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Quanto vale a liberdade?: o problema da desinformação entre os diferentes fundamentos da liberdade de expressão
Quanto vale a liberdade?: o problema da desinformação entre os diferentes fundamentos da liberdade de expressão
Quanto vale a liberdade?: o problema da desinformação entre os diferentes fundamentos da liberdade de expressão
E-book365 páginas4 horas

Quanto vale a liberdade?: o problema da desinformação entre os diferentes fundamentos da liberdade de expressão

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Sobre este e-book

O livro investiga o problema da desinformação em face dos diferentes fundamentos da liberdade de expressão. O objetivo geral consiste em definir qual dos fundamentos ou das concepções de liberdade de expressão é o mais adequado para lidar com esse problema. Para atingir tal objetivo, identifica e problematiza, primeiramente, as principais concepções teóricas de liberdade de expressão. No segundo capítulo, destaca o que caracteriza a "novidade" sobre as "fake news", aborda alguns efeitos da ascensão das redes e demarca um conceito jurídico adequado para o fenômeno. Por fim, o terceiro capítulo investiga qual é o fundamento ou concepção de liberdade de expressão que deve ser empregado para enfrentar o problema. Os resultados obtidos pela pesquisa dão conta de que, entre fundamentos instrumentais e constitutivos, a concepção constitutiva de liberdade de expressão, especialmente a versão defendida por Ronald Dworkin, é a mais adequada e coerente para compreender o problema.

Isso quer dizer que a estratégia a ser aplicada para enfrentar a desinformação dificilmente permitirá a restrição de discursos meramente falsos. Porém, a concepção constitutiva não protege discursos fraudulentos. Destaca-se, por fim, que os fundamentos instrumentais e constitutivos de liberdade de expressão não são excludentes, mas, nas situações de conflito, a concepção constitutiva deve prevalecer.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de ago. de 2023
ISBN9786525297569
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    Quanto vale a liberdade? - Tailine Hijaz

    CAPÍTULO PRIMEIRO Fundamentos Da Liberdade De Expressão: Verdade, Democracia E Autonomia Em Debate

    É este [...] o caso da própria ideia de liberdade. É difícil defini-la com absoluta exatidão. Talvez seja até mesmo impossível. No entanto, qualquer que seja o regime político sob o qual viva, cada cidadão sabe dizer quando ela não existe.¹³

    O princípio da liberdade é amplamente assegurado em Constituições democráticas, tratados internacionais e Declarações de Direitos Humanos. Pode-se afirmar, com Martins Neto, que as liberdades constitucionais objetivam proteger mulheres, homens e instituições da tirania da maioria, possibilitando-lhes direitos de agir que, de outro modo, poderiam ser negados ou restringidos por lei para além do que possa ser admitido pela respectiva Constituição.¹⁴

    Nesse contexto, a liberdade de expressão é uma das dimensões do princípio da liberdade. Assim como na obra de Robl Filho e Sarlet, o termo genérico liberdade expressão é utilizado nesse livro como noção que abrange tanto a livre manifestação do pensamento, prevista nos artigos 5º, inciso IV, da CF, quanto a outras dimensões da liberdade de expressão.¹⁵ De acordo com Martins Neto, a liberdade de expressão figura entre as liberdades constitucionais mais comumente asseguradas e consiste, basicamente, no direito de comunicar-se, ou de participar de relações comunicativas.¹⁶

    Portanto, a liberdade de expressão do pensamento, acepção utilizada por Bastos e Martins,¹⁷ pode se apresentar sob as mais variadas formas: pela escrita e a fala, pelo uso de imagens e de sons, pelo silêncio, entre outros. Martins Neto afirma que a liberdade de expressão engloba a comunicação em torno de informações, opiniões, sentimentos e propostas, realiza-se por meio da linguagem oral e escrita, de gestos simbólicos e imagens e admite os mais variados temas.¹⁸ Em poucas palavras, diz respeito à expressão de qualquer concepção intelectiva.¹⁹

    Além de conceituar a liberdade de expressão, é importante identificar quais são os seus fundamentos mais marcantes. Conforme ponderam Barroso e Francisquini direitos fundamentais podem ser justificados e defendidos apelando-se a razões e valores radicalmente distintos, o que, por sua vez, acarreta consequências importantes para a efetivação desses direitos.²⁰ Definir o direito à liberdade da expressão pode parecer simples em abstrato. Como visto, é indiscutível que as Constituições democráticas e numerosos tratados internacionais, em maior ou menor grau, protegem as liberdades.

