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Dois Mundos - A Crônica do Andarilho dos Sonhos - Livro II
Dois Mundos - A Crônica do Andarilho dos Sonhos - Livro II
Dois Mundos - A Crônica do Andarilho dos Sonhos - Livro II
E-book782 páginas9 horas

Dois Mundos - A Crônica do Andarilho dos Sonhos - Livro II

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Sobre este e-book

Depois de enfrentar o perigoso assassino Corvo, Kalian e Inara encontram-se exaustos, feridos e perdidos no Deserto Arruinado. Com seu guia desacordado e à beira da morte, os dois precisam pensar rapidamente para tentar solucionar essa situação antes que os perigos e a voracidade das areias os consumam.
Perto dali, um mago solitário vagueia os ermos, e um reencontro que se aproxima depressa promete trazer várias revelações, assim como agitar um passado reprimido, mas nunca esquecido.
Enquanto isso, do outro lado das luas, um grande poder tece uma trama intrincada e perigosa sem que nenhum deles suspeite, mas que acabará por envolver a todos em algo muito maior do que aquilo que um simples rapaz, de uma aldeia isolada no canto do Grande Deserto, poderia um dia imaginar.
Nesse novo capitulo de mais de 470 páginas você irá mergulhar em uma fantasia imersiva, cheia de reviravoltas e que promete não te deixar respirar até o final. Confira Dois mundos, já disponível
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de ago. de 2023
ISBN9788595941557
Dois Mundos - A Crônica do Andarilho dos Sonhos - Livro II

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    Dois Mundos - A Crônica do Andarilho dos Sonhos - Livro II - E. Krauze

    Dedico este livro a todos os sonhadores e a ti,

    que faz dos sonhos realidade.

    Prólogo:

    A felicidade refletida na superfície da água

    As águas, quase sempre imóveis, do lago prateado turvaram-se e rodopiaram de repente, revelando lampejos de imagens que apenas o pequeno ser esverdeado, sentado sobre uma grande rocha, era capaz de discernir. A criaturinha encontrava-se tão imóvel quanto se era possível estar e, para um observador qualquer, provavelmente pareceria não mais do que uma planta; um tronco retorcido e estranho que crescera por cima das pedras e o tempo cobrira com musgo e líquens, talvez, mas não mais do que uma planta.

    O velho, no entanto, sabia que não era assim.

    — E então, como está se sentindo? — indagou ele ao ser vegetal, aproximando-se sem pressa, arrastando os pés no solo relvado e parando a poucos passos do lago. — Lembrou-se de algo?

    A criatura diminuta permaneceu imóvel ante as perguntas, sem sequer piscar os olhinhos brilhantes em sua contemplação silenciosa do espelho, agora plácido, de água. Depois de vários instantes de quietude, quando o velho já desistira de receber uma resposta, a criatura virou devagar a cabeça em sua direção e disse:

    — Este nunca esteve tão bem. Este agora se lembrou daquilo que importa, ancião: seu dever como guardião. Tal como desejou a velha senhora.

    O velho mirou a criatura com irritação por alguns instantes, mas, além de indiferença, não obteve nenhuma reação do pequeno ser. Com um suspiro exasperado, sentou-se na relva.

    — Conveniente para você, não é mesmo, que logo quando eu descubro a sua sabotagem, sua memória suma de repente. Talvez conveniente demais! — disse ele, em tom de acusação. A criaturinha nem piscou e o velho suspirou outra vez, ainda mais frustrado. — Não acredito que vou dizer isto, mas acho que preferia a sua personalidade sádica e tagarela a esta nova.

    A criaturinha balançou a cabeça, em sinal de reprovação.

    — Este não possui nenhuma vontade além do cumprimento de seu dever. Personalidade é uma palavra humana, que descreve algo humano. E, humano, este não é. Se o antigo eu deste que lhe fala se perdeu ao ponto de inventar uma personalidade para si, o lago lhe fez um favor ao cumprir seu dever e apagar tudo aquilo que não possuía um porquê de existir.

    — RÁ! — berrou o velho com indignação. — O lago não tem o poder de apagar memórias, e você sabe muito bem disso! Em algum lugar, escondido no fundo dessa sua cabeça fibrosa e cheia de resina, o verdadeiro eu deste que me fala ainda existe.

    A criaturinha piscou os olhinhos várias vezes antes de responder:

    — Eu… Este sou… Este é o verdadeiro eu.

    — Sim, sim, sim… Que seja! — concordou o velho com impaciência, dando de ombros. — O que o lago tem mostrado nos últimos dias?

    A mudança repentina de assunto pareceu surpreender o ser vegetal e ele respondeu sem pensar:

    — A lua.

    — Qual delas? — perguntou o velho, franzindo o cenho.

    — A vermelha, e sonhos.

    O ancião arregalou os olhos.

    — Tem certeza de que viu a lua vermelha?

    — Este ainda sabe reconhecer as cores, ancião.

    — Que tipo de sonhos o lago mostrou? — emendou o velho, sem se incomodar com a resposta ácida da criatura.

    — Sonhos novos, mas também sonhos antigos… E outro, ainda. Um que sempre se repete.

    — O sonhador?

    O tom do ancião mudara por completo. Não havia mais resquícios de impaciência ou deboche; pelo contrário, ao indagar, pela primeira vez sua voz soou velha e cansada. O ser vegetal mirou-o como se o tivesse acabado de notar e então assentiu.

    — Mas é um sonho reprimido, incompleto — respondeu a pequena criatura. — O lago o afasta.

    O velho permaneceu calado por um instante, com a boca entreaberta, como se pensasse.

    — A pedra, é claro — resmungou ele. — Pode levar anos, mas, se você foi capaz de detectá-lo, nem ela será capaz de contê-lo para sempre.

    A criaturinha mirou-o confusa, sem compreender seus resmungos e o silêncio caiu outra vez sobre a floresta e o lago. Um momento depois, o velho sorriu.

    — Ele virá até mim! Ele virá até nós, guardião! — bradou ele em júbilo, sem tentar conter a gargalhada que veio a seguir. Aquela era uma risada quente e repleta de alegria, que vinha do fundo da garganta e fazia roncar o peito. Sem saber exatamente o porquê, o guardião também sorriu.

    As gargalhadas do velho ecoaram longe na floresta, mas isso não era um problema; afinal, não havia ninguém para ouvi-los. O ancião riu por tanto tempo que sua barriga começou a doer e ele então deitou-se à beira do lago, esticando as pernas e os braços e apreciando uma sensação de leveza que havia muito esquecera que existia.

