Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Le Mans e suas histórias
Le Mans e suas histórias
Le Mans e suas histórias
E-book410 páginas6 horas

Le Mans e suas histórias

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Um conceito que revolucionou o automobilismo e fez de pilotos, máquinas e da própria 24 Horas de Le Mans autênticas lendas. A história do esporte a motor e também do Endurance – Resistência, em francês – se traduz em um século de paixão, com personagens que marcaram época dentro de uma pista que é igualmente icônica. Não é à toa que o evento virou filme. Esta e outras histórias você encontra neste livro, escrito por um dos maiores especialistas do esporte, Rodrigo Mattar, e que conta ainda com o prefácio do piloto Raul Boesel.
IdiomaPortuguês
EditoraGulliver
Data de lançamento31 de jul. de 2023
ISBN9786585755061
Le Mans e suas histórias

Leia mais títulos de Rodrigo Mattar

Autores relacionados

Relacionado a Le Mans e suas histórias

Ebooks relacionados

Esportes Motorizados para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Le Mans e suas histórias

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Le Mans e suas histórias - Rodrigo Mattar

    APRESENTAÇÃO

    A MAGIA DAS 24 HORAS DE LE MANS

    Completar cem anos de existência já revela muito sobre as 24 Horas de Le Mans. Há décadas ela representa a culminância das corridas de longa duração, a ponto de ser considerada, ao lado das 500 Milhas de Indianápolis e do Grande Prêmio de Mônaco de Fórmula 1, uma das joias da chamada tríplice coroa do automobilismo mundial.

    Triunfar em Le Mans é um atestado de excelência para o fabricante do carro vencedor e um marco na carreira de qualquer piloto. Manter um automóvel rodando durante 24 horas seguidas em regimes extremos de uso é um desafio absoluto. Exige uma reunião bem orquestrada da mais avançada tecnologia com o melhor material humano disponível. E a Porsche é a marca mais associada à 24 Horas de Le Mans. Desde 1951, todas as edições tiveram modelos Porsche no grid, e houve ocasiões em que a maioria absoluta dos participantes era formada por carros da marca. A Porsche é a maior vencedora da prova, com 19 primeiros lugares na classificação geral entre 1970 e 2022, além de mais de uma centena de vitórias por categorias.

    A Stuttgart começou suas operações como representante da Porsche no Brasil na década de 1990. E sempre marcou presença no automobilismo, até de maneira ousada. Nas 24 Horas de Le Mans de 1997, por exemplo, os carros da equipe oficial da Porsche ostentaram no spoiler dianteiro e nas laterais da asa traseira a inscrição Stuttgart Sportcar – BRAZIL. Na corrida centenária, das 24 Horas de Le Mans, a Stuttgart esteve presente no capacete e no macacão de Felipe Nasr, piloto oficial da Porsche.

    O lançamento deste livro acontece no momento em que o centenário da prova francesa se soma ao aniversário de 75 anos da Porsche e à comemoração dos 25 anos da Stuttgart como representante da marca no Brasil. A Stuttgart conhece de perto a paixão e o conhecimento de Rodrigo Mattar pelas corridas de Endurance e fica feliz por se juntar à Gulliver Editora neste projeto. Temos certeza de que os leitores vão se encantar com a magia das 24 Horas de Le Mans.

    Marcel Visconde

    Presidente da Stuttgart Porsche

    PREFÁCIO

    LE MANS E AS MINHAS HISTÓRIAS

    No início da carreira, acompanhava pelas revistas especializadas na época - Auto Esporte, Quatro Rodas, Autosprint italiana - todo tipo de corridas, e os carros de Endurance me fascinavam. Lembro bem de babar nas fotos da participação do Paulo Gomes, Alfredo Guaraná Menezes e Marinho Amaral em Le Mans em 1978, por coincidência, mesmo ano do início de minha carreira onde enfrentei essas feras no Campeonato Brasileiro de Grupo C, que a partir de 1979 passou a se chamar Stock Car.

    Nunca imaginaria que alguns anos depois, em 1987, estaria eu sentado em um Jaguar pela equipe de Tom Walkinshaw, numa equipe de fábrica disputando o Campeonato Mundial e as 24 Horas de Le Mans na categoria principal, com perspectiva de vitórias.