    No entanto, a questão se torna complexa quando se reflete sobre situações concretas e controvertidas. Pode-se questionar, a partir dos exemplos mencionados por Martins Neto: o legislador pode proibir e punir uma expressão pessoal de racismo ou homofobia? Pode proibir a negação do holocausto como fato histórico? Pode punir a defesa da legitimidade das revoluções armadas como recurso contra a injustiça social? Ainda, pode proibir a exibição de filmes de sexo explícito ou a revelação jornalística de segredos oficiais? Pode proibir a queima da bandeira nacional em um protesto contra o governo?²¹ E por fim, considerando o tema específico do presente livro: pode proibir a divulgação e compartilhamento de mentiras?²² A adoção preponderante de uma ou de outra racionalidade engendra consequências teóricas e práticas diferentes em cada uma dessas situações controvertidas.

    Assim, este capítulo tem o propósito central de identificar quais são os principais fundamentos, justificativas, racionalidades ou concepções de liberdade de expressão. De modo geral, a discussão toda envolve o peso que é dado para valores como verdade, democracia e autonomia.²³ Ressalte-se que a adoção de fundamentos diferentes gera efeitos diversos na discussão de casos controvertidos e cria perspectivas variadas sobre as consequências normativas e práticas para o enfrentamento das fake news.

    Por isso, abordaremos os fundamentos de liberdade de expressão em duas classificações: instrumentais e constitutivos. Essa nomenclatura decorre da distinção elaborada por Dworkin,²⁴ mas não é a única utilizada pelo referencial teórico específico. Segundo Greenawalt, não existe uma maneira única e correta de apresentar as justificativas que importam para um princípio de liberdade de expressão.²⁵ O autor acrescenta: como as razões para a liberdade de expressão são baseadas em elementos complexos e um tanto sobrepostos, nenhuma divisão básica ou categorização múltipla pode ser totalmente satisfatória.²⁶ Assim, embora se adote a nomenclatura utilizada por Dworkin, registre-se que a literatura também utiliza outras distinções, como fundamentos consequencialistas e não consequencialistas/deontológicos ²⁷ e razões utilitárias e não utilitárias.²⁸

    1.1 Principais Fundamentos Instrumentais Da Liberdade De Expressão

    Um fundamento ou concepção instrumental considera que a liberdade de expressão não é um direito moral intrínseco de manifestar um pensamento, embora seja importante para garantir determinada meta coletiva, como a busca da verdade, o voto informado, a concretização do autogoverno, entre outros fundamentos. Segundo Greenawalt, dizer que a liberdade de expressão contribui para um governo honesto é apresentar uma razão consequencialista para a liberdade de expressão. A força de uma razão consequencialista depende da conexão factual entre uma prática e os supostos resultados da prática.²⁹

    Muitos estudiosos adotam fundamentos instrumentais para justificar a liberdade de expressão. Para melhor delinear os principais aspectos dessa concepção, optou-se por abordar as justificativas mais comuns encontradas na literatura especializada. Em geral, quanto à vertente instrumental, há duas teorias principais: a teoria da verdade (apresentada na subseção 1.1.1) e a teoria democrática (abordada na subseção 1.1.2). Uma dá mais valor à busca da verdade e ao avanço do conhecimento; a outra, à promoção do autogoverno e do debate plural. Há outras teorias – menos invocadas – que são mencionadas na subseção 1.1.3: as justificativas da manutenção do equilíbrio entre a estabilidade e a mudança e da promoção da tolerância.

    1.1.1 Teoria da verdade: a liberdade de expressão promove a descoberta da verdade e o avanço do conhecimento

    Que a verdade e a mentira digladiem. Quem jamais ouviu dizer que a verdade perdesse num confronto em campo livre e aberto? Sua refutação é a melhor e mais eficaz das proibições.³⁰

    John Milton foi um dos primeiros a defender publicamente que a liberdade de expressão é um instrumento indispensável para se chegar à verdade e ao conhecimento. A defesa não foi feita nos termos das democracias constitucionais contemporâneas, pois Milton apresentou seu discurso contra a censura prévia em 1644, no Parlamento Inglês, no clássico Areopagítica. Segundo Fortuna, "o principal objetivo da Areopagítica [...] é a defesa da total liberdade de imprensa, a fim de tornar possível o maior avanço do conhecimento e da verdade".³¹ Na mesma linha, Seelaender destaca que o discurso representou o marco inicial de toda uma longa e rica tradição de questionamento da legitimidade dos procedimentos utilizados pelos governantes para cercear a divulgação de informações e opiniões contrárias aos seus interesses.³²