    — Finalmente, guardião! Ainda há esperança para mim! — gritou ele, tornando a sorrir.

    Vendo o contentamento do outro, por algum motivo, a criaturinha também começou a rir. Ela não sabia de onde o riso vinha e, por um momento, repreendeu a si mesma por permitir-se sentir daquela maneira. Mas aquilo que sentia brotar de seu interior era algo tão grande que, mesmo depois de toda a prática adquirida ao longo dos incontáveis milênios em que desempenhara a sua função, simplesmente não conseguiu se conter. Ela sentia como se flutuasse e algo no fundo de sua mente pareceu dançar ao ritmo de uma música que apenas ela podia ouvir.

    Sim, agora se lembrava. Aquela era a mesma sensação de estar na presença de sua senhora. Como pudera esquecer tal emoção? A criaturinha olhou para o lago e enxergou o seu reflexo e o do ancião, ambos rindo como idiotas. Aquilo tinha um nome: felicidade.

    Sem que ela sequer percebesse, parte dessa felicidade acabou escapando através do lago e, naquela noite, enquanto os dois riam, apenas sonhos tranquilos puderam ser sonhados.

    Capítulo 1

    O que vem com a chuva

    As lágrimas do garotinho que abraçava as próprias pernas, encolhido na viela enlameada, perdiam-se na chuvarada que desabava sobre a grande cidade de Eris. De repente, as gotas pesadas que caíam nele cessaram, e então o pequeno ergueu a cabeça. Logo acima, o sorriso afável de uma bela moça carregando um guarda-chuva o esperava.

    — O que um mocinho desse tamanho está fazendo aqui fora neste temporal? — indagou ela, com tom de voz caloroso. A criança não sorriu, nem esboçou resposta, apenas continuou a mirá-la. — Por acaso está perdido? Certamente não mora nas ruas; os garotinhos de rua são espertos demais para se deixarem apanhar por uma chuva tão fria!

    Outra vez a criança não respondeu, apenas continuou a fitá-la com um olhar perdido.

    — Muito bem, querido… — disse a mulher, parecendo se apiedar. — Venha comigo. Eu moro aqui perto, sabe? Pode passar esta noite em minha casa, perto da lareira. Claro que também vou preparar algo para que possa comer…

    A menção de comida conseguiu colocar uma expressão no rosto apático da criança. Uma expressão ávida, desesperada.

    — Está com fome, não é mesmo? — perguntou a mulher, ainda sorrindo. — Ah, sim… conheço muito bem essa cara. Venha comigo, querido, vamos. Vamos sair desta chuva.

    O garotinho aceitou a mão da mulher e levantou-se, e juntos os dois saíram da viela e começaram a andar pela rua estreita e deserta. Não caminharam muito, parando diante de uma porta verde de madeira. A mulher puxou um molho de chaves de dentro das vestes e destrancou-a, entrando e mantendo-a aberta para que a criança a seguisse.

    O garotinho entrou e ela trancou a casa, mas não sem antes olhar para os dois lados da rua para garantir que ninguém os vira. Da pequena saleta de entrada, a mulher levou a criança até diante de uma lareira que crepitava alegre, como que saudando os recém-chegados com seu calor e aconchego.

    O menino ajoelhou-se diante do fogo e estendeu os braços trêmulos em sua direção, buscando livrar-se do frio trazido pela chuva.

    — Ora, pobrezinho! — disse a linda mulher, fitando a criança com um brilho ávido no olhar. — Aqueça-se um pouco, pequenino. A titia vai preparar algo especial para você! Uma bebida quentinha, que tal? Antes do prato principal!

    Ela deu as costas à criança, permitindo seu sorriso aumentar, e afastou-se da lareira enquanto falava, dirigindo-se até uma prateleira do outro lado do cômodo. O móvel em si parecia bastante comum e revelou, assim que ela abriu uma das tantas portinhas, apenas alguns utensílios empilhados. Quando a mulher esticou o braço na direção de uma xícara, no entanto, sua mão atravessou o objeto, como se esse simplesmente não existisse. Ao invés da peça de louça, ela agarrou um pequeno frasquinho esverdeado, saído de lugar nenhum.

    Despejando o líquido dentro de um copo, a mulher virou-se outra vez na direção da criança e então estacou onde estava, sentindo a nuca se arrepiar. O pequeno a fitava com um sorriso de orelha a orelha. Um sorriso assustador.

    — O que é isso, moça? — perguntou a criança, falando pela primeira vez, em uma voz doce e inocente, apontando para o copo com o líquido esverdeado. — É um suco?

    A impressão momentânea de perigo que a mulher sentira se esvaiu. É apenas uma criança, sua idiota!, repreendeu-se ela em seus pensamentos, voltando a sorrir amavelmente.

    — Isso, meu querido! Isso mesmo! É um suco delicioso que a titia preparou para você! Beba e verá que o frio logo irá embora!

    A mulher aproximou-se e estendeu o copo para a criança, que o agarrou com as mãozinhas pequeninas e, ainda sorrindo, o bebeu. Conforme o garotinho sorvia o líquido, o sorriso da mulher se ampliava.

    — Isso, beba tudo, meu menininho. Beba tudinho.

    — Ahh! — exclamou a criança, satisfeita depois de terminar de beber. — Obrigado, moça… Posso fazer uma pergunta?

    — É claro! O que seria? — respondeu ela, mirando-o ansiosa.

    — É assim que você sempre faz?

    — Como, querido? Acho que não entendi — disse ela, sem parar de sorrir. Alucinações àquele ponto não seriam fora do comum.

    — Eu fiquei curioso para saber se é assim que você sempre faz — repetiu a criança, voltando a abrir um largo sorriso que assustou outra vez a mulher. — Essa sua misturinha aí: éter, vaermina, papoula e sei lá mais o quê. É assim que sempre faz?

    A mulher cambaleou um passo para trás.

    — Como? Você… Era para você estar…

    — Incapacitado, sim. Mas mais do que isso, não? Essa substância é também um preparatório. Um preparatório para um ritual, não? — A mulher afastou-se ainda mais, o que fez a criança gargalhar. — Bom, é uma pena… — O menininho deu de ombros. — Uma dose tão fraca como essa não vai me afetar.

    — Quem é você? — indagou a mulher, que já se encontrava contra a parede. Nos últimos instantes, uma camada de essência tão espessa crescera no entorno da criança que sua única escolha fora se afastar.

    — Ah, não se faça de tola, Nefferig. Você sabe muito bem quem sou… — disse a criança enquanto sua forma diminuta transformava-se em uma massa amorfa e crescia.

