Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Antiguidades Modernas
Antiguidades Modernas
Antiguidades Modernas
E-book861 páginas4 horas

Antiguidades Modernas

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Esta pesquisa se origina da necessidade de pensar sobre a Antiguidade Clássica e sua relação com o universo colonial brasileiro. Sendo o processo de controle de Portugal sobre as terras americanas iniciado durante os séculos XVI e XVII é natural imaginar que as relações culturais travadas no âmbito do Renascimento se refletissem no mundo colonial, porém, apesar desta percepção, os historiadores pouco haviam tratado do tema, com exceção do trabalho clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, poucas são as abordagens que relacionam o Renascimento ao mundo colonial, isto normalmente porque a historiografia se volta a percepção do que há de específico às relações coloniais se afastando com isso das continuidades e uma destas é, exatamente, a presença constante das referências à Antiguidade Clássica. Portanto, nosso objetivo com esta tese é observar a presença de referências à Antiguidade nas crônicas coloniais e avaliar como esta presença é utilizada pelos cronistas, sobretudo, com o objetivo de ocidentalizar a América, isto é, de transformar aquele território inóspito, desconhecido e não-familiar em um lugar hospitaleiro, descrito em seus pormenores, no qual o europeu estaria familiarizado com o Espaço e a Paisagem. Para isso, utilizamos aqui a metodologia da Análise de Discurso, sobretudo de vertente francesa. Esta metodologia poderia nos afastar da História por ser uma técnica utilizada principalmente pelos Estudos Literários, contudo, acreditamos que esta seja a melhor escolha para avaliar estes textos. Baseamos nossas considerações sobretudo em Michel Foucault, Roland Barthes e A.J. Greimas, e não poderíamos deixar de citar, Mikail Baktin, e chegamos aos resultados que agora apresentamos em forma de tese. Reconhecemos aqui o maior uso de referências mítico-poéticas, e dentre elas Hércules e Marte, além do Oceano, Júpiter, Apolo e Heitor; seguidamente por referências filosofico-literárias, em que se destacam Aristóteles, Plínio, Virgílio e Ovídio; e por fim as referências histórico-geográficas, em que se destacam as referências a Alexandre o Grande, Cipião, Júlio César e Aníbal, além de Cartago, Atenas, Esparta e Tróia. Propomos duas explicações para estes resultados: primeiramente, a necessidade dos cronistas coloniais se filiarem a uma instituição para manter seu discurso circulando, o que causava uma certa necessidade de adequar-se as regras que aquele ambiente intelectual impunha; e, também, a adoção por parte do cronista da tradição intelectual que ele dispunha para poder entender o mundo americano que se abria diante dele, suas únicas ferramentas, ou melhor, armas para enfrentar o desconhecido.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de mar. de 2018
Antiguidades Modernas

Leia mais títulos de Lenin Soares

Relacionado a Antiguidades Modernas

Ebooks relacionados

Métodos e Materiais de Ensino para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Antiguidades Modernas

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Antiguidades Modernas - Lenin Soares

    1

    2

    3

    ANTIGUIDADES MODERNAS:

    A Ocidentalização da América nos Séculos XVI e

    XVII

    LCS

    Natal

    2018

    4

    5

    Lenin Soares

    ANTIGUIDADES MODERNAS:

    A Ocidentalização da América nos Séculos XVI e

    XVII

    LCS

    Natal

    2018

    6

    Capa: Werban Freitas

    Foto: Coluna Capitolina, Lenin Soares.

    SOARES, Lenin Campos. Antiguidades Modernas: a

    ocidentalização da América nos séculos XVI e XVII.

    Natal: LCS, 2018.

    1. História da América. 2. História Antiga. 3.

    História da Arte. 4. Mitologia Grega.

    CDD: 980

    CDU: 94

    7

    Para Lenilson e Juraci, meus pais.

