Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Hospedeira do Caos: Espelho D'Água
Hospedeira do Caos: Espelho D'Água
Hospedeira do Caos: Espelho D'Água
E-book627 páginas9 horas

Hospedeira do Caos: Espelho D'Água

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Quando o vazio consome a alma do ser humano, a necessidade de respostas fala mais alto e nos obriga a tomar decisões impensadas. Laura, uma aventureira, decide ir sozinha até a gruta onde seu pai desapareceu, antes de seu nascimento, e acaba entrando em outro mundo por acidente.
Desesperada, clama por ajuda em uma floresta desconhecida, sendo, porém, atacada e assaltada por criaturas que nunca havia visto. Ao retomar sua consciência, descobre que foi resgatada por Cassio e Rob, dois irmãos que estavam de passagem, e está sob os cuidados de Lillian, uma maga que a recebe em sua fazenda.
A situação da moça se agrava quando ela descobre que é procurada pelo rei de Andenia, um usurpador tirano que trouxe caos e bestas para aquele território. Essa perseguição causa atrito entre os personagens, e a desconfiança de Cassio sobre a moça faz com que a relação dos dois se torne cada vez mais complicada e conflitante.
O cenário muda quando novos companheiros se unem ao grupo para ajudá-la a retornar para sua antiga vida, antes que o rei consiga capturá-la, porém, quanto mais tempo ela passa em Andenia, mais se envolve com aquela realidade, e os seus sentimentos tornam seu retorno cada vez mais difícil.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento21 de jul. de 2023
ISBN9786525455815
Hospedeira do Caos: Espelho D'Água

Relacionado a Hospedeira do Caos

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Hospedeira do Caos

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Hospedeira do Caos - Marcella Albuquerque

    1

    A Viagem

    Ando pelo corredor ouvindo o tilintar das chaves em minha mão. Após uma viajem de doze horas até uma pequena cidade chamada Bonito, abro a porta do meu quarto, só quero me acomodar e deitar na espaçosa e confortável cama do hotel. A suíte de tamanho padrão com paredes amareladas com um intenso cheiro de limpeza se alastrando por todo o ambiente me parecia grandiosa, se comparada com a insossa e gordurosa poltrona do ônibus.

    Exausta, me pego olhando para a mesinha rústica e redonda localizada no canto mais iluminado do quarto, em cima dela, alguns folhetins de passeios turísticos dispostos de forma organizada me fazem lembrar do motivo que me levou até aquele lugar. Cuidadosamente abro minha mala e pego o diário velho de couro marrom que meu pai deixou antes de desaparecer. Folhear aquelas páginas encardidas, cheias de anotações e instruções faz meu nariz coçar.

    Chego na página com o mapa da gruta e, analisando aqueles tortuosos caminhos desenhados a mão com tinta nanquim, sinto que, de alguma forma, conseguirei minhas respostas com essa viagem, ou, pelo menos, sofrer uma grande decepção que me libertaria da necessidade de tentar entender o que aconteceu com o homem que eu nem sequer conheci. Li atentamente cada palavra daquele confuso diário, durante um ano e meio, eu sabia para onde ir, mas não sabia o que iria encontrar ou, o mais importante, SE iria encontrar algo.

    As anotações eram mistas, não tinham uma cronologia específica, havia informações a respeito de vários locais do mundo simplesmente jogadas em suas páginas amarelas junto a enigmáticos textos em códigos. Minha releitura é interrompida com o toque estridente do celular, olho curiosamente para a tela e, inconscientemente, dou um sorriso de canto antes de atender a ligação.

    — Boooa tarde, amor da minha vida! Já chegou ao seu destino? Comeu alguma coisa? – disse Neusa com sua voz contagiante antes que eu falasse qualquer coisa.

    — Boa tarde, maravilhosa! Cheguei tem pouco tempo, você não me deu a chance nem de desfazer as malas! – falei com um tom docilmente irônico.

    — Eu me preocupo com você, se eu não ligar, você não me liga. Se precisar de alguma coisa, me fala que eu vou correndo para aí! – respondeu a mulher mais desesperada que eu conheço.

    — Vem como, criatura? Vai largar o pobre coitado do Murilo para trás? Quer matar o velho do coração? – falei desafiando. Ouvi uma risadinha sem graça ao fundo do celular e sabia que meu pai estava ouvindo.

    — Eu estou bem! – afirmei tentando passar tranquilidade, mesmo estando ansiosa. – Vou dar uma volta pela cidade e seus arredores amanhã de manhã, sei que você não está muito feliz com isso, mas agradeço por não tentar me impedir ou colocar a situação como se fosse algo... – disse e dei uma pequena pausa, esperando que talvez ela fosse finalizar a frase, comprovando o quão desnecessário achava aquela viagem, no entanto ela não finalizou e eu fiquei feliz com isso. – Bobo.

    — Eu não gosto dessa ideia, mas se é importante para você, é importante para mim, espero que encontre o que procura. Eu não tentaria te impedir, até porque você é teimosa igual a uma mula, iria me causar um infarto. Prefiro saber o que está fazendo do que proibir e você fazer do mesmo jeito. Eu te amo, você é minha filha, não de sangue, mas... desde que você entrou na minha vida, pequenininha, chorona e melequenta, só me trouxe felicidade.

    — Eu amo você também, é a maior do mundo! Minha mãe não poderia ter escolhido madrinha melhor. Minha bateria está acabando, vou me instalar aqui, a gente vai conversando. Manda um beijo para o Murilo! – digo e finalizo aquela ligação com um pouco de peso na consciência, não havia deixado explícito que iria explorar a gruta em que meu pai desapareceu, apenas havia dito que iria ao último local em que ele esteve e dei a entender que ficaria na cidade. De certa forma não menti, achei mais seguro não dar muita informação para uma senhora cardíaca de cinquenta e oito anos.

    Neusa era a melhor amiga da minha mãe e se propôs a ser minha tutora após seu falecimento, ela não podia ter filhos e cuidou de mim como se fosse sua. Não cheguei a conhecer minha mãe biológica, ela morreu logo após meu nascimento e o único contato que eu tive foi com algumas fotos.