    Em um mero instante, diante da mulher amedrontada surgiu um homem alto, que sacudiu os cabelos cor de palha, como que se assentando em sua nova forma. O homem abriu um largo sorriso de dentes brancos como o leite e seus olhos de esmeralda emoldurados por profundas olheiras pareceram cintilar ao mirar o terror que se apossou da mulher.

    — C-corvo! — proferiu ela, como se o nome pesasse em sua garganta.

    O assassino apenas abriu um sorriso largo, fazendo a mulher grudar-se ainda mais contra a parede.

    — Como você me encontrou? Como sabe meu nome? O que eu lhe fiz? O que quer comigo?

    Corvo riu debochado.

    — Bruxos são fáceis de se encontrar — disse ele com simplicidade, sacando seu punhal. A mulher encarou a lâmina e engoliu em seco. — E você, minha querida, é especialmente desleixada. Eris é uma cidade grande, mas, ainda assim, as notícias correm… Mês passado, o filho de um padeiro. No anterior, um jovem entregador de jornais. Um pouco antes disso… Bom, a lista é grande, mas você a conhece melhor do que eu.

    O assassino deu um passo adiante e a mulher berrou:

    — Sim, sim, sim! Fui eu, tudo bem? Fui eu! Qual é o problema? Virou um defensor dos infantes agora?

    — Hum… Não exatamente — disse ele, aproximando-se ainda mais. — Mas, agora que mencionou, estou de fato curioso. Qual é a questão com as crianças? Com a sua aparência, atrair adultos não seria nada difícil.

    A expressão da mulher crispou-se com nojo.

    — Ah, entendo — disse o assassino ao mirá-la. — É uma questão de preferência então. Diga-me, o que você faz com seus bonequinhos depois que a mistura faz efeito? Eu conheci um bruxo que adorava mocinhas. Antes de drená-las, ele as deflorava. Mas esse não gostava de sedá-las… Ele as preferia despertas enquanto as violava. Você gosta da carne tenra, não é mesmo?

    A mulher lançou um olhar desesperado na direção da janela, na qual a chuva tamborilava.

    — Tente — provocou o assassino, captando seu olhar. — Vai ser divertido caçá-la.

    — Por que você está fazendo isso? — indagou a mulher, levando a mão discretamente ao bolso. — Eu e você somos iguais!

    O assassino gargalhou e avançou, enquanto a mulher sacava uma pequena orbe transparente do interior das vestes. Com um gesto cadenciado que mais pareceu um passo de dança, ela fez com que a essência acinzentada de Corvo deslizasse para dentro do objeto translúcido, que imediatamente enegreceu, assim como os olhos da bruxa.

    Por um momento, ela sorriu com a sensação extasiante, muito mais forte e viciante do que qualquer alucinógeno, da força vital de outro ser adicionando-se à sua. E então vieram as vozes. Dezenas, centenas, milhares! Todas elas gritando em coro em sua mente, em uma cacofonia ensurdecedora que espremia e martelava seu cérebro dentro do crânio.

    A mulher cambaleou, impotente, levando as mãos à cabeça, mas Corvo não a deixou cair ao chão, agarrando-a pelos cabelos.

    — É aí que você se engana, bruxinha — sussurrou ele em seu ouvido enquanto deslizava a lâmina do punhal por seu pescoço, saboreando o momento em que mais uma existência se juntava à sua. — Não existe ninguém como eu.

    Capítulo 2

    Amarga derrota

    A primeira coisa que Kalian sentiu ao abrir as pálpebras pesadas foi dor. A princípio, ela começou fraca. Veio pelas extremidades, pelas pontas dos dedos dos pés e das mãos. Mas então cresceu e avançou pelos braços, pernas, coxas, abdome e peito, atingindo pontos do pescoço e da parte posterior da cabeça, entalando-se em sua garganta, fazendo-o gemer e engasgar. Seus músculos se retorciam em câimbras lancinantes, como um tecido esticado e prestes a se romper, enquanto seus ossos pareciam dobrar-se uns contra os outros, punindo-o pelo esforço exacerbado pelo qual os fizera passar.

    Suando frio e respirando de maneira ofegante, lutou contra a náusea e o peso escuro em sua mente que ameaçava tragá-lo de volta para os braços da inconsciência a qualquer instante. Inara, conseguiu pensar ele. Preciso ajudar Inara! Depois do que lhe pareceu um tempo infindável tentando se levantar, sentiu que seus membros se entorpeciam e seus sentidos começaram a falhar, levando a dor embora consigo. Tentou de todas as formas possíveis não tornar a adormecer e, em seu desespero, mordeu a língua com força, mas não sentiu sequer uma leve pontada de dor.

    Sem conseguir reunir mais forças para lutar contra a exaustão, seu corpo triunfou sobre sua vontade e seus sentidos apagaram-se por completo.

    ***

    Quando tornou a acordar, demorou alguns instantes para entender onde estava. Conseguiu sentar-se e observou a claridade do dia lá fora infiltrar-se pela entrada colapsada do templo, iluminando a areia que deslizara com a queda da parede e a parte que restara da entrada. Na boca, sentiu o gosto de sangue e a língua inchada e sensível da mordida que ele aplicara na tentativa de se manter acordado. Tentou levantar-se, mas a catacumba girou ao seu redor. Virou-se para o lado sentindo ânsia de vomitar, mas apenas uma pequena quantidade de água amarga deixou sua boca. Não havia nada em seu estômago para expulsar.

    Não fazia ideia de quanto tempo se passara desde a luta contra Corvo e sua mente ainda estava confusa demais para que pudesse pensar sobre isso com clareza, mas sabia que não podia se dar ao luxo de adormecer outra vez. Precisava se mover.

    Sentindo-se tonto apenas com o pensamento de colocar-se em pé, Kalian fechou os olhos e fez o possível para concentrar-se em sua essência. Por um instante amedrontador, nada aconteceu. Ele procurou através de sua mente pela parte onde a energia se encontrava, mas era como se ela simplesmente não existisse. Uma onda de desespero trouxe a náusea de volta para sua garganta e por pouco não estilhaçou sua frágil concentração. Respirando profundamente várias vezes, conseguiu acalmar seu estômago e concentrar-se para tentar de novo. Finalmente, nos recônditos de seu ser, conseguiu encontrar a parte de sua consciência responsável por controlar sua essência. No entanto, era nítido que algo não estava certo.