    8

    9

    LISTA DE GRÁFICOS

    Total de referências a Antiguidade nas crônicas .... 157

    Referências a mitologia greco-romana …............... 159

    Referências aos deuses em relação ao tempo.......... 170

    Referências aos heróis em relação ao tempo .......... 174

    Referências aos autores antigos………………..…. 179

    Historiografos antigos em relação ao tempo.....…... 183

    Referências a filosofia em relação ao tempo …....... 187

    Referências aos poetas em relação ao tempo............ 191

    Referências aos locais e personagens históricos ….. 193

    Locais históricos em relação ao tempo .................... 195

    Personagens históricos em relação ao tempo …........196

    Bárbaros, latim e grego ………………………........ 204

    Bárbaros, latim e grego em relação ao tempo …...… 207

    Gráfico dos bárbaros..............................................… 289

    10

    11

    "O Passado é uma terra estrangeira:

    lá as coisas são de outro jeito"

    L.P. Hartley, O Mensageiro.

    12

    13

    SUMÁRIO

    Lista de Gráficos

    Introdução..........................................................…..…..15

    Humanidades.....................................…............…...….70

    Universitas et Colegium..............……….....….78

    Portugal, França e a Europa.............………….86

    Hieronomitas e jesuítas……………………...106

    Salamanca, os dominicanos e a Inquisição.....123

    Lovaine, os jerônimos e os protestantes......…137

    Apropriações nos Séculos XVI e XVII...…..…..........145

    Apropriações e Espaço..........………………........…..208

    As Colunas de Hércules e a Atlântida……......223

    As Amazonas e as Nereidas.........……...….....238

    Alfeu e Aretusa no Olimpo.............…...…......256

    Aristóteles e a Zona Tórrida...........…...……..263

    O Conhecimento de Plínio e Ptolomeu…........274

    Virgílio e a Nova Roma...................…….…....281

    Os Bárbaros Índios.....................……….….....288

    Considerações Finais...........................…....………....294

    Fontes...................................................…....…...........313

    Bibliografia..........................................…....…...........319

    Anexos

    Dicionário de Referências a Antiguidade.......339

    14

    15

    INTRODUÇÃO

    É, sem sombra de dúvida, sob os auspícios das Musas

    que eu decidi tornar-me historiador, e é sob as bençãos delas e

    de Mnemósine que conto aqui como esta pesquisa se iniciou. Já

    que esta tese de doutorado tem uma história curiosa. Sua

    formulação se origina ainda na minha graduação na

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte, quando, nos

    idos de 1999, eu me envolvi com as pesquisas orientadas pela

    professora doutora Maria Emília Monteiro Porto, que acabara

    de chegar de seu doutoramento na Universidad de Salamanca, e

    fui apresentado ao projeto As Antiguidades nas Crônicas

    Coloniais: historicidade como consciência histórica, graças a

    um bom conhecimento sobre a Antiguidade clássica, um

    conhecimento nada mais do que enciclopédico para os meus

    primeiros anos de faculdade, de nomes, personagens, autores,

    16

    mas o bastante para o que aquele projeto necessitava. A tarefa:

    localizar referências feitas a Antiguidade nas crônicas

    produzidas entre 1500 e 1800. Este conhecimento era oriundo

    de uma paixão pela Idade Antiga que nutro desde minhas

    primeiras letras, a qual me impulsionou para o estudo da

    História.

    A pesquisa, patrocinada pelo Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do qual fui

    bolsista de Iniciação Científica (Pibic), consistia na leitura das

    crônicas coloniais e localização, entre suas páginas, de

    referências feitas aos autores greco-romanos, sua poesia e

    mitografia, sua história e filosofia, seus tratados retóricos e

    médicos, e etc. Este projeto foi financiado pelo CNPq por dois

    anos, e o catálogo que resultou dele é sobre o qual nos

    debruçamos, inicialmente, nesta pesquisa de doutoramento 1.

    1Foram lidos neste projeto 13 crônistas. Segue a lista, por séculos, e por

    ordem alfabética, dos autores com os quais nos envolvemos no projeto do

    qual resultou um catálogo. No século XVI podemos citar Anônimo Jesuíta

    (Simão Travassos), Summario das armadas que se fizeram e guerras que se

    deram na conquista do Rio Parahyba (1587-1589), Fernão Cardim.

