Antiguidades Modernas
De Lenin Soares
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Antiguidades Modernas - Lenin Soares
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2
3
ANTIGUIDADES MODERNAS:
A Ocidentalização da América nos Séculos XVI e
XVII
LCS
Natal
2018
4
5
Lenin Soares
ANTIGUIDADES MODERNAS:
A Ocidentalização da América nos Séculos XVI e
XVII
LCS
Natal
2018
6
Capa: Werban Freitas
Foto: Coluna Capitolina, Lenin Soares.
SOARES, Lenin Campos. Antiguidades Modernas: a
ocidentalização da América nos séculos XVI e XVII.
Natal: LCS, 2018.
1. História da América. 2. História Antiga. 3.
História da Arte. 4. Mitologia Grega.
CDD: 980
CDU: 94
7
Para Lenilson e Juraci, meus pais.
8
9
LISTA DE GRÁFICOS
Total de referências a Antiguidade nas crônicas .... 157
Referências a mitologia greco-romana …............... 159
Referências aos deuses em relação ao tempo.......... 170
Referências aos heróis em relação ao tempo .......... 174
Referências aos autores antigos………………..…. 179
Historiografos antigos em relação ao tempo.....…... 183
Referências a filosofia em relação ao tempo …....... 187
Referências aos poetas em relação ao tempo............ 191
Referências aos locais e personagens históricos ….. 193
Locais históricos em relação ao tempo .................... 195
Personagens históricos em relação ao tempo …........196
Bárbaros, latim e grego ………………………........ 204
Bárbaros, latim e grego em relação ao tempo …...… 207
Gráfico dos bárbaros..............................................… 289
10
11
"O Passado é uma terra estrangeira:
lá as coisas são de outro jeito"
L.P. Hartley, O Mensageiro.
12
13
SUMÁRIO
Lista de Gráficos
Introdução..........................................................…..…..15
Humanidades.....................................…............…...….70
Universitas et Colegium..............……….....….78
Portugal, França e a Europa.............………….86
Hieronomitas e jesuítas……………………...106
Salamanca, os dominicanos e a Inquisição.....123
Lovaine, os jerônimos e os protestantes......…137
Apropriações nos Séculos XVI e XVII...…..…..........145
Apropriações e Espaço..........………………........…..208
As Colunas de Hércules e a Atlântida……......223
As Amazonas e as Nereidas.........……...….....238
Alfeu e Aretusa no Olimpo.............…...…......256
Aristóteles e a Zona Tórrida...........…...……..263
O Conhecimento de Plínio e Ptolomeu…........274
Virgílio e a Nova Roma...................…….…....281
Os Bárbaros Índios.....................……….….....288
Considerações Finais...........................…....………....294
Fontes...................................................…....…...........313
Bibliografia..........................................…....…...........319
Anexos
Dicionário de Referências a Antiguidade.......339
14
15
INTRODUÇÃO
É, sem sombra de dúvida, sob os auspícios das Musas
que eu decidi tornar-me historiador, e é sob as bençãos delas e
de Mnemósine que conto aqui como esta pesquisa se iniciou. Já
que esta tese de doutorado tem uma história curiosa. Sua
formulação se origina ainda na minha graduação na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, quando, nos
idos de 1999, eu me envolvi com as pesquisas orientadas pela
professora doutora Maria Emília Monteiro Porto, que acabara
de chegar de seu doutoramento na Universidad de Salamanca, e
fui apresentado ao projeto As Antiguidades nas Crônicas
Coloniais: historicidade como consciência histórica, graças a
um bom conhecimento sobre a Antiguidade clássica, um
conhecimento nada mais do que enciclopédico para os meus
primeiros anos de faculdade, de nomes, personagens, autores,
16
mas o bastante para o que aquele projeto necessitava. A tarefa:
localizar referências feitas a Antiguidade nas crônicas
produzidas entre 1500 e 1800. Este conhecimento era oriundo
de uma paixão pela Idade Antiga que nutro desde minhas
primeiras letras, a qual me impulsionou para o estudo da
História.
