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O Pêndulo de Deus
O Pêndulo de Deus
O Pêndulo de Deus
E-book577 páginas8 horas

O Pêndulo de Deus

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Sobre este e-book

Cècil, um auditor de projetos humanitários, vê-se envolto em uma turva história que persegue um dos segredos mais antigos da humanidade e na qual Azul, uma bela mulher especialista em tráfico de arte, e da qual foi namorado, encontra-se misteriosamente envolvida. Porém, é uma estranha mulher chamada Mars quem o ajudará a elucidar o segredo e o transformará em uma testemunha excepcional no momento culminante de suas vidas.

Uma extraordinária história, recheada de intrigas e escrita com a primorosa narrativa envolvente de Jordi Díez. Mais de 100.000 exemplares vendidos, figurou por muitos meses entre os dez primeiros lugares do top 100 geral da Amazon. Agora, através das Ediciones B.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento17 de nov. de 2023
ISBN9781667466330
O Pêndulo de Deus

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    O Pêndulo de Deus - Jordi Diez Rojas

    O Pêndulo de Deus

    Jordi Diez Rojas

    ––––––––

    Traduzido por Vinicius Peixoto 

    O Pêndulo de Deus

    Escrito por Jordi Diez Rojas

    Copyright © 2023 Jordi Diez Rojas

    Todos os direitos reservados

    Distribuído por Babelcube, Inc.

    www.babelcube.com

    Traduzido por Vinicius Peixoto

    Babelcube Books e Babelcube são marcas comerciais da Babelcube Inc.

    Título da edição: O Pêndulo de Deus

    Edição especial: Kindle Edition 

    Desenho de capa: www.jordidiez.com

    Tradução para o Português: Vinicius José Moreira Peixoto

    © Jordi Díez 2011

    © da presente edição, Jordi Díez

    ISBN: 978-1-59754-737-6

    Todos os direitos reservados

    Está proibida a reprodução total ou parcial deste livro, seu tratamento digital, a transmissão sob qualquer forma ou por qualquer meio, seja eletrônico, mecânico, por fotocópia, registro ou outros métodos, sem a permissão prévia e por escrito dos titulares do Copyright.

    ––––––––

    Traducción de la portada: O PÊNDULO DE DEUS – Durante séculos, uma misteriosa comunidade essênia tentou manter em segredo a única prova da vida real de Jesus... até agora.

    O PÊNDULO DE DEUS

    Jordi Díez

    Ao meu pai,

    com todo o amor, respeito e gratidão

    que posso guardar em mim

    1

    Finalmente, nas primeiras horas da manhã, estava tudo pronto para abrir o leilão.

    Fui o primeiro a chegar ao Hotel Arts, identifiquei-me no saguão com um nome escolhido para o momento e subi para o quarto, sozinho. Haviam reservado uma suíte no lendário hotel para dificultar a identificação, caso algo não saísse como previsto.

    Verifiquei o número do quarto na placa ao lado da porta, dei uma olhada pelos corredores e, quando tive certeza de que ninguém havia me seguido, introduzi o cartão magnético na ranhura. Depois de um leve clique, empurrei a pesada porta e entrei. Uma lâmpada fria de design iluminou o corredor até a sala principal, eu o atravessei, deixando o par de maletas com os equipamentos no piso de madeira. Observei a sala, grande, com duas portas basculantes (imaginei que fosse uma para o banheiro e outra para o dormitório) e uma grande janela frontal de vidro coberta por uma cortina opaca. Abri a cortina, e a vista infinita do Mar Mediterrâneo, pela primeira vez nas últimas quarenta e oito horas, acalmou um pouco meus nervos.

    Tirei meu computador da maleta, coloquei-o em uma das mesas da escrivaninha e fiz os ajustes necessários para me conectar à rede sem fio do hotel. Depois de digitar as senhas necessárias, o ícone de cadeado minúsculo na tela do computador me confirmou a conexão segura; então, tirei um segundo monitor da outra maleta, conectei-o como um periférico ao meu computador e o coloquei sobre uma mesa lateral e, em frente a ela, coloquei um par de poltronas para que os dois convidados, que haviam me prometido que viriam, pudessem acompanhar o leilão sem montarem nas minhas costas.

    Precisei de quase a noite inteira para carregar as fotografias, os textos e os preços do catálogo na base de dados que Martí havia me deixado, mas agora, já estava tudo pronto.

    Aproveitei que ainda tinha quase duas horas de margem até o meio-dia, quando tudo começaria de verdade, e me servi de um pequeno café da manhã do generoso frigobar. Quando tomava o último gole de suco, bateram à porta. Abri, e entraram o padre Carles, que talvez nem fosse padre e nem Carles, estava certo que usava um nome falso, e o senhor Navarro. Dei-lhes as boas vindas. Faltava pouco mais de uma hora para o início do leilão, e a conversa se manteve afastada do tema até trinta minutos antes da hora de abertura. Então, fiz algumas perguntas em relação à preparação e lhes mostrei, por cima, qual seria o procedimento dos pagamentos, os lances e os abandonos, se é que estes últimos aconteceriam. Os produtos leiloados estavam preparados para que, à medida que se finalizassem os lances e se comprovassem as cobranças, seriam vinculados a um número secreto que o comprador receberia e que lhe serviria para reclamar o pedido em algum lugar seguro. Certifiquei-me de que todos os compradores já estavam avisados. Não era necessária nenhuma chave de segurança para entrar na rede do leilão, exatamente como disse a eles, porque o endereço IP da página só era conhecido por aqueles que o receberam, e depois, desapareceria para sempre. O servidor de conexão havia sido contratado de uma empresa de Andorra, e a base de dados estava hospedada em um canadense. Um trabalho excelente de Martí. Se se tratasse de algo perpétuo, as medidas de segurança seriam maiores, mas sendo algo único e muito breve, não necessitava de maiores preocupações. Pareceram convencidos, ainda que nervosos. Dez para o meio-dia; neste momento, desejei desconectar tudo e desaparecer dali, mas já era tarde, o primeiro pedido de conexão piscava nos monitores. Nós três nos olhamos e eu me pus em meu lugar, o teclado. O padre Carles e o senhor Navarro se acomodaram em frente ao outro monitor. Para garantir a segurança e o anonimato dos compradores, só conhecíamos o nome na chave. Ao primeiro pedido, somaram-se mais doze e, na hora prevista, doze em ponto, treze desconhecidos começaram os lances pelos quarenta e sete objetos roubados do passado. A maioria era pergaminhos e pequenas figuras de virgens e santos, também alguma pintura de tamanho reduzido. Supus que o conteúdo do leilão havia sido selecionado mais pela facilidade de seu transporte do que pelo seu possível valor.