    Devido ao trabalho de bancário do Murilo, seu esposo, mudávamos muito até meus dezoito anos, quando fui para uma república com algumas colegas da faculdade de enfermagem. Hoje, aos vinte e quatro anos, moro com algumas samambaias em um pequeno apartamento próximo do centro, o que permitia um acesso mais rápido ao meu emprego no hospital.

    Após um revigorante banho quente e um delicioso almoço em uma churrascaria próxima ao hotel, dou uma volta pela cidade buscando alguma agência de turismo que poderia me levar ao meu destino. Era uma cidade pequena, porém circundada por rios de águas translúcidas e enormes cavernas que se localizavam a vários quilômetros do centro, atraindo muitos exploradores o ano inteiro.

    Encontrei um motorista de aplicativo que me deixaria na entrada da Trilha da Costela, uma estrada de chão afastada da cidade que, seguindo por alguns quilômetros, chega a uma multifurcação. Seus caminhos levam para as mais diversas montanhas, grutas e lagos submersos espalhados por aquele terreno.

    Seu nome era Jairo, um senhor de aproximadamente sessenta anos, cabelos grisalhos e baixa estatura. Fiquei um pouco apreensiva quando ele afirmou que eu não conseguiria guias para me levar até meu destino, o que, mais tarde, se provou verdade, uma vez que não encontrei nenhum profissional que aceitasse fazer a minha rota.

    A tarde passou rapidamente e volto para o hotel tentando não pensar muito no fato de que estaria sozinha no dia seguinte, me deito e tiro um longo e profundo descanso. Minha ansiedade não sobressaiu ao cansaço da viagem, assim que me deitei tudo ficou escuro e quando acordei o céu ainda estava negro. Por volta das cinco horas da manhã tomei outro banho quente tentando aliviar a tensão, coloquei roupas confortáveis e esperei no refeitório do hotel. Não consegui me alimentar muito bem, estava muito ansiosa e havia combinado com Jairo de me buscar às sete e meia, foram as duas horas mais longas da minha vida.

    Com um atraso de dez minutos, o motorista chegou ao hotel para me buscar, geralmente eu não me importaria, não posso me considerar a pessoa mais pontual do mundo, mas... aqueles dez minutos estavam me matando. Sentia borboletas enfurecidas batendo asas no meu estômago até ver apontando o Chevrolet prata com a placa KPT 0207, o que foi irônico, pois, além do capeta (KPT) escrito na placa, 02/07 era exatamente a data que meu pai desapareceu.

    Esse pensamento foi interrompido quando o carro parou na minha frente e o simpático senhor me pediu para embarcar em seu poderoso possante. Eu me sento no banco traseiro e lembro dos antigos conselhos da Neusa, de sempre me acomodar atrás do motorista, caso seja um tarado eu consigo sufocá-lo com o cinto ou esfaqueá-lo com um canivete que carrego na minha bolsa para fugir de uma situação indesejada. Me peguei rindo sozinha pensando se esfaquear uma pessoa já não seria situação indesejada o suficiente e, olhando para o senhor simpático de, no máximo, um e sessenta e cinco de altura, com os braços mais finos que os meus, aquela situação se tornava ainda mais cômica.

    Eu queria muito ser uma pessoa séria, que entra nos carros de carona, se apresenta com um educado bom-dia e segue seu caminho plena com fones de ouvido até o fim do trajeto, mas essa definitivamente não sou eu. A viagem tinha duração de uma hora de carro e, quando eu percebi, já sabia todo o histórico de Jairo, que também não era a pessoa mais reservada do mundo.

    Ele me contou sobre sua esposa, que eram casados há longos quarenta e cinco anos, cinco filhos e dez netos, que tinha conservados sessenta e oito anos e era aposentado, trabalhava por não querer ficar à toa em casa e tinha um gato caolho chamado Abóbora, que era muito safado e pegava todas as gatas do bairro. Eu amava gatos e tentei persuadi-lo a castrar o animal, informando sobre as vantagens do procedimento, mas ele ligeiramente me informou que tinha amor às bolinhas do bichano; depois daquela informação eu não encontrei uma forma de continuar com aquele assunto.

    Aproveito aquele minuto de silêncio para conversar sobre a gruta, ele morava na cidade há muitos anos, deveria ter conhecimento sobre a história do local.

    — Bom, não vou dizer que não me surpreendi quando você me procurou e pediu recomendações de guias para te levar na Gruta do Demônio, ainda mais quando eu te informei que você não conseguiria e, mesmo assim, quis ir. É um lugar perigoso, as pessoas não vão lá nem acompanhadas, imagine sozinhas.

    — Sabe me dizer por que exatamente eles interditaram a gruta? Aconteceu algum evento em... específico? – questionei sabendo a resposta, talvez recebesse alguma informação extra sobre o ocorrido.

    — Bom, já sumiu gente naquela gruta, um homem desapareceu há muitos anos. – Meu coração aperta e respiro fundo, eu sabia de quem se tratava. Na época o desaparecimento não passou despercebido pela imprensa e as teorias de conspiração que pairaram sobre o caso fizeram o assunto render por um bom tempo. – Não sei das suas crenças, menina, mas... os antigos sempre alertaram sobre aquele lugar, muita gente já ouviu barulhos estranhos naquela montanha, dizem ser amaldiçoada. E depois que o homem sumiu sem deixar nenhum vestígio, aumentaram os rumores de realmente ser a toca de um demônio. – Meu coração se apertou novamente, não pelo demônio que morava lá dentro, o que, para mim, era bobagem, mas cada vez que falava do homem que sumiu, eu sentia aquele nó no meu estômago.

    O motorista me deixou bem em frente à entrada da famosa Trilha da Costela, a larga estrada de terra adentrava a floresta densa de galhos retorcidos, caminhando por ali seria uns bons quilômetros até chegar na gruta. Olho para a rodovia e não muito longe dali conseguia avistar pequenos telhados de algumas casas, seguindo por ali poderia facilmente alcançar a pequena vila caso precisasse.

    — Muito obrigada, Jairo, a gente se vê na cidade antes que eu volte para casa – agradeço a carona e o senhor sorri me entregando um cartão simples com seu telefone.

    — Quando precisar que te busque, me ligue! Vou falar de você para minha esposa, ela cozinha muito bem e vai amar tê-la conosco. – Ele se orgulhava da mulher e visivelmente gostava de companhia, olho sorrindo para ele, que continuava com aquele rosto simpático.