A pesquisa, patrocinada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do qual fui
bolsista de Iniciação Científica (Pibic), consistia na leitura das
crônicas coloniais e localização, entre suas páginas, de
referências feitas aos autores greco-romanos, sua poesia e
mitografia, sua história e filosofia, seus tratados retóricos e
médicos, e etc. Este projeto foi financiado pelo CNPq por dois
anos, e o catálogo que resultou dele é sobre o qual nos
debruçamos, inicialmente, nesta pesquisa de doutoramento 1.
1Foram lidos neste projeto 13 crônistas. Segue a lista, por séculos, e por
ordem alfabética, dos autores com os quais nos envolvemos no projeto do
qual resultou um catálogo. No século XVI podemos citar Anônimo Jesuíta
(Simão Travassos), Summario das armadas que se fizeram e guerras que se
deram na conquista do Rio Parahyba (1587-1589), Fernão Cardim.
Tratados da terra e da gente do Brasil (1550), Gabriel Soares de Sousa,
Tratado descritivo do Brasil (1587), Jean de Léry, Viagem a Terra do Brasil
(1578), Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da terra do Brasil e História
da província de Santa Cruz (1576), e do século XVII, participaram do
projeto Claude D'Abbeville, História da missão dos padres capuchinos na
ilha do Maranhão e terras circunvizinhas (1614), Diogo de Campos
Moreno, Livro que dá razão do Estado do Brasil (1616), Diogo Lopes
Santiago, História da Guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do
Mestre de Campo João Fernandes Vieira (1634), Gaspar Barleus, História
dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil (1644),
Jácome Monteiro, Relação da província do Brasil (1610), Frei Manuel
Calado, O Valoroso Lucideno e Triunfo da Liberdade (1648), Simão de
Vasconcelos. Crônica da Companhia de Jesus (1613) e o Frei Vicente do
17
O projeto também permitiu a pesquisa em História
Antiga, a paixão que me move até hoje, mas uma pesquisa
disfarçada, por necessidade de adaptação. A produção em
História Antiga nas universidades do nordeste brasileiro é uma
produção considerada, para dizer menos, superficial,
dispensável, fútil, talvez por uma severa influência marxista, os
classicistas são vistos como um grupo elitizado, que não
responde aos anseios da população, que não responde ao
investimento social que o governo brasileiro faz em suas
universidades federais. Diz Martin Bernal, num pequeno livro
organizado por Pedro Paulo Funari, que "acredita-se
amplamente que a área de 'Estudos Clássicos' é, dentre as
disciplinas acadêmicas, aquela que está mais afastada do
campo da política moderna. Por conta disso, atribuiu-se a ela
não apenas um espaço de destaque mas mesmo o ponto mais
isolado em uma dita 'torre de marfim'" 2. Portanto, apenas
cursos considerados no nordeste como elitizados e apolíticos,
tal como Filosofia e Letras, tem a possibilidade do estudo desta
área. Na Universidade Federal do Ceará, o departamento de
Letras, inclusive, possui o único programa de pós-gradução em
Estudos Clássicos da região.
Caso essas afirmações pareçam espantosas um dado
pode claramente demonstrar este fato: até 2009 não existia um
especialista na área de história antiga em nenhuma
universidade federal no nordeste. Existem 9 estados: Bahia,
Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte,
Salvador, História do Brasil (1627).
2
BERNAL, Martin. A imagem da Grécia antiga como uma ferramenta
para o colonialismo e para a hegemonia europeia. IN: FUNARI, Pedro
Paulo (org.). Repensando o mundo antigo. Campinas:
IFCH/UNICAMP, 2003. [Coleção Textos Didáticos, nº 49]. p. 09.
18
Ceará, Piauí e Maranhão, e não há nenhum especialista na área
nas faculdades federais, curiosamente há exceção nas
universidades estaduais, na Bahia, a Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia tem dois professores especialistas na área, e
no Ceará, a Universidade Estadual do Ceará tem uma
pesquisadora 3.