    Milton também rejeita a tese de que a diversidade de opiniões constitui um perigoso fator de enfraquecimento do Estado. Pelo contrário, a censura prévia é obstáculo ao avanço do conhecimento e à renovação das mentalidades. A concessão de um controle quase que absoluto sobre a circulação de informações e opiniões a uns poucos indivíduos é muito perigoso e

    pode desencorajar todo e qualquer estudo; paralisar a verdade, não só amortecendo e embotando nossas faculdades naquilo que já conhecemos, mas também dificultando ou impedindo as descobertas que poderiam ainda ser feitas no campo do conhecimento, civil e religioso.³³

    Conforme explica Seelaender, tal concessão, além de ilegítima, constituiria potencialmente uma grave ameaça às liberdades, porquanto não existiriam mecanismos eficazes de proteção contra eventuais abusos de poder por parte dos censores.³⁴ Nesse ponto, considera-se que há uma ideia próxima da defendida por Stuart Mill, conforme se apresenta na sequência: como os censores não receberam a graça da infalibilidade e da incorruptibilidade,³⁵ a censura pode causar arbitrariedades.³⁶

    Quanto a esse aspecto, Blasi pondera que a teoria de Milton pode parecer datada ou não muito convincente para a maioria dos modernos, mas a sua compreensão da dinâmica política não deve ser ignorada, sobretudo no que diz respeito à vitalidade de uma comunidade política:

    Areopagitica é sobre mais do que verdade religiosa: a justificativa de Milton para a liberdade de expressão depende em grande parte de sua observação, repetida ao longo do tratado em uma variedade de representações, de que a vitalidade é a qualidade definidora de uma comunidade política, e que a vitalidade não pode ser mantida – a estagnação inevitavelmente se instalará – se as prescrições dos Costumes e da Autoridade não forem contestadas.³⁷

    De modo geral, trata-se de uma versão instrumental da liberdade de expressão porque o autor confere especial relevância para o direito de informação e para a promoção do avanço do conhecimento e da verdade. A liberdade não é analisada a partir do seu significado intrínseco, mas encontra o seu fundamento no direito de informação da sociedade e na liberdade de imprensa.

    Em On Liberty (1859), Stuart Mill retomou o argumento e reforçou que a liberdade de expressão é parte de uma estratégia ou de uma aposta coletiva para a qual a livre expressão e divulgação de ideias trazem, a longo prazo, mais resultados positivos do que negativos.³⁸ Conforme Dworkin, Mill sugeriu [...] que a sociedade tem mais chance de descobrir a verdade, não apenas na ciência, mas também a respeito das melhores condições para a prosperidade humana, quando tolera o livre mercado de ideias.³⁹ ⁴⁰

    Segundo Mill, a opinião herética pode ser verdadeira ou ao menos conter parte da verdade, razão pela qual se deve aceitar a livre circulação de ideias que contrariem as crenças da maioria. Silenciar as ideias minoritárias significa dispensar uma oportunidade de corrigir um erro. E mais: ainda que a opinião minoritária seja falsa, a população deve saber rejeitá-la pelos motivos certos, conhecendo os argumentos que a refutam, e não sendo protegida de sua exposição:

    [...] não é bastante dizer que se concederá aos heréticos defender a utilidade ou a inocência da sua opinião, embora se vejam proibidos de defender-lhes a verdade. A verdade de uma opinião faz parte da sua utilidade. Se quiséssemos saber se crença numa assertiva é, ou não, desejável, seria possível excluir a consideração de ser ela, ou não, verdadeira? Na opinião, não dos maus, mas dos melhores, não ter crenças contrárias à verdade pode ser realmente útil; e podeis impedir a tais homens essa defesa quando se vêem inculpados de negar alguma doutrina, de cuja utilidade se lhes fala, mas que crêem falsas? Os que estão ao lado das doutrinas aceitas jamais deixariam de tirar toda a vantagem possível dessa defesa.⁴¹

    Para Mill, se a opinião é certa, aquele foi privado da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errônea, perdeu o que constitui um bem de quase tanto valor – a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzidas pela sua colisão com o erro.⁴² Em síntese, o autor apresenta quatro argumentos que justificam a sua concepção de liberdade de expressão, bem como o equívoco em censurar uma manifestação de pensamento:

