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O Direito ao Esquecimento: e as suas delimitações nos direitos da personalidade perante a sociedade da informação no direito brasileiro
O Direito ao Esquecimento: e as suas delimitações nos direitos da personalidade perante a sociedade da informação no direito brasileiro
O Direito ao Esquecimento: e as suas delimitações nos direitos da personalidade perante a sociedade da informação no direito brasileiro
E-book465 páginas6 horas

O Direito ao Esquecimento: e as suas delimitações nos direitos da personalidade perante a sociedade da informação no direito brasileiro

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Sobre este e-book

Em uma sociedade da informação que perpassa por diversas mudanças significativas por conta dos progressos tecnológicos, há uma crescente circulação de dados e informações pessoais que são indexados na rede mundial de computadores. Esse trânsito massivo de conhecimentos dentro do ambiente virtual também permite a disseminação de uma ampla exploração da liberdade de expressão e de informação no ambiente virtual com enorme evolução. Com isso, a manutenção de dados e informações pessoais na internet permite um registro eterno no meio cibernético, resultando na possibilidade do reavivamento de fatos e acontecimentos pretéritos na vida pessoal, ocasionando um acesso facilitado e instantâneo que prioriza a memória coletiva em face do esquecimento. Contudo, acarreta a estabilização digital de eventos passados que podem ser desabonadores e constrangedores na vida presente e futura do cidadão, causando violação aos direitos da personalidade do indivíduo. Assim, nasce a possibilidade da pretensão de uma tutela baseada na tentativa de não relembrar aquele passado assombroso como um direito autônomo fundamental, fortemente denominado como um direito ao esquecimento. O STF declarou a inexistência de um direito ao esquecimento no direito brasileiro com o julgamento do Tema 786 (RE 1.010.606/RJ), mas possibilitou a proteção em elementos que possui contornos para o desenvolvimento em uma tutela baseada no direito de esquecer com respaldo nos direitos da personalidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de set. de 2023
ISBN9786525293523
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    O Direito ao Esquecimento - Bruno Benevento Lemos de Lira

    1. A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

    A sociedade sempre passa por evoluções e mutações no decorrer da história mundial, com progressos significativos que alteram o modo substancial e circunstancial na vida da sociedade em comum. O desenvolvimento das sociedades industriais inicia-se fortemente com a Primeira Revolução Industrial na metade do século XVIII, possibilitando a caracterização de novas tecnologias advindas da invenção da máquina a vapor, se intensificando pela substituição das ferramentas manuais pelas máquinas, sendo um condutor principal dessa revolução. A Segunda Revolução Industrial surgiu em torno de cem anos depois, com o desenvolvimento da eletricidade, do motor de combustão e o início das tecnologias de comunicação, com a disseminação do telégrafo e a criação do telefone. Esses feitos permitiram que a sociedade tomasse formas sociais e tecnológicas de organização por meio da indústria, progredindo com a produção de bens industriais. Mas não se resumia apenas a indústrias, já que se apresentava uma sociedade que possuía atividades predominantes no sistema econômico, proporcionando hábitos comuns na vida cotidiana dessa sociedade.²

    O pilar de transformação nas sociedades para a forma atual vem da Revolução Industrial no século XVIII, com o advento da indústria, quando foi possível a criação da máquina a vapor.

    O advento da sociedade pós-industrial no século XX se mostra a partir do momento em que a economia, que, antes, era de produção, passa a ser de serviços – uma sociedade do conhecimento. A inovação tecnológica do conhecimento é fator essencial, com a disponibilidade de profissionais que passam a oferecer seus serviços às empresas e aos governos ávidos por conselhos e prontos a pagar. Por essa razão, a sociedade se familiariza com a nova era tecnoinformacional, que inova no campo técnico com profissionais prontos a atuar com inovações científicas.³

    No pós-Segunda Guerra Mundial, a sociedade já se baseia na busca da obtenção da informação, proporcionando um fluxo internacional de dados, como o processamento e a transmissão como fontes primárias de produtividade e poder na sociedade da informação.

    O novo modelo de sociedade, incrementado pela revolução tecnológica com uma maior amplitude, traz um aumento relevante nos meios de comunicação, potencializado pelo advento da internet, se consolidando uma sociedade mais interativa. Apresenta-se um modo de uma organização da sociedade baseado em um modelo informacional com a evolução tecnológica.