Sendo assim, produzir um trabalho sobre as
apropriações da Antiguidade permite manter o contato com a
área que sempre me fascinou, mas ao mesmo tempo poder
contar com a orientação e diálogo com outros, tão importante
para nossa formação como historiadores. É daí que nasceu a
ideia do meu mestrado, defendido em 2007, na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, no programa História e
Espaço, O padre, o filósofo e o profeta: A América de Simão de
Vasconcelos, que versa sobre a produção de um espaço
americano através da pena do padre jesuíta Simão de
Vasconcelos, através da apropriação que este faz do filósofo
Aristóteles e do profeta Samuel 4. É também desta necessidade
de adaptação que nasceu agora a ideia para esta tese.
Nosso objetivo aqui é pensar a utilização de elementos
em comum, neste caso as referências feitas à Antiguidade
greco-romana, para a construção de um espaço americano que
seja inteligível pelos europeus dos séculos XVI e XVII no
conjunto de crônicas que catalogamos no projeto da graduação,
e outras que foram sendo acrescidas conforme sentíamos
necessidade de encontrar um maior volume de dados para
3
Dados retirados do GT de História Antiga da ANPUH. Disponível em
http://www.ufrgs.br/anpuhrs, consultado em 19/04/2009.
4
SOARES, Lenin Campos . O padre, o filósofo e o profeta: A América de
Simão de Vasconcelos. Natal: CCHLA/PPGH, 2007. [Dissertação de
Mestrado].
19
sustentar nossas hipóteses (ou rechaçá-las). É uma pesquisa
que busca entender a produção de elementos pelos cronistas
coloniais que apresentaram a América portuguesa para um
público europeu, que ainda não tinha visto o território, o lugar,
a paisagem, isto é, o espaço. A nossa pergunta é: como estes
autores traduzem a realidade do novo mundo para o leitor
europeu? A nossa preocupação é se há a elaboração de uma
tópica que será utilizada para descrever o novo mundo
espacialmente, a criação de um discurso sobre o novo mundo
com base numa tradição antiga que ganha nova evidência com
o Renascimento. Devemos lembrar, também, que esta forma de
traduzir o espaço para olhos europeus não era a única utilizada
pela tradição ocidental, a própria Bíblia cristã era uma base de
uma tradição extremamente utilizada por estes grupos. Não
obstante, chamamos atenção para o nosso recorte que é a
instrumentalização da cultura oriunda do período clássico para
a produção de um novo espaço.
É importante, no entanto, fazer uma ressalva: não
pretendemos como objetivo saber se o público leitor das
crônicas, de fato, respondia a essa tópica como os escritores
pretendiam. Este não é um trabalho sobre a recepção do texto.
Não pretendemos informar se quando as referências a
Antiguidade eram utilizadas isto causava a resposta que o
cronista pretendeu. Não somos capazes, dado ao conjunto de
fontes que possuímos, de aferir algo sobre isto, porém tomando
como pressuposto que um autor escreve para ser entendido
pelos seus leitores, e para tal, propõe um leitor ideal
, aquele
que possa decodificar na instância da recepção as expressões
que ele utiliza da mesma forma que ele as concebeu.
Esperamos sim poder fazer algumas afirmações sobre a
20
recepção que as crônicas tiveram, no entanto, apenas através
das informações oriundas da própria crônica, ou seja, somente
a partir da própria produção.
Após estas consideramos, nos preocupamos agora com
o recorte cronológico deste trabalho, principalmente porque
dificilmente podemos localizá-lo como uma pesquisa de
História Antiga, Medieval ou Moderna. Seu tema é a cultura
antiga. Os elementos culturais da Antiguidade clássica.