    [...] Primeiro, se uma opinião é compelida ao silêncio, é possível seja ela verdadeira, em virtude de algo que podemos vir a conhecer com certeza. Negar isso é presumir a nossa infalibilidade. [...] Segundo, mesmo que a opinião a que se impôs silêncio seja um erro, pode conter, e muito comumente contém, uma parte de verdade. [...] Terceiro, ainda que a opinião aceita não seja apenas verdadeira, mas a verdade toda, só não será assimilada como um preconceito, com pouca compreensão ou pouco sentimento das suas bases racionais, pela mor parte dos que a adotam, se aceitar ser, e efetivamente for, vigorosa e ardentemente contestada. [...] em quarto lugar, se tal não der, o significado mesmo da doutrina estará em perigo de se perder, de se debilitar, de se privar do seu efeito vital sobre o caráter a conduta: o dogma se tornará uma mera profissão formal, ineficaz para o bem, mas a estorvar o terreno e a impedir o surgimento de qualquer convicção efetiva e profunda, vinda da razão ou da experiência pessoal.⁴³

    Sarmento explica que a ideia básica da liberdade de expressão instrumental parte da premissa de que, no contexto do debate livre entre pontos de vista divergentes sobre temas polêmicos, as melhores ideias prevalecerão.⁴⁴ Segundo o autor: sob esta perspectiva, a liberdade de expressão é vista não como um fim em si, mas como um meio para a obtenção das respostas mais adequadas para os problemas que afligem a sociedade.⁴⁵

    Com medo da tirania da maioria, Mill acreditava que proibir a divulgação de opiniões por serem consideradas equivocadas seria um grande erro, pois tais opiniões poderiam estar corretas. Ou, ainda, poderiam dispor de algum resquício de correção. Com a sua supressão, a sociedade estaria privada do acesso a algo verdadeiro. O autor explica melhor esse ponto na seguinte passagem:

    [...] importa ainda o amparo contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes: contra a tendência da sociedade para impor, por outros meios além das penalidades civis, as próprias ideias e práticas como regras de conduta, àqueles que delas divergem, para refrear e, se possível, prevenir a formação de qualquer individualidade em desarmonia com os seus rumos, e compelir todos os caracteres a se plasmarem sobre o modelo dela própria.⁴⁶

    Portanto, em linhas gerais, para Mill, a liberdade de expressão é fundamental para a busca da verdade. Ela prevalece mesmo no caso de opiniões desprezíveis ou absolutamente erradas. A exceção diz respeito ao prejuízo dos interesses de outros: a única finalidade justificativa da interferência dos homens, individual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção (princípio do dano).⁴⁷ ⁴⁸ Conforme explica Gray, o princípio da liberdade, em Mill, tem a sua força principal na injunção de que a liberdade do indivíduo deveria ser restringida pela sociedade ou pelo Estado apenas se suas ações são (ou possam ser) prejudiciais aos interesses de outros.⁴⁹

    Diante desses elementos, cumpre destacar alguns pressupostos importantes da teoria milliana sobre a liberdade de expressão. Primeiro, segundo Baker, Mill considera que a verdade deve ser objetiva ou detectável.⁵⁰ Além disso, supõe que as pessoas são racionais.⁵¹ Ainda segundo Baker, para que a suposição de racionalidade seja válida, as faculdades racionais das pessoas devem capacitá-las a investigar a forma e a frequência da apresentação da mensagem para avaliar a verdade central nas mensagens.⁵² Por fim, em face da natureza objetiva da verdade bem como das capacidades racionais dos humanos, Baker conclui que pode-se esperar que a apresentação de argumentos e percepções conflitantes ajude as pessoas a descobrir a verdade.⁵³ Esses elementos dão conta de que a regulação do discurso só prejudicaria a descoberta e o reconhecimento da verdade, assim como a tomada de decisões sábias e fundamentadas.⁵⁴

    É relevante apontar que Mill não utiliza a popular expressão "marketplace of ideias". Frequentemente ela também é atribuída a um voto do Justice Oliver Wendell Holmes, proferido no caso Abrams vs. United States.⁵⁵ No entanto, tampouco Holmes utilizou o termo no voto. Na realidade, ele empregou as expressões "free trade of ideias e competition of the market⁵⁶: quando os homens percebem que o tempo afetou muitas crenças combativas, eles podem vir a acreditar ainda mais do que os próprios fundamentos de sua própria conduta de que o bem último desejado é melhor alcançado pelo livre comércio de ideias.⁵⁷ E ainda: o melhor teste da verdade é o poder do pensamento de ser aceito na competição do mercado, e que a verdade é a única base sobre a qual seus desejos podem ser realizados com segurança. Essa, de qualquer forma, é a teoria de nossa Constituição".⁵⁸

    De modo mais geral, Locke também se preocupou com o tema no Ensaio acerca do entendimento humano (1695). O autor argumenta que a incerteza do conhecimento, em vez de justificar que alguns homens imponham suas opiniões aos outros, reclama deles que busquem instruir mais e melhor a si próprios, todos devendo ser entre si piedosos da ignorância recíproca. Para Locke: a necessidade de crer sem conhecimento, [...] neste passageiro estado de ação e cegueira em que nos encontramos, deveria nos tornar mais ocupados e cuidadosos para nos informar do que obrigar os outros.⁵⁹