    Tratados da terra e da gente do Brasil (1550), Gabriel Soares de Sousa,

    Tratado descritivo do Brasil (1587), Jean de Léry, Viagem a Terra do Brasil

    (1578), Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da terra do Brasil e História

    da província de Santa Cruz (1576), e do século XVII, participaram do

    projeto Claude D'Abbeville, História da missão dos padres capuchinos na

    ilha do Maranhão e terras circunvizinhas (1614), Diogo de Campos

    Moreno, Livro que dá razão do Estado do Brasil (1616), Diogo Lopes

    Santiago, História da Guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do

    Mestre de Campo João Fernandes Vieira (1634), Gaspar Barleus, História

    dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil (1644),

    Jácome Monteiro, Relação da província do Brasil (1610), Frei Manuel

    Calado, O Valoroso Lucideno e Triunfo da Liberdade (1648), Simão de

    Vasconcelos. Crônica da Companhia de Jesus (1613) e o Frei Vicente do

    17

    O projeto também permitiu a pesquisa em História

    Antiga, a paixão que me move até hoje, mas uma pesquisa

    disfarçada, por necessidade de adaptação. A produção em

    História Antiga nas universidades do nordeste brasileiro é uma

    produção considerada, para dizer menos, superficial,

    dispensável, fútil, talvez por uma severa influência marxista, os

    classicistas são vistos como um grupo elitizado, que não

    responde aos anseios da população, que não responde ao

    investimento social que o governo brasileiro faz em suas

    universidades federais. Diz Martin Bernal, num pequeno livro

    organizado por Pedro Paulo Funari, que "acredita-se

    amplamente que a área de 'Estudos Clássicos' é, dentre as

    disciplinas acadêmicas, aquela que está mais afastada do

    campo da política moderna. Por conta disso, atribuiu-se a ela

    não apenas um espaço de destaque mas mesmo o ponto mais

    isolado em uma dita 'torre de marfim'" 2. Portanto, apenas

    cursos considerados no nordeste como elitizados e apolíticos,

    tal como Filosofia e Letras, tem a possibilidade do estudo desta

    área. Na Universidade Federal do Ceará, o departamento de

    Letras, inclusive, possui o único programa de pós-gradução em

    Estudos Clássicos da região.

    Caso essas afirmações pareçam espantosas um dado

    pode claramente demonstrar este fato: até 2009 não existia um

    especialista na área de história antiga em nenhuma

    universidade federal no nordeste. Existem 9 estados: Bahia,

    Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte,

    Salvador, História do Brasil (1627).

    2

    BERNAL, Martin. A imagem da Grécia antiga como uma ferramenta

    para o colonialismo e para a hegemonia europeia. IN: FUNARI, Pedro

    Paulo (org.). Repensando o mundo antigo. Campinas:

    IFCH/UNICAMP, 2003. [Coleção Textos Didáticos, nº 49]. p. 09.

    18

    Ceará, Piauí e Maranhão, e não há nenhum especialista na área

    nas faculdades federais, curiosamente há exceção nas

    universidades estaduais, na Bahia, a Universidade Estadual do

    Sudoeste da Bahia tem dois professores especialistas na área, e

    no Ceará, a Universidade Estadual do Ceará tem uma

    pesquisadora 3.

    Sendo assim, produzir um trabalho sobre as

    apropriações da Antiguidade permite manter o contato com a

    área que sempre me fascinou, mas ao mesmo tempo poder

    contar com a orientação e diálogo com outros, tão importante

    para nossa formação como historiadores. É daí que nasceu a

    ideia do meu mestrado, defendido em 2007, na Universidade

    Federal do Rio Grande do Norte, no programa História e

    Espaço, O padre, o filósofo e o profeta: A América de Simão de

    Vasconcelos, que versa sobre a produção de um espaço

    americano através da pena do padre jesuíta Simão de

    Vasconcelos, através da apropriação que este faz do filósofo

    Aristóteles e do profeta Samuel 4. É também desta necessidade

    de adaptação que nasceu agora a ideia para esta tese.