Contudo versa sobre como esses elementos foram apropriados,
isto é, ganharam novos significados durante os séculos XVI e
XVII que rigorosamente fazem parte do momento inicial da
Idade Moderna, porém também são séculos influenciados
diretamente pelo Renascimento, um fenômeno que pode ser
localizado tanto no Medievo quanto na Modernidade,
dependendo se o tomamos como processo ou como ruptura. Se
o próprio Renascimento – o cerne deste trabalho – se flexibiliza
tocando os três períodos, esta pesquisa acaba por tornar-se
também cronologicamente tão maleável quanto. É então
indispensável para continuar com esta tese romper com a
cronologia tradicional, não abandonar o tempo, é claro, pois é o
tempo que se caracteriza o ofício do historiador, contudo é
necessário utilizar um tempo diverso do tempo linear que nos
acostumamos a pensar a história. Este tempo, no qual o
passado se manifesta continuamente no presente, sobre outras
formas, algumas que se fingem verdadeiras, como fingem as
Musas de Hesíodo, é o único que pode permitir a utilização de
um conceito muito caro a esta tese, o conceito de apropriação.
Ligando-se aos questionamentos mais recentes da
(nova) História Cultural e Mentalidades e da História das
Ideias, sobretudo aqueles que começaram a partir do contato
21
com a obra de Michel Foucault, "pois foi com Foucault que
tiveram início muitas das 'novidades" que ainda encantam ou
irritam os historiadores das ideias" 5, a História passou a se
preocupar com a construção de discursos sobre a própria
História. Autores como Michel de Certeau e Paul Veyne
passaram a propor o conceito de narrativa para explicar a
produção histórica, em que a ideia de que o historiador escolhe
os fatos para estabelecer sua trama tal qual um autor de ficção
abalou a própria certeza de objetividade do trabalho histórico.
Autores como Pierre Bourdieu, Georges Duby e Michel
Vovelle passaram a questionar como os processos de
construção de ideologias interferem também no processo de
construção do conhecimento histórico, sendo a partir da década
de 1970 que, com uma nova fase de prestígio da hermenêutica,
autores como H. Gadamer, Ricouer, Robert Barthes, Umberto
Eco, Jacques Derrida e Gilles Deleuze ganharam destaque.
É sobre estas críticas que os conceitos de Apropriação,
Reapropriação e Representação surgem. No contexto francês,
Roger Chartier, em diversos trabalhos, define apropriação
como a história social das interpretações sociais, institucionais
e culturais, opondo-se a Michel Foucault que pensa a
apropriação como uma fuga do discurso das mãos daqueles que
o produziam; Robert Darnton, no contexto americano,
questionava como os elementos apropriados conviviam dentro
do cotidiano do indivíduo, no sentido da prática; já Peter
Burke, historiador inglês, dizia sentir-se desconfortável com
um conceito simples de representação que deixasse de lado que
5
FALCON, Francisco. Historia das idéias . IN: CARDOSO, Ciro
Flammarion, VAINFAS, Ronaldo (org). Domínio da história: ensaios de
teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 115.
22
os objetos não são necessariamente aqueles que aparecem e são
entendidos socialmente, pois "os historiadores tornaram-se
cada vez mais conscientes de que pessoas diferentes podem ver
o 'mesmo' evento ou estrutura a partir de perspectivas muito
diversas" 6; no universo historiográfico italiano, Carlo
Ginzburg, com também várias obras, pensou as relações entre
a cultura popular e a construção de realidades a partir da
perspectiva de uma história vinda de baixo
.
O mais famoso livro de Carlo Ginzburg, O queijo e os
vermes, é um ótimo exemplo para explicar o conceito de
(re)apropriação, apesar da tensão entre cultura popular e
cultura erudita intrínseca a ele, o autor italiano demonstra como
um moleiro renascentista se apropria do texto bíblico,
fundindo-o com a tradição pagã, sendo portanto ele acusado de
heresia pelo Tribunal do Santo Ofício. Menocchio, o moleiro,
constrói suas próprias interpretações sobre o texto bíblico,
dando a ele uma versão apenas sua, e para isto acontecer é
necessário sobretudo que ele absorva certos elementos do texto
bíblico, mas deixe de fora outros, que não coadunam com sua
visão. "O objeto teórico do livro que o moleiro Menochio
personifica é, não a cultura popular em si, mas o complexo
processo de circularidade cultural presente num indivíduo que,
embora egresso das classes subalternas, sabia ler, e com certeza
lera certos textos produzidos no âmbito das classes dominantes,
filtrando-os através de valores da cultura camponesa" 7.