    Da maneira que ele sentia sua energia, era como se ela houvesse encolhido, recolhendo-se para dentro de si mesmo. Ao mesmo tempo, ela parecia mais selvagem, como uma fera acuada e ferida. Sem saber exatamente o motivo, Kalian sentiu medo ao aproximar-se dela. Assim que atingiu a essência, foi recebido por uma resistência inesperada. Percebeu, desconcertado, que a energia o rechaçava. Concentrando-se ainda mais, ele forçou sua entrada através da barreira e sentiu uma dor aguda despontar no topo da cabeça assim que o fez. Por um momento, a dor o cegou, e então a tão conhecida sensação de distanciamento o invadiu, afastando o cansaço de seu corpo.

    Kalian não compreendia muito bem o que acabara de acontecer e preferiu não se aventurar pensando demais sobre algo que podia apenas especular. A única coisa da qual ele tinha certeza, pois sentia em seu corpo, era que pagaria caro mais tarde por se forçar a usar a essência em um estado tão debilitado. Aquele, porém, não era o momento de ponderar, mas de agir.

    Pôs-se de pé em um salto e caminhou depressa na direção de Inara. A maga encontrava-se estirada no chão da maneira como ele a deixara. Suas roupas, logo abaixo dos seios, haviam sido queimadas pela magia que ela recebera em seu lugar, e a pele abaixo das camadas de tecido chamuscadas encontrava-se calcinada por uma mancha irregular e escura. Kalian afastou as roupas de cima da ferida, umedeceu um pano com magia e, em seguida, começou a aplicar a água na queimadura.

    As bordas estavam amareladas e repletas de bolhas, e ele teve o cuidado de não as estourar. O machucado lembrou-o de sua mão queimada pelas brasas, exceto que muito pior. Enquanto o limpava com cuidado, a maga respirou de maneira entrecortada e abriu os olhos.

    — Corvo…!

    Foi a primeira coisa que ela disse, mirando Kalian fracamente nos olhos. Em seguida, ela tentou levantar-se e então gritou, berrando de dor quando as bolhas de sua queimadura se romperam.

    — Inara! Fique parada! Não se mexa! — disse Kalian, segurando-a com cuidado. — Está tudo bem agora. Ele fugiu.

    A maga parou de se mexer e deitou-se contra o chão com um gemido. Suas lágrimas criaram trilhas através de seu rosto sujo.

    — Eu… eu… — balbuciou ela com fraqueza.

    — Está tudo bem. Fique quietinha, certo? Você está ferida. Deixe-me cuidar de você.

    A voz de Kalian soou calma, mas por dentro ele era um turbilhão. A maga olhou em seus olhos e ele forçou um sorriso. Inara fungou e assentiu, e ele recomeçou a limpar a ferida, lutando para controlar as mãos trêmulas. Os dois continuaram calados durante todo o processo. Kalian limpou o ferimento e o umedeceu da melhor maneira possível. Não tinha remédios que pudesse usar ou unguentos que pudesse aplicar, então podia apenas tentar refrescar ao máximo a região da queimadura. Assim que terminou, sentou-se ao lado da maga.

    — Eu falhei — murmurou ela, olhando para o teto distante. Novas lágrimas formaram-se no canto de seus olhos. — Outra vez, falhei. Não consegui fazer nada. Eu… Eu sou inú…

    — Não fale isso — cortou-a Kalian.

    A maga olhou em sua direção.

    — Você me salvou — disse com simplicidade — A verdade é que você tem me salvado desde o dia em que todos morreram. Desde o dia em que eu… Em que eu destruí a aldeia. Primeiro você me salvou de mim mesmo, depois me salvou das minhas burrices e, aos poucos, você tem me salvado da minha dor. Então, se puder evitar, não fique por aí dizendo que falhou. E não ouse dizer que é inútil. Você é tudo o que eu tenho agora. Não tem nada de errado se eu tiver que te salvar de vez em quando também.

    Sua voz soou surpreendentemente calma enquanto falava. Um instante depois, compreendeu a razão: não eram apenas palavras ditas para fazer Inara se sentir melhor, aquilo era o que sentia de verdade. A maga mirou-o sem dizer nada, com a boca entreaberta.

    — Obrigada — sussurrou ela, depois de algum tempo.

    Kalian deu de ombros e sorriu, um sorriso fraco, mas verdadeiro.

    — Eu fiz o que pude sobre o seu ferimento, mas seria bom se você conseguisse usar sua magia nele. Acha que consegue?

    — Talvez — respondeu ela, incerta. Inara franziu o cenho e virou a cabeça de um lado para o outro, como que procurando algo. — Amon…? Onde ele está? — indagou.

    — Vivo, o que é muito mais do que ele merece — respondeu Kalian, olhando com raiva para onde o rapaz jazia caído. Dali, conseguia ver que ele ainda respirava. — Vou ver como ele está.

    Inara assentiu.

    Com um suspiro resignado, Kalian levantou-se e andou até Amon. Com um breve olhar, constatou que o rapaz não estava nada bem. Sua pele encontrava-se ensopada de suor e ele tremia de leve enquanto ressonava pesado. Os curativos apressados que fizera em seu braço permaneciam lá, mas estavam cobertos de sangue seco que já começava a exalar um cheiro pungente.

    Suspirando outra vez, colocou-se ao trabalho e começou a tratar dos ferimentos do outro. Assim que removeu as ataduras, Amon gemeu, mas não acordou.

    — Como ele está? — indagou Inara, ainda deitada.

    O pus acumulara-se ao longo do comprimento do corte e a aparência da ferida era terrível.

    — Nada bem. Vou limpar a ferida, mas ele perdeu muito sangue… — O som de movimento o fez olhar na direção da maga.

    Com esforço, Inara pôs-se em pé, retorcendo a face em um esgar de dor. Kalian fez menção de ir em sua direção, mas, antes que pudesse se mover, a maga cobriu-se com sua essência avermelhada. Com gestos rápidos da mão, uma luz esverdeada surgiu enquanto ela tocava a queimadura em sua barriga. Instantes depois, a luz desapareceu e ela andou em sua direção. A marca enegrecida continuava lá, mas a maga já não estava mais tão vacilante.

    — Deixe-me ver — pediu ela, agachando-se ao seu lado.

    Kalian moveu-se para dar espaço a ela. Inara limpou a ferida fazendo caretas e murmurando coisas a respeito de tétanos e infecções. Depois de satisfeita com a limpeza, ela disse:

    — Segure-o, não sei se ele vai acordar, mas, se acordar e se debater, segure-o.

