Contos do céu e da terra
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de polígrafa: a escritora, que sempre emprestou os ouvidos à escuta amorosa, e a etnógrafa, cuja erudição, ainda na
juventude, assombrou Mário de Andrade; e segue a nos assombrar, quando deparamos, por exemplo, suas incursões
por mundos aparentemente distintos, mas que se revelam em sua unidade original, especialmente no estudo sobre a presença do sobrenatural no Vale do Paraíba, Os filhos do medo, obra impossível de ser delimitada, abarcando várias áreas do saber e
avançando corajosamente para os domínios literários, já que, para a mestra vale-paraibana, a literatura da voz é tão importante quanto a outra, a formal, por vezes rígida, que dela deriva, embora, por vezes, negue qualquer filiação.
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Contos do céu e da terra - Ruth Guimarães
copyright © faro editorial,
2021
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2021
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Preparação alessandra justo
Revisão luciane h. gomide
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Capa e diagramação vanessa s. marine
Imagem de capa ollyy | shutterstock
Imagens de internas vanessa s. marine | shutterstock
Produção digital celeste matos | saavedra ediçoes
Logotipo da EditoraImagemImagemImagemImagem SUMÁRIO
Capa
Apresentação
Mastrilhas
O ladrão Gaião
O Natal de Ião Polaco
São Lourenço, Barba de Ouro
Os grãos de milho
O serrote de São José
A proteção de Santo Antônio
Quem vê cara…
No começo do mundo
A mulher que queria ser imortal
A teia da aranha
Malazarte e o milagre de Jesus
O moinho mágico
Quem planta vento…
Sobre os contos: confrontos e notas— Marco Haurélio
Imagem APRESENTAÇÃOMarco Haurélio*
Capitular Os contos religiosos, batizados por Oswaldo Elias Xidieh de narrativas pias populares
em seu estudo que abarcou contos da área rural e de algumas áreas urbanizadas de São Paulo,** aproximam-se das lendas por apresentarem personagens ou situações que, ainda que não sejam autenticadas pela História, são presumidas como ocorridas em um tempo impreciso, ou in illo tempore. Mesmo quando tais narrativas abarcam a vida de santos, ecoando a Legenda aurea, de Jacopo de Varazze, e os evangelhos apócrifos, além do vasto e longevo ciclo de lendas piedosas, expandido e realimentado ao longo de séculos, os informantes, melhor dizendo, as fontes, não os localizam no tempo; e o espaço, ainda que localizável, é vago e impreciso, como os reinos dos contos maravilhosos. Por vezes, tempo e espaço se tornam excessivamente flexíveis, a ponto de Jesus e São Pedro, retratados sempre como peregrinos andrajosos, baterem à porta de um caboclo, sendo generosamente acolhidos para, em seguida, serem expulsos ou maltratados por um homem de posses.
Ruth Guimarães, ao compendiar os contos que integram a presente coletânea, costurou habilmente dois de seus muitos condões de polígrafa: a escritora, que sempre emprestou os ouvidos à escuta amorosa, de que nutria suas páginas no campo da ficção; e a etnógrafa, cuja erudição, ainda na quadra primaveril da vida, assombrou Mário de Andrade. E segue a nos assombrar, quando deparamos, por exemplo, seus périplos por mundos aparentemente distintos, mas que se revelam em sua unidade original. Isso ocorre especialmente no estudo sobre a presença do sobrenatural no Vale do Paraíba, em Os filhos do medo, obra impossível de ser delimitada, abarcando várias áreas do saber e avançando corajosamente para os domínios literários. Afinal, para a mestra vale-paraibana, a literatura da voz é tão importante quanto a outra, a formal, por vezes rígida, que dela deriva, embora, por vezes, negue qualquer filiação.
A leitura destes contos, alguns de teor lendário, convida-nos a agradecer a quem, durante sua jornada na terra, fez da faina intelectual a razão de sua existência, nutrindo-se e nutrindo-nos de histórias que, universais em essência, particulares em ambiência, linguagem, pormenores, parecem ter saltado de um sonho abraçado por muitas coletividades para as salas e os alpendres do Brasil interior. O Brasil que Ruth Guimarães amou e que, aos poucos, a redescobre.
* Baiano de Riacho de Santana, escritor e pesquisador das tradições populares, tem promovido, desde 2005, recolhas de gêneros da tradição oral, dedicando especial atenção aos contos populares. Autor, entre outros livros, de Contos folclóricos brasileiros (Paulus), Vozes da tradição (
imeph
) e Breve história da literatura de cordel (Claridade).
** Cf.
xidieh
, Oswaldo Elias. Narrativas pias populares. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros –
usp
, 1967.
Imagem MASTRILHASCapitular Mastrilhas era o ladrão mais malvado do mundo. Homens de barba na cara tremiam só de pensar em atravessar a floresta e dar de encontro com ele, na noite. Mandava chicotear os ricos comerciantes de quem tomava o dinheiro. Queimava carruagens. Fazia correrem nus, para fora do seu reino de terror, os grandes dignitários que, por infelicidade, por ali tinham sido obrigados a passar.
E porque assim abusou da sorte, e como ofendeu gravemente os poderosos, tanto o perseguiram que o capturaram.
Lá se vai Mastrilhas, extinto na boca o riso largo. Os soldados do rei vão o espetando com a ponta do sabre, rancorosos. Tem as mãos amarradas na frente. Pesados os pés. Gente guardando-o de todos os lados, com armas, onde, ao sol, brincam relâmpagos. A chispa de seu olhar de fera, os soldados andam mais depressa e o empurram atabalhoados, com medo.
Lá se vai Mastrilhas. Nas abertas do mato, olhos duros de bandidos espiam e os homens fora da lei estão prontos a saltar na estrada, à menor negligência dos captores. Porém, ninguém se descuida. Os soldados do rei são legião, têm as armas prontas, o olho vivo, o ouvido atento, a mão armada em bote.
Lá se vai Mastrilhas.
Foi enforcado entre urros da população, e, ao