    Quase todos os lances foram definidos mais ou menos em seu início. Imaginei que os colecionadores, cuja natureza não fazia ideia, sabiam muito bem que peça, ou que peças, eram de seu interesse. De toda forma, havia um mecanismo previsto caso algum artigo fosse objeto de múltiplos lances nos últimos dois minutos do leilão: que este se estendesse automaticamente em períodos de mais dois minutos até culminar na venda.

    Se, com sorte, isto não acontecesse, em apenas cinco minutos as cobranças seriam certificadas para que o programa enviasse as senhas necessárias para retirar a mercadoria, e adeus. Todo este assunto iria para a lixeira da minha memória. Minhas mãos suavam e não via o momento de acabar. De repente, uma piscada na tela anunciou um lance quase simultâneo de dois compradores por um mesmo objeto, uma folha de pergaminho escrita dos dois lados e tingida de púrpura. A fotografia, reduzida a menos de um centímetro na tela, permitir ver uma folha antiga com miniaturas desenhadas nas duas margens.

    O primeiro comprador, que se identificou como [Capillus], ofertou cem mil euros de cara pelo documento. Olhei de relance aos meus dois companheiros de quarto e os vi tensos, agarrados aos braços das poltronas, as pontas de seus dedos brancas devido à pressão contra a madeira acolchoada, e suas testas molhadas por pequenas gotas de suor. Nas outras peças, a que havia alcançado maior valor chegava apenas aos quinze mil euros, uma escultura da Virgem com o Filho feita em madeira policromada, de uns quarenta centímetros de altura e datada do ano 1566. Mas cem mil euros era muito. Ainda estávamos nos recompondo da cifra quando o outro, que havia se identificado como [Conversum], fez um lance que, por fim, pareceu definitivo, um milhão de euros.

    Dois minutos mais tarde, a página foi desconectada e o endereço IP, assim como os dados de todos os participantes, foram automaticamente apagados do servidor. Apenas a janela conectada à Suíça permaneceu ativa, com um saldo que piscava de um milhão trezentos e trinta e sete mil euros.

    O senhor Navarro se levantou, suspirou e, antes de sair do quarto, enganchou o celular à orelha. A camisa havia grudado em suas costas de tanto suor, e as calças lhe caiam de maneira ridícula até a metade dos glúteos. O padre o seguiu com o olhar antes de desvia-lo até mim, mais sereno do que seu companheiro, e me perguntou se precisava de ajuda para desconectar e recolher os equipamentos. Agradeci-lhe a oferta, mas declinei. A única coisa que queria era ir embora o quanto antes. Deu-me a mão e saiu.

    Os raios de sol que entravam pelas amplas janelas atravessaram impunes a tensão de duas horas e meia acumulada em um monitor frio, arrematado com uma cifra escandalosa.

    Neste momento, lembrei-me da capa vermelha e preta do velho livro de meu pai e compreendi, sem necessidade de mais provas, que havia cometido um grave erro ao aceitar o trabalho. Mais um para adicionar à minha lista vital. 

    2

    Migdal, Israel, ano 5 d.C.

    Haviam me mandado recolher os ovos de galinha. Tinha que coloca-los em umas caixas de madeira que meu pai e meu haviam feito, mas como nunca os faziam direito, tinha que percorrer todo pátio para encontra-los. Até que não restasse nenhum ovo, não podia brincar com elas, nem lhes arrancar as penas para prendê-las em meu cabelo, e nem voltar para casa.

    Nesta manhã, meu pai e meu irmão tampouco haviam saído para colher as oliveiras. Levavam dias sem fazê-lo, muito quentes, deitados no chão da casa. Minha mãe os cobria com panos que molhava na água do poço.

    Meu irmão se chamava Josué, assim como meu pai.

    Ainda estava na parte de trás recolhendo os ovos quando escutei que pessoas se aproximavam da parte dianteira da casa. Não nos vinham visitar muitas pessoas, só às sextas-feiras, porque vendíamos ovos e algumas galinhas. Mas hoje não era sexta-feira, era sábado, e estava proibido por alguma lei que se recolhessem os ovos no sábado. Sempre me diziam que, se alguém viesse e eu estivesse recolhendo ovos, ou limpando a casa, que deixasse tudo o que estivesse fazendo para que não me levassem presa. Escondi a cesta e entrei bem rápido em casa pelo estábulo onde guardávamos o burrico.

    A casa estava cheia de gente que abraçava minha mãe. Uma das senhoras, que vinha quase toda sexta-feira buscar ovos, correu até mim com um véu que lhe cobria o rosto e o cabelo e me agarrou.

    - Pobrezinha, pobrezinha.

    Eu procurei minha mãe enquanto tentava me soltar da senhora. Alguém havia coberto meu pai com um longo lençol branco que não o deixava respirar, e ninguém parecia se dar conta disto. Papai não poderia tirá-lo sozinho. Chamei minha mãe aos gritos até que, finalmente, ela veio e me pegou em seu colo. Queria lhe explicar sobre o lençol, mas ela acariciou meus cabelos e me deu um beijo que molhou meu rosto.