    O capítulo versará sobre as ponderações da evolução da sociedade da informação e como se acentua atualmente o avanço dos recursos tecnológicos e os novos modelos econômicos que são predominantes no meio social. Trataremos de expor detalhadamente o estreitamento dos direitos da personalidade com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, como se dão os direitos da personalidade na sociedade da informação, e as diferenças com os direitos fundamentais. Por fim, será feita uma abordagem sobre como é trilhada a liberdade de expressão, de comunicação e de informação, principalmente nos meios tecnológicos, e a percepção atual da concepção da privacidade com suas evoluções, que se modificam em sua densidade e a sua inserção no contexto atual da sociedade da informação.

    1.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

    Com o mundo contemporâneo experienciando a revolução tecnológica e o potencial existente no processamento de informação digitalizada, é importante trazer a composição de um novo modelo econômico da informação. Com o desenvolvimento dos bits, houve uma desmaterialização da informação, possibilitando a introdução em computadores, levando à digitalização de todo tipo de informação. Ocorreu uma virada exponencial na quantidade de informações processadas, com o acúmulo de informação inimaginável diante da utilização das novas plataformas em ambientes virtuais. Com isso, foi possível obter um acesso mais fácil e organizado, resultante do armazenamento digital da informação, que proporcionou um aumento do conhecimento. Houve uma revolução na possiblidade de acesso às informações com as facilidades práticas para que se possa alcançá-las por meio de arquivos digitalizados em algum dispositivo eletrônico, o que possibilita a aquisição mais veloz da informação desejada. Atualmente, se verifica um progresso quantitativo e qualitativo do processamento informacional com a invenção da internet, que virtualizou a informação e instaurou um novo padrão sócio-técnico-econômico.

    Vale lembrar que, desde a sociedade industrial, já se tinha a informação como fator determinante para gerar riquezas.⁷ Esse aspecto se tornou muito mais presente na sociedade da informação atual, onde o dado é o estado primitivo da informação, são fatos brutos que, ao serem processados e organizados, se convertem em algo inteligível, extraindo algum tipo de informação. A informação, contendo uma quantidade manancial de fatos (dados), passa por processos de estruturação, organização e gerenciamento para se produzir um conhecimento e se reverter em uma tomada de decisão. Essa agregação na tecnologia da informação é um meio produtivo e estratégico para as atividades empresariais no modelo capitalista atual que permite agregar e acumular muitos dados que revelam longas informações sobre nós.⁸

    No conjunto amplo de dados e informações existentes na internet, é possível a utilização dos comandos pelos usuários, o que possibilita inúmeras atividades realizadas no ambiente cibernético, e tais usuários passam a consumir produtos e serviços por meio dos mercados virtuais. O e-commerce é um dos exemplos, que se expandiu de forma muito acelerada nos últimos anos, principalmente na vigência da pandemia da covid-19, quando a massa populacional, em meio ao isolamento social, passou a utilizar acentuadamente as ferramentas tecnológicas para o exercício do trabalho remoto, para a realização de cursos online, comunicações interpessoais por videoconferência e especialmente o consumo de produtos e serviços adquiridos pelo mundo virtual. Apesar do receio de grande parte dos consumidores em realizar compras online, a tendência de realizações de transações virtuais na contratação de produtos e serviços por meio eletrônico não presencial ou à distância vem aumentando exponencialmente.⁹ As vendas no comércio eletrônico brasileiro tiveram uma alta de 62,84% até novembro de 2021 no acumulado do ano, no segundo ano sob a vigência da pandemia.¹⁰

    Esse fato traz o aumento significativo de inserção de informações pessoais dos consumidores na rede, e isso é transformado em um meio gerenciador de estratégias de marketing em geral. Seria uma espécie de uma publicidade direcionada, denominada de publicidade comportamental online, uma maior amplitude da personalização do contato entre vendedores e compradores na internet. O comportamento do consumidor na rede, que passa a enviar dados e informações sobre si, tem os seus passos rastreados em razão da navegação na internet, e os seus interesses e gostos passam a ser direcionados para anúncios publicitários.¹¹