    Como o livro é sobre as histórias dessa corrida, vou descrever meu sentimento, minha experiência e dificuldades. Para começar, imaginar uma corrida de 24 Horas é assustador: até então, as quatro primeiras corridas do campeonato tinham sido de apenas 1000 km.

    Minha maior preocupação era o preparo físico. Faríamos a corrida com apenas dois pilotos no meu carro, eu e Eddie Cheever. Vinte dias antes da corrida, tivemos um teste e fui o piloto escolhido para realizar os trabalhos e o acerto inicial do carro. A primeira impressão assustadora que tive foi com a antiga reta chamada Les Hunaudières (os ingleses chamam de Mulsanne), com mais de 6 km - somente a partir dos anos 1990 a reta foi cortada por duas chicanes.

    O Jaguar com motor V12 de mais de 700 HP já estava a 363 km/h no meio da reta e mantinha essa velocidade até o fim. Literalmente, no início da reta dá vontade de rezar um Pai Nosso - e lá pelo km 5 ela tinha uma curva que se fazia de pé embaixo e no final uma elevação justamente onde se deve começar a freada para a Mulsanne, à direita, feita em segunda marcha a 80 km/h. O dia do teste estava lindo, mas imaginei como seria a noite. E se chovesse? Ai! Ai! Ai!

    O resultado foi muito promissor, minha melhor volta foi em 3min24seg38 a uma média de 238,4 km/h e poderia ter sido mais rápido se não tivesse dado uma erradinha justamente na freada no final da grande reta.

    A TWR-Jaguar era impressionante em todos os detalhes. Não só na preparação dos carros como na infraestrutura para todos os integrantes. Os pilotos tinham um pequeno motorhome para cada, com chuveiro e água quente, mais um para alimentação, além de massagista, médico e assistentes e outro para o apoio aos mecânicos.

    Quinze minutos antes da troca de piloto vinha uma assistente chamar no motorhome para ficar pronto, e ir para uma bicicleta ergométrica pedalar por cinco minutos e ir para o box e ficar pronto para entrar no carro. Normalmente pilotávamos por quase três horas com uma parada para troca de pneus, combustível e pastilhas de freio, se necessário.

    Num dos turnos, entrei no carro ao entardecer e guiei por uns 50 min quando começou a chover, parei no box para trocar pneus e aproveitaram para reabastecer. Logo veio a noite, agora entrava na reta e rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria. Além de disputar posições com carros da nossa categoria, havia os carros mais lentos e com o spray dos carros na chuva fica bem complicada a visibilidade e andando a mais de 300 km/h não é brincadeira. Quando entrava no box para trocar com Eddie Cheever, depois de 1h30min guiando e já com o cinto de segurança frouxo, veio a mensagem no rádio: "only fuel and tires, stay on the car" (somente pneus e combustível, continue no carro). Como eu estava virando tempos rápidos, decidiram me deixar a bordo em mais um tanque - o Eddie disse que como ele saiu do carro de dia, com chuva iria levar algumas voltas para pegar o ritmo. Então, lá fui eu para mais 1h30min, foi um teste para o meu preparo físico.

    Agora, uma história de bastidores: após um dos dias dos treinos preparatórios, recebemos uma aula do engenheiro responsável pelos motores sobre a injeção eletrônica e o que deveríamos fazer caso desse algum problema na pista. Dito e feito: houve um acidente no início da manhã de domingo e eu seguia o Pace Car, e de repente no retão o carro começa a falhar e apaga. Parei no acostamento e atrás do banco tinha uma pequena caixa de ferramentas. Quando abri, tinha um bilhete: "If you need these tools you’re fucked" (Se você precisar dessas ferramentas, você está f****o!).

    Não sabia se chorava ou dava risada! Peguei uma chave de fenda e um alicate e lá fui eu tirar o capô traseiro. O primeiro pino de segurança do capô voou longe, os outros cinco tive mais cuidado. Com muita dificuldade, tirei o capô e lá fui eu pôr em prática a aula do engenheiro. Entrei no carro, tentei ligar e não é que pegou na hora?

    Saí do carro novamente, coloquei o capô, e no desespero o encaixe não foi correto, mas como iria voltar para o box a uma velocidade reduzida, não me preocupei. Resultado: logo depois que voltei para a pista, o capô voou e, quando entrei no box, a equipe já tinha visto pela TV e já estava pronta com um capô novo.