6
BURKE, Peter. O que é história cultural? Trad: Sé3rgio Goes de Paula.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 101.
7
VAINFAS, Ronaldo. História Cultural e Mentalidades. In: CARDOSO,
Ciro Flammarion, VAINFAS, Ronaldo (org). Domínio da história:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 152.
23
A partir, então, da obra destes historiadores podemos
pensar os conceitos de apropriação e reapropriação, sobretudo,
como a possibilidade de um indivíduo, uma instituição ou um
período histórico dotar de significado a um elemento social
com características que não necessariamente aquelas que o
elemento possui. É possível, através da apropriação, dotar um
elemento social, ou mesmo um outro período histórico com
características que não pertencem aquele elemento ou período.
Estas características impostas pela apropriação chocam-se com
a historicidade do próprio elemento historico, mas sempre
correspondem a uma necessidade de seu uso dentro de outro
período histórico, construindo um novo significado histórico
para o dado elemento social.
Um dos momentos históricos que sofreram este
processo de apropriação, um dos primeiros inclusive, foi a
Antiguidade. Pensando com Glaydson Silva em sua tese de
doutoramento, Antiguidade, arqueologia e a França de Vichy:
os usos do passado, defendida em 2005, podemos afirmar que
as apropriações à Antiguidade começariam no Renascimento
pois é neste período que a própria Antiguidade é forjada. Ela
não existe por si só na própria época em que ela existiu. Ela
não existe antes que se a nomeie em oposição à Modernidade
renascentista ou as trevas medievais. Glaydson Silva inclusive
levanta a questão de que a História Antiga tem o papel de
legitimação histórica da cultura europeia, fazendo com que "as
narrativas sobre o presente, que tiveram escopo o mundo
antigo, evidenciaram e evidenciam um caráter marcadamente
discursivo a respeito da Antiguidade, que por vezes foi
24
inventada para atender os interesses daqueles que
reinvindicavam uma certa herança antiga" 8.
Explica o autor paulista que por isto a partir da década
de 1990, os estudos clássicos antes observados como
hierarquizadores, conservadores e patriarcais passaram por
uma agitação teórica. Finalmente as obras de autores herdeiros
da Escola dos Anales que questionavam não somente o mundo
antigo, mas também suas relações com o presente como Paul
Veyne, Moses Finley e, mesmo, Michel de Foucault – apesar
de não ser especialista na área –, escritas desde a década de
1970, passaram a ser utilizados pelos historiadores clássicos e a
visão renascentista de herança começou a ser questionada mais
intrinsecamente. Diz Silva que esta mudança de referenciais,
em que o presente tornar-se o lugar de referência para o ofício
do historiador, em que as pesquisas históricas devem responder
questões do próprio presente, "que exige um rompimento da
relação temporal e sequencial do presente com o passado como
um continuum da História" 9. Os elementos que tratamos, que
são apropriados, a cultura antiga, é um retorno que ganha
novos sentidos. É o passado que é lido pelo e para o presente.
Portanto, cabe aos historiadores da Antiguidade, hoje em dia ,
"desdizer seus próprios ditos, desfazer seus mitos e melhor
perceber, para além da capacidade e erudição, as interfaces
entre passado e presente" 10.
Para isso, Glaydson Silva apresenta uma divisão
cronológica das apropriações da Antiguidade. Ele começa com
8
SILVA, Glaydson José da. Antiguidade, arqueologia e a França de
Vichy: os usos do passado. Campinas: Unicamp, 2005 (Tese de
doutorado). p. 30.
9
Idem. p. XVIII.
10
Idem. p. 33.