    Os dados ao serem coletados pelos meios tecnológicos possibilitam que todos os itens de informação contidos no banco de dados podem ser agregados, desagregados, combinados e identificados de acordo com o objetivo e o poder legal.¹² Assim, se forma a conjuntura de perfis agregados com finalidade comercial ou política. A vigilância sobre os usuários na internet é caracterizada pela absorção de dados e informações que, registradas eletronicamente, seja por meio de pagamentos digitais, seja por visitas a websites ou uso do correio eletrônico, sendo que qualquer informação transmitida eletronicamente é armazenada, processada e identificada de acordo com cada análise coletiva ou individual.¹³

    A adição de dados pessoais dos usuários na internet passa a gerar a economia da informação e se apresenta como um condutor fundamental para a prática da publicidade comportamental. As predições dos usuários subtraídas com as suas manifestações no ambiente virtual irão indicar o que será determinante na tomada de decisões por fornecedores, direcionando mensagens publicitárias, e se tornando uma fonte rentável. O exercício dessas atividades tem sido comum para as grandes empresas de tecnologia, como a Microsoft, Apple, Google e Amazon, que passam a estruturar e agir nesses moldes e arrecadar imensos lucros com essas atividades.¹⁴

    O autor Bruno Bioni menciona a terminologia zero-price advertisement business model (modelo de negócios de publicidade de preço zero), que é um modelo em que o usuário não paga pelo produto ou serviço, mas, em contraprestação, fornece os seus dados pessoais para serem direcionados ao conteúdo publicitário, sendo essa artimanha um meio de pagamento indireto pelo bem de consumo.¹⁵ Na mesma concepção, de acordo com Hal Ronald Varian, citado por Shoshana Zuboff¹⁶ (tradução nossa): [...] as pessoas concordam com a ‘invasão de privacidade’ representada pelo Big Other se obtiverem algo que desejam em troca.

    Todas as ocorrências aludidas geram o alcance ao Big Data, que se trata de uma tecnologia que acumula um volume imensurável de dados que podem ser organizados, estruturados, processados e analisados para atingir inúmeras finalidades.¹⁷ O Big Data seria um objeto que tem, como componente fundamental, o intuito de trazer para o ambiente digital a previsão e a modificação do comportamento humano, objetivando a produção de receita e o controle de mercado. Até 2015, três das sete bilhões de pessoas no mundo estavam sendo mediadas por computador em inúmeras atividades diárias.¹⁸

    O "Big Data" possui características próprias de massivo, de alta dimensão, heterogêneo, complexo, não estruturado, que podem coletar muitos dados para o alcance de informações mais úteis, porém, a quantidade de mais dados pode não atingir mais informações úteis. O Big Data é um dilúvio de dados de entrada para o alcance da análise de dados, constituídos pelo sensor de alta volatilidade de processamento, comunicações e armazenamento de dados de sensoriamento¹⁹ (tradução nossa). Com efeito, são constituídos pela captura de pequenos dados de ações e enunciados mediados por computador de indivíduos em sua busca por uma vida efetiva. Os atos de colheita de curtidas no Facebook, Instagram, pesquisas no Google, e-mails, textos, fotos, músicas e vídeos, a absorção de localização de cada usuário, padrões de comunicação, redes, compras em comércio eletrônico, movimentações dos usuários em ambiente virtuais, cada clique, palavras e frases incorretas, visualização de páginas e muito mais são inclusos no "Big Data. Nesse caminho, os dados são adquiridos, datificados, abstraídos, agregados, analisados, empacotados, vendidos, posteriormente analisados e vendidos novamente". Com efeito, resulta na redefinição dos dados como resíduos e a sua extração e eventual monetização possuem menores chances de serem contestadas²⁰ (tradução nossa).

    O progresso quantitativo e qualitativo da gestão da informação se configura no Big Data. É um ápice desse processo, pois se trata de uma tecnologia contendo um volume descomunal de dados para estruturação e analisado para representar uma série indeterminada de finalidades com o exercício da tomada de decisões.²¹

    O Big Data possui três características que se associam: volume, velocidade e variedade. Volume e variedade são as tecnologias excedentes da capacidade de armazenamento e processamento de dados e informações. A velocidade é a possibilidade de organizar quantidades antes inimagináveis, dos bits aos yottabytes, por diversos formatos, textos, imagens, vídeos etc. com o processamento em alta velocidade. Quanto ao volume de dados processados, torna-se possível a correlação de uma série de fatos, contendo dados, para estabelecer relações, desvendar padrões de comportamento pessoal e concluir a probabilidade de situações futuras dos usuários da rede.²²