    — Vai ser um prazer! – eu falo e ele volta para a estrada.

    Entro na espaçosa e limpa trilha seguindo um mapa daquela estrada, não sei exatamente quantos quilômetros andei, mas, após os primeiros trinta minutos de caminhada, cheguei a um ponto onde a larga trilha se divide em doze caminhos menores. Desejei ter tomado um café da manhã mais reforçado, as frutas que eu levava na mochila estavam me servindo bem, mas ainda sentia fome, não queria ter que desarrumar minha bolsa no meio do caminho para tirar os sanduíches que estavam embalados. Achei melhor esperar chegar ao local para poder me alimentar com mais tranquilidade.

    Me deparo com uma charmosa placa de madeira escrita a mão apontando para a direção de diversas grutas naquelas redondezas. Mas, não, a placa não apontava para a Gruta do Demônio e aquilo fez meu coração disparar, aquele era o caminho certo, eu não poderia ter me enganado. Avalio melhor a estrutura e consigo ver o local onde a madeira com a provável indicação do caminho fora apagada, realmente não queriam pessoas perambulando por lá e aquela certeza começa a me deixar nauseada.

    Respiro fundo me recompondo e sigo pelo caminho indicado pela placa apagada, a estrada que antes era larga, se tornou curta e quase que totalmente oculta pela vegetação. Definitivamente não passavam muitas pessoas por lá e, após entrar em uma pequena abertura que falsamente parecia a continuação da trilha, fico perambulando sem rumo por algumas horas, totalmente desesperada. Cansada, assustada e anestesiada de fome, me sento em uma grande pedra marrom e começo a desembalar os sanduíches. Recupero minhas forças e as uso intensamente para chorar, as lágrimas corriam pelo eu rosto e começo a soluçar descontroladamente, não conseguia conter os pensamentos de que ninguém iria me encontrar e que eu iria morrer naquela floresta.

    — Ótimo, te dou parabéns! Gênia! Afinal, ir atrás do lugar onde seu pai desapareceu? – Bati três palmas com ironia. – Que ideia mais idiota, ia chegar lá na gruta e fazer o quê? Achar seu pai que está desaparecido há vinte e quatro anos e ser feliz? Ver o lugar em que provavelmente ele morreu soterrado ou preso em algum buraco claustrofóbico? Depois de ter sido criada por um casal que te tratou igual uma filha, você vai e agradece a eles morrendo no meio da floresta, servindo de comida de onça? – Gelei com aquele pensamento, ali realmente era um local ideal para onças e precisava encontrar a trilha novamente o mais rápido possível.

    Aperto meu colar com força tentando me acalmar, ele era simples, com uma gargantilha fina de ouro, com o pingente de uma pedra branca e lisa que, dependendo da forma que eu a movimentava, emitia uma luz esverdeada. Era da minha mãe e após sua morte, o colar havia sido passado para mim.

    Não tive o prazer de conhecer minha mãe. Ela morreu logo após meu nascimento, mas sempre que algo me afligia, eu segurava aquele amuleto e sentia uma energia fluir pelo meu corpo, como se estivesse protegida, e só conseguia pensar que talvez minha mãe estivesse ali comigo. Retomo meu caminho e não longe dali encontro a trilha novamente, não demorou meia hora até chegar à tão famosa Gruta do Demônio. Nessa altura do campeonato escutar minha consciência e dar meia-volta não fazia mais sentido; estava, na minha frente, uma montanha com pedras escuras e uma entrada aterrorizante, o nome não foi dado de forma aleatória.

    A fila de estalactites em volta de toda a borda da abertura, junto a processos rochosos que lembravam muito a face de um demônio, sugeriam bem o nome do local e era de se esperar que as pessoas criassem teorias sobre aquele lugar. A umidade da caverna dava a ligeira impressão de que lágrimas corriam pelo que seriam os olhos e sinto meu corpo se arrepiar.

    Fiquei parada por um tempo contemplando aquela estrutura geológica e me perguntando se os alienígenas não esculpiram aquilo, afinal, é seguro dizer que tudo que o ser humano não sabe explicar é crédito dos aliens, deuses ou... demônios. Estremeço com aquele pensamento, um frio na espinha me fez arrepiar até os pelos da nuca, queria ter oferecido um pouco mais de dinheiro para algum guia, talvez aceitassem o suborno e eu não estaria parada na entrada de uma caverna, às duas horas da tarde pensando se deveria entrar e até onde deveria ir.

    Não era minha primeira caverna, eu já havia explorado várias outras grutas e até lagos submersos, definitivamente aquele era o tipo de programa que me interessava, mas o significado daquele lugar e o fato de estar sozinha me davam um pouco de medo, afinal, ali foi onde o destino me impediu de conhecer meu pai, o homem do qual dizem que herdei os grandes olhos castanho-avermelhados. Novamente pego no meu pingente e sinto confiança para entrar, sinto como se eu realmente deveria estar ali, mesmo sentindo como se meus pulmões não funcionassem.

    O ar parecia se expandir no meu nariz e descia pela minha garganta de um jeito que começou a doer, meu estômago queria sair do meu corpo e, quando percebi, meu maxilar doía de tanto apertar os meus dentes.

    Finalmente ultrapasso as grandes presas de pedra e adentro a cavidade, absolutamente nada aconteceu, toda aquela tensão e ansiedade se dissiparam e eu estava dentro de uma gruta qualquer. Um amplo salão com belíssimas galerias de paredes calcárias, com formações irregulares, a pouca influência de luz solar, mas com aberturas causadas por desmoronamentos ou pela ação da água, funcionavam como uma iluminação natural do ambiente, o jogo de sombras deixava a câmara elegante, porém o clima da caverna era tenso e sufocante.

    Abro o mapa que havia retirado do diário do meu pai em uma mesa natural no centro do recinto e começo a avaliar as instruções. Havia tantos detalhes da gruta que me questionava: para ter feito um mapeamento tão bom, quantas vezes aquele homem foi até lá antes de desaparecer?

    Me visto com os EPIs e começo a seguir o mapa. Conforme me aprofundava na caverna, a luz natural ia sendo substituída pela luz da lanterna e o sentimento de claustrofobia ficava cada vez mais intenso. Com cuidado observo discretos desenhos nas paredes, mas não sei o significado, tinha algo sobre esses símbolos no diário, mas não me lembraria de cor e agora era tarde para se arrepender de tê-lo deixado no hotel.