25
o Renascimento, no qual são construídos os primeiros modelos;
depois, concentra-se nos séculos, com os XVI e XVII, postos
conjuntamente, os séculos dos Descobrimentos, o que ele deixa
claro não haver pesquisas que expliquem os padrões e motivos
que norteiam a apropriação neste período; para o século XVIII,
no entanto, ele ressalta as apropriações construídas dentro da
Revolução Francesa entre jacobinos e girondinos,
extensamente pesquisadas no universo francês; já no XIX, em
que o destaque fica para a criação de identidades nacionais
sobretudo a península itálica se apropriando da herança romana
e a França associando-se a Gália romana; e para o século XX
afirma que a Antiguidade torna-se a grande legitimadora de
regimes autocráticos como o fascismo italiano, o nazismo
alemão, o franquismo espanhol e, mesmo Vichy, seu objeto de
estudo, na França. "Grandes generalizações essas, mas se por
um lado pretensiosas, por resumirem o pensamento sobre a
Antiguidade durante séculos a raciocínios monológicos, por
outro bem verossímeis, apontando sempre para uma
Antiguidade guiada, imaginada, reconstruída" 11. É por isto,
pela percepção desta lacuna que se coloca para os séculos XVI
e XVII, que decidimos então enfrentar o desafio de reconhecer
os padrões e motivos que pelos quais estes séculos davam o
tom da apropriação da Antiguidade durante os Descobrimentos.
Essas diferentes leituras apontam para a elaboração de
práticas políticas e jogos identitários, e sua diversidade também
nos faz questionar como se dá absorção destes discursos, ou,
simplesmente, se esta absorção realmente acontece da forma
que ela é planejada, porque os discursos podem não ter reflexos
no ambiente social. Contudo uma proposição que Glaydson
11
Idem. p. 35.
26
Silva não se evita em fazer, e concordamos, é que é necessário
recusar a idéia de herança ou legado clássico para poder
indagar quem, nos períodos ditos anteriormente, reivindicou e
conseguiu para si a ascendência ao mundo antigo, isto é, é
necessário abrir mão do berço greco-romano para entender
porque e qual a utilidade de se exigi-lo.
A História até o Renascimento pensava o passado
indistintamente. Os historiógrafos antigos, como Heródoto,
Tucídides, Tácito e Plutarco, e aqueles do período medieval,
como os hagiógrafos, Isidoro de Sevilha e Santo Agostinho,
apesar de se diferenciarem por causa de seus objetivos não
viam no passado nada mais do que um tempo contiguo com o
presente do qual os fatos eram contados. A partir do
Renascimento, no entanto, o passado é compartimentado em
História Antiga, História Medieval e História Moderna. Como
explicam autores como Ernst Curtius e José Antonio Maravall,
a Antiguidade seria o tempo do qual o presente Moderno era
herdeiro, enquanto o Medievo deveria ser uma nódoa a apagar
do passado Moderno. Surge então aqui o modelo dos quais os
humanistas tornam-se a torre de marfim da cultura ocidental,
seu centro irradiador que principalmente vai permitir o
desenvolvimento de uma cultura europeia, em oposição, as
culturas regionais
francesa, ibérica, italiana, germana ou
anglo-saxã. O mundo antigo torna-se então o berço do mundo
ocidental, ao tornar-se o modelo a seguir.