    O Google foi considerado o pioneiro do Big Data e explorador da acumulação que se denomina o capitalismo de vigilância, tendo o Big Data como uma condição e uma expressão.²³

    A exploração da atividade publicitária já era algo altamente rentável e conduziu para uma nova estratégia comercial, trazendo receitas publicitárias com um novo modelo de negócio zero-price advertisemente business model, ou seja, o consumidor não realiza o pagamento direto por um bem de consumo mediante uma prestação pecuniária ("zero-price"). Esse novo modelo econômico na sociedade da informação atual se baseia na alocação dos dados pessoais como um novo ativo econômico, com a utilização dos dados pessoais fornecidos pelos usuários da internet para entregar uma publicidade direcionada chamada de advertisement business model. Isso pela equação econômica do acesso aos serviços e produtos considerados gratuitos (redes sociais, e-mails, mecanismos de busca, softwares etc.) mediante a cessão de dados pessoais em troca de publicidade direcionada. Enfim, os usuários não pagam um valor monetário pelo produto ou serviço, mas fornecem os seus dados pessoais, possibilitando o direcionamento de conteúdo publicitário, pago com a receita indiretamente por um bem de consumo (advertisement business model).²⁴

    Consequentemente, se mobiliza para um meio de monetização dos dados pessoais como um formato de uma nova economia mundial. Uma economia baseada na vigilância e no rastreamento dos passos praticados pelos usuários no mundo cibernético através do uso de técnicas da inteligência artificial por meio dos algoritmos.²⁵

    Conforme salienta Shoshana Zuboff, vivemos atualmente em um mundo globalizado pelo capitalismo de vigilância. Neste contexto, a experiência humana [serve] como matéria-prima para a tradução em dados comportamentais. Serve como aplicação para o aprimoramento de produtos e serviços, uma espécie de superávit comportamental do proprietário, ao inserir dados e informações pessoais que resultará em produtos de predição para antecipar o que uma determinada pessoa fará no momento ou em circunstância posterior. Esses produtos de predição comportamentais dos usuários são um novo tipo de modelo do mercado capitalista, que se denomina de mercados de comportamentos futuros.²⁶

    O padrão moderno de mercantilização e monetização decorre dos dados sobre os comportamentos de corpos, mentes e coisas que se situam no índice dinâmico universal em tempo real inseridos em um domínio global infinito de coisas conectadas. Este novo fenômeno produz a possibilidade de modificar os comportamentos de pessoas e coisas para obter lucro e controle²⁷ (tradução nossa).

    Os capitalistas de vigilância buscam resultados lucrativos com o uso desse método de processamento de dados e informações preditivas. Houve uma mudança no mundo corporativo, em que os "processos de máquina automatizados não só conhecem nosso comportamento, como também moldam nosso comportamento em escala".²⁸ O aspecto corporativo, diante de um compartilhamento expositivo da sociedade, acaba gerando comportamentos dos fluxos e inundações de dados sobre preferências, hábitos, opiniões e compromissos de usuários de tecnologia digital que podem ser usados para publicidade ou, talvez mais apropriadamente, para a construção de sujeitos consumidores.²⁹

    Quanto mais usuários entregam dados e informações, se consolida uma alta distribuição de dados que traz melhoramentos relevantes para o valor preditivo das análises e traz resultados mais lucrativos, pois o que é significante é a quantidade de dados e não a qualidade, para que os comportamentos humanos nas redes possam ser capturados e convertidos em dados.³⁰

    No capitalismo industrial, o poder era identificado por meio da propriedade dos meios de produção; na sociedade atual, o poder de propriedade é identificado com os meios de modificação comportamental.³¹ Diferentemente do que ocorria no capitalismo industrial, em que se utilizava dos meios de produção, atualmente, no capitalismo de vigilância dentro do mercado competitivo, praticam-se os meios de modificação comportamental para estabelecer um poder instrumentário altamente lucrativo. O exemplo disso recentemente é o Google, que aperfeiçoou o capitalismo de vigilância, mas que não é o único nessa experiência, sendo que o novo modelo capitalista se espalhou para o Facebook, Microsoft, Amazon e Apple, que são corporações gigantes que dominam esse novo modelo econômico de mineração de dados. O novo protótipo mundial está se expandindo muito mais, com setores, empresas, startups, desenvolvedores de aplicativos e investidores com o intuito de atuação exploradora do capitalismo de informação.³²