    Ele não questionou, apenas assentiu e agarrou-o com firmeza. Inara segurou o braço ferido de Amon contra o chão com seu joelho e, com a mão esquerda, ela realizou uma série de gestos. De repente, Kalian sentiu o ambiente se tornar mais frio e, então, com um estalo, uma pequena fagulha saltou do topo do dedo indicador estendido da maga. Do mesmo lugar de onde a fagulha saltara, logo uma chama irrompeu e dançou. A maga concentrou a chama até o fogo tornar-se azul e aproximou-o do braço do rapaz. Compreendendo o que ela faria, Kalian segurou-o com mais força.

    O cheiro da pele queimada inundou a catacumba. O estômago de Kalian embrulhou-se, mas ele manteve-se firme. Amon retorceu-se e gemeu, mas não se debateu e tampouco acordou. Assim que terminou de fechar a ferida com o fogo, a maga extinguiu a chama e fez aparecer a mesma luz esverdeada que usara em si mesma.

    — Isso vai curá-lo? — indagou Kalian.

    — Não — respondeu ela. — Magias naturais nunca foram minha especialidade. Não consigo curar feridas, apenas anestesiar a dor e direcionar as energias do corpo para o tratamento. Mas ele está muito fraco, não vai ser o suficiente.

    Kalian olhou para o rapaz estirado e lembrou-se do momento em que Corvo aparecera diante deles. Cerrou os dentes com força, sentindo outra vez a impotência que o dominara ao se ver pego na armadilha do assassino. Se eles se encontravam naquela situação, era por culpa de Amon Damek. Caso o rapaz não resistisse e acabasse morrendo, não se lamentaria por ele.

    — Só há uma coisa que podemos fazer para salvá-lo — disse Inara, interrompendo seus pensamentos. — Precisamos levá-lo o mais rápido possível até a embaixada.

    Capítulo 3

    Travessia

    — O quê? Você quer atravessar o deserto nesse estado?! Por conta dele?! — indagou Kalian, incrédulo, apontando em um rompante para Amon.

    Inara assentiu.

    — Eu estou bem o suficiente para andar e, se ficarmos aqui, ele não sobreviverá.

    — Ele nos traiu, Inara. Nos trouxe pra uma armadilha. Nós quase morremos! Você quase morreu…!

    — Eu sei de tudo isso, mas já há algum tempo prometi a mim mesma não deixar que Corvo ceife vidas que eu poderia salvar, mesmo que essa pessoa tenha me traído de livre e espontânea vontade, o que não acredito que tenha sido o caso.

    — Você acha que Corvo o obrigou a obedecer?! — indagou Kalian, sem deixar sua raiva arrefecer.

    — Ele tinha uma marca de escravo. Se Corvo a colocou, não me surpreenderia se ele sequer soubesse que estava nos levando até uma armadilha — explicou ela. — Mas o bem-estar de Amon não é a única razão para eu querer sair daqui o mais depressa possível. Eu estou ferida; e você, praticamente esgotado. Duvido que consigamos nos recuperar direito neste lugar. Nossa comida está acabando e não temos como caçar. A única solução é enfrentarmos o deserto.

    — Mas como vamos nos guiar? Amon era pra ser o guia! Além disso, não vamos conseguir andar muito sem usar nossa essência. Vamos acabar vazios antes de conseguir sair!

    Inara sacudiu a cabeça em negação.

    — Não acho que seremos exauridos por completo — Kalian abriu a boca para contestar, mas ela ergueu a mão, pedindo que aguardasse. — Eu conversei bastante com Amon a respeito do caminho, tenho uma boa noção de para onde temos que ir. Se o que ele disse estiver certo, a partir das ruínas não devemos levar muito mais do que meio dia de caminhada para deixar o deserto para trás. Depois disso, a embaixada deve estar próxima.

    Ainda sem se convencer, Kalian indagou:

    — Amon não se guiava pelas estrelas? Tem certeza de que vai conseguir saber a direção durante o dia?

    — Como eu disse antes, tenho uma boa noção da direção. E de pouco adiantaria esperar a noite; ainda não consigo fazer sentido deste céu de vocês.

    Kalian suspirou, sem entender o que ela queria dizer com aquilo. A perspectiva de sair do deserto era tentadora e Inara parecia confiante, mas o sucesso parecia depender, outra vez, de confiar em Amon. Mirou o rapaz desacordado com desgosto. Não queria pôr sua vida e a dela em risco pela de um traidor. Lembrava com clareza da decisão que tomara não muito tempo atrás: ao encontrar Inara nos ermos, decidira salvar a vida da maga a qualquer custo. Por conta disso, sua aldeia acabara destruída.

    Depois de ponderar por alguns instantes, sacudiu a cabeça com força. Não, aquela não era a maneira correta de pensar. Naquela época, ele não tinha como prever que salvá-la faria Corvo atacar sua vila e matar sua família. Se começasse a tomar decisões pensando daquela forma, acabaria tornando-se incapaz de fazer algo para qualquer um além de si mesmo. Além disso, a questão ali não era confiar em Amon, mas sim no julgamento de Inara. E isso ele sabia que podia fazer.

    — Tudo bem — concordou ele com um novo suspiro. — Se você acha que essa é a nossa única escolha, então vamos.

    A maga assentiu, colocando a mão em seu ombro e sorrindo de maneira a encorajá-lo, e então puseram-se em movimento, juntando seus pertences esparramados pela catacumba. Os dois beberam água, comeram algumas poucas rações e deram de beber a Amon também. Antes de sair, Inara fez menção de abaixar-se para carregar o enfermo, mas Kalian a impediu.

    — Você está ferida — disse ele, adiantando-se e colocando Amon nos ombros como um saco de batatas desajeitado. Praticamente não sentia o peso através de sua essência. — Eu levo ele.

    Por um momento, pareceu-lhe que ela protestaria, mas a maga apenas assentiu com uma expressão resignada e rumou para fora da ruína.

    O sol estava a pino e cobria a imensidão da areia dourada com sua luz abrasadora e ofuscante. Mesmo com a proteção de sua essência, o calor se insinuou rapidamente através do corpo de Kalian, fazendo-o começar a suar. Inara não parecia muito bem, cambaleando vez ou outra ao andar e torcendo o rosto em esgares. Kalian mirava-a de soslaio, preocupado, percebendo que ela fazia o possível para disfarçar o desconforto. O deserto também não ajudava em nada, e ele percebia sua essência, já enfraquecida pelo uso exaustivo, ser drenada aos poucos pela areia que o açoitava sem piedade.

    — Me conte o que aconteceu depois de eu desmaiar — pediu ela, depois de andarem por um bom tempo, cortando caminhos tortuosos através das dunas gigantescas. — Como ainda estamos vivos?

    Kalian pensou por um instante.