    - Agora, o que importa é que somos nós duas, e também Josué – disse-me.

    - Tenho certeza de que os irmãos de branco podem curar seu filho, fique tranquila, nós cuidaremos das oliveiras e de seus animais. Sem um homem na casa, como vai viver?

    - Mas não tenho como lhes pagar – respondeu minha mãe a o senhor que lhe acabara de falar.

    - São bons judeus, uma amiga de minha cunhada chegou lá com uma dor terrível nas costas e a curaram sem lhe pedir nada em troca.

    - Uma vez eu vi um em Nazaré, vestia branco e flutuava ao caminhar – disse outro senhor.

    Todos falavam enquanto mamãe concordava e, comigo no colo, passava panos molhados sobre meu irmão. Já não estava junto ao meu pai, haviam o separado em um lado da casa.

    Quando ficou de noite, levaram-no e mamãe me explicou que havia morrido e que se reuniria com Deus, e que nós duas deveríamos cuidar de Josué para que não se fosse também. Eu a vi recolher algumas coisas da casa e coloca-las em uma manta, que amarrou no burrico. Eu a ajudei. Além disto, colocou algumas moedas em uma bolsa que amarrou a sua cintura. Depois, fomos dormir.

    A lua era tão grande que entrava pelas rachaduras no teto e não me deixava dormir. Não entendia muito bem o que haviam me explicado, mas mamãe me disse não voltaria a ver papai e que, se não cuidássemos de Josué, também ele iria. Tive vontade de chorar.

    Antes que saísse o sol, levantamo-nos e ela me explicou que, neste dia, não recolheria os ovos das galinhas.

    Os homens que levaram papai haviam feito uma carroça para meu irmão, que só se movia para tossir. Estava muito quente, e como não tínhamos muita água, não o podíamos molhar. Então, a pele ficava amarela e ele tossia mais. Eu estava sentada entre seus pés e deixava os meus balançando enquanto mamãe puxava o burrico. Uma vez, paramos para comer pão e figos.

    O caminho estava cheio de poeira, e o sol nos queimava a cabeça e os braços. A poeira das patas do burrico e das rodas entrava em meu nariz e não me deixava respirar. Eu queria caminhar, mas me cansava e tinha que voltar a subir na carroça. Mamãe me explicou que tínhamos que chegar até o rio Arnon. Eu nunca havia visto um rio, e ela me disse isso uma vez.

    - E quando chegarmos ao rio, iremos até o mar. E o cruzaremos. Depois de uns dias, chegaremos. Oxalá que o Todo Poderoso nos permita.

    E isso é tudo o que pude entender. Ficava muito aborrecida e sentia falta de minhas galinhas.

    Na manhã seguinte, chegamos ao rio. Disse à mamãe que o poço de onde vinha essa água deveria ser muito grande, mas ela riu e me disse que não vinha de um poço. Perguntei a ela de onde vinha e me disse que era da chuva. Depois, foi falar com uns homens que vestiam túnicas curtas e subimos em um barco que corria por dentro do rio.

    O barco estava cheio de sacos de trigo e, nas duas margens do rio, erguiam-se palmeiras cheias de tâmaras. Os homens das túnicas curtas me disseram que, quando fizesse uma pouco mais de frio, iriam colhê-las para vender, e eles as levariam até Jerusalém, Belém e Jericó. O vento inflava uma vela amarrada a um mastro bem no meio do barco, que rangia toda vez que a força variava. Eu imitava com a boca. Íamos bem devagar, com o burrico, mas os homens me disseram que, às vezes, o vento era tão forte que nos fazia voar. Eu não acreditei.

    Quando chegamos à margem, havia umas carroças para carregar o trigo. Mamãe os ajudou a descarregar os sacos e descemos. Os homens descarregaram nossa carroça com Josué e caminhamos atrás deles até um povoado muito grande. Eu nunca havia visto tanta gente nem tantas casas juntas. Os homens que puxavam as carroças colocaram os burros em um estábulo muito grande e entraram em uma casa onde se ouviam as risadas do lado de fora. Nós dormimos no estábulo, como nosso burrico. Um senhor com os cabelos muito brancos nos trouxe umas tinas de água, e mamãe banhou Josué e a mim antes de deitarmos. Ela levava a cabeça coberta com um véu negro desde que saímos de nossa casa.

    Pela manhã, mamãe falou com um homem e fomos embora.

    Caminhamos o dia todo até que chegamos onde curariam Josué. Mamãe buscou um lugar para passarmos a noite e, pela manhã, fomos procurar os irmãos de branco, como ela me disse.

    3

    Na vida, é importante saber dizer não, mas sempre pensei que quem nega muitas vezes morre um pouco em cada uma.

    Quando era criança, meu pai chegou uma noite em casa com um livro debaixo do braço, um livro grosso de capa vermelha e preta, com um titulo enigmático que ficou gravado em minha memória para sempre, Aprenda a dizer NÃO.

    Creio que teria me ajudado se o tivesse lido alguma vez, porque, na maioria das vezes, só consigo compreender o erro quando já é tarde demais para remedia-lo. Por isso acredito, pelo título, que o livro ensina a corrigir isso. Agora, enquanto ocupava meu assento no Airbus 330 1u3 deveria me levar de Lima a Madri, um dos passageiros tinha o mesmo livro debaixo do braço, trinta e tantos anos depois de tê-lo visto pela primeira vez. Não pude evitar um sorriso e uma lembrança carinhosa de meu pai.