    Seguindo o caminho indicado, fui perdendo a noção do tempo, a luz artificial me atrapalhava e por algum motivo meu relógio não funcionava, à medida que as lanternas refletiam as paredes, desenhos mais elaborados se revelavam, a umidade os deixou apagados e com poucos detalhes. Parecia que tinha uma camada grossa de sal por cima funcionando como um verniz, tentei tirar um pouco do excesso com as luvas, mas sem muito êxito.

    Me afastando um pouco da parede, as figuras humanoides do desenho se apresentavam em volta de um bonito lago azul e no centro de suas bordas havia uma grande pedra brilhante. Tento me afastar um pouco mais para ver se conseguia entender toda a história expressa na longa parede calcária, quando sinto que piso em falso e o chão cede embaixo de mim.

    Fico desacordada por algum tempo e, quando finalmente recobro minha consciência, estava um pouco desorientada; logo começo a me questionar como pude não cuidar de onde pisava. Levanto com dificuldade e cambaleio até uma pedra para retirar o meu tênis, meu tornozelo doía e eu precisava avaliar se tinha alguma fratura.

    Aparentemente não parecia estar quebrado, apenas bem dolorido e um pouco inchado, meu primeiro pensamento, inocentemente, foi sobre como eu iria voltar para a estrada com o pé daquele jeito. Mas foi breve, pois olho ao redor do imenso salão azul e, antes que pudesse contemplar sua beleza, o desespero me consome e a pergunta que ressoava na minha mente era: COMO QUE VOCÊ VAI SAIR DESSE BURACO PRIMEIRO? O chão cedeu comigo, estou um salão abaixo dos desenhos, sabe-se lá a quantos metros da superfície, não tem como eu simplesmente escalar as paredes com o pé machucado e sair pelo teto.

    Olho novamente ao redor e não vejo nenhuma passagem alternativa para sair do local, só um imenso salão azul, escuro a ponto de parecer uma noite iluminada e claro o suficiente para não precisar usar as lanternas para conseguir enxergar. Desejei fortemente que o senhor Jairo desse falta de mim e mandasse alguém para me buscar, mas minhas esperanças definhavam quando lembrava que poderia gritar o quanto quisesse que provavelmente aquelas paredes porosas iriam abafar qualquer som e que, para piorar minha situação, eu tinha seguido um mapa que me fez entrar em buracos que provavelmente ninguém ousaria passar sem um conhecimento prévio da estrutura.

    Dou alguns passos e chego a uma rampa, não consigo identificar se é artificial ou não, mas a passagem é fácil e, em um nível abaixo de onde eu me encontrava, havia uma enorme piscina. A luz azulada espelhava de dentro dela, tão linda, uma imagem maravilhosa, o teto parecia ladrilhado, estruturas semelhantes a espelhos ecoavam o reflexo da água.

    Automaticamente pego meu celular e cogito tirar uma foto, mas ele havia se espatifado na queda. Então paro para pensar em como foi ridículo me preocupar em tirar uma foto, sendo que eu provavelmente iria morrer naquele lugar. Começo a rir de nervoso e a depressão passa a me consumir, não conseguia chorar, estava muito impressionada para tal e falhava miseravelmente em me consolar dizendo em voz alta que pelo menos eu ia morrer em um lugar bonito.

    Começo a ouvir sons estranhos, não sabia explicar o que eram exatamente, mas se assemelhavam a sussurros, vários sussurros sendo cantados ao mesmo tempo. O som não parecia ser hostil, mas me causava um sentimento de aflição, me aproximo da piscina e consigo identificar a grande pedra centralizada em uma área mais alta.

    Não era brilhante como nos desenhos da parede, mas a cor cinza da estrutura era totalmente incompatível com o material do resto da caverna, qualquer leigo poderia ver que aquilo não era natural, fora construído ali. Uma clara luz verde brilhante começa a emitir do meu pingente e eu o seguro, interessada, já havia observado aquela tonalidade verde em outras ocasiões, mas nunca em um ambiente escuro.

    Continuo minha caminhada até a grande pedra cinza no topo daquela piscina, andar com o pé lesionado fazia a distância parece maior e os sons pareciam diminuir à medida que me aproximo daquele local. Finalmente eu estava de frente para a estrutura e tive a verdadeira noção de seu tamanho, era um enorme pedaço bruto de um tipo de rocha sólida e acinzentada, devia ter em torno de uns cinco metros de altura e exalava um estranho calor, uma vez que o resto do salão estava com a temperatura baixa.

    Me aproximo calmamente da pedra e me questiono como alguém a teria levado para aquele local, não tinha entradas para o salão, precisaria de um maquinário muito forte para carregar um pedaço daquele tamanho. Além do mais, não fazia sentido nenhum a montanha ter se desenvolvido depois da construção daquela espécie de templo.

    Aliens, pensei novamente, mas lembrei das outras possibilidades: deuses e demônios, então preferi não pensar muito em como aquela estrutura foi parar naquele lugar. Volto a ouvir sons, que agora estão vindo diretamente da rocha, são sons mais baixos, parecem algum tipo de sussurro, como se várias pessoas falassem ao mesmo tempo.

    Inclino meu tronco para tentar ouvir melhor; eu toquei a pedra com a frente do meu corpo e a lateral da minha face, aquele som cessa no mesmo instante e um silêncio mortal preencheu todo o lugar enquanto a coloração azulada imediatamente se tornou dourada, como se o salão fosse aberto e o reflexo de um crepúsculo preenchesse seu interior. O lugar continuava sendo o mesmo, mas a energia mudou; olhando ao redor me deparo com uma escada que podia jurar que não existia ali, mas talvez, pela pouca iluminação e pelo desespero, eu não tivesse prestado tanta atenção na alta escadaria de pedras que estava a poucos metros de mim.

    Subo dolorosamente os incontáveis degraus e, chegando ao topo, consigo sentir o vento no meu rosto, não acreditei quando vi que ela se destinava diretamente para fora da montanha, a floresta estava bem cheia e fresca, o cheiro de verde nunca foi tão bem recebido pelo meu nariz; a vegetação estava alta e selvagem.