    Mesmo com os problemas que tivemos, incluindo uma falha de transmissão, terminamos em quinto e com a ajuda do Jan Lammers no final, porque o carro dele tinha se acidentado. Voltei a participar em 1988, meus companheiros de equipe eram John Watson e Henri Pescarolo, duas feras. Infelizmente, nossa participação terminou após 129 voltas, por um problema de câmbio.

    Minha última participação em Le Mans foi em 1991 e foi muito interessante em vários aspectos. Eu fazia a IMSA e ganhei uma corrida em Miami. O nosso carro foi preparado pela equipe TWR-Jaguar dos EUA e a marca inscreveu outros dois, preparados na Inglaterra. Eu teria como companheiros o estadunidense Davy Jones, o outro piloto da Jaguar na IMSA, e o francês Michel Ferté, este por motivos de marketing.

    Havia uma guerra interna, uma competição entre a equipe Jaguar dos EUA e a inglesa, e na classificação já levamos a melhor. Durante a corrida, o Michel Ferté virava tempos mais lentos e aí o Tom Walkinshaw mudou a tática: eu e o Davy fazíamos dois turnos e o Michel, um.

    Nesse ano em particular, os carros tinham que aumentar o peso e a Mazda foi dispensada da regra pelos demais construtores, tendo uma vantagem de 200 kg. A Jaguar fez um motor mais potente – como consequência, consumia mais. Faltando algumas horas para o fim, a Sauber-Mercedes que liderava teve problemas mecânicos e abandonou.

    Ficamos na disputa com a Mazda, mas usávamos 5% a mais de combustível que é alocado para a corrida. E aí chegou uma hora que tivemos que usar menos giro nas trocas de marcha e fazer o máximo de economia para terminar a corrida em segundo. Foi a única vitória da Mazda – nas outras corridas do campeonato não era nada competitiva.

    Quero agradecer ao Rodrigo pelo convite de fazer esse prefácio. Me senti muito orgulhoso e ao mesmo tempo dono de uma grande responsabilidade. Também gostaria de parabenizá-lo pela iniciativa desse livro que irá perpetuar a participação dos brasileiros em uma das corridas mais tradicionais e importantes do automobilismo mundial.

    Nas próximas páginas, tenho certeza de que vocês curtirão muito os relatos e informações do autor desse livro, obra de um jornalista que considero uma bíblia do esporte a motor.

    Abraços!

    Raul Boesel

    Campeão Mundial de Endurance em 1987

    2º colocado nas 24 Horas de Le Mans em 1991

    INTRODUÇÃO

    DE COMO LE MANS ENTROU

    NA MINHA VIDA PARA NUNCA SAIR

    Era 24 de julho de 1987. Há pouco mais de 35 anos, numa madrugada de sexta para sábado, a Rede Globo anunciava na sua grade de programação para a sessão Corujão – que sucedeu em meados do ano anterior a antiga e tradicional Sessão Coruja – três filmes.

    O primeiro era Os Homens Preferem as Louras, estrelado por Marilyn Monroe, a maior sex symbol de sua geração. O segundo, Os Seus, Os Meus, Os Nossos, comédia hilária com a inesquecível Lucille Ball e Henry Fonda.

    O terceiro: 24 Horas de Le Mans. Um dos raros filmes produzidos na história – que eu tivesse conhecimento na época – tendo o automobilismo como temática, gravitando em torno da disputa do 35º Grande Prêmio de Resistência de 24 Horas – como o evento é conhecido na França. Salvo engano, aquela foi a última vez em que o filme foi exibido na TV aberta.

    Sim, tendo feito pouco mais de 16 anos, meses antes, eu já sabia o que era as 24 Horas de Le Mans em reportagens de Quatro Rodas e Auto Esporte. Não era muito, mas era o que existia. Sabia quem era um tal de Jacky Ickx, que eu lembrava da F1 e era o cara daquela corrida. E Steve McQueen como astro da película que me fez ficar acordado a madrugada toda no meu quarto, onde eu tinha uma TV de tubo, 14 polegadas, até o dia clarear e o silêncio da noite ser interrompido pelo canto dos passarinhos. E nela, assisti apaixonadamente àquele filme que me marcou pra sempre.