    Nosso objetivo aqui é pensar a utilização de elementos

    em comum, neste caso as referências feitas à Antiguidade

    greco-romana, para a construção de um espaço americano que

    seja inteligível pelos europeus dos séculos XVI e XVII no

    conjunto de crônicas que catalogamos no projeto da graduação,

    e outras que foram sendo acrescidas conforme sentíamos

    necessidade de encontrar um maior volume de dados para

    3

    Dados retirados do GT de História Antiga da ANPUH. Disponível em

    http://www.ufrgs.br/anpuhrs, consultado em 19/04/2009.

    4

    SOARES, Lenin Campos . O padre, o filósofo e o profeta: A América de

    Simão de Vasconcelos. Natal: CCHLA/PPGH, 2007. [Dissertação de

    Mestrado].

    19

    sustentar nossas hipóteses (ou rechaçá-las). É uma pesquisa

    que busca entender a produção de elementos pelos cronistas

    coloniais que apresentaram a América portuguesa para um

    público europeu, que ainda não tinha visto o território, o lugar,

    a paisagem, isto é, o espaço. A nossa pergunta é: como estes

    autores traduzem a realidade do novo mundo para o leitor

    europeu? A nossa preocupação é se há a elaboração de uma

    tópica que será utilizada para descrever o novo mundo

    espacialmente, a criação de um discurso sobre o novo mundo

    com base numa tradição antiga que ganha nova evidência com

    o Renascimento. Devemos lembrar, também, que esta forma de

    traduzir o espaço para olhos europeus não era a única utilizada

    pela tradição ocidental, a própria Bíblia cristã era uma base de

    uma tradição extremamente utilizada por estes grupos. Não

    obstante, chamamos atenção para o nosso recorte que é a

    instrumentalização da cultura oriunda do período clássico para

    a produção de um novo espaço.

    É importante, no entanto, fazer uma ressalva: não

    pretendemos como objetivo saber se o público leitor das

    crônicas, de fato, respondia a essa tópica como os escritores

    pretendiam. Este não é um trabalho sobre a recepção do texto.

    Não pretendemos informar se quando as referências a

    Antiguidade eram utilizadas isto causava a resposta que o

    cronista pretendeu. Não somos capazes, dado ao conjunto de

    fontes que possuímos, de aferir algo sobre isto, porém tomando

    como pressuposto que um autor escreve para ser entendido

    pelos seus leitores, e para tal, propõe um leitor ideal, aquele

    que possa decodificar na instância da recepção as expressões

    que ele utiliza da mesma forma que ele as concebeu.

    Esperamos sim poder fazer algumas afirmações sobre a

    20

    recepção que as crônicas tiveram, no entanto, apenas através

    das informações oriundas da própria crônica, ou seja, somente

    a partir da própria produção.

    Após estas consideramos, nos preocupamos agora com

    o recorte cronológico deste trabalho, principalmente porque

    dificilmente podemos localizá-lo como uma pesquisa de

    História Antiga, Medieval ou Moderna. Seu tema é a cultura

    antiga. Os elementos culturais da Antiguidade clássica.

    Contudo versa sobre como esses elementos foram apropriados,

    isto é, ganharam novos significados durante os séculos XVI e

    XVII que rigorosamente fazem parte do momento inicial da

    Idade Moderna, porém também são séculos influenciados

    diretamente pelo Renascimento, um fenômeno que pode ser

    localizado tanto no Medievo quanto na Modernidade,

    dependendo se o tomamos como processo ou como ruptura. Se

    o próprio Renascimento – o cerne deste trabalho – se flexibiliza

    tocando os três períodos, esta pesquisa acaba por tornar-se

    também cronologicamente tão maleável quanto. É então

    indispensável para continuar com esta tese romper com a

    cronologia tradicional, não abandonar o tempo, é claro, pois é o

    tempo que se caracteriza o ofício do historiador, contudo é

    necessário utilizar um tempo diverso do tempo linear que nos

    acostumamos a pensar a história. Este tempo, no qual o

    passado se manifesta continuamente no presente, sobre outras

    formas, algumas que se fingem verdadeiras, como fingem as

    Musas de Hesíodo, é o único que pode permitir a utilização de

    um conceito muito caro a esta tese, o conceito de apropriação.