    O uso das transações mediadas por computador passa a ser um meio facilitador e prático para a extração e análise de dados, novas formas contratuais devidas a melhor monitoramento, personalização e customização e experimentos contínuos. São métodos traçados pelo capitalismo de vigilância que decorre da inovação da inteligência de máquinas com as operações computacionais utilizadas constantemente como análise preditiva ou inteligência artificial. As operações, desse modo, são convertidas em matéria-prima, sendo altamente lucrativos produtos algorítmicos criados para predizer o comportamento dos usuários.³³

    A facilidade na extração de dados diante da fácil disponibilização de serviços a serem acessados online se forma como uma arquitetura de extração dentro de um exercício na acumulação do superávit comportamental do exemplo do Google no processo de execução no capitalismo de vigilância, conforme descreve Shoshana Zuboff:

    Os depósitos de superávit comportamental do Google agora abarcam tudo que faz parte do meio on-line: buscas, e-mails, textos, fotos, canções, mensagens, vídeos, localizações, padrões de comunicação, atitudes, preferências, interesses, rostos, emoções, doenças, redes sociais, compras e assim por diante. Um novo continente de superávit é confeccionado a cada instante a partir dos muitos fios virtuais da nossa vida cotidiana quando elas colidem com o Google, o Facebook e, de forma mais geral, com qualquer aspecto da arquitetura mediada por um computador com acesso à internet. De fato, sob a direção do capitalismo de vigilância, o alcance global da mediação pelo computador é redefinido como uma arquitetura de extração. [...] a expansão contínua da arquitetura de extração para adquirir matéria-prima em escala a fim de alimentar um dispendioso processo que gera produtos de predições que atraem e retêm mais clientes.³⁴

    A performance da prática do capitalismo de vigilância por meio da aplicação dos algoritmos permite ao Facebook, Google, Apple, Microsoft, Amazon e operadoras de telefonia (Verizon e AT&T nos Estados Unidos) uma obtenção de informações de dezenas de milhões de pessoas para medição do impacto das palavras proferidas e links compartilhados. Isso possibilita uma aquisição relevante de poder diante da vasta informação obtida por grande parcela da humanidade, tendo como foco somente a obtenção de lucros.³⁵

    Essas circunstâncias denotam ao que o autor David Lyon chama de cultura da vigilância, em relação às nossas interações cotidianas com a vigilância digital. A modernidade digital se torna um produto contemporâneo da cultura da vigilância com a incorporação das situações da vida cotidiana nas infraestruturas de informação e a expansão da dependência do digital nas relações cotidianas.³⁶

    Conforme se intensifica o uso crescente das nossas relações sociais com a mediação digital, os indivíduos possuem uma ampla participação de modo mais consciente e ativo, sem estar somente sujeitos a serem alvos de vigilância. A ocorrência proeminente com a inserção por meio das mídias sociais e do uso da internet que fortifica aos exercícios constantes de vigilância.³⁷ A exposição na rede leva ao entendimento de uma vivência na sociedade da exposição, ocasionando a vigilância de membros digitais sobre a vigilância de usuários que compartilham os seus aspectos de vida, e passam a ser avaliados por manifestações virtuais, como as curtidas ou com o compartilhamento de um conteúdo mais amplo.³⁸

    O que se evidencia nos dias atuais é uma vigilância constante sobre a sociedade por meio do uso das tecnologias de informação e comunicação, principalmente nas redes sociais, em que todos os usuários passam a ser vigiados. Essa ideia vai de encontro ao modelo do panoptismo idealizado por Jeremy Bentham (1785), e discutido por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir, em que menciona a uma organização social com aprofundamento das vigilâncias e dos controles exercidos pelo poder.³⁹ Trata-se de um modelo panóptico, que corresponde a uma estrutura arquitetônica de uma prisão circular com uma torre de vigilância no centro e celas prisionais com janelas largas que possibilitam vigiar os presos. Os prisioneiros, portanto, não sabiam quando estavam sendo vigiados, mas, atualmente, toda essa visão pode se enquadrar na existência de uma vigilância digital por meio de uma sociedade ambientada no mundo virtual, que observa situações cotidianas da esfera privada alheia.⁴⁰

