteriores, nós o vemos narrando com profunda emoção, utilizando o cenário de sua juventude e — como ele próprio me assegurou — pinçando elementos e personagens ficcionais para contracenar com o garoto e compor esta história lúdica.
Abro parênteses para registrar a minha imensa gratidão em fazer parte do enredo, como um personagem do livro, o primo distante, morador do Estado de São Paulo, que trocava cartas mensalmente com o futuro cobrador e, oportunamente, o ajudou a mitigar a angústia de sua vizinha, vendedora de quitutes.
O primórdio da Zona Franca de Manaus serve como enredo secundário para gerar um percurso de entusiasmo, um pedestal para a autoestima, prenunciando uma promissora carreira, dentro dos domínios claramente explícitos, em sonhos idealizados pelo cobrador.
E quando o cobrador começa a prestar atenção nas aventuras do ofício, que viveu com cada cliente, percebe-se que, em pouco tempo, havia se tornado o adulto que ele objetivava. Mesmo sem experiência, com seu jeito terno, conquistou a confiança do empregador e dos clientes de forma infalível.
Como um noviço, teve medo, teve preocupações, foi à igreja e rezou, mentalizou e pediu aos céus, com sua fé inabalável, que o sucesso fosse o seu caminho, sempre cultuando o sentimento de amor ao próximo, a alegria de viver e a reflexão sobre o verdadeiro valor do ser humano.
Assim que ultrapassou a barreira da Entrevista, viu a evolução do seu mundo, girando sob as rodas de sua bicicleta — a ferramenta de trabalho —, moldando seu caráter profissional dentro de um universo promissor, sem nunca perder a confiança nem o sorriso. Deixa-nos imbuídos do mesmo espírito nessa obra indispensável, enquanto leitor, para aproveitá-la ao máximo.
Não poderia deixar de registrar que o entusiasmo de Pedro é sempre revigorado com a perspectiva de, desalojando-se de sua puberdade, encontrar a cliente especial, sempre às sextas-feiras, para receber dela, além da prestação, o afago de suas palavras, a exacerbada dedicação e um sorriso encantador de uma bela mulher, frequentadora assídua dos seus sonhos.
Joaquim Hélio Barboza de Lima
Cap. 1 - O ANÚNCIO
Os anúncios de classificados em jornais, timidamente, recrutavam empregados e ‘funcionários’ para serviços diversos.
F
inalmente, dez anos depois de adormecer nos entraves da burocracia do Governo, a Zona Franca de Manaus estava sacudindo a poeira do tempo e saindo do papel. Desde quando Juscelino Kubistchek regulamentara a criação de uma área de comércio livre, ainda no ano de 1957, a cidade havia rastejado sem rumo, pagando o preço de uma economia falida, enquanto o programa ficara esquecido na gaveta do desinteresse. Durante esse tempo, a democracia fora implantada, todavia não vingara. Um Presidente da República fora eleito, e oito meses depois renunciou; o Vice assumiu o poder e não pôde governar, porque forças contrárias, partindo de diversos segmentos da sociedade, não colaboraram. Assim, a balburdia tomou conta, a ponto de, em determinado período, duas formas de governo tentarem comandar a nação, como se duas pessoas, ao mesmo tempo, sob uma tempestade, quisessem assumir o timão de um barco à deriva.
Era de se esperar que isso não acabaria bem.
Os militares assumiram o poder, e foi exatamente um deles, o marechal Castelo Branco, a quem coube o mérito de assinar o Decreto 288, instituindo as diretrizes básicas dessa zona livre de comércio; um cearense de boa cepa, que vislumbrou a necessidade de revitalizar aquela terra, na qual foram abrigados tantos nordestinos fugidos dos fantasmas da seca.
Uma reforma drástica na Economia do país surgiu junto com a Lei: houve corte de três zeros no valor da moeda, a fim de tentar atenuar a inflação que galopava sem rédeas, e a criação de uma nova moeda: o novo cruzeiro, que passou a ser usado para balizar o novo salário-mínimo.