    Esperei que o avião se estabilizasse e perguntei à comissária se já podia utilizar meu notebook. Com um carregado sotaque português, pediu-me que aguardasse até que se apagasse a luz indicadora dos cintos de segurança. Olhei para meu relógio, faltavam mais de dez horas de voo, então, decidi dar um pequeno cochilo aproveitando que o assento à minha direita estava vazio. Quando abri os olhos, a luz havia se apagado. Coloquei o computador no braço de apoio e mergulhei na redação do relatório do meu último trabalho no altiplano peruano.

    Minha função era simples, auditar cada euro gasto para limpar a consciência das acomodadas e endividadas famílias da Europa em programa de ajuda a lugares que jamais visitariam, e dos quais nunca teriam mais notícias além das que aparecessem de vez em quando em um jornal ou na televisão. Desta vez, o trabalha não havia sido muito longo, apenas a construção de uns poços de água potável e sua canalização até os povoados de Pucuto e Pumaorcco, a alguns quilômetros ao sul de Cuzco.

    A contratação da mão de obra, assim como a compra dos materiais, não teria sido possível sem a intervenção de um tradutor local. Seus honorários constam no anexo D, parágrafo 3.7, Gastos Locais, gostaria de saber falar quéchua, mas aquelas pessoas de baixa estatura e pele de espantosa grossura pareciam falar das entranhas em uma língua tão antiga como bonita de se escutar, a língua dos homens, como a chamavam.

    A mesma comissária me perguntou se eu era o passageiro que havia solicitado o menu vegetariano, e me serviu. Antes que os assistentes de voo tivessem finalizado a distribuição de bandejas aos outros passageiros, eu já havia retornado ao relatório, desta vez em uma planilha de cálculo, com todos os lançamentos que havia anotado em meu pequeno diário de mão. Cada gasto, cada movimento, cada documento, tudo ficava registrado neste pequeno caderno.

    Quando a voz do piloto anunciou o início da aterrisagem no Aeroporto de Barajas, a maior do relatório já estava escrita.

    Cheguei a Barcelona na ponte aérea das cinco da tarde. Um empregado da fundação me esperava na porta das chegadas nacionais. Passamos entre os abraços dos recém-chegados com parentes e amigos, e saímos para o estacionamento.

    - Me alegro em lhe ver, senhor Abidal.

    - E eu me alegro em estar em casa.

    - Deseja passar por ela antes da reunião?

    - Que reunião? Não me lembro de ninguém ter me falado para hoje.

    - O senhor Nomis me pediu que o levasse o mais rápido possível para a sede.

    Fiquei surpreso. Não era a primeira vez que me esperavam para algo relacionado com minha viagem, mas sempre em missões mais complexas, mais abrangentes, e supostamente, com muito mais dinheiro ou donativos de certa importância. Só pedi para tomar um bom café no caminho. O veículo, um Renault branco sem distintivos, entrou em Barcelona pela Ronda Litoral. Sempre estranhava a volta à civilização depois de uma viagem, e tinha a sensação de voltar a um mundo vazio, insípido e, em muitos aspectos, desprezível. Aproveitei a lentidão do trânsito para observar o interior dos outros veículos. Pessoas sozinhas, supus que de volta do trabalho, com rostos tristes, taciturnos e sintomas evidentes de cansaço acumulado debaixo de seus olhos.

    O chofer pegou a saída de Colón, fez a volta na rotatória lotada e desviou Rambla acima, até a sede da Diners Nets, a fundação para qual eu trabalhava. Ocupava uma parte do último andar do edifício na rua Rivadeneyra, sede do Arcebispado de Barcelona, em pleno centro da capital.

    Quando o elevador chegou ao décimo andar, recebeu-me um homem gordo, com as calças em um curioso equilíbrio bem no centro de sua generosa barriga, e uns suspensórios quilométricos que as seguravam no lugar. Abriu os braços o mais que pôde e me abraçou.

    - Como estou feliz em te ver, Cècil! Conte-me, como tem passado, que tal o voo, mas me diga algo, homem – e quando me soltou sem deixar que eu articulasse uma palavra, me deu um tapinha nas costas, não soube se como saudação ou para me animar a caminhar em direção à sala.

    Ele era o único sacerdote com acesso a este andar. Desde que comecei no Diners Nets, o bo d’en Pau, como era conhecido, já trabalhava, ou morava, ali. Avancei tranquilo entre as mesas, dando uma espiada de relance para a minha própria para ver a altura dos papéis em meu escaninho, e, sem parar, entrei na sala de reuniões diante dele.

    Na realidade, a sala era um estreito corredor paralelo ao escritório, como um grande tubo branco preenchido em seu interior por uma longa mesa de cor areia. No fim do tubo, estava pendurada uma tela e, alguns metros mais atrás, um projetor que apontava para ela no teto. A mesa estava rodeada por uma dúzia de cadeiras reclináveis forradas em cor azul. O bo d’en Pau se despediu de mim com um último empurrão de apoio e fechou a porta. Sentado no fim da mesa estava meu chefe, Oriol Nomis, o diretor catedrático da fundação, acompanhado de dois homens que não reconheci.

    - Sente-se, Cècil, te esperávamos – Oriol Nomis me estendeu a mão -. Como tem passado, cansado? Não. Bem, é normal, ainda é jovem, espere até à minha idade, então saberá como pesa uma viagem de dez horas. Deixe-me te apresentar a dois bons amigos, o padre Carles e o senhor Navarro. Ambos pertencem à Diocese de Lleida, e são excelentes patrocinadores – reforçou a palavra patrocinadores.

    - Em que posso ajuda-los, senhores?

    - Não lhe disse? Sempre disposto, sempre pronto e de confiança, não há mais pessoas como o Cècil, eu garanto – disse meu chefe ao padre Carles e ao senhor Navarro, enquanto, com um gesto, convidou-me a sentar.

