Visões da cabanagem: Uma revolta popular e suas representações na historiografia
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Visões da cabanagem - Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro
Para Luiza e Luís Felipe.
Em memória de Décio Freitas
e Vincente Salles.
Sumário
Nota à 2.ª edição
Os cabanos, a cabanagem, tantas versões
Apresentação
Introdução
Capítulo 1 - Tensões e descontinuidades no discurso historiográfico
Capítulo 2 - O espetáculo da barbárie
Capítulo 3 - A restauração nativista
Capítulo 4 - As interpretações críticas e a descoberta do povo
À guisa de conclusão: Por uma nova História da Cabanagem
Referências
Notas
Nota à 2.ª edição
Em que pese seu caráter algo introdutório, Visões da Cabanagem foi bem acolhido pelo público, o que fez com que sua 1.ª edição fosse esgotada em pouco tempo. Outras sinalizações importantes desta boa recepção apareceram quando das inúmeras cobranças que, há uma década, passei a receber para o lançamento de uma nova edição. Desejo sempre adiado, seja por meu engajamento maior a outros trabalhos e temáticas, seja ainda pelo desejo de investir na publicação integral da tese que deu origem a este pequeno texto.
Desde sua primeira edição, o tema da Cabanagem adquiriu maior centralidade no interior dos estudos históricos, tanto no âmbito regional – favorecida em boa medida pela implantação e fortalecimento de Programas de Pós-Graduação em História no Norte do país –, quanto em escala nacional, como resultado, a meu ver, da abertura propiciada por novas perspectivas historiográficas em que dimensões do viver popular, incluindo-se aí suas ações de resistência e rebeldia, firmaram-se como relevantes. Tornou-se também cada vez mais clara a percepção entre os historiadores de que uma verdadeira História do Brasil só será possível a partir da efetiva incorporação e compreensão de eventos, temas e questões ocorridos fora dos tradicionais lócus de atuação da pesquisa histórica, como o nordeste colonial açucareiro, ou o centro-sul cafeicultor e industrializado. Desta forma, um movimento social como a Cabanagem não pode ser considerado como um mero adendo à uma História Nacional
– dinamizada fora e acima dos contextos regionais
– ou mesmo como sua derivação.
Seja como for, é preciso reconhecer que na última década ocorreu um verdadeiro boom de produções acadêmicas e de publicações de boa qualidade sobre o movimento cabano e também sobre sua historiografia. Entretanto, sua incorporação aqui, além de não afetar centralmente os eixos analíticos e as abordagens que empreendemos, exigiria um tempo demasiado largo para a realização de revisões e ampliações nos debates historiográficos; tempo este que não dispomos no momento. Por tais motivos, esta segunda edição manteve-se fiel à primeira, operando apenas modificações tópicas e a necessária atualização às normas ortográficas vigentes. Decidimos, contudo, incorporar às referências ao final do volume pouco mais de uma dezena de novos títulos, que iluminam esta produção mais recente e enriquecedora dos estudos históricos e historiográficos acerca da Cabanagem.
Os cabanos, a cabanagem, tantas versões
José Ribamar Bessa Freire¹
Era janeiro de 1835. O tapuio Filipe, conhecido como Mãe da Chuva, deu um tiro no peito de José Joaquim da Silva Santiago. Outro tiro, disparado por Domingos, o Onça, matou Bernardo Lobo de Souza. A primeira vítima era o comandante de armas e a segunda, o presidente da Província do Pará. Os corpos das duas maiores autoridades da Amazônia foram arrastados para o alojamento dos índios remeiros – um grande galpão, em Belém. Lá, durante mais de oito horas, tapuios conhecidos por estranhos apelidos – Gigante do Fumo, Onça do Mato, Sapateiro, Remeiro – desfilaram, chutando os cadáveres e cuspindo neles. Muitos chegaram a mijar na cova, um buraco aberto no cemitério da igreja das Mercês. A Cabanagem começava.
Dessa forma, a professora de História do Amazonas do curso pedagógico do Instituto de Educação (IEA) narrava, 130 anos depois, em 1965, o episódio que ela considerava como o início da Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da Amazônia. Para ela, os cabanos eram assim, violentos e cruéis, assassinos e desalmados, porque eram gente sem instrução e sem cultura, marginais, inferiores. Ela não contextualizava a violência e nada dizia sobre as atrocidades cometidas pelas forças de repressão ao movimento cabano. Aquilo que ela ensinava deveria ser repetido e multiplicado, ecoando em todas as escolas primárias da cidade, porque o IEA era, então, a única instituição pública de Manaus responsável pela formação de professores normalistas.
A versão que nós, normalistas da década de 1960, tivemos da Cabanagem e que muitos reproduziriam para seus alunos nos anos seguintes, foi essa, alimentada por livros editados depois do golpe militar de 1964, quando um historiador – Arthur Cézar Ferreira Reis – foi indicado pela ditadura militar para governar o Amazonas. Ele criou as Edições do Governo do Estado do Amazonas, imprimindo em 1965, entre outros, dois livros: A Cabanagem, escrita pelo tenente-coronel Gustavo Morais Rêgo Reis, e História do Amazonas, da professora Rosa do Espírito Santo Costa. Ambos foram adotados no curso normal.