    Ligando-se aos questionamentos mais recentes da

    (nova) História Cultural e Mentalidades e da História das

    Ideias, sobretudo aqueles que começaram a partir do contato

    21

    com a obra de Michel Foucault, "pois foi com Foucault que

    tiveram início muitas das 'novidades" que ainda encantam ou

    irritam os historiadores das ideias" 5, a História passou a se

    preocupar com a construção de discursos sobre a própria

    História. Autores como Michel de Certeau e Paul Veyne

    passaram a propor o conceito de narrativa para explicar a

    produção histórica, em que a ideia de que o historiador escolhe

    os fatos para estabelecer sua trama tal qual um autor de ficção

    abalou a própria certeza de objetividade do trabalho histórico.

    Autores como Pierre Bourdieu, Georges Duby e Michel

    Vovelle passaram a questionar como os processos de

    construção de ideologias interferem também no processo de

    construção do conhecimento histórico, sendo a partir da década

    de 1970 que, com uma nova fase de prestígio da hermenêutica,

    autores como H. Gadamer, Ricouer, Robert Barthes, Umberto

    Eco, Jacques Derrida e Gilles Deleuze ganharam destaque.

    É sobre estas críticas que os conceitos de Apropriação,

    Reapropriação e Representação surgem. No contexto francês,

    Roger Chartier, em diversos trabalhos, define apropriação

    como a história social das interpretações sociais, institucionais

    e culturais, opondo-se a Michel Foucault que pensa a

    apropriação como uma fuga do discurso das mãos daqueles que

    o produziam; Robert Darnton, no contexto americano,

    questionava como os elementos apropriados conviviam dentro

    do cotidiano do indivíduo, no sentido da prática; já Peter

    Burke, historiador inglês, dizia sentir-se desconfortável com

    um conceito simples de representação que deixasse de lado que

    5

    FALCON, Francisco. Historia das idéias . IN: CARDOSO, Ciro

    Flammarion, VAINFAS, Ronaldo (org). Domínio da história: ensaios de

    teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 115.

    22

    os objetos não são necessariamente aqueles que aparecem e são

    entendidos socialmente, pois "os historiadores tornaram-se

    cada vez mais conscientes de que pessoas diferentes podem ver

    o 'mesmo' evento ou estrutura a partir de perspectivas muito

    diversas" 6; no universo historiográfico italiano, Carlo

    Ginzburg, com também várias obras, pensou as relações entre

    a cultura popular e a construção de realidades a partir da

    perspectiva de uma história vinda de baixo.

    O mais famoso livro de Carlo Ginzburg, O queijo e os

    vermes, é um ótimo exemplo para explicar o conceito de

    (re)apropriação, apesar da tensão entre cultura popular e

    cultura erudita intrínseca a ele, o autor italiano demonstra como

    um moleiro renascentista se apropria do texto bíblico,

    fundindo-o com a tradição pagã, sendo portanto ele acusado de

    heresia pelo Tribunal do Santo Ofício. Menocchio, o moleiro,

    constrói suas próprias interpretações sobre o texto bíblico,

    dando a ele uma versão apenas sua, e para isto acontecer é

    necessário sobretudo que ele absorva certos elementos do texto

    bíblico, mas deixe de fora outros, que não coadunam com sua

    visão. "O objeto teórico do livro que o moleiro Menochio

    personifica é, não a cultura popular em si, mas o complexo

    processo de circularidade cultural presente num indivíduo que,

    embora egresso das classes subalternas, sabia ler, e com certeza

    lera certos textos produzidos no âmbito das classes dominantes,

    filtrando-os através de valores da cultura camponesa" 7.

    6

    BURKE, Peter. O que é história cultural? Trad: Sé3rgio Goes de Paula.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 101.