    — Primeiro, você liberou minha essência contida, certo? — A maga assentiu. — Logo em seguida, eu fiquei com muita raiva. Corvo… Ele estava ali, na minha frente, mas não estava mais rindo. Eu apontei a mão na direção dele e não pensei muito. Só o que eu queria era que ele morresse. Eu queria que ele sentisse dor. Queria que ele sofresse! Minha essência disparou. Parecia… não sei bem o que parecia. Mas tudo o que era acertado por ela se desintegrava. Só que ele conseguiu bloquear por um tempo e fugiu. Depois de conferir que vocês estavam vivos, eu desmaiei.

    Lembrar a sensação de utilizar aquela energia fez as mãos de Kalian formigarem.

    — O que você descreveu se parece com um ataque de energia pura — explicou Inara, com o cenho franzido. — É uma técnica avançada de manipulação que consome muita essência. Você não deveria ter sido capaz de usar, muito menos de andar depois de fazê-lo. Como está se sentindo?

    — Estou bem agora — garantiu ele, um tanto inseguro. — Mas, quando acordei, tive dificuldades pra concentrar minha essência.

    Era verdade que sentia sua energia definhando mais depressa do que o normal, porém isso era esperado dentro do deserto. Inara assentiu, ainda parecendo pensativa.

    — Não é nenhuma surpresa — disse ela — Você teve um surto de essência e usou uma técnica com a qual seu corpo não estava acostumado, e que ainda por cima consome uma quantidade extrema de energia. É de se admirar que tenha tido apenas algumas dificuldades.

    — Então está tudo certo comigo? Não estou perdendo minha magia, ou algo assim?

    — A magia não é algo que se possa perder, Kalian. Enquanto você viver, vai sempre ser capaz de utilizar a sua essência — respondeu a maga, séria. Kalian respirou um pouco mais tranquilamente. A ideia de não ser mais capaz de controlar sua essência o assombrara desde o momento em que havia despertado. — No entanto, isso não quer dizer que não possam existir complicações — continuou ela, fazendo seu ânimo recém-recuperado tornar a despencar. — Selar os surtos de essência de um mago em treinamento é um procedimento padrão, mas evitar que ele saia do controle e machuque alguém é apenas parte do motivo. A verdade completa é que, a cada surto, o potencial total de essência do seu corpo diminui. Compreende o que estou dizendo?

    — Acho que sim — murmurou ele, sentindo o estômago embrulhar.

    — Basicamente, um surto de essência alimenta-se de potencial futuro para garantir uma grande quantidade de energia em um momento de necessidade — explicou Inara. — Seu corpo não quer morrer, e o surto é um mecanismo que ele possui para impedir a morte. Os surtos de um iniciante são selados principalmente para que ele não prejudique a si mesmo. Com o tempo, conforme o autocontrole é aprendido, o selo é removido; afinal, o surto é também uma ferramenta. Mas é uma que um mago experiente deve evitar ao máximo de usar.

    — Então… espere, mas isso não quer dizer que, em algum momento, se eu continuar tendo surtos de essência, eu não serei mais capaz de usar magia? — indagou Kalian, confuso.

    — Não. Se você continuar a ter surtos, vai ficar cada vez mais debilitado. Se ainda assim não conseguir se controlar, em algum ponto, seu próprio surto vai consumi-lo.

    — O quê? O surto pode me matar? — exasperou-se ele. — Mas você não falou que os surtos eram um mecanismo de defesa do corpo contra a morte?

    Inara bufou uma risada.

    — Eu nunca disse que o surto era um bom mecanismo de defesa — justificou-se ela. — E o seu, em específico, é ainda mais problemático por ser tão poderoso. Você tem uma facilidade para a magia digna de um grão-mago. Quando usou magia pela primeira vez, eu disse para mim mesma que aquilo era apenas um reflexo do trauma. Um despertar violento. Mas você destruiu uma montanha. Eu sei que não viu os destroços, mas eu estive lá… não sobrou muita coisa. Agora, essa é a segunda vez que você sobrevive a um ataque de Corvo e o afugenta. Não existem muitos magos vivos que possam se gabar de tal feito.

    — Você já lutou com ele diversas vezes e sobreviveu, não? — rebateu ele.

    Um sorriso sombrio e sem humor torceu o rosto da maga.

    — Você viu a nossa luta, não viu? Viu como ela terminou.

    — Acho que você teria ganhado se não tivesse que se preocupar comigo — retorquiu ele, lembrando-se de como a maga o protegera.

    — Se eu estivesse completamente recuperada, a história talvez fosse outra — disse ela, ainda taciturna. — Você, por outro lado, com um treinamento básico, fez o que uma maga com anos de experiência não foi capaz. Eu não sei o que há a respeito de você, Kalian, mas você não é um garoto normal.

    Kalian sabia que aquilo deveria ser um elogio, mas não conseguiu se sentir aliviado. De que adiantavam seus surtos de essência lhe concederem poder, se toda vez que ele os usasse estaria mais perto da morte? Além disso, ele não se sentia poderoso, ou então alguma espécie de herói escolhido — muito pelo contrário. Quando destruíra a montanha, não tinha a menor ideia do que estava fazendo e desmaiara logo em seguida. Dessa vez, sentira a energia revolta dentro de si, mas, se Corvo tivesse insistido na luta, ele provavelmente teria perdido. Não achava que fosse capaz de controlar aquele poder. E, mesmo que controlasse, estaria disposto a pagar o preço? Depois de pensar algum tempo calado, concluiu que sim. Se sua vida era o necessário para colocar um fim no assassino de sua família, ele a sacrificaria. Sabia que sim. Mas percebeu que a resposta seria diferente se a vida de Inara estivesse em jogo. Não se permitiria mais perdas. Nunca mais.

    Seu ânimo se acalmou aos poucos com o silêncio que se seguiu a partir dali. Os dois caminharam incansavelmente através do deserto dourado enquanto o sol deslizava devagar pelo céu ausente de nuvens. Amon estremecia de leve vez ou outra, mas não chegou a acordar. Antes de o meio da tarde chegar, a paisagem começou a mudar aos poucos, trazendo consigo um ânimo renovado para os dois. As longas dunas de areia tornaram-se mais esparsas, e formações rochosas começaram a aparecer. Em pouco tempo, o deserto abriu-se por completo, revelando os ermos pedregosos que para qualquer um pareceriam desolados e hostis, mas que para Kalian, eram uma visão reconfortante. Assim que abandonaram as areias, sentiram de imediato seus corpos mais leves.

    — Esse lugar… — murmurou ele. — Nunca mais quero entrar em um deserto outra vez.