O livro de Rosa do Espírito Santo Costa, professora do IEA, é uma cartilha que trata os cabanos – caboclos e pretos, moradores das beiras dos rios – como assassinos, salteadores e algozes. O outro livro, escrito pelo tenente-coronel, apresenta o brigadeiro Soares de Andréa, responsável pela repressão aos cabanos, como um homem enérgico, disciplinador, decidido, competente e capaz como soldado e administrador.
De um lado, a plebe ignara, a anarquia, a violência bestial, a barbárie. De outro, a ordem, a disciplina, a integridade, a civilização. Depois disso, foram feitos outros estudos sobre a Cabanagem, mais recentes ainda, com interpretações bastante diferenciadas, que mantinham, no entanto, idêntica postura maniqueísta, invertendo apenas os papéis: quem antes era mocinho
passou a ser vilão
e vice-versa. A luta dos cabanos, agora apresentados como heróis, transformou-se de ação de bandidos em um movimento de libertação nacional.
Afinal, por que existem versões tão diferentes sobre um momento crucial de nossa história? Qual dessas versões deve um professor do Ensino Médio ensinar hoje aos seus alunos? Ou existem alternativas que permitam uma abordagem mais objetiva do movimento?
O livro que você vai ler agora – Visões da Cabanagem – tem o grande mérito de formular essas e outras perguntas e buscar respostas para elas, fazendo um balanço da produção historiográfica que tratou do tema. Seu autor, Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, em vez de buscar a verdade
, está preocupado em entender porque tais verdades
foram construídas. Por isso, ele procura explicar o que é que sustenta versões tão diferentes, o que é que fundamenta enfoques tão diversos, situando o lugar social em que esses discursos históricos se produzem e reproduzem. Trata-se de um trabalho cuidadoso, que explora essa diversidade e procura compreender as diferentes imagens construídas sobre os cabanos, o que permanece e o que muda no discurso histórico sobre a Cabanagem e o significado do movimento cabano de acordo com cada autor. Destaca o papel que esses autores atribuem à participação das camadas populares na revolta, discutindo as categorias de povo
e popular
.
Depois de visitar as abordagens historiográficas da Cabanagem, de Ernesto Cruz (1942) até os estudos contemporâneos, Luís Balkar analisa vários compêndios de História Pátria
usados nas escolas desde o século passado, os relatos dos viajantes que passaram pela Amazônia e conviveram de perto com a Cabanagem e, sobretudo, dedica uma atenção especial à obra matriz Motins políticos de Domingos Antônio Raiol, o primeiro trabalho de peso sobre a Cabanagem, feito com rigor e seriedade, a partir de documentação manuscrita existente nos arquivos do Pará e do Rio de Janeiro. Raiol, que viu seu próprio pai e outras autoridades serem atacadas pelos cabanos na vila de Vigia, recolhe e valoriza a fala da repressão, em detrimento da fala dos rebeldes.
Luís Balkar mostra, no entanto, que a geração de historiadores do século passado, pertencentes ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), que começa a produzir a partir de 1936, também exclui os segmentos populares do movimento da Cabanagem, pasteurizando a imagem dos cabanos, domesticando-os e esvaziando o movimento de seu conteúdo de crítica social. O povo só vai ser descoberto por meio de algumas interpretações críticas como a de Caio Prado Júnior, que olha o movimento cabano sob a ótica da luta de classes, mas que não realiza nenhum trabalho de pesquisa documental, limitando-se a uma releitura teórica. Apesar disso – afirma Luís Balkar –, essas duas correntes revitalizaram a temática e contribuíram para que os cabanos deixassem de ser vistos como bandidos e assassinos.
Graduado em História pela Universidade Federal do Amazonas, onde é professor, Luís Balkar escreveu este livro depois de defender, com brilhantismo, sua tese de doutorado na PUC de São Paulo, destacando-se como um pesquisador que começa a ser reconhecido e respeitado fora da Amazônia. Ele não pretendeu ser conclusivo, porque sabe que a história da Cabanagem, como toda História, está em processo de construção. Também não pretendeu falar de um lugar neutro, porque considera que o historiador é parte da história, não é um sujeito carente de sentimentos. Ao desconstruir os diversos discursos sobre a Cabanagem, reconhecendo, no entanto, a contribuição que em diferentes momentos deram para a compreensão do movimento, Luís Balkar limpa o terreno e dá uma contribuição significativa que pode ajudar os professores a recolocar a questão em sala de aula. Este livro, se lido e debatido pelos professores, com certeza modificará a prática pedagógica e permitirá uma compreensão mais profunda de um movimento vital para a construção da nossa memória e da nossa identidade.
Nietta Lindenberg Monte, em sua tese de doutorado, depois transformada em livro, intitulada Escolas da floresta – Entre o passado oral e o presente letrado, afirma que nas escolas indígenas do Acre, o professor índio – elemento de mediação entre os grupos étnicos e a sociedade brasileira – promove