    Olhando para o céu, vi que já estava no final da tarde e decidi contornar a montanha em direção à entrada da gruta, voltando para o lugar em que entrei seria mais fácil identificar a trilha e mais seguro voltar para a estrada de terra. Eu tinha alguns cobertores na mochila e material para fazer uma fogueira, o que me possibilitaria ficar por lá até de manhã.

    Andei me escorando nas árvores por alguns minutos, quando ouço vozes e uma movimentação próxima de mim, talvez um grupo de trekking estivesse passando por lá. Me senti aliviada, precisava de ajuda e não teria outra oportunidade como aquela.

    — OLÁAA, ALGUÉM AÍ? POR FAVOR, ME AJUDEM! – gritei pela floresta. As vozes se calaram, mas a movimentação continuou, agora, vindo na minha direção, fico aliviada em ter sido encontrada. – Olá?

    As vozes continuaram em silêncio, as passadas se tornaram curtas e rápidas, me causando certa tensão.

    Fico imóvel e com dúvidas se esperar por aquele grupo era realmente uma boa ideia; meu coração saltava conforme os passos se aproximavam da minha localização. Penso em me esconder, mas sou violentamente atingida no rosto, caindo zonza no chão. O gosto de sangue se espalhava pela minha boca e, antes que eu conseguisse me levantar, recebi outro golpe na face.

    Fui golpeada inúmeras vezes pelo que pareciam ser criaturas baixas e verdes; eu não conseguia identificar exatamente o que eram, estava tentando proteger meu rosto enquanto um grupo deles me atacava incansavelmente com tacapes de madeira. Senti que estava perdendo minha consciência e tudo começou a ficar escuro antes que pudesse entender o que estava acontecendo.

    2

    A Recepção

    Acordo em um salto, os gritos de terror que ecoavam em meus pesadelos me acompanharam até o despertar. Assim que recobro minha consciência, tento me orientar e descobrir onde estou. Investigo todo o quarto ao meu redor, o simples e escuro quadrado de madeira com detalhes em pedra me traz um sentimento de proteção, a porta estava escorada e as cortinas gentilmente fechadas, como se o dono daquela casa quisesse me deixar confortável.

    Uma essência que eu nunca havia sentido antes fluía por todo o cômodo, um cheiro floral e adocicado, muito agradável às minhas narinas, deixava meu corpo leve. Olho para o lado e vejo uma espécie de difusor de ambiente em cima de uma pequena mesa de cabeceira de madeira escura, um frasco simples de vidro com alguns palitos transparecia o conteúdo cheiroso de tom de rosa brilhante.

    Tento levantar da cama, sinto muita dor e me estremeço com violentas e generalizadas pontadas. Olho para minha mão enfaixada e, seguindo por aquele ponto, vejo que tenho ataduras enroladas por todo meu corpo, não me forço a movimentar, fico parada na posição mais confortável possível quando escuto o som da porta ranger.

    Uma mulher com seus cinquenta e poucos anos conservados entra de forma delicada no quarto, seu rosto expressivo e gentil sorri para mim, revelando belíssimos dentes brancos. Não consigo me sentir intimidada, a paz que ela transmite deixa meu corpo mais relaxado e sinto que não é uma ameaça.

    — Olá, querida, precisa de alguma coisa? Está confortável? – a mulher perguntou com a voz gentil enquanto se aproximava cautelosamente.

    — Onde é que eu estou? – questiono desconfiada olhando para os lados.

    — Bom, nesse momento você está em minha propriedade, um pequeno pedaço de terra na região de Presa – respondeu.

    — E o que... aconteceu? Como vim parar aqui? A gruta... – falo enquanto me lembro da gruta e olho de forma confusa para o rosto da senhora, como quem procura respostas. – Estou perto da gruta? Tem um telefone? Os homenzinhos... eram... verdes?

    Seguro minha cabeça, um turbilhão de memórias confusas surgem de uma vez, me deixando mais desorientada.

    — Calma! – falo e olho para a mulher, que já estava sentada ao meu lado tocando meus ombros de forma amigável, seus olhos verdes com linhas douradas encontraram os meus e não pude desviar o olhar. – Eu não sei se entendi tudo o que você falou, mas vejo que passou por muita coisa. Vamos começar do começo, com calma, estou disposta a te ajudar com o que precisar. Me chamo Lillian, e você?

    — Laura – respondo ainda um pouco nervosa.

    — Laura... lindo nome, como posso te ajudar, Laura?

    Aquela voz suave me deixa mais tranquila e começo a falar.

    Conversamos um pouco até eu me acalmar, descobri que a alta senhora de cabelos cor de mel e voz suave morava em uma fazenda com o sobrinho e com um órfão que os ajudava com os afazeres da terra. Após me tranquilizar com sua calma vida, contei sobre minha viagem e ela, atenciosamente, me ouviu.

    Estava concentrada em cada detalhe, mostrando um real interesse no assunto, algumas rugas de confusão e preocupação se manifestavam em sua tranquila face à medida que eu ia me aproximando do final da história. Meu corpo começou a doer, comecei a suar frio, lembrei que não comia desde o dia anterior e, antes que ela prosseguisse com o assunto, calmamente pediu que eu me deitasse na cama; em meu estado deplorável, simplesmente obedeci.

    Lillian saiu por poucos minutos, quando voltou, carregava uma bandeja de madeira com pequenos sanduíches e uma espécie de chá que, segundo ela, me ajudaria na inflamação e nas dores. Comi como se não me alimentasse há dias, me sentia vazia e aqueles sanduíches estavam muito gostosos; assim que terminei a refeição, ela pediu para que eu ficasse calma e prestasse atenção no que ela iria falar.

    Eu simplesmente não sabia como processar toda aquela informação que estava sendo jogada na minha cara. Provavelmente encarava de forma inexpressiva o rosto da mulher que tranquilamente tentava me informar que eu não estava mais no meu mundo.

    Enquanto ela tentava me fazer entender que, de alguma forma, eu passei pelo espelho d’água, um portal até então inativo que me levou para o país de Andenia, onde fui assaltada e atacada por goblins, criaturas... COMUNS na região desde que o novo rei tomou posse, um amargo gosto toma conta da minha boca e começo a salivar, fazendo com que meu estômago se contraísse de forma violenta. Tentei segurar, mas, antes que eu executasse qualquer técnica possível, aquela força da natureza expulsa tudo que eu tinha acabado de colocar no estômago.