Todas essas mudanças trouxeram benesses para a cidade. O noticiário dos meios de comunicação alardeava que era a verdadeira redenção do povo; que passaria a se beneficiar com as franquias fiscais e o consequente barateamento dos produtos importados. Por conta disso, ocorreu a imigração de famílias, nacionais e estrangeiras; empresas de comércio e indústria investindo nos mercados, todos apostando nos novos ventos que sopravam, como se fosse a chegada da primavera apresentando um novo verdor na natureza. Uma inquietação típica de uma cidade que assumiu a esperança de vencer a letargia depois de uma década de torpor.
Os anúncios de classificados em jornais, ainda timidamente, recrutavam empregados e funcionários
para serviços diversos. Naqueles dias, lia-se o convite para empregadas domésticas, para pessoas com habilidades em datilografia e empregados diversos da construção civil e comércio. Raros eram anúncios para menores de idade. Talvez o novo teto do salário-mínimo estivesse intimidando a classe empresarial. Paradoxalmente, o mercado informal crescia. As bugigangas da Zona Franca, aquelas mais baratas, começavam a ser vendidas pelos ambulantes. Era o sintoma da sobrevivência se manifestando, buscando o espaço dentro de uma sociedade desacostumada a essas oportunidades.
Um menino, com seus quinze anos recém-completados, todos os dias, logo de manhã cedo, olhava os classificados do jornal que, eventualmente, alguém deixava esquecido no balcão do armazém próximo de sua casa. Ali mesmo, impaciente, folheava rapidamente a procura de algum anúncio precisando de menor para trabalhar. Depois de intermináveis dias de pesquisa, tinha sempre a expectativa de nada encontrar, era apenas a força do hábito que o levava a ler os anúncios. O curso de datilografia, abandonado antes de concluir, por falta de verba, dar-lhe-ia mais uma oportunidade de emprego. No entanto, até mesmo esse aprendizado estava sendo anulado por falta de exercício da habilidade; por não ter condições de comprar uma máquina de escrever ou não conhecer ninguém para lhe emprestar.
Naquele sábado, ele nem mesmo se prontificou a ir ao armazém no horário habitual. A esperança estava dando lugar ao desânimo. Estava resignado a esperar mais um tempo para o mercado de trabalho se aquecer. Ainda havia alguns entraves burocráticos inviabilizando a demanda industrial e, por enquanto, só a construção civil e o comércio contratavam, mesmo assim, escassamente. À tarde, resolveu ir ao armazém, porém não achou nenhuma página perdida de um jornal. Quando já se encaminhava para a saída, Seu João, o dono da venda, o chamou:
— Pedro, sei que você tem procurado em vão um emprego nos classificados, por isso tenho uma boa notícia — disse-lhe, fazendo um pouco de mistério antes de contar a novidade.
João era um cearense de meia idade, que fugiu da seca de sua terra natal com toda a família, e se estabelecera ali em apenas um quiosque. Antes, trabalhara como carroceiro, fazendo todos os tipos de frete, desde areia de rio para a construção civil a pequenas mudanças para famílias de baixa renda. Por isso, sabia da importância daquele anúncio para o menino.
— Procuro sim, Seu João, me diz qual é a boa notícia... É para trabalhar aqui no armazém? — falou com o ar de malogro, porque, em outras ocasiões havia se prontificado a ajudá-lo no armazém, mas ele alegava que ganhava pouco com o seu comércio e dava apenas para a sobrevivência da família.
— Não, é claro que não. É uma coisa melhor! O anúncio de uma empresa que admite menor para trabalhar no ramo de comércio de quadros. Olha aí garoto, uma oportunidade de ouro que você ia perdendo. Como você não veio hoje pela manhã, eu mesmo dei uma folheada no jornal e achei isso aqui — entregou-lhe o pequeno recorte de um anúncio do jornal, no qual se lia a chance de contratação de menor de idade, com boa desenvoltura em matemática, boa caligrafia e soubesse andar de bicicleta.
O horário