    Videocassete era luxo na minha casa. Ou melhor, não havia videocassete. Donde que fiquei com aquelas imagens na retina e com o sonho de um dia pisar na mesma estação de trem onde saía uma multidão incalculável vinda de todos os lugares da França e também da Europa para assistir à corrida ao vivo.

    A película produzida em 1970 e lançada no ano seguinte e as revistas foram as minhas únicas reminiscências de Le Mans até, sei lá, os anos 1990. No começo de minha trajetória, trabalhei com um camarada chamado Eduardo Regal e o escritório dele tinha a conta de divulgação da Stuttgart – que era já há pouco mais de 25 anos atrás a representante da Porsche no Brasil.

    Porsche sempre foi sinônimo de Le Mans. O filme do McQueen e a personagem dele, Michael Delaney, me ensinaram isso. Aqueles 917 K com a icônica pintura Gulf, também. E o Regal foi a Le Mans e eu fui a retaguarda dele aqui no Brasil. Foi em 1997 que a minha história com a maior prova de longa duração do mundo finalmente começou.

    E virou obsessão nas incipientes redes sociais, começando com as comunidades do finado e inesquecível Orkut, onde sabe-se lá como uma galera brasileira alucinada por Le Mans trocava informações, trazia fotos e links – piratas mesmo, me perdoem o sincericídio – para assistirmos à corrida.

    Nisso, eu já no SporTV, caiu na nossa mão o highlight da edição de 2005. Naquele ano, Tom Kristensen fez história. E o VT da corrida foi ao ar com narração do craque Sérgio Maurício e meus comentários.

    Como o mercado de TV fechada não dava muito espaço a Le Mans, seguiu-se o ‘escambo’ de links pelo Orkut até chegar o Speed Channel – que originaria o Fox Sports e até o SporTV e a Globo mandarem repórter e produtora a Le Mans. Achei sinceramente que seria eu – preferiram levar outra pessoa e, pelo que soube depois, se arrependeram. Paciência...

    Nessa época eu já levava quase uma década comentando corridas no SporTV e saí daquela emissora em novembro de 2012. Alguns meses depois, já estava no Fox Sports. Com exceção da corrida de 2013 – eu estava num evento chamado 1000 Milhas Históricas e da seguinte, que a emissora não exibiu por conta da Copa do Mundo do Brasil – a partir de 2015 até minha saída do canal, cinco anos depois, eu fiz todas as 24 Horas de Le Mans seguintes. Foram seis, ao todo.

    E cada uma com uma emoção diferente – mas nenhuma, comparada à de 2019.

    Sabe um sonho que demora anos pra se materializar mas, quando acontece, é daquele jeito que você sempre sonhou? - Com direito ao TGV, a descer na lendária gare, se hospedar no hotel ao lado da estação, respirar aquela corrida intensamente, do primeiro momento ao último, andar naquela cidade lendária, conhecer dezenas de torcedores de outros países, ser sacaneado pela gendarmerie, chorar de emoção ao se perder e se descobrir em pleno retão Les Hunaudières porque uma das rotatórias ficou para trás e você foi direcionado a se ferrar porque falou em inglês com um guardinha bufante e impaciente.

    Beber cerveja e farrear com uma horda de torcedores, tomar um porre homérico com brasileiros, tirar foto com Patrick Dempsey e tantos outros, ser papagaio de pirata de documentário sobre Fernando Alonso no Amazon Prime, chorar de emoção outras tantas vezes, andar na roda-gigante de Le Mans (mesmo morrendo de medo de altura!), trazer lembranças para os amigos, comprar miniaturas, camisetas e outros badulaques.

    Trabalhar feito um louco, dezenas de entrevistas, falar três idiomas, tentar ser compreendido misturando idiomas, fazer entrada ao vivo, pré-gravado, eu, um iPhone, um tripé, mais amigos brasileiros, vibrar de alegria com as conquistas de André Negrão, Daniel Serra, Felipe Fraga e Digo Baptista, estar ao pé do pódio, não dormir, meu Deus, parece um sonho e eu não despertei, visitar o museu antes do checkout, conversar com a lenda Doug Fehan na estação voltando a Paris, conhecer um pouco da Cidade-Luz, ver a imensidão e a altura da Torre Eiffel, voar rumo ao Brasil e pisar na redação e ganhar aplausos, cumprimentos, enquanto despejo o indefectível pacote de Toblerone numa mesa da antiga sede do Fox Sports.