    Quando o fiz, Oriol Nomis acionou um controle remoto e, sobre a tela, começaram a se projetar imagens de figuras de santos, virgens sozinhas ou com o Filho nos braços, quadros com motivos religiosos, e algumas fotos de pergaminhos e livros antigos. Foi uma exposição muito rápida, de apenas um minuto, em que ninguém abriu a boca. Rompeu o silêncio o próprio Oriol Nomis.

    - Sabe quem são? – perguntou-me.

    - Parecem-me antiguidades e, por nossos acompanhantes, suponho que estejam relacionadas à Diocese de Lleida – senti o incômodo dos dois estranhos, sobretudo do padre Carles.

    - De fato, Cècil, são antiguidades, mas de um extraordinário valor. E sabe o melhor? Não são de ninguém porque não estão incluídas em nenhum registro oficial da Igreja – fez uma pausa -. Por isso, fizemos com que viesse com tanta urgência. Além do mais, suponho que também saiba da discrição necessária para continuar tratando deste assunto.

    - Creio que estão com a pessoa errada se o que desejam é um especialista que as avalie, eu não tenho nem a mais remota ideia do valor ou da autenticidade destas peças.

    Oriol Nomis ia falar, mas o senhor Navarro se adiantou.

    - Não queremos que nos diga quanto valem, isso nós já sabemos, queremos vendê-las e precisamos de alguém de extrema confiança que nos ajude a fazê-lo. Como bem disse, o senhor Nomis, a discrição neste assunto é vital.

    Virei-me até meu chefe.

    - Olhe, Cècil, não é o que parece. Não são peças roubadas, se é isto o que te preocupa – quando Oriol Nomis disse isto, o padre Carles se agitou em sua cadeira azul -. Há bem pouco tempo, em uma das igrejas da Franja, descobrimos umas obras em um corredor que havia permanecido oculto durante muitos anos, uns quatrocentos se considerarmos a antiguidade de algumas das peças. O padre Carles é o pároco dessa igreja e o responsável de nos encontrarmos aqui hoje. Quando o padre entrou lá, acompanhado do capataz da obra, para surpresa de todos, encontrou quatro cofres de madeira  forrados de chumbo que continham um inventário inacreditável  e de um valor incalculável. As fotos que viu são só uma parte do inventário, mas, para que tenha uma ideia, uma das peças é uma cadeira de madeira mais antiga do que a de São Ramon. O padre Carles teve a precaução de fechar bem o acesso e de fazer o capataz prometer que jamais diria nada sobre a descoberta sob pena de excomunhão – não pude evitar um sorriso, mas Oriol Nomis continuou indiferente à minha ironia -, então, entrou em contato com o senhor Navarro e com mais uma autoridade, mas creio que não seja de seu interesse.

    - E isso é? – perguntei apontando a tela.

    - Você conhece melhor do que ninguém nossos problemas de financiamento. As pessoas não medem seu bom coração pelo bolso, e cada vez mais as doações que chegam a nós são menores. As malditas ONGs estão acabando com a Igreja e, o que é pior, com os que vivem por ela, como vamos realizar nosso trabalho sem recursos? Não se constrói poços na Cochinchina sem dinheiro para pagá-los – fiquei surpreso com seu tom -. E a Igreja, mais preocupada às vezes com outras questões, não para de reduzir os valores para as obras de caridade. Caritas está em apuros Mans Unides navega na mendicância, e estes são os nossos principais, o que acha que acontecerá conosco? Se eles não gastam, nós não auditamos, e o que é muito pior, as obras não são realizadas. Por isso, o padre Carles somente declarou ter encontrado três cofres e fez o correto, porque por eles, como bem sabe se tem lido os jornais, estão brigando desde então as dioceses catalã e aragonesa.

    - O inventário do quarto cofre decidimos dedica-lo integralmente para as obras de caridade – acrescentou o padre.

    - Aí é onde você intervém, Cècil; gostaria – corrigiu diante da aceitação dos outros dois -, gostaríamos que se encarregasse de seguir com a venda e que limpasse o resultado para que possa ser utilizado em melhores causas. O que acha? Claro, se decidir não fazê-lo, não há problema e sabemos que contamos com seu silêncio, mas gostaríamos que sua resposta fosse sim.

    Talvez aturdido pelo voo e a súbita reincorporação ao mundo real, concordei, sabendo em parte de que o melhor teria sido negar e ir embora para casa, mas também de que as palavras de Oriol Nomis não estavam carentes de razão.

    - A venda se realizará em três dias através de um leilão na Internet, e os pagamentos serão efetuados da maneira que decidir. Tem um quarto reservado no Hotel Arts que irá lhe garantir certa discrição. Deixamos tudo em suas mãos.

    Despedi-me, e, à caminho de casa, pensei como poderia fazer isso. O melhor seria recorrer aos métodos tradicionais, uma conta numerada na Suíça com acesso seguro a partir da rede; muitas das organizações que auditávamos recebiam seus donativos em contas numeradas como essas, e transferências online para cada peça. Até não receber a confirmação do pagamento, a peça não poderia ser considerada vendida. Mais difícil de digerir do que de fazer.

    Cheguei à minha casa na Diagonal tarde demais para jantar, então, joguei a mochila sobre o tapete da única sala do apartamento e fui tirando minha roupa até o banheiro, disposto a me recuperar do cansaço e me livrar da sujeira acumulados nas últimas semanas. Limpo e relaxado, recolhi a roupa espalhada, desfiz minha mochila e coloquei tudo na lava-roupas. Depois, preparei um copo de leite com chocolate e conectei meu celular. Sem dúvida, a melhor opção era a Suíça. Demorei uma meia hora para abrir a conta, criar as senhas de acesso, solicitar as permissões de transferências internacionais e pedir o registro dos movimentos imediatamente. Já estava pronta a tarefa encomendada por Oriol Nomis, e que, se eu tivesse parado para pensar em um segundo nela, era certamente a mais estranha desde que nós havíamos nos conhecido quinze anos atrás.