    Na Carta acerca da tolerância (1689), mais uma vez, Locke defende que a aceitação da diversidade de opiniões era a melhor saída para evitar as guerras de religião: não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de tolerância para com os que têm opinião diversa, o que se poderia admitir, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se têm manifestado no mundo cristão por causa da religião.⁶⁰

    Essa tradicional justificativa da liberdade de expressão é importante e impacta a elaboração de normas, decisões judiciais, movimentos sociais e a teoria política e constitucional.⁶¹ Porém, muitas críticas também foram direcionadas aos fundamentos da descoberta da verdade e do avanço do conhecimento, sobretudo diante do cenário contemporâneo. Um primeiro ponto, que sempre é destacado ao se analisar a teoria da verdade em suas diferentes perspectivas, é o de que a liberdade de expressão pode levar ao erro em vez da verdade, mesmo no longo prazo. Além disso, segundo Alexander, o longo prazo pode ser muito longo, dados os danos que a expressão causa no curto prazo.⁶² O autor aponta que o fundamento da descoberta da verdade é insatisfatório, porque nem todas as verdades são igualmente importantes.⁶³

    Quanto a essas críticas, Barendt pontua que o discurso de ódio racista é proibido em muitos países, porque a harmonia racial e a proteção das sensibilidades dos grupos étnicos é considerada um objetivo mais importante do que a tolerância absoluta de liberdade de expressão neste contexto.⁶⁴ Isso não quer dizer que a liberdade de expressão não seja relevante para a busca da verdade, mas que ela promove a busca por algumas verdades, impedindo a busca por outras.⁶⁵ E, ainda quando promove a busca por algumas verdades, nem sempre as verdades em questão [...] valem os custos da expressão.⁶⁶

    Schauer também apresenta críticas sobre a aplicação dessa justificativa instrumental às questões mais atuais, como mudanças climáticas, segurança de alimentos geneticamente modificados, imunização, entre outros:

    a natureza das controvérsias lança dúvidas sobre a crença racionalista do Iluminismo – conforme incorporada nas perspectivas de Milton, Mill e seus sucessores – de que a verdade tem algum poder intrínseco ou que os humanos têm alguma capacidade inata de identificar a verdade e rejeitar a falsidade.⁶⁷

    De fato, a manifestação de uma ideia pode ampliar tanto o número e proporção de pessoas que acreditam em algo que é verdadeiro quanto o número e proporção de pessoas que acreditam na verdade de algo que é, de fato, falso.⁶⁸ E não se trata apenas de uma questão teórica. Conforme assevera o autor:

    se as pessoas acreditam que a mudança climática não existe ou não é substancialmente o produto de atos humanos, e se essas crenças são falsas, então as políticas que reduziriam o grau de mudança climática criada pelo homem são menos prováveis de serem adotadas, e as consequências das mudanças climáticas se agravam.⁶⁹

    Da mesma forma, cite-se um exemplo ainda mais atual: se mulheres e homens acreditam que a vacinação contra o vírus causador de determinada doença, como Coronavírus (COVID-19),⁷⁰ é prejudicial, e se essa crença é falsa, provavelmente terão uma chance maior de contrair a doença ou de desenvolver sintomas mais graves. Apenas para ilustrar, em entrevista concedida recentemente ao New York Times, a diretora do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC – Centers for Disease Control and Prevention) alertou que, nos Estados Unidos da América, isso está se tornando uma pandemia de pessoas não vacinadas.⁷¹ O alerta se refere à predominância da sublinhagem B.1.617.2 (variante Delta), que decorre de uma linhagem de SARS-CoV-2, o vírus que causa COVID-19.⁷² ⁷³ Diferentemente do Brasil e de outros países, os EUA não sofrem com a falta de estoque de doses de imunizantes, pois o país tem vacinado até mesmo as crianças.⁷⁴ Ou seja, muitas pessoas não foram vacinadas não por falta de vacinas, mas porque não quiseram. Segundo dados apresentados pelo The New York Times, as pessoas que não foram totalmente vacinadas foram hospitalizadas com Covid-19 pelo menos cinco vezes mais do que as pessoas totalmente vacinadas, de acordo com a análise, e morreram pelo menos oito vezes mais.⁷⁵ Considerando que há dados seguros a respeito da eficácia das vacinas que foram aprovadas pelos órgãos responsáveis,⁷⁶ é possível afirmar que há, portanto, uma crença falsa que prejudica as pessoas que nela

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