    Saudades...

    E chegamos a 2023. Cem anos antes, as 24 Horas de Le Mans tinham seu início. Acredito que nem mesmo o mais otimista dentre todos os envolvidos na fundação e criação dessa corrida tinha certeza de que estaríamos por presenciar um século daquele que é, hoje, o maior desafio em circuito fechado entre homens, equipes e máquinas das mais diferentes concepções, construções, cilindradas e velocidades.

    Este livro é uma obra feita com amor, dedicação, empenho e muita pesquisa, como sempre, para o público apaixonado por automobilismo. Sem o esforço da Gulliver Editora através de seu publisher Joubert Amaral, sem o apoio da Stuttgart, sem o entusiasmo do presidente da importadora oficial Porsche – que completa 75 anos de histórias e vitórias – do Brasil, Marcel Visconde, que abraçou nosso projeto, sem o prefácio do gigantesco Raul Boesel e sem as histórias que abarcam predomínios, heróis, tristezas, vitórias, disputas épicas, tragédias, frustrações, feitos incríveis, pilotos que viraram lendas, máquinas eternas - não só desde 1923, mas inclusive muito antes da criação deste evento, nada disso teria acontecido.

    Dedico Le Mans e Suas Histórias à minha mãe, Eliana, ao meu pai, Manoel (in memoriam), ao meu filho Bruno, a todos os pilotos brasileiros que fizeram parte desse sonho e ao inesquecível Ricardo Divila, o gênio-mor das pranchetas, um ponto fora da curva, um homem avant la lettre.

    Viva Le Mans! Que venham mais outros 100 anos e mais histórias para as futuras gerações conhecerem e contarem!

    Rodrigo Mattar

    Autor de Saudosas Pequenas e Quase Heróis, YouTuber no canal A Mil Por Hora com Rodrigo Mattar e comentarista em português das transmissões do FIA WEC para o Brasil em streaming.

    CAPÍTULO 1

    1906-1923: A GESTAÇÃO DA LENDA

    A história da criação de uma lenda que atende pelo nome de 24 Horas de Le Mans deve ser contada a partir dos primórdios do automobilismo. Porque se não fosse a disputa da primeira corrida, realizada na Grã-Bretanha, num percurso de cerca de 12,7 km entre Ashton under-Lyne e Old Trafford, ainda que com carruagens, nada teria existido.

    Aquilo foi em 1867, no século dezenove. Em duas décadas, a tecnologia de motores de combustão interna nos trouxe a primeira experiência de competição com automóveis, por cortesia de um francês, Mr. Fossier, editor da revista local Le Velocipède. Entre a Ponte de Neully e o Bois de Boulogne, um parque público de Paris, aconteceu o primeiro duelo de carros movidos a gasolina, com apenas 2 km de percurso.

    No ano de 1894, outra vez na França e com o apoio de outra publicação – Le Petit Journal – tornou-se realidade aquela que é considerada, de fato, a primeira disputa automobilística da história: a prova Paris-Rouen, com pouco mais de 136 km de distância entre as duas localidades. Foram 102 os competidores inscritos, pagando uma inscrição de 10 francos para participar do evento. Em 1895, o automobilismo teve início nos EUA com uma competição realizada em Chicago no dia de Ação de Graças e no início do século vinte, os italianos estrearam a Targa Florio, uma prova de 72 km pelas estradas da Sicília.

    O pilar das 24 Horas ergue-se em 1906: naquele ano, é fundado o hoje conhecido Automobile Club de l’Ouest (ACO). Três industriais do departamento (estado) de La Sarthe – René Pellier, Georges Carel e Gustave Singher – pretendiam organizar a primeira corrida do Automóvel Clube da França (ACF) e para isso contaram com a valiosa ajuda de Georges Durand.

    Nascido em 30 de abril de 1864 em Fresnay-sur-Sarthe, Georges Durand era de uma família de tecelões, modesta e de poucas posses. Com 20 anos, foi empregado em Le Mans no departamento de estradas e pontes. Foi estenógrafo e, antes mesmo do fim do século dezenove, já respirava automobilismo. Disputou a prova Tours-Blois-Tours, porém abandonando logo no início com falha mecânica.