    Neste sentido, Michel Foucault expõe, em sua obra, que a forma fiscalizatória do panoptismo se aplicava em instituições, hospitais, escolas, indústrias e manicômios como um aparelho de controle sobre os próprios mecanismos exercidos. O panoptismo é uma vigilância constante como aspecto central das massas populacionais, ou seja, uma forma de induzir um estado permanente de visibilidade aos destinatários de vigilância.⁴¹

    O convívio cotidiano dos usuários na vida digital é intenso mediante a produção de conteúdo digital, as comunicações eletrônicas, postagens, curtidas, localizações geográficas e a disseminação de dados e informações na rede, tem sido amplamente monitorado e vigiado com o uso dos serviços online pelas grandes empresas de tecnologia, como o Google, Facebook, Microsoft, Apple, Amazon etc. Esse poder de vigilância constante na era digital é o novo panóptico.⁴²

    A privacidade tem sido diminuída com as interações online, pois os usuários ao manifestarem conteúdo das suas esferas íntimas e privadas (informações de cunho pessoal e familiar), propagam o fornecimento de dados e informações pessoais, cuja vontade é a de expor na internet. Essa superexposição virtual decorre de uma necessidade constante de ganhar a atenção e destaque no meio social, por meio de postagens virtuais destinadas a uma massa de cidadãos que interagem no mundo cibernético. O panoptismo está inteiramente presente nos dias de hoje, pois quanto maior o número de informações dos indivíduos conectados na internet, maior controle se terá sobre essas pessoas, pois tudo está armazenado e vigiado na rede.⁴³

    O laboratório do poder, como é conhecido o modelo panóptico, se verifica pelo modo de observar e predizer o comportamento do indivíduo por meio de iniciativas que conduzem a transformação em suas ações. Essa ideia tem a seguinte concepção: [...] ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies do seu exercício.⁴⁴ O uso das tecnologias torna possível a violação da privacidade, com a interação de indivíduos em processos específicos de comunicação em contextos institucionais específicos, proporcionando formas tradicionais de controle político e organizacional em face dos indivíduos na rede.⁴⁵

    O pensamento do panóptico é como um espelho da modernidade em diversos aspectos relevantes, um panóptico atualmente vivo e bem de saúde, que é levantado por Zygmunt Bauman e David Lyon, citando a ideia de Jeremy Bentham, e reforçada por Michel Foucault. De acordo com os autores, o panóptico hoje que se apresenta no mundo moderno mais encorpado e eletronicamente reforçado, ciborguizado.⁴⁶ A tecnologia de vigilância é tratada como ban-óptico que age como um equipamento de vigilância, com o intuito de se manter a distância ao invés de se manter dentro, como fazia o panóptico. No mundo atual, a preocupação do panóptico é com a segurança ao invés de exercer o método disciplinador, como é o do modelo panóptico. Essa tecnologia de vigilância se propõe a aplicar dois objetivos estratégicos antagônicos, do confinamento, ou seja, cercar do lado de dentro, e da exclusão, que é cercar do lado de fora.⁴⁷

    Esse raciocínio da exclusão com a vigilância exercida do lado de fora é ligado ao modelo do capitalismo de vigilância levantado por Shoshana Zuboff⁴⁸, que menciona as transações mediadas pelo computador como observação dos comportamentos como novos modelos de negócios. O monitoramento digital possibilita fiscalizar as atividades dos usuários na rede, por meio do uso dos dados dos "smartphones – geolocalização, marcação de horário, fotos – para ‘provar’ que eles realmente realizaram suas atividades conforme previsto no contrato".