    Vomito ao lado da cama próximo aos pés de Lillian, que imediatamente fica em silêncio, não sei se pelo fato de perceber que foi muita informação ou se era devido ao fato de que, se não prendesse a respiração, ela iria vomitar também.

    — Desculpa... – falei envergonhada e dolorida. – Muita informação! – falo, pisco de forma demorada e respiro fundo tentado evitar uma segunda golfada.

    Ela lentamente segura meus bagunçados cabelos ondulados para trás evitando que se sujem.

    — Eu devia ter contado antes de te dar comida – diz ela pensativa enquanto, provavelmente, prendia a respiração.

    Após a constrangedora situação, Lillian disse que limparia o quarto e me deixaria descansando, o fato dela usar magia para fazer os objetos trabalharem em seu lugar não me deixou dúvidas de que ela estava falando a verdade sobre tudo. Meu maxilar ia até o chão enquanto o balde e o esfregão faziam a limpeza, eu estava visualmente impressionada com aquilo enquanto que, para ela, era tudo tão natural que nem compreendeu o motivo do meu espanto.

    — Descanse, querida, você vai precisar de tempo para digerir tudo. Amanhã é um novo dia e você conhece o restante da família.

    Ela me dá uma piscadela e me deixa sozinha.

    Não consegui relaxar naquela tarde, fiquei ruminando aquele turbilhão de pensamentos até a noite, quando finalmente não aguentei o cansaço e simplesmente desliguei.

    Em meu sonho estou em negação, não poderia ser verdade, era tudo algum tipo de pegadinha, tinha que ser. Me materializo no espelho d’água, a abafada gruta atrapalha minha respiração e percorro todo o local com os olhos enquanto os cochichos perturbam minha mente.

    Tento desesperadamente arrancá-los com as mãos, a grande pedra brilhava igual nos desenhos da parede e olho para a espaçosa piscina azul-cintilante. Meu reflexo era nítido como um espelho e parecia me chamar, como se quisesse que eu me aproximasse, mas ele se converte na imagem de um demônio e, antes que pudesse me afastar, suas garras saltam da água agarrando meu pescoço.

    — TE ENCONTREI.

    Aquela voz penetrante faz minha cabeça girar. Tento gritar pedindo por ajuda, mas não consigo proferir nenhum som; eu estava desesperada e aquele monstro começa a sair da água me observando com o rosto satisfeito enquanto sua mão continuava agarrada a mim.

    Acordo com um tranco, minha respiração está ofegante e meu corpo, encharcado de suor. Ainda deitada, olho por entre as cortinas e vejo que já é dia.

    Me levanto da cama, dessa vez com menos dificuldade do que no dia anterior, a fragrância dentro do quarto tem um cheiro verde e refrescante que me faz sentir disposta, olho para a mesa ao lado da cama e vejo que Lillian trocou a essência enquanto eu dormia. Uma muda de roupas estava dobrada em cima de uma cadeira no canto do cômodo, um simples, porém belo vestido de linho em conjunto com um corpete vermelho; ele estranhamente parecia servir perfeitamente em mim.

    Após me lavar em uma banheira que, com certeza, foi magicamente aquecida, caminho pelo pequeno corredor que leva até a cozinha, Lillian está finalizando o almoço quando percebe minha presença.

    — Bom dia, querida. Conseguiu descansar? – perguntou simpaticamente.

    — Bom dia! – digo e olho para uma espécie de relógio na parede, é semelhante aos relógios analógicos do meu mundo, porém não consigo identificar os números que foram substituídos por símbolos e o que deveriam ser ponteiros eram esferas coloridas e brilhantes que giravam em torno de uma esfera maior; aquilo me fez lembrar de um sistema solar. Se seguirem a mesma sequência humana e levando em conta que a mulher estava fazendo comida, julgo ser próximo do meio-dia. – Dormi muito, você poderia ter me acordado, não foi educado da minha parte dormir até uma hora dessas.

    A mulher deu uma afável gargalhada.

    — Não se preocupe, Laura, todos vimos sua necessidade de descansar. Os rapazes não ficaram chateados de você ter perdido o café da manhã – ela disse e se abaixou para pegar lindos sousplat de palha. – Me ajuda a colocar a mesa?

    Olhei desconfiada para aqueles redondos utensílios e questionei se eles não se arrumariam magicamente igual ao esfregão na tarde anterior. Outra gaitada, ela parecia se divertir com minha ignorância.

    — Bom... eu poderia fazer com que eles se organizassem sozinhos, mas como estou muito bem acompanhada, adoraria passar meu tempo arrumando a mesa junto com alguém.

    Eu seguro os redondos utensílios e começo a montar os conjuntos na mesa.

    — Lillian... – falei esperando ela me responder.

    — Sim?

    — Quando posso ir para casa? – perguntei sem jeito.

    — Bem, isso quem tem que decidir é você. Acha que tem condições de voltar para seu mundo e conseguir voltar para sua casa? – questionou aparentemente preocupada com meu destino. Não tinha, não conseguiria subir as paredes da gruta, tampouco caminhar até chegar na rodovia. – Você é bem-vinda na minha casa, pode ficar o tempo que precisar – continuou após uma pequena pausa, provavelmente sabendo que eu não estava preparada.

    Aquelas palavras hospitaleiras me tranquilizavam, porém já havia dois dias que eu estava desaparecida, como estariam Murilo e Neusa? Sinto um aperto no coração, certamente é culpa. Qual seria a reação dos meus pais quando a equipe de buscas não me encontrasse e me desse como morta?

    Meus pensamentos são interrompidos quando ouço a porta da frente se abrir e me viro para conhecer meus anfitriões.

    Um adolescente esguio de cabelos castanho-claros e bagunçados e olhos felinos entra com um salto na casa, provavelmente pulou os dois degraus da entrada direto para a varanda. Aparentando ter por volta de seus dezessete anos de idade, era magro, porém tinha uma boa estrutura, provavelmente devido as suas atividades na propriedade.