    7

    VAINFAS, Ronaldo. História Cultural e Mentalidades. In: CARDOSO,

    Ciro Flammarion, VAINFAS, Ronaldo (org). Domínio da história:

    ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 152.

    23

    A partir, então, da obra destes historiadores podemos

    pensar os conceitos de apropriação e reapropriação, sobretudo,

    como a possibilidade de um indivíduo, uma instituição ou um

    período histórico dotar de significado a um elemento social

    com características que não necessariamente aquelas que o

    elemento possui. É possível, através da apropriação, dotar um

    elemento social, ou mesmo um outro período histórico com

    características que não pertencem aquele elemento ou período.

    Estas características impostas pela apropriação chocam-se com

    a historicidade do próprio elemento historico, mas sempre

    correspondem a uma necessidade de seu uso dentro de outro

    período histórico, construindo um novo significado histórico

    para o dado elemento social.

    Um dos momentos históricos que sofreram este

    processo de apropriação, um dos primeiros inclusive, foi a

    Antiguidade. Pensando com Glaydson Silva em sua tese de

    doutoramento, Antiguidade, arqueologia e a França de Vichy:

    os usos do passado, defendida em 2005, podemos afirmar que

    as apropriações à Antiguidade começariam no Renascimento

    pois é neste período que a própria Antiguidade é forjada. Ela

    não existe por si só na própria época em que ela existiu. Ela

    não existe antes que se a nomeie em oposição à Modernidade

    renascentista ou as trevas medievais. Glaydson Silva inclusive

    levanta a questão de que a História Antiga tem o papel de

    legitimação histórica da cultura europeia, fazendo com que "as

    narrativas sobre o presente, que tiveram escopo o mundo

    antigo, evidenciaram e evidenciam um caráter marcadamente

    discursivo a respeito da Antiguidade, que por vezes foi

    24

    inventada para atender os interesses daqueles que

    reinvindicavam uma certa herança antiga" 8.

    Explica o autor paulista que por isto a partir da década

    de 1990, os estudos clássicos antes observados como

    hierarquizadores, conservadores e patriarcais passaram por

    uma agitação teórica. Finalmente as obras de autores herdeiros

    da Escola dos Anales que questionavam não somente o mundo

    antigo, mas também suas relações com o presente como Paul

    Veyne, Moses Finley e, mesmo, Michel de Foucault – apesar

    de não ser especialista na área –, escritas desde a década de

    1970, passaram a ser utilizados pelos historiadores clássicos e a

    visão renascentista de herança começou a ser questionada mais

    intrinsecamente. Diz Silva que esta mudança de referenciais,

    em que o presente tornar-se o lugar de referência para o ofício

    do historiador, em que as pesquisas históricas devem responder

    questões do próprio presente, "que exige um rompimento da

    relação temporal e sequencial do presente com o passado como

    um continuum da História" 9. Os elementos que tratamos, que

    são apropriados, a cultura antiga, é um retorno que ganha

    novos sentidos. É o passado que é lido pelo e para o presente.

    Portanto, cabe aos historiadores da Antiguidade, hoje em dia ,

    "desdizer seus próprios ditos, desfazer seus mitos e melhor

    perceber, para além da capacidade e erudição, as interfaces

    entre passado e presente" 10.

    Para isso, Glaydson Silva apresenta uma divisão

    cronológica das apropriações da Antiguidade. Ele começa com

    8

    SILVA, Glaydson José da. Antiguidade, arqueologia e a França de

    Vichy: os usos do passado. Campinas: Unicamp, 2005 (Tese de

    doutorado). p. 30.

    9

    Idem. p. XVIII.

    10

    Idem. p. 33.