    Em 1900, tornou-se secretário de uma empresa de transportes e administrador da empresa de bondes de La Sarthe. No mês de outubro em 1905, após conhecer Pellier, Carel e Singher, Durand levou à frente os planos da realização de uma corrida na região de Le Mans. No dia 24 de janeiro do ano seguinte, foram lavrados os estatutos oficiais do Automobile Club de La Sarthe – hoje ACO – e em 25 e 26 de junho de 1906, acontece o primeiro Grande Prêmio do ACF, numa prova disputada por um traçado com 103 km de extensão.

    Nomeado secretário-geral do clube, função que desempenharia até o fim de sua vida, Georges Durand foi enviado por Gustave Singher, então presidente do ACO a Paris, para o Salão do Automóvel de 1922. Lá, teria um encontro que mudaria para sempre a história do esporte a motor.

    Naquele evento, Georges Durand foi apresentado ao jornalista Charles Faroux e a Émile Coquile, CEO de uma fábrica britânica de rodas para carros, motos e bicicletas – Rudge-Whitworth.

    Charles era um homem, digamos, viajado. Nasceu em 1872 e rodou o mundo após completar 28 anos. Viveu no Alasca e, quando voltou à França, tornou-se jornalista em L’Auto antes de tomar parte de uma das primeiras edições da Targa Florio, em 1908. Serviu ao exército francês na I Guerra Mundial e sobreviveu à Batalha de Verdum. Ele trabalhava em La Vie Automobile quando aconteceu o encontro com Coquile e Georges Durand.

    A ideia inicial é de Charles Faroux, não sem antes um consenso entre ele e Durand. No encontro, é oferecida inicialmente a possibilidade de realização de uma prova automobilística com oito horas de duração – quatro à noite.

    Durand indaga: Por que não 24 Horas?

    Isso seria perfeito, respondeu Faroux, com um alerta. Você nunca terá as autorizações necessárias.

    O secretário-geral do ACO deu de ombros. Não importa, eu faço disso meu negócio.

    Onde Émile Coquile entra nesta história? Simples: garantindo o primeiro prêmio em dinheiro para a disputa. O CEO da Rudge-Whitworth entrou com 100 mil francos – francos de 1923, que com a inflação da moeda ao longo de cem anos faria com que esse valor fosse próximo de 11,5 milhões de euros, mais de R$ 60 milhões pela moeda corrente brasileira.

    De quebra, o patrocinador doou também um troféu: a Copa Rudge-Whitworth, ofertada em caráter trienal. A ideia dessa competição paralela era bastante peculiar: o vencedor seria o fabricante cujo carro excedesse a distância-alvo preestabelecida. Por exemplo: se um carro tivesse 100 voltas como objetivo e superasse essa margem em tantas voltas quantas pudesse percorrer, essa margem determinaria os melhores classificados em busca do troféu.

    Faroux e Durand se debruçaram para bolar um regulamento técnico que premiasse a resistência de carros e pilotos, e que abraçasse a ideia de que o automobilismo permitiria inovações a ponto de encorajar o desenvolvimento de modelos de passeio e de competição.

    E assim nasceu a primeira edição das 24 Horas de Le Mans, cuja disputa inaugural foi marcada para 26 e 27 de maio de 1923.

    O regulamento técnico contemplou cinco classes de acordo com a faixa de cilindrada entre 1,1 litro e 6,5 litros de capacidade cúbica – com veículos apenas de série. Na divisão menor, podiam ser inscritos modelos de dois lugares, com produção mínima de 30 unidades – os demais eram veículos de quatro lugares. Todos os competidores largariam com lastro de peso de 60 kg em substituição ao passageiro e um máximo de dois pilotos, que guiariam em revezamento, foi permitido. Reabastecimentos de água, óleo e combustível eram necessários desde que os motores fossem desligados nesse procedimento e acionados posteriormente com sistema interno de partida.

    Eram também previstos itens-padrão como as prosaicas buzinas, capota (em caso de veículos conversíveis) além de estribos, faróis e retrovisores – introduzidos por Ray Harroun nas 500 Milhas de Indianápolis de 1911. Sem se atentar para possíveis chuvas, não era obrigatório o uso de limpadores de para-brisa.