    Ele se acomodou na cadeira de frente para mim, seu rosto malandro com sardas e olhar curioso me examinavam insistentemente e aquilo começa a me deixar envergonhada. Sem graça com aquele excesso de atenção, dou um sorriso fechado tentando ser simpática.

    — Você lavou as mãos, Rob? – questionou Lillian assim que ele apontou pela porta.

    — Lavei na bomba d’água, não se preocupe – respondeu o rapaz mostrando as compridas mãos molhadas para a dona da casa.

    — Onde está Cassio? – interrogou a mulher, como se estivesse impaciente pelo atraso.

    — Ficou para trás para terminar de montar o cata-vento, soltou uma peça e disse que iria consertar antes de vir, não deve demorar – terminou de falar o menino voltando novamente sua atenção para mim. – Então você é a Laura?! É um prazer, soube que é uma viajante, como é o seu mundo? Lá as pessoas...

    O rapaz me bombardeava de perguntas quando é interrompido por Lillian:

    — Rob, seja educado com as visitas, Laura acabou de chegar, não é o momento para interrogatórios.

    A mulher sinalizou firmemente para o rapaz, que imediatamente acatou.

    — Não se preocupe, vou contar tudo o que você quiser saber. Sua tia disse que você iria me apresentar a propriedade, acho que vamos ter tempo para conversar.

    Tento me socializar com o energético menino à minha frente, que responde com um travesso sorriso.

    Lillian distribui a comida pela espaçosa mesa de seis lugares, fiquei sem graça em pensar que ela tinha preparado todo aquele banquete apenas para me receber. A mulher permite que nos sirvamos e prontamente o rapaz à minha frente encheu o prato com toda aquela variedade de carnes, frutas, legumes e grãos.

    O cheiro é delicioso e meu estômago suplica por alimento, pego a colher para me servir quando a porta da frente se abre, provavelmente por um chute.

    Instantaneamente meu olhar se cruza com os do homem parado na frente da porta, seus olhos pequenos e castanhos, cabelo raspado bem curtinho e uma belíssima barba negra ornamentavam aquele rosto masculino. Minha atenção inconscientemente se volta para seu tronco quando observo que sua fina camiseta de manga comprida está totalmente encharcada moldando aquele corpo musculoso e definido, que gato.

    Quando percebo que avaliei por mais tempo do que deveria, desvio o olhar e aquilo não saiu da forma sutil como eu esperava. Um sorriso torto e discreto surge no rosto daquele homem após minha indiscrição e sinto minhas bochechas queimarem de vergonha.

    — O QUE ACONTECEU COM VOCÊ? – perguntou Lillian atônita com o estado do homem, enquanto Rob gargalhava pelo mesmo motivo.

    — Bom... alguém estava com tanta pressa que se esqueceu de fechar o registro do reservatório de água – ele informa jogando uma caixa de ferramentas no chão e tirando as luvas grossas em seguida. – Quando fui ajustar as engrenagens do cata-vento, tomei um banho – ele diz e olha com reprovação para o adolescente sentado à mesa, que imediatamente substitui as gaitadas por uma expressão envergonhada. – Prazer em finalmente te conhecer, Laura... – ele me cumprimenta e tento não olhar para a roupa molhada novamente enquanto eu o saudava com um sorriso sem graça e um aceno de cabeça.

    Educadamente o homem pediu licença para trocar de roupa e não demorou muito até se juntar a nós, percebi que havia sido inocente em pensar que Lillian havia feito um banquete para mim, os dois rapazes sentados à mesa um ao lado do outro devoraram toda a comida e eu me questionava se não estavam disputando quem comia mais. Seguramente poderia afirmar que, naquele ritmo, o mais novo logo alcançaria a dilatação gástrica do mais velho, os dois pareciam não ter fundo.

    Foi uma refeição muito agradável, não fui pressionada em nenhum momento, Lillian fazia com que eu me sentisse em casa. Rob parecia um poço de ansiedade para me mostrar todo o terreno enquanto Cassio era mais retraído e cuidadoso com as poucas palavras.

    Após o almoço, todos voltam para suas tarefas, exceto Rob, que conseguiu uma dispensa para fazer seu papel de guia turístico; o agitado rapaz me mostra toda a propriedade. No começo ele disparou na frente, mas quando lembrou que eu não conseguiria acompanhá-lo rapidamente, se ajustou a minha velocidade compossível a uma idosa carcomida.

    Nosso tour pela razoável fazenda não demorou muito tempo, o plano pedaço de terra propositalmente rodeado pela densa floresta abrigava uma espaçosa cabana próxima da entrada da propriedade. Em frente à varanda há um jardim com flores e ervas variadas, que exalam agradáveis perfumes, provavelmente era onde Lillian cultivava a matéria-prima de seus chás, essências e... poções.

    Seguindo pelos seus caminhos chegávamos ao seu generoso quintal e raios de sol cintilavam naquele verde predominante. Em sua parte mais baixa, um campo com as mais variadas plantações se estendia até o denso labirinto de árvores altas e retorcidas, na parte mais alta, celeiros e redondéis firmes e bem-feitos davam abrigo para as criações.

    A propriedade era de uma beleza e organização magníficas, algumas aves criadas soltas nos seguiam atrás de alimento enquanto Rob me apresentava os dois cavalos gordos e musculosos que os acompanhavam em suas viagens. Um era baio e alto chamado Fergus o outro, negro e extremamente forte com nome de General, não tive dificuldade em supor a qual cavaleiro cada um pertencia.

    Ao fim da excursão, após conhecer todas as criações e precisar fugir do velho bode de Lillian, surrupiamos algumas frutas do pomar e nos deitamos embaixo de uma monstruosa e velha mangueira. Estar ali, respirando aquele ar puro, com um leve aroma cítrico e refrescante da floresta que circulava por toda a região, me trouxe uma profunda sensação de paz.

    Rob orgulhosamente conta que ele e Cassio construíram aquilo praticamente sozinhos, e um sorriso de satisfação despontou de seus lábios quando eu elogiei o local.

    Ao longe, próximo do celeiro, não consigo conter minha curiosidade ao ver a cena do atlético homem dependurado em um gigantesco cata-vento, não havia conseguido disfarçar minha atenção mais cedo e fazia o mesmo agora, sua concentração era inabalável enquanto provavelmente ajustava alguns parafusos.