    25

    o Renascimento, no qual são construídos os primeiros modelos;

    depois, concentra-se nos séculos, com os XVI e XVII, postos

    conjuntamente, os séculos dos Descobrimentos, o que ele deixa

    claro não haver pesquisas que expliquem os padrões e motivos

    que norteiam a apropriação neste período; para o século XVIII,

    no entanto, ele ressalta as apropriações construídas dentro da

    Revolução Francesa entre jacobinos e girondinos,

    extensamente pesquisadas no universo francês; já no XIX, em

    que o destaque fica para a criação de identidades nacionais

    sobretudo a península itálica se apropriando da herança romana

    e a França associando-se a Gália romana; e para o século XX

    afirma que a Antiguidade torna-se a grande legitimadora de

    regimes autocráticos como o fascismo italiano, o nazismo

    alemão, o franquismo espanhol e, mesmo Vichy, seu objeto de

    estudo, na França. "Grandes generalizações essas, mas se por

    um lado pretensiosas, por resumirem o pensamento sobre a

    Antiguidade durante séculos a raciocínios monológicos, por

    outro bem verossímeis, apontando sempre para uma

    Antiguidade guiada, imaginada, reconstruída" 11. É por isto,

    pela percepção desta lacuna que se coloca para os séculos XVI

    e XVII, que decidimos então enfrentar o desafio de reconhecer

    os padrões e motivos que pelos quais estes séculos davam o

    tom da apropriação da Antiguidade durante os Descobrimentos.

    Essas diferentes leituras apontam para a elaboração de

    práticas políticas e jogos identitários, e sua diversidade também

    nos faz questionar como se dá absorção destes discursos, ou,

    simplesmente, se esta absorção realmente acontece da forma

    que ela é planejada, porque os discursos podem não ter reflexos

    no ambiente social. Contudo uma proposição que Glaydson

    11

    Idem. p. 35.

    26

    Silva não se evita em fazer, e concordamos, é que é necessário

    recusar a idéia de herança ou legado clássico para poder

    indagar quem, nos períodos ditos anteriormente, reivindicou e

    conseguiu para si a ascendência ao mundo antigo, isto é, é

    necessário abrir mão do berço greco-romano para entender

    porque e qual a utilidade de se exigi-lo.

    A História até o Renascimento pensava o passado

    indistintamente. Os historiógrafos antigos, como Heródoto,

    Tucídides, Tácito e Plutarco, e aqueles do período medieval,

    como os hagiógrafos, Isidoro de Sevilha e Santo Agostinho,

    apesar de se diferenciarem por causa de seus objetivos não

    viam no passado nada mais do que um tempo contiguo com o

    presente do qual os fatos eram contados. A partir do

    Renascimento, no entanto, o passado é compartimentado em

    História Antiga, História Medieval e História Moderna. Como

    explicam autores como Ernst Curtius e José Antonio Maravall,

    a Antiguidade seria o tempo do qual o presente Moderno era

    herdeiro, enquanto o Medievo deveria ser uma nódoa a apagar

    do passado Moderno. Surge então aqui o modelo dos quais os

    humanistas tornam-se a torre de marfim da cultura ocidental,

    seu centro irradiador que principalmente vai permitir o

    desenvolvimento de uma cultura europeia, em oposição, as

    culturas regionais francesa, ibérica, italiana, germana ou

    anglo-saxã. O mundo antigo torna-se então o berço do mundo

    ocidental, ao tornar-se o modelo a seguir.