    Outra regra adotada na primeira edição era o cumprimento proporcional de uma distância mínima a se atingir nos turnos intermediários de seis, 12 e 18h, a fim de evitar uma desqualificação por deficiência técnica. Proporcionalmente à cilindrada mecânica dos diferentes carros inscritos, procedeu-se o uso da tabela abaixo, numa certa leniência de Faroux e Durand na elaboração do regulamento técnico.

    Curiosamente, a primeira edição das 24 Horas de Le Mans foi realizada no final de semana em que os relógios da França foram adiantados em 1h por conta da adoção do horário de verão. Com partida prevista às 16h locais – tradição que invariavelmente pouco mudou ao longo de um século – a corrida inaugural terminaria às 17h de domingo.

    O primeiro traçado desenhado para a corrida tinha extensão de 17,262 km e era praticamente o mesmo que sediara o GP da França de 1921. Uma das regiões suprimidas com o passar dos anos consta do primeiro desenho: é a de Pontileue, considerada na época uma das mais difíceis, estreitas e perigosas junto às estradas rurais de Mulsanne e Arnage.

    Essas estradas não eram totalmente pavimentadas. A superfície era um misto de cascalho, sujeira e alcatrão – este último adotado junto à brita para compor o piso do Indianapolis Motor Speedway, que desde 1907 fazia corridas num circuito oval com extensão de 2,5 milhas nos EUA e depois pavimentado com tijolos.

    As instalações não eram permanentes e tampouco confortáveis. Os boxes eram de madeira e cobertos por lonas. Foram concebidas uma torre de controle e duas arquibancadas, também de madeira, com 44 metros de extensão – bem como uma passarela – a lendária Ponte Dunlop, logo após a linha de largada.

    Apesar da incipiência da estrutura, o ACO ofereceu entretenimento ao público durante o evento. Foram contratados grupos de jazz e o Bar-Buffet era de responsabilidade do chef Rigollet, de Champs-Élysées, na capital Paris. Haveria também queima de fogos de artifício.

    Além dos shows e da música ambiente, o público – se quisesse – poderia ouvir rádios que transmitiam música clássica direto da Torre Eiffel. Havia geradores de energia para abastecer a área de convivência e foi confeccionado um placar onde eram mostradas as posições dos carros, voltas completadas e a chamada ‘distância-alvo’ da Copa Rudge-Whitworth. Nos trechos mais críticos do circuito – o Hairpin Pontileue e as curvas e Arnage e Mulsanne, os organizadores disponibilizaram holofotes de acetileno para melhor visibilidade dos pilotos naqueles pontos, especialmente no período sem luz natural.

    O ACO recebeu um total de 37 pedidos de inscrição para a primeira edição das 24 Horas de Le Mans – baixando para 35 e posteriormente 33, com dois Avions Voisin não se apresentando como o previsto. Com os veículos obrigatoriamente ornados nas cores que representavam seus países, a maioria era de azuis, a cor da França: eram 30 participantes locais, contra um britânico (Bentley) pintado de verde e dois da Bélgica, modelos Excelsior pintados de amarelo.

    Entre os construtores franceses – dezesseis ao todo – despontavam a Lorraine-Dietrich, que concebera as primeiras locomotivas em 1884, passando em 1896 aos carros, além dos modelos Bugatti, Delage e Chenard & Walcker e outros de menor porte. Quatro fabricantes de pneus se envolveram na disputa: Michelin, Englebert, Rapson e Dunlop. A maioria dos 18 construtores presentes tinha consciência de que um bom resultado numa corrida feito aquela traria formidável repercussão publicitária.

    Não houve treinos classificatórios: a ordem de largada para a disputa inaugural atendeu à numeração das inscrições distribuída pelo ACO, com os carros dispostos dois a dois e motores desligados. Às 16h locais de 26 de maio de 1923, num sábado de fortes ventos, chuva e frio, Mr. Carpé, o chefe da cronometragem do clube organizador, baixou a bandeira pela primeira vez na história da corrida de Resistência.