    — Ele fica o dia todo pendurado mexendo no cata-vento – disse o rapaz respondendo minha indiscrição e me viro para ele. – Enquanto ele não termina de mexer, não descansa. O celeiro ele construiu em uma semana.

    — Para o que serve? – indaguei tentando fingir que minha atenção estava na estrutura e não no homem.

    — Você não sabe para o que serve um cata-vento? Como que vocês fazem para levar a água para casa?

    Me senti burra em não ter percebido que o cata-vento funcionava como uma bomba para levar a água do rio para a propriedade, o que justificava a necessidade daquele homem ficar pendurado diariamente tentando finalizar o mais rápido possível. Contei para Rob como funcionavam alguns mecanismos do meu mundo, ele ficou impressionado com as informações, o que o levou a fazer mais perguntas que eu simplesmente não sabia responder.

    — Rob, no dia que vocês me acharam, como foi? Quer dizer... vocês me trouxeram para cá, como chegaram até mim? – pergunto como uma tentativa de me desvencilhar do interrogatório.

    — Cassio e eu voltávamos de um trabalho que fazíamos na cidade, estávamos há três dias fora e na volta passamos por aquele caminho, que é próximo do rio, para que os cavalos pudessem beber água – falou o rapaz cuidadosamente. – Achamos você estirada no chão e quando vimos que estava viva, trouxemos para Lillian te ajudar. Havia rastros de goblins e pelo seu estado sabíamos que você tinha sido atacada. Sabe... não é algo incomum, há muito tempo essas criaturas incomodam os Andenianos.

    Senti uma pontada de irritação, havia sido assaltada naquele dia e levaram quase tudo que estava no meu corpo, além de terem me espancado até ficar inconsciente, me deixaram estirada no chão apenas com o grosseiro macacão de exploração, o que provavelmente não me deixou morrer de frio até ser encontrada. Fiquei triste por roubarem minhas coisas, principalmente por terem levado minha pedra, única lembrança que eu tinha da minha mãe.

    — Por que isso acontece? Esses ataques parecem frequentes, mas nada acontece com eles – falo me referindo às bestas verdes, todos reclamavam da presença dos goblins, mas nada parecia ser feito.

    — Bom... talvez Lillian saiba te explicar melhor do que eu, mas... há mais de vinte anos houve uma guerra que resultou em um golpe de estado contra o rei Yvo, que era o rei da época. Dizem que Andenia era muito segura e as bestas viviam exiladas – começou o rapaz. – Mas as criaturas ajudaram com a tomada do poder, então como recompensa as barreiras foram abertas e elas tiveram livre acesso a todo o país. O rei não pune quem as mata, sabe... mas elas vivem em hordas, a população teme matar uma e ter retaliação, elas costumam ser bem cruéis.

    O rapaz havia nascido no novo regime, não sabia muito da história do antigo monarca nem viveu no mundo que existia na época, ele só conhecia aquela realidade, mas parecia sonhar com uma mudança.

    ***

    Os dias se passaram e já fazia uma semana que eu havia sido abrigada, com as poções e compressas, em meu corpo havia sobrado apenas lembranças daquelas terríveis dores. Eu ajudava em tarefas mais simples na propriedade para não tornar minha presença um fardo, Lillian protestava dizendo que eu era convidada, mas eu insistia em ser útil enquanto estivesse presente. Naquela semana ganhei uma segunda família, o cuidado e o carinho que tinham por mim me davam a sensação de que os conhecia há muito mais tempo, principalmente se tratando de Lillian, que me mimava constantemente durante todo o meu tempo na casa.

    Troquei algumas palavras com Cassio durante minha estadia, mas não o via com frequência, quando não estava trabalhando na fazenda, ele viajava até a cidade para realizar alguns serviços, era reservado e sua natureza parecia impor uma certa distância, mas quando conversávamos tinha sempre um tom agradável. Rob havia me contado de suas aventuras, que eles tinham um grupo que se juntava para realizar serviços para quem os contratasse.

    Naquele dia, Lillian havia separado uma mochila para minha viagem, cuidadosamente tinha colocado algumas cordas, pinos, cobertores e comida, o que daria para me sustentar por dias. A despedida era longa e sofríamos com a separação, se morássemos no mesmo mundo, Lillian seria o tipo de amizade que eu adotaria como família, pensava que ou ela daria muito certo com Neusa ou elas iriam se digladiar de ciúmes.

    Rob e Cassio já haviam selado os cavalos, a ideia seria sair o mais cedo possível. Da cabana até o espelho d’água seriam algumas horas montada, quanto mais cedo estivesse na passagem mais cedo conseguiria voltar para casa.

    — Então é isso, querida... – disse Lillian me dando um apertado e demorado abraço. – Vou sentir sua falta, minha companheira nessa casa cheia de homem.

    Comecei a chorar baixinho, Cassio e Rob se entreolharam, não pude decifrar se acharam exagero ou se ficaram com pena daquela separação.

    Montamos nos cavalos, Cassio havia me acomodado de forma confortável na cernelha do negro animal. Seus braços me envolveram para que tomasse o controle das rédeas à minha frente e aquela aproximação parecia ter deixado nós dois um pouco desconfortáveis.

    Senti sua respiração falhar algumas vezes enquanto ele gentilmente tentava manter o corpo afastado de mim, cogitei pedir para ir na garupa, porém, antes que pudesse falar alguma coisa, o animal já estava andando e eu não quis incomodar, quando fizéssemos alguma parada daria a sugestão.

    Como esperado, Rob quebrava o intenso silêncio, o rapaz tagarelava sobre a tarefa que ele e Cassio executaram no dia anterior. O energético rapaz contava entusiasmado como eles caçaram uma corça prateada para um comerciante da cidade.

    — Eu fiquei quase uma hora parado na mesma posição até ela aparecer na área de tiro da Josi, quando Josi atirou e acertou seu dorso, o bicho avançou contra ela, esses animais são extremamente agressivos, sabia? Cassio agarrou ela pelas orelhas e derrubou no chão para eu conseguir sangrá-la, foi muito empolgante.

    Ele realmente estava empolgado, matar a corça foi uma grande aventura para o rapaz, que recentemente teria sido anexado ao grupo de aventureiros.

    Ele já havia me confidenciado que tinha anos que queria que Cassio o levasse para as aventuras, mas tinha

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1