    Trata-se de uma nova arquitetura descrita como Big Other (Outro grande) que fiscaliza as atividades no ambiente virtual para atingir a monetização e o lucro. O panóptico permitia a vigilância em um único ponto de observação de um lugar físico dos comportamentos específicos daqueles que estivessem dentro do panóptico, mas, com o abandono daquele lugar, o comportamento era deixado de lado. A associação do panóptico com o modelo do capitalismo de vigilância ocorre com a observação, influência, predição e com a modificação da totalidade da ação no ambiente virtual que se identifica como uma propriedade dos meios de modificação comportamental. O rastreamento digital age na captura secreta de dados que invade e viola os direitos de privacidade, pois se deslocam para o interior do regime de vigilância com o intuito de privar as escolhas dos cidadãos daquilo que deseja manter em sigilo, com a intromissão dos direitos alheios sem o consentimento praticado pelas empresas capitalistas de vigilância para o alcance do lucro. O capitalismo de vigilância se enquadra em uma nova lógica de acumulação, como uma nova política e relações sociais que substituem os contratos, o Estado de direito e desfaz a confiança social trazida pela soberania do Big Other.⁴⁹

    Manuel Castells traz uma brilhante ilustração contemporânea da vigilância exercida por meio dos cookies. Vejamos:

    As tecnologias de identificação incluem o uso de senhas, cookies e procedimento de autenticação. Os cookies são marcadores digitais automaticamente inseridos por websites nos discos rígidos dos computadores que se conectam com eles. Uma vez que um cookie foi inserido num computador, este passa a ter todos os seus movimentos on-line automaticamente registrados pelo servidor do website que fez a inserção. Procedimentos de autenticação usam assinaturas digitais para permitir que outros computadores verifiquem a origem e as características do correspondente que interage com eles. Baseiam-se frequentemente em tecnologia de criptografia. A autenticação opera muitas vezes em camadas, com usuários individuais sendo identificados por servidores que são eles próprios identificados por redes.⁵⁰

    Esse desenvolvimento tecnológico do século XX proporcionou o aumento expressivo da capacidade de agir a distância. A execução a distância é uma unidade avançada do exército de vigilância, aprimorando as inovações tecnológicas no sentido de atender às necessidades de aprimoramento nas relações de comunicação, para usos comerciais e de marketing. Na distância física, a separação se dá através das torres de vigilância, enquanto na era digital é reduzida a zero pelo uso das tecnologias eletrônicas da comunicação em tempo real, como se tem vivenciado ultimamente com os aplicativos das plataformas digitais de informação e comunicação.⁵¹

    As formas de comunicação atualmente estão interligadas de modo muito mais estreito: mesmo que a distância seja longa, os meios tecnológicos proporcionam maiores fluxos de interlocução em âmbito digital. Faz parte da sociedade da informação, que muda e dita os comportamentos sociais, aperfeiçoando os meios comunicativos, os relacionamentos interpessoais, as relações de consumo e a sociedade propriamente dita.⁵²

    O que se verifica é uma alternativa mais acertada de estabelecer uma comunicação mais viva e intensa da sociedade em um mundo globalizado, mediante dados e informações pessoais armazenados com abundância nos meios tecnológicos. Isso torna mais disponíveis detalhes minuciosos do passado, que podem refletir de forma negativa no presente e no futuro de cada pessoa, que se torna refém da enorme contingência de fatos e situações mantidos de forma permanente no ambiente tecnológico. A perspectiva do direito a ser esquecido, para se firmar uma existência humana, não tem sido abraçada pelos imperativos econômicos do capitalismo de vigilância, vigente na sociedade da informação atual que busca sempre produzir o implacável impulso de extrair e reter informação.⁵³

    Portanto, enquanto, para os indivíduos, a informação seria envelhecida e esquecida, os registros memorizados pelas tecnologias de informação e comunicação, as vivências pretéritas, sempre serão informações mantidas jovens, ligadas a cada identidade digital de cada pessoa, trazendo riscos para a dignidade e a privacidade dos indivíduos.⁵⁴ As tecnologias que queremos exigir que sejam esquecidas não foram projetadas para esquecer. Nossa memória digital não são as decisões sobre o que postar (pegada digital), mas o que os outros decidem postar sobre nós. O que está em jogo é o que essa informação faz conosco e também com os outros.⁵⁵ (tradução nossa).