Dentro do universo de pesquisas sobre reapropriação da
cultura dita clássica, o Renascimento é aquele em que os
pesquisadores têm uma longa tradição. É lugar comum no meio
acadêmico entender o Renascimento como uma espécie de
reapropriação da cultura antiga, no entanto, esta reapropriação
27
é apenas um sinônimo para imitação. A expressão de Nancy
Kaplan, em sua tese de doutoramento defendida em 2004 na
Universidade de Campinas, Retrato de Humanistas nas cortes
de Pádua, Mântua e Ferrara durante o século XV, "os
humanistas imitavam o que admiravam" 12, resume a ideia de
que tipo de apropriação se dava entre os homens que viveram
entre o século XIII e XV. Kaplan inclusive pode demonstrar um
tipo de produção muito comum ao Renascimento. Formada em
Educação Artística, mas com mestrado e doutorado em História
pela Unicamp, Nancy Kaplan trabalha com a ideia de herança
ao pesquisar reflexos
da cultura antiga num período distinto
do qual existiu. Sua pesquisa de doutorado, voltada para os
retratos – sejam eles pinturas, bustos ou moedas – dos
humanistas de algumas cidades da Itália pensa essa construção
histórica – o retrato – existindo num contínuo histórico entre a
Grécia, Roma, Idade Média e Renascimento. Ela demonstra,
inclusive, que os retratos gregos destinavam-se a espaços
públicos, os estádios e praças, enquanto os romanos eram
colocados nos jardins das villas e, no Medievo, tinha um uso
notadamente funerário, sem qualquer preocupação com a
representação real do retratado, "fazia-se a representação de um
personagem na sua função, o indivíduo se confundindo com o
papel social" 13. Traçando essa linha, Kaplan alcança seu
objeto de estudo, considerando que o interesse dos humanistas
à arte clássica 14. Ernst Robert Curtius em seu Literatura
Européia e Idade Média Latina, ainda em 1947, dizia que a
12
KAPLAN, Nancy Ridel. Retrato de humanistas nas cortes de Pádua,
Mântua e Ferrara durante o século XV. Campinas: Unicamp, 2004.
(Tese de Doutorado). p. 21.
13 Idem. p. 14.
28
divisão em Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna é uma
divisão que se faz necessária sobretudo por motivos
pedagógicos, "mas, igualmente por motivos pedagógicos, é
necessário reconstruí-la numa visão de conjunto" 15, porém não
adianta unir as duas pontas do processo histórico – no caso
antigos e modernos – e apagar a influencia medieval que existe
aí no meio. Podemos, como historiadores, propor uma raiz
clássica para a arte renascentista, ignorando o que há de
medieval em seus artistas, sem estar incorrendo no erro de
acreditar no discurso moderno, como explicado por José
Antonio Maravall em seu livro Antigos y Modernos?
O autor espanhol em um de seus últimos livros explica
que no nascer da modernidade, a construção da Idade Antiga,
Média e Moderna se dá através de uma depreciação do
elemento medieval e uma aproximação do elemento antigo,
lembra o autor que os próprios nomes dados aos períodos
históricos deixam isso claro. A palavra antigo
representa para
o Renascimento aquilo que deve ser admirado, aquilo que
estava no passado e não poderia ser esquecido; a palavra
moderno
já associa-se ao tempo presente, aquilo que é atual,
o Medievo é aquilo que está no meio
, nem é especial o
bastante para ser relembrado, nem é o hoje. As associações
então que buscam raízes clássicas para a arte renascentista. Os
homens renascentistas não fazem referência à Grécia e sim ao
mundo romano. Será, contudo, mesmo que esta associação
14 Antes de continuar, é interessante notar que a autora não questiona o
conceito de clássico para o período da Antiguidade, o termo cunhado pelos
humanistas vai acompanhar a Antiguidade grega, romana e hebraica a partir
de então (BURCKARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália.)
15 CURTIUS, Ernst. Literatura europeia e idade média latina. p. 37.
29
Antiguidade–Renascimento é um binômio tão estável ou
devemos desconfiar que os humanistas quando se
comparavam/imitavam o que diziam admirar? Afinal os
homens renascentistas estavam ignorando sua associação com
a Idade Média e, com isso, produzindo um discurso de
autoafirmação muito mais moderno do que antigo? Repetir esse
binômio Renascimento-Antiguidade, até que ponto, não seria
somente aceitar o discurso que os próprios homens do
Renascimento criaram sobre si mesmos?
Diz Jacques Le Goff em seu Os intelectuais da Idade
Média, que os humanistas são um grupo intelectual muito
diverso daquele que existia na Idade Média. Segundo ele, os
universitários medievais podiam também ser humanistas,
porém, o mais comum