    Dentro do universo de pesquisas sobre reapropriação da

    cultura dita clássica, o Renascimento é aquele em que os

    pesquisadores têm uma longa tradição. É lugar comum no meio

    acadêmico entender o Renascimento como uma espécie de

    reapropriação da cultura antiga, no entanto, esta reapropriação

    27

    é apenas um sinônimo para imitação. A expressão de Nancy

    Kaplan, em sua tese de doutoramento defendida em 2004 na

    Universidade de Campinas, Retrato de Humanistas nas cortes

    de Pádua, Mântua e Ferrara durante o século XV, "os

    humanistas imitavam o que admiravam" 12, resume a ideia de

    que tipo de apropriação se dava entre os homens que viveram

    entre o século XIII e XV. Kaplan inclusive pode demonstrar um

    tipo de produção muito comum ao Renascimento. Formada em

    Educação Artística, mas com mestrado e doutorado em História

    pela Unicamp, Nancy Kaplan trabalha com a ideia de herança

    ao pesquisar reflexos da cultura antiga num período distinto

    do qual existiu. Sua pesquisa de doutorado, voltada para os

    retratos – sejam eles pinturas, bustos ou moedas – dos

    humanistas de algumas cidades da Itália pensa essa construção

    histórica – o retrato – existindo num contínuo histórico entre a

    Grécia, Roma, Idade Média e Renascimento. Ela demonstra,

    inclusive, que os retratos gregos destinavam-se a espaços

    públicos, os estádios e praças, enquanto os romanos eram

    colocados nos jardins das villas e, no Medievo, tinha um uso

    notadamente funerário, sem qualquer preocupação com a

    representação real do retratado, "fazia-se a representação de um

    personagem na sua função, o indivíduo se confundindo com o

    papel social" 13. Traçando essa linha, Kaplan alcança seu

    objeto de estudo, considerando que o interesse dos humanistas

    à arte clássica 14. Ernst Robert Curtius em seu Literatura

    Européia e Idade Média Latina, ainda em 1947, dizia que a

    12

    KAPLAN, Nancy Ridel. Retrato de humanistas nas cortes de Pádua,

    Mântua e Ferrara durante o século XV. Campinas: Unicamp, 2004.

    (Tese de Doutorado). p. 21.

    13 Idem. p. 14.

    28

    divisão em Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna é uma

    divisão que se faz necessária sobretudo por motivos

    pedagógicos, "mas, igualmente por motivos pedagógicos, é

    necessário reconstruí-la numa visão de conjunto" 15, porém não

    adianta unir as duas pontas do processo histórico – no caso

    antigos e modernos – e apagar a influencia medieval que existe

    aí no meio. Podemos, como historiadores, propor uma raiz

    clássica para a arte renascentista, ignorando o que há de

    medieval em seus artistas, sem estar incorrendo no erro de

    acreditar no discurso moderno, como explicado por José

    Antonio Maravall em seu livro Antigos y Modernos?

    O autor espanhol em um de seus últimos livros explica

    que no nascer da modernidade, a construção da Idade Antiga,

    Média e Moderna se dá através de uma depreciação do

    elemento medieval e uma aproximação do elemento antigo,

    lembra o autor que os próprios nomes dados aos períodos

    históricos deixam isso claro. A palavra antigo representa para

    o Renascimento aquilo que deve ser admirado, aquilo que

    estava no passado e não poderia ser esquecido; a palavra

    moderno já associa-se ao tempo presente, aquilo que é atual,

    o Medievo é aquilo que está no meio, nem é especial o

    bastante para ser relembrado, nem é o hoje. As associações

    então que buscam raízes clássicas para a arte renascentista. Os

    homens renascentistas não fazem referência à Grécia e sim ao

    mundo romano. Será, contudo, mesmo que esta associação

    14 Antes de continuar, é interessante notar que a autora não questiona o

    conceito de clássico para o período da Antiguidade, o termo cunhado pelos

    humanistas vai acompanhar a Antiguidade grega, romana e hebraica a partir

    de então (BURCKARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália.)

    15 CURTIUS, Ernst. Literatura europeia e idade média latina. p. 37.

    29

    Antiguidade–Renascimento é um binômio tão estável ou

    devemos desconfiar que os humanistas quando se

    comparavam/imitavam o que diziam admirar? Afinal os

    homens renascentistas estavam ignorando sua associação com

    a Idade Média e, com isso, produzindo um discurso de

    autoafirmação muito mais moderno do que antigo? Repetir esse

    binômio Renascimento-Antiguidade, até que ponto, não seria

    somente aceitar o discurso que os próprios homens do

    Renascimento criaram sobre si mesmos?

    Diz Jacques Le Goff em seu Os intelectuais da Idade

    Média, que os humanistas são um grupo intelectual muito

    diverso daquele que existia na Idade Média. Segundo ele, os

    universitários medievais podiam também ser humanistas,

    porém, o mais comum

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1