    Enfim, em uma sociedade que está sempre se mobilizando com as novas descobertas da tecnologia, o que se alcança é um maior compartilhamento de dados e informações digitalizadas, em que computadores e aparelhos eletrônicos permitem resgatar lembranças de todas as formas, trazendo o passado para o presente de modo eterno. Isso resulta grandemente na invasão da esfera privada, podendo violar gravemente os direitos da personalidade de cada cidadão. O exercício da ação do direito de ser esquecido advém como um instrumento técnico-jurídico delimitado, com o intuito de se resguardar no âmbito privado e contribui para ao menos tentar obstar a perseguição permanente do indivíduo ao longo da vida com fatos pretéritos.⁵⁶

    A decisão tomada pelo STF no julgado do Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, em 2021, que desconheceu a existência concreta de um direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, chegou à conclusão que deve prevalecer a liberdade de informação em detrimento do esquecimento de dados e informações pessoais, corroborando a existência de diversos dispositivos esparsos que são suficientes para a proteção da personalidade e da privacidade da pessoa. A Corte teve como base a inexistência de um conceito definido de direito ao esquecimento e da ausência normativa da matéria, inclusive a não menção da terminologia do direito ao esquecimento na decisão do Tribunal da União Europeia no caso de Mario Costeja Gonzalez e Google da Espanha. Os elementos essenciais do direito ao esquecimento, tais como: licitude da informação e o decurso do tempo: o aspecto temporoespacial presentes no conteúdo decisório do Supremo, não são permissíveis para o enquadramento da tutela do direito de esquecer.

    A deliberação do STF deixou uma ressalva configurada no julgado dos resquícios no tocante à ponderação: seguindo a autorização constitucional, o legislador brasileiro, em inúmeras ocasiões, procedeu à ponderação entre direitos fundamentais na direção da máxima proteção aos direitos da personalidade, restringindo, em alguma medida, a liberdade de expressão.⁵⁷ Resta averiguar se essa abertura possibilita observar a temática de proteção da personalidade em geral, se atenua de fato a concretização de um direito ao esquecimento ou se oportuniza os traços característicos e peculiares do avanço de uma consolidação de um direito ao esquecimento como uma proteção distinta que encontra contornos no direito brasileiro, com parâmetros advindos do princípio da dignidade da pessoa humana e fundamentado nos direitos da personalidade.

    1.2. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

    A percepção inicial da dignidade humana advém da premissa de o ser humano ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, concepção que foi defendida pelo judaísmo, e posteriormente pelo cristianismo. Surge o entendimento de o ser humano ser dotado de valor próprio, não podendo ser objeto ou instrumento de ação alheia.⁵⁸

    A dignidade da pessoa humana, conforme o pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, se consolidava de acordo com a posição social ocupada por cada pessoa e dependia do grau de reconhecimento por outros membros da comunidade. Havia uma modulação da dignidade, em relação ao antagonismo existente entre pessoas mais dignas ou menos dignas. A conexão da noção de dignidade humana se pautava pelo respeito e a consideração que cada ser humano possuía.⁵⁹

    Com a evolução do pensamento através das noções do jurisconsulto, jurista e filósofo Marco Túlio Cícero, há uma desvinculação da compreensão da dignidade estritamente ligada ao cargo ou posição social do indivíduo, passando a ser reconhecida por um sentido moral, nos aspectos pessoais de mérito, integridade, lealdade e no aspecto sociopolítico de dignidade.⁶⁰

    Nos séculos XVII e XVIII, com a vigência do pensamento jusnaturalista, a dignidade humana, e a ideia estrita do direito natural em si, passa por um processo de racionalização e laicização (secularização), trazendo a ampla caracterização fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade.⁶¹

    Após um conturbado período do século XX, diante das atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial contra a humanidade, a dignidade do ser humano passa a ser o foco central do pensamento filosófico, político e jurídico. A dignidade da pessoa humana atinge um valor fundamental da ordem jurídica, passando a ser incluída em um grande número de normas constitucionais, principalmente aquelas que possuem características de um Estado Democrático de Direito.⁶² A consagração da dignidade humana como parte do fundamento da liberdade e como valor central da ordem jurídica mundial acabou influenciando as novas Constituições após a metade do século XX, incorporando a existência do Estado Democráticos de Direito.⁶³

    No pensamento de José Gomes Canotilho, com as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos), a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento da pessoa (homo noumenon), que o ser humano é, como limite e fundamento do domínio político da República. A República como organização política deve servir as pessoas, não sendo papel dos cidadãos servirem aos aparelhos estatais.⁶⁴

    Após um período de atrocidades da Segunda Guerra Mundial, nasce a exigência de uma evolução internacional de proteção dos direitos humanos, com a dignidade da pessoa humana no sentido de se exigir uma proteção dotada de universalidade e a necessidade de uma sistematização desse amparo em âmbito mundial. O destaque

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