    Inara assentiu com o olhar distante, perdida em pensamentos. Os dois seguiram adiante por algum tempo.

    — Sabe — disse ela de repente —, sua ideia de que era a areia golpeando a essência e nos enfraquecendo é interessante, mas não acho que só isso conseguiria nos cansar.

    — O que mais poderia ser então?

    A maga ponderou por alguns instantes.

    — Este país já é carente de energia essencial por si só, mas o deserto é de um vazio desconcertante. Mais do que isso, tenho certeza de que você percebeu que não é possível ficar tranquilo lá dentro, ou mesmo descansar por completo. É quase como se…

    — Como se algo estivesse te drenando o tempo todo — completou Kalian com um calafrio, lembrando-se involuntariamente do estranho ser vegetal de seus sonhos.

    — Exato — concordou a maga — Eu acho que o deserto suga de alguma forma a essência das coisas vivas. Você viu alguma criatura enquanto estávamos por lá?

    — Nada.

    — Nem mesmo um pássaro — continuou ela. — Talvez o próprio deserto seja uma entidade em si. Uma entidade faminta que devora a energia de tudo o que toca.

    Kalian lembrou-se de ter tido uma impressão semelhante certa vez ao vislumbrar o Grande Deserto. A impressão de que as areias eram algo vivo, em constante movimento. Sentiu-se feliz por já o terem deixado para trás.

    — Provavelmente não seria uma criatura viva de fato, não da maneira como conhecemos a vida, pelo menos — especulou a maga, animando-se e começando a tagarelar. — Estaria mais para uma entidade mesmo, um ser… — Inara estacou de súbito e colocou a mão em seu peito, segurando-o. — Pare.

    Com o cenho franzido, ela tirou a espada da bainha e colocou-se em prontidão. Kalian observou os arredores com atenção, mas não percebeu essência nenhuma além da de pequenos animais escondidos por entre as rochas. Estava prestes a abrir a boca para perguntar o que estava acontecendo quando ela gritou:

    — Ei, você! Essa coisa que você fez aí na frente, chama isso de ilusão?

    Kalian olhou na direção onde Inara havia fixado o olhar e notou apenas uma grande rocha que obstruía o caminho.

    — Quem são vocês e o que fazem aqui? — perguntou uma voz grave, mas um tanto trêmula logo à frente. Para Kalian, o som pareceu vir de dentro da rocha. — Sou um mago altamente treinado do Exército Benoviano e não hesitarei em matá-los se derem mais um passo sequer!

    Inara, que franzira o cenho com o som da voz do desconhecido, soltou uma curta gargalhada ao ouvir a ameaça.

    — É mesmo? — perguntou ela em um tom de deboche prazeroso, dando um passo à frente.

    — Nem mais um passo! — berrou a voz outra vez. Kalian não conseguiu entender a atitude da maga, mas ela não parecia estar preocupada. — Se você se mover…!

    Antes da frase estar completa, Inara saltou na direção da voz. Com um único corte limpo de sua espada, o ar à frente dela tremeluziu como fumaça e a rocha desapareceu por completo, revelando um homem de estatura mediana agachado alguns passos adiante. Sua feição era de surpresa misturada com temor, e seus olhos negros estavam cravados na arma que desfizera sua ilusão. No momento em que a rocha desapareceu, a essência alaranjada do homem revelou-se.

    Kalian sobressaltou-se com a súbita aparição e recuou vários passos, parando a uma distância que julgou segura, indeciso entre correr para mais longe com Amon, ou soltá-lo e atacar junto a Inara. Antes que pudesse decidir, a maga falou:

    — Rogevind. Sabia que conhecia essa voz!

    Ela embainhou sua espada e riu outra vez.

    O homem que Inara chamara de Rogevind levantou-se devagar, mirando-a com atenção. Ele vestia robes de um vermelho suave, que se encontravam abarrotados e imundos. Seus cabelos, pretos e presos no topo da cabeça em um coque improvisado, também já tinham visto dias melhores. Enquanto isso, seu rosto, de pele tão pálida quanto a de Inara, estava sujo de terra e manchado com vários hematomas de tamanhos e formas diferentes. O maior de todos lhe cobria o olho esquerdo e descia pela bochecha.

    — Inara? — indagou o homem com surpresa — Não, não pode ser. Impossível. É você, Ethaniel? Veio terminar o serviço, não é? Seu desgraçado filho da…

    — Deixe de ser idiota Rogevind — interrompeu-o Inara. — Se eu fosse Corvo, você já estaria morto.

    A maga fez menção de andar na direção do homem, mas ele recuou de imediato.

    — Não! Não tão rápido! — bradou ele, erguendo a mão esquerda em um gesto que Kalian não reconheceu e apontando a direita para a maga. — A Inara que eu conheço não confiaria tão depressa em alguém que acabou de reencontrar, mesmo sendo um velho amigo. Talvez até me espancasse um pouco, para ter certeza de que sou eu mesmo… — ponderou ele. — Você com certeza não é ela! Além disso, a Inara que eu conheço também era muito mais bonita, não tão magrela, tinha a cintura mais torneada e também uns pei…

    O homem começou a sorrir de leve enquanto falava, mas, antes que tivesse tempo de completar a frase, Inara investiu em sua direção, sacando a espada no meio do salto e golpeando-o com o pomo da arma direto na boca. Rogevind caiu para trás e praguejou, cuspindo sangue ao tempo em que a maga tornava a guardar a espada.

    — Talvez eu devesse espancá-lo um pouco — comentou ela.

    Apesar de sua expressão zangada, a voz e postura da maga eram relaxadas. Kalian, no entanto, manteve-se alerta, sem compreender por completo o que estava acontecendo. O homem chamado Rogevind levantou-se, mirou a maga outra vez e tentou sorrir com os lábios ensanguentados, apenas para torcer o rosto em um esgar de dor.

    — Ai, ai… quanta violência — choramingou ele, limpando o sangue na manga das vestes, mas sem tirar os olhos da agressora. — Inara? É você mesmo?

    — É claro que sou eu, seu imbecil.

    — Rá! — riu-se ele, fazendo os lábios tornarem a sangrar e enxugando-os outra vez nas vestes, sem parecer se preocupar com o ferimento. — Quem diria! Que sorte a minha, encontrar a própria Ruína Escarlate neste fim de mundo! Mas você está um trapo! A viagem não foi boa? Passou por maus bocados? Mas acho que isso era de se esperar, considerando onde estamos…

    — Me poupe, Rogevind.