    Eu era então um péssimo estudante de Economia que perambulava pelas cafeterias e pelos corredores da universidade e, embora não fosse aluno de suas famosas classes de Política Internacional, sentia um respeito verdadeiro pelo Cacoca, cabeça de coca, como era conhecido nos entremeios universitários por causa da cor branca de sua vasta cabelereira. Na época, estava um pouco mais magro do que agora, mas seu cinto também percorria um bom caminho antes de se fechar.

    Um dia que eu me encontrava em frente a uma pichação que reclamava por solidariedade com o povo saaraui, bateu em meu ombro e me perguntou qual era a minha opinião.

    - Sem dinheiro, estão fodidos – respondi; então, apertou com carinho minha nuca e se foi. Poucos dias depois, recebi um convite para visitar sua sala.

    - E se o dinheiro que é arrecadado para o povo saaraui não chegasse ao seu destino e fosse utilizado para outros fins, digamos, diferentes. O que acha deveria ser feito?

    A sala me surpreendeu por sua pequenez, aumentada pela grande quantidade de livros, mas sua pergunta-saudação não me deu tempo a mais para observa-la.

    - Não sei, suponho que alguém deveria denunciar e fazer com o que o dinheiro chegasse ao destino final para o qual ele fora arrecadado.

    - Nem sempre é fácil. Às vezes, parece que dispor de dinheiro alheio produz uma excitação especial à qual é difícil resistir.

    - Depende para quais pessoas, eu acho. – respondi.

    - Gostaria de ser uma dessas pessoas?

    - Quais pessoas?

    - Aquelas que acompanham o dinheiro e asseguram que chegará ao destino correto, que chegue de verdade ao seu destinatário original. Gostaria? Vamos, não me olhe com esta cara, seu professor de Economia me disse que você é um vagabundo preguiçoso, mas que tem um dom para ver o que os outros nem imaginam, é certo ou estou equivocado da pessoa? Em todo o caso, não é necessário que responda agora, pense se gostaria de embarcar com destino ao Marrocos na próxima segunda-feira e, se decidir, eu falaria com o doutor Martínez para adiar suas provas até seu regresso. Muito obrigado, senhor Abidal.

    Um sorriso, um livro aberto no qual mergulhou sem se importar com a minha presença, e um gesto desinteressado me convidaram a deixa-lo em paz. Nesta mesma semana, comprei umas calças de aventureiro moderno e fui embora para o Saara como ajudante de auditor.

    Desliguei o computador, satisfeito por ter resolvido já uma parte do trabalho, e me joguei na cama onde pensava em permanecer as próximas quatorze ou quinze horas.

    Oriol Nomis tinha razão, pensei, nada se consegue sem recursos, e não achava que quatro figuras e quatro livros antigos a menos no inventário infinito da Igreja a fizessem quebrar, enquanto que, para as crianças como as que eu havia deixado em Pucuto e Pumaorcco, os fundos arrecadados da venta deveriam prolongar sua vida dez ou quinze anos mais. Talvez o padre Carles havia sido generoso demais entregando três cofres a quem já possuía milhões deles.

    Fechei os olhos, satisfeito pela iniciativa e feliz pela perspectiva de uma longa noite de sonho; contudo, a primeira coisa que veio à minha mente quando deitei a cabeça para descansar no travesseiro limpo foi a lembrança do livro que meu pai trouxe naquele dia, Aprenda a dizer NÃO.

    4

    Era muito cedo, apenas uns minutos para as seis da manhã. Gostaria de dormir um pouco mais, mas um terrível pesadelo no qual estava a ponto de ser pego por um Pantocrator com cassetete e distintivo da polícia me acordou. Afastei o Pantocrator com água e enchi o mesmo copo da véspera com leite achocolatado. Enquanto revirava as gavetas da cozinha por qualquer coisa doce não estragada, liguei o computador. Um suave apito me avisou da entrada de um novo e-mail; eu o abri e vi que era de Oriol Nomis, mas não de seu endereço habitual, mas de um tipo de web mail destes que se consegue online com qualquer pseudônimo grotesco. Pensei que talvez estivesse tentando não vincular a fundação com esse assunto e que, por isso, não utilizava seu endereço oficial.

    Comunicava-me os dados do quarto do hotel, e anexava um arquivo com o inventário detalhado das antiguidades e seus preços de saída. Guardei o arquivo em meu disco rígido, imprimi os dados do quarto do hotel e apaguei a mensagem.

    Agora, só tinha que atrelar estes à conta bancária, mas, apesar dos meus conhecimentos em informática serem bastante bons, um trabalho como este escapava do meu alcance. Havia pensado muito sobre como controlar os pagamentos do leilão; talvez uma opção fosse através de mensagens de correio eletrônico, mas eram pouco confiáveis e seu rastro muito simples de seguir, então, descartei-a, o mesmo seria fazer um acompanhamento telefônico utilizando pseudônimos para identificar os interessados, mas também não me pareceu muito apropriado à natureza da transação. Por isso, ao fim, decidi montar um circuito informático seguro que vincularia os produtos leiloados à conta corrente dos compradores, de forma que, à medida que se encerrassem os lances e se comprovassem as cobranças, os artigos seriam vinculados a um número secreto de operação fornecido pelo programa, e que serviria para reclamar o pedido em algum lugar seguro. O único problema é que eu era incapaz de construir este circuito sozinho, mas conhecia a pessoa perfeito para fazê-lo. A única dúvida que tinha era se ela queria me ajudar. Chamei-a.

    Nós nos encontramos em sua casa às dez da manhã.