    Apesar do mau tempo e da chuva que caiu no traçado por quase quatro horas, ficou claro para os presentes que os melhores carros eram os dois Chenard & Walcker, o único Bentley presente, um dos dois Excelsior belgas e um dos Bignan de 2 litros, que também despontou com força no primeiro trecho da disputa.

    A chuva transformou as estradas em lamaçais, os pilotos sofreram e os sistemas elétricos dos carros entraram em pane: o modelo SARA de François Piazzoli e André Marandet foi o primeiro a desistir da disputa após uma quebra de suspensão decorrente de uma saída de pista, por falta de visibilidade. E somente mais dois abandonos seriam registrados – o Berliet de Roland Jacquot e Georges Ribali e o Lorraine-Dietrich de Henri Stoffel/Rene Labouchère foram os outros únicos desistentes.

    Com a pista secando perto do final, o único Bentley alinhado para o Capitão John Duff e seu parceiro Frank Clement, após uma falha técnica, virou a melhor volta da corrida com o tempo de 9min39seg – média de 107,328 km/h. O carro com o dorsal 9 alinhado para André Lagache e René Leonard, escudado pelo 10 de Christian Auvergne e Raoul Bachmann, comandou a corrida em grande parte do percurso e veio a dobradinha dos modelos Chenard & Walcker Sport com um total de 128 voltas percorridas em 2.209,536 km – quatro à frente do carro que chegou em segundo, com a média de 92,064 km/h. O Bignan 2 litros de Paul Gros e do barão belga Bernard de Tornaco completou os três primeiros colocados.

    A prova do acerto da fórmula da inédita corrida de Resistência é o formidável índice técnico: 90% dos carros terminaram. Pela Copa Rudge-Whitworth, o modelo Salmson alinhado para George Casse e Lucien Desvaux levou a melhor: tinham 52 voltas como número-alvo, só que a dupla percorreu 46 giros a mais e terminou em 12º lugar, com 1.691,676 km, equivalentes 88,5% a mais que o total que o modelo com motor de até 1,1 litro e peso mínimo de 400 kg deveria percorrer na primeira disputa das 24 Horas de Le Mans.

    A história da lenda começava ali.

    CAPÍTULO 2

    WOOLF BABE BARNATO:

    O PRIMEIRO TRICAMPEÃO

    Numa corrida feito as 24 Horas de Le Mans, ídolos e ícones nascem e se eternizam. Sejam carros, personagens e pilotos, não há ao longo de 100 anos quem não mereça deixar de ser lembrado por seus feitos e resultados alcançados em La Sarthe.

    Esquecer de Woolf Babe Barnato seria, possivelmente, negar a história de Le Mans.

    E também da Bentley.

    Em 1924, Capitão John Duff e Frank Clement conquistam a vitória que não alcançaram na corrida inaugural, na primeira edição que registrou a primeira grande inovação do evento – um sistema de luzes para auxiliar os pilotos em meio ao tráfego de 41 carros, também um plantel melhor que a primeira prova francesa. Com o modelo 3 Litre Sport, a dupla oferta às criações de W.O. Bentley a primeira conquista – num país historicamente rival secular dos habitantes do lado oposto do Canal da Mancha. Como curiosidade, o regulamento daquele ano obrigou os carros inscritos sem capota a percorrer um mínimo de 20 voltas com o cockpit fechado – isso após largarem abertos, parando ao fim de cinco voltas para o devido fechamento.

    A Copa Rudge-Whitworth deixa de ser disputada em formato trienal a partir de 1925: no ano anterior, iniciou-se uma disputa bienal, com o mesmo regulamento que previa a premiação ao competidor que atingisse um número de voltas maior que o estimado. Na única edição trienal, venceu a Chenard & Walcker graças a Robert Sénechal e Albéric Loqueheux, tendo sido uma das três únicas parcerias presentes nas três primeiras edições do evento em La Sarthe.

    Nessa ocasião, estreou o primeiro modelo construído nos EUA: o Chrysler Six 70 inscrito para Henri Stoffel e Lucien Desvaux, que acabaria não classificado por percorrer um número insuficiente de voltas – faltaram apenas duas...

    Após a edição em que o Lorraine-Dietrich de Robert Bloch e André Rossignol estabeleceu o novo recorde de distância percorrida com 2.552,414 km e 108 voltas percorridas, à média

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1