    Apesar de a maga tê-lo interrompido, um pequeno sorriso apareceu em seu rosto. Rogevind curvou-se em uma reverência debochada e então disse:

    — É claro, é claro, peço perdão. Mas devo dizer que você chegou em ótima hora… na verdade, se tivesse chegado um pouquinho antes, seria uma reunião quase completa de nosso antigo grupo. Peço desculpas novamente, mas dessa vez pela recepção. Se soubesse que você viria, teria preparado pelo menos um chá e alguns biscoitos, mas não posso dizer que estava esperando receber minha antiga Regulato aqui neste lugar. Não, não mesmo.

    — Eu não faço mais parte do exército, Rogevind. Você sabe muito bem disso — interpôs Inara, com a expressão voltando a se fechar.

    — Sim, eu sei. Velhos hábitos nunca morrem, eu suponho.

    Rogevind virou os olhos para onde Kalian se encontrava, ainda carregando Amon.

    — E quem são aqueles dois? — indagou ele, curioso. — Seus escravos?

    A carranca da maga, que se tornara mais intensa durante os últimos instantes da conversa, acentuou-se ainda mais.

    — Não, eles são meus amigos — respondeu ela, olhando em sua direção. — Rogevind, precisamos de sua ajuda.

    Capítulo 4

    A Torre

    Rogevind tentou assoviar de surpresa e então praguejou por conta dos lábios feridos.

    — Precisava mesmo ter feito isso? — indagou ele.

    Inara sorriu.

    O mago pôs a mão sobre a boca e, um instante depois, com alguns gestos da mão livre, uma luz esverdeada brilhou.

    — Melhor — aprovou ele, flexionando os lábios recém-curados — De qualquer forma, não esperava viver para ver o dia em que você me pediria ajuda. Ou eu entendi errado e isso é uma ordem?

    — Eu não dou mais ordens a ninguém, Rogevind, pare de brincar comigo — disse a maga, perdendo um pouco da calma em sua voz.

    — Isso agora pareceu uma ordem, mas tudo bem, sem mais brincadeiras — concordou ele, erguendo as mãos como quem se desculpa e dando um sorrisinho debochado. — Me diga o que precisa e farei o possível. Se não pelo nosso magnífico passado, em auxílio a uma ilustre cidadã do grande Império Benoviano, que ele dure para sempre! — Rogevind olhou para o céu e fez uma firula exagerada com a mão.

    Inara suspirou, revirando os olhos.

    — Estamos exaustos e feridos — explicou ela — Precisamos de suas habilidades de curandeiro e de um lugar onde possamos descansar. Antes de você tentar nos emboscar, estávamos a caminho da embaixada.

    — Com isso, felizmente, eu posso ajudá-los. Afinal, estão olhando diretamente para o embaixador em pessoa! — disse o homem, estufando o peito, mas mantendo o tom debochado.

    — Embaixador? — indagou Inara, franzindo o cenho. — Por que logo você? Certamente que o Exército teria melhores usos para as suas habilidades.

    Rogevind riu sem humor.

    — Certamente — concordou ele, com ironia. — Mas, algum tempo depois de você deixar o exército, eu recebi uma promoção. Uma grande honra, eles dizem, mas a verdade é que o imperador me isolou aqui por conta de… Você sabe por conta de quê, Inara — disse ele, com um olhar sombrio para a maga. — Além disso, ninguém mais queria vir. Ninguém que preste, pelo menos. O que não me surpreende, já que os Zar’osta construíram a embaixada no fim do mundo para que quem quer que viesse para cá não se metesse nos seus negócios. Mas como eu bem queria umas férias prolongadas, aceitei de bom grado.

    — Entendo… — disse a maga, ponderativa. — E o que você estava fazendo aqui, tão perto do deserto? Ouviu dizer que eu estava em Tur-Ak e veio me procurar? — riu-se ela.

    Rogevind coçou o queixo e desviou o olhar, dando um sorrisinho nervoso.

    — Quem dera fosse isso — disse ele. — Eu… a embaixada foi atacada.

    A maga parou de sorrir.

    — Corvo a atacou?

    O mago assentiu.

    — Duas noites atrás. Apareceu do nada no meio de uma tempestade e exigiu nossos cristais de ligação. Meus colegas não sabiam quem ele era e é claro que negaram, e então ele começou a chacina. Ele não precisava matar todos; depois das primeiras gargantas cortadas, meus companheiros já estavam mais do que dispostos a entregar os cristais. Mas você sabe como ele é. Ninguém saiu vivo.

    — E como você está aqui?

    — Quando ele me reconheceu, gargalhou igual louco, como se o fato de eu estar ali fosse alguma piada. Eu achei que ele ia me matar, mas parecia brincar comigo. Sério, Inara, mesmo depois de todas as missões que tivemos que executar, eu nunca tinha sentido a morte tão próxima… ele me espancou inteiro, mas então alguns homens que ainda estavam vivos o atacaram e eu aproveitei e fugi.

    Rogevind baixou os olhos, envergonhado, encarando os próprios pés. Inara não disse nada.

    — Fugi — continuou ele, tornando a erguer os olhos que relampejaram de raiva. — Fugi e me escondi, feito um rato assustado quando o gato entra na sala. Na minha cabeça, me convenci de que precisava recuperar minha condição e restaurar minha energia para então voltar. Mas a verdade é que já estava a caminho de Ak-Zar’osta…

    Inara encarou-o por alguns instantes.

    — Você não mudou nada — disse ela por fim, com um suspiro. — Não havia nada que pudesse ter feito, Rogevind. Se tivesse ficado, só teria morrido também. Mesmo se cooperassem com ele, ele ainda assim os teria matado.

    — Como você pode ter certeza?

    — Pontas soltas — explicou ela com simplicidade. — Ele não deixaria vocês saírem vivos para informar ao Império sobre o roubo dos cristais. Mesmo que tenha feito isso por medo, foi uma decisão acertada de sua parte não ter voltado de imediato para a torre. É bem provável que ele tenha esperado, ou mesmo procurado por você até certo ponto.

    Rogevind engoliu em seco.

    — Você acha que ele ainda está lá?

    — É muito improvável — ponderou a maga — Ele devia estar com pressa e, para ser sincera, nós também estamos. Chega de enrolar, Rogevind, nos leve até a embaixada.

    — Certo, com você aqui, acho que não haverá problema… — disse ele, olhando nervoso ao redor. — Vamos então.

    Os dois seguiram na frente e Kalian, que ouvira a conversa em silêncio, começou a caminhar logo atrás, ainda carregando Amon.

    — O rapaz carregando o outro, quem é ele? — indagou Rogevind outra vez.

    — Pergunte você mesmo — mandou Inara. — Ele sabe

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