    Havia conhecido Martí quatro anos atrás, na apresentação de um novo projeto de ajuda para a Guatemala. Um tipo calado, sentado em um canto da mesa, que no intervalo para o lanche já havia desaparecido. Demorei dois meses para voltar a vê-lo, já no bairro de Gerona, na Guatemala. Um dos pontos fortes do projeto era a instalação de computadores em alguns colégios, e ele era o encarregado de fazê-lo. Sempre me vinha à memória seu rosto quando adentrávamos no bairro, não podia evitar um sorriso complacente. Suponha que deva ter feito a mesma cara de estúpido e de medo que todos nós tivemos na primeira vez que entramos em um local onde até mesmo a Anistia Internacional teve seu pessoal sequestrado. Contudo, sentou-se, conectou um a um a centena de computadores e eu certifiquei com minha assinatura que o havia feito. Umas cervejas refrescantes em uma biboca no centro da cidade selaram nossa amizade.

    Ele mesmo abriu a porta e deixou que o seguisse até seu escritório. Para quebrar um pouco o gelo, explicou-me que acabara de ser pai pela segunda vez, e que sequer conseguia dormir mais de três horas seguidas. Rimos um pouco, recordamos os velhos tempos e lhe expliquei, sem entrar em detalhes demais, o que esperava que montasse em menos de doze horas. Assegurou-me que, antes da meia noite, estaria pronto. Agradeci com um forte abraço e me dirigi à fundação.

    Se cumprisse sua promessa, ainda teria tempo para atar alguns fios soltos, por exemplo, como e para onde as peças seriam enviadas uma vez pagas. Para o capital não havia problema, já havia pensado como reparti-lo. O melhor seria fazê-lo mediante donativos anônimos por aportes inferiores a três mil euros. Assim, os registros contábeis das organizações beneficentes não teriam a obrigação de informarem a Fazenda sobre a identidade dos doadores. Quando cheguei, a atividade na rua Rivadeneyra era frenética, como em qualquer outro dia da semana. Dezenas de telefonistas encaixotadas em mesas de um metro e quarenta atendiam chamadas através de seus fones de ouvido sem fio, sem nenhuma distração além de algum olhar furtivo para as divisórias onde haviam pendurado fotos familiares das últimas férias, e sem poderem se mover para além da máquina de café.

    Por sorte, em nosso escritório a atividade era menor. A maioria trabalhava em campo, e o trabalho de escritório consistia em fechar expedientes ou preparar novas auditorias. Entrei e saudei meus companheiros, que me receberam com as frases de costume, Sim, tudo muito bem, Não, é um país muito seguro, Comi muito bem, O voo foi um pouco pesado, e assim até que cheguei ao escritório de Oriol Nomis. Em sua porta, figurava a placa de "Auditor Chefe". Chamei e entrei.

    O catedrático estava sentado de costas para a porta, falando ao telefone enquanto girava sobre o eixo de sua cadeira. Havia se negado a instalarem um destes fones de ouvido e continuava com o telefone de cabo espiralado de toda a vida, onde enrolava o dedo indicador da mão esquerda enquanto falava. Ao escutar a porta, virou-se e me convidou a entrar. Seu escritório era austero, armários de persiana, um arquivo de caixa, um crucifixo na parede junto ao quadro da Última Ceia de Leonardo, um porta-retrato na mesa com a foto de sua esposa Marta, e uma grande janela pela qual gostava de observar as pessoas em seu corre-corre febril por Barcelona. Mas o que me fascinava em seu escritório era um antigo globo terrestre que se fazia rodar em um dos cantos de sua mesa.

    - Descansou? – perguntou-me.

    - Estou bem, obrigado.

    - O que acha do que falamos ontem? – era um homem direto.

    - Acho que não é muito legal, mas lícito, não?

    - Eu não teria definido melhor, não é muito legal, mas é lícito – repetiu minhas palavras em voz baixa-. São tempos difíceis, Cècil, tudo mudou muito. As necessidades de hoje centuplicam as de vinte anos antes, e os recursos são apenas os mesmos. Os governos se reúnem em reuniões de cúpula inúteis enquanto os pobres miseráveis, que não entendem de pressões e nem de políticas internacionais, simplesmente morrem. Praticamente, desde que faço uso da razão, tenho me perguntado por quê, e ainda não encontrei a resposta. Por isso, decidi dirigir a Diners Net, Cècil, para que, pelo menos, as poucas ajudas que são feitas sirvam de algo. O que podemos fazer, dar de ombros enquanto o mundo arrebenta com seus recursos em estupidezes, ou intervimos? Atores ou público? A grande pergunta. Em um jantar com responsáveis da Caritas, conheci quem te apresentei como senhor Navarro, e saiu esta mesma conversa. Ele tinha muito claro que é impossível conscientizar as pessoas. A princípio, eu não estava muito de acordo, mas seus argumentos me convenceram. Já não servem as imagens de crianças morrendo de fome, por Deus! são utilizadas até para promoverem camisetas! As notícias de fome, desgraças e desigualdades não valem, não duram em um telejornal nem três segundos, nem aparecem nos jornais além de uma coluna de brevidades, como se fosse o preâmbulo de suas vidas. As pessoas têm tanto ruído em suas cabeças que não escutam, não sentem o sofrimento, nem se importam se aquele que perece não tem seu mesmo sobrenome. Compreende agora, Cècil, porque me oferecei a ajuda-los? Sei bem que não é o melhor caminho, mas pelo menos é um caminho, e se o fizermos com cuidado, pode funcionar.

    - Se me permite a franqueza, não gosto. Põe em risco nossa credibilidade profissional, mas posso lhe compreender. Na maioria dos lugares que visitamos, quando se fazia a água potável, faltavam escolas, se construíssemos escolas, faltavam hospitais, e estradas, e eletricidade, e profissionais formados, e uma lista tão longa de carências que duvido que, mesmo vendendo todos os bens da Igreja, pudessem ser resolvidos. Porém, não gosto. Farei porque confio plenamente no senhor e porque o dinheiro será gasto de forma honrada, mas esta será a única vez que o farei. Queria que soubesse disto antes de continuar.

    Oriol Nomis assentiu com a cabeça.

    - Compreendo, eu disse o mesmo. Não acho que seja necessário insistir mais neste tema, mas, antes de continuar com os assuntos mais práticos, posso lhe fazer uma pergunta muito pessoal, Cècil?

    - Claro.

    - Acredita em Deus?

    - Em qual Deus? – respondi, não sem certa ironia.

    - Vamos, Cècil, falo sério. Por que está conosco, por que não trabalha para multinacionais onde ganharia vinte vezes mais do que ganha aqui? – sua pergunta me pegou de surpresa, e só consegui sacudir os ombros -. Sabe, às vezes tenho dúvidas, penso no que teria sido minha vida, e a da Marta, se tivesse aceitado o cargo de conselheiro delegado em alguma das entidades que me ofereceram, ou ministro quando pude; agora, viveria em uma mansão, teria propriedades, empreendimentos imobiliários no litoral, e meus herdeiros legais estariam esfregando as mãos. Mas escolhi este caminho, como você, e não me arrependo! Porque eu só o fiz porque acreditava em Deus! Agora, não sei no que acreditar.

    - Acredite no senhor – disse-lhe.

    - Os homens, todos, por nossa estranha e maravilhosa natureza, são vulneráveis. Não é fácil acreditar em algo vulnerável. Lembre-se sempre.

    Calou-se por um tempo, e quando o trouxe de volta, expliquei-lhe como pensava em realizar o leilão. Decidimos limitar os lances por duas horas, do meio-dia às duas da tarde. Passado este tempo, o bem seria arrematado pela oferta mais alta de forma automática. Ele se encarregaria de informar aos interessados o endereço de internet para o leilão e, uma vez efetuadas as vendas, as antiguidades seriam enviadas para endereços postais onde seriam recolhidas mediante a contrassenha informada ao realizarem o pagamento. Depois, realizaríamos transferências inferiores a três mil euros até deixar a conta zerada, e a cancelaríamos. Fim da operação.

    Às duas da manhã, recebi a mensagem de Martí confirmando que havia realizado o trabalho e fui vê-lo. Com os olhos vermelhos, explicou-me o funcionamento completo da rotina, como deveriam ser realizados os pagamentos, como seriam vinculadas as peças com os depósitos, quanto tempo deveria se esperar para ter a segurança de que um pagamento havia sido realizado, e como a maior parte se desconectaria e seria apagada automaticamente uma vez terminado o leilão. Um trabalho excelente. Devo reconhecer que me surpreendeu que Martí não fizesse nenhuma pergunta, mas atribui ao seu profissionalismo.

    Quando voltei em casa, enviei um e-mail ao novo endereço de meu chefe, indicando-lhe a página de internet que havíamos habilitado para os lances.

    No dia seguinte, depois de celebrado o leilão tal e qual havíamos planejado, e apenas uns minutos depois do meio-dia, no quarto do Hotel Arts só restava a tensão de duas horas de leilão acumuladas em um monitor, agora inerte, e uma grande surpresa, um saldo de um milhão trezentos e sete mil euros piscando na tela vinculada à conta na Suíça. Um milhão de euros! Alguém havia pagado um milhão de euros por um pedaço de pele de vaca escrita! Não podia acreditar. Enquanto os observadores abandonavam o quarto do hotel, chamei imediatamente Oriol Nomis para lhe informar da loucura que acabara de presenciar, mas seu telefone estranhamente dava sinal de desligado, assim, decidi ir vê-lo no escritório, onde encontrei sua sala apagada e ele ausente. Saudei o bo d’en Pau e os poucos que restavam naquela tarde, e, após algumas chamadas infrutíferas, decidi aproveitar a espera respondendo alguns relatórios acumulados na minha ausência. Pareceu-me estranho que não entrasse em contato comigo imediatamente após saber que o leilão acabara, embora talvez já soubesse seu desenlace..., mas também havia outras dúvidas, inclusive mais surpreendentes, que me assaltavam desde a última captura de tela, como era possível que alguém pagasse esta quantia por uma folha de pergaminho? Por que Conversum havia realizado um único lance logo depois de Capillus ter feito o seu? Ninguém havia se interessado na folha até Capillus ofertar, e por que não havia ofertado cem mil euros? Talvez soubesse o limite de Capillus e, de uma só vez, o havia barrado? Os últimos minutos haviam ficado minimizados na barra de tarefa do meu cérebro, sem resposta aparente pelo momento. Após um par de horas, chegou Oriol Nomis e, contra o que teria sido normal, não pareceu se surpreender de me encontrar ali, saudou-me como um dia qualquer e se trancou em seu escritório. Logicamente, segui e entrei atrás dele para comentar sobre o incrível resultado do leilão.

    - Entre, entre, Cècil – animou-me.

    - Eu te chamei várias vezes no celular – queixei-me.

    - Eu o desliguei, estava comendo com alguns amigos seus – e me piscou o olho.

    - Então, suponho que já esteja informado do que ocorreu, não?

    - Comentaram comigo, sim. Tivemos sorte, Cècil, podemos ficar contentes da cifra conseguida. Nem no melhor dos casos teríamos imaginado algo assim!

    - Desculpe, mas não lhe estranha que alguém pague um milhão de euros por um pedaço de pele de vaca de sabe-se lá qual século?

    - Não seja cínico – repreendeu-me-, os colecionadores são pessoas particulares, muito especiais. Muitos deles, multimilionários, para quem gastar um milhão é como, para você, gastar cinquenta euros em uma boa garrafa de vinho. Gostam e gastam. Ponto.

    - Mas da maneira como ocorreu, dois minutos antes do fim do leilão, para cobrir a oferta de outro colecionador...

    - Cècil, Cècil – interrompeu-me -, essa

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