Ecos De Voos E De Abismos
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Ecos De Voos E De Abismos - Dolores Maggioni
CADERNO 1
1981 - Cantigas de um tempo intocável
PARA UMA CANTIGA CONTINUADA
Todos os poemas aqui reunidos vieram do fundo de uma caminhada, como um eco responde a um grito. Aqui a palavra é alimentada de amor e tempo, sem acrobacias, permanente intocável cantiga que se torna visível pela palavra vivida com muita emoção, sem a contabilização da pressa.
As Cantigas de um tempo intocável mostram a dicção fluente de quem canta a vida, de quem vive a canção, de quem sente a beleza de um convite, bem como a nostalgia de uma ausência acrescentada de elegia.
Na primeira parte – Cantigas de mim – a poeta, embora diga que seu desejo é esboçar uma canção sem palavras, escreve o que ocorre em seu mundo interior, trazendo de volta uma hora perdida
. Sabe que o mundo tem a forma visível da rotina, entretanto, faz do amor este sonho incrível
vestido com tinta, letras e riscos
. Há muito de piano cantando em tom menor
; até a inconfundível Traviata fala do amor que torna linda a vida, enquanto a vida passa
. E ainda, ao ritmo de um coração apaziguado
; a poeta amadurece como uma árvore que não apressa a sua seiva
. A vida é chama, o amor é resposta, por isso as cantigas surgem tão espontâneas, como regatos solícitos entre os ponteiros das horas várias. Exuberantes e cheias de luzes, as cantigas são multiformes: amam, agradecem, temem, desejam, pulsam, fecundam e choram. E ficam povoadas de memórias, aconchegando uma a uma, iguais e incandescentes. E rezam: de repente, foi Deus em nossa boca e o céu à nossa frente
.
A parte intermediária – Elegias prematuras – apresenta não mais o sonho vivido, o espaço possível do amor, as alegrias de uma descoberta íntima, mas quase a revolta de quem grita em dor, no exílio; de quem chora o esvaziamento sofrido. Subitamente é inverno na natureza, é agosto no coração
. E, com um coração submerso nesta dor que dói demais
, o poema busca no silêncio intocável a imagem linda de um sonho, de uma lembrança permanente. As elegias, em tom dramático e maternal, revelam o peso de uma ausência inconformada. É dor que ensina, é o grito que se torna nevoento e frio, é a flor à espreita de um fruto prematuramente colhido. As elegias chegam e conferem sem máscaras e sem espanto de saber que a vida é passagem.
E o livro conclui com uma série de poemas em prosa – Os trechos epistolares e outros temas – onde, nos trechos, a poeta quebra a forma de verso e busca na frase solta todo o potencial de uma intimidade disparada em torno de um milagre de amor. Por isso a nota que por toda a parte há restos de outros tempos
. E sabe-se com as chaves rios limites: não peçamos ao mundo mais do que ele nos pode dar
. Aqui a poeta revê tantas páginas possíveis da vida: resta uma parede vítrea através da qual tudo é visível
. E nos outros temas acrescentados aos trechos epistolares, constata realmente no meio da única comemoração que jamais termina
o amor que existe para realizar a comunhão e a participação em plenitude; O amor nos fez um só
. E pacientemente conclui com o respeito de um repouso: tu simplesmente és – eu sou tua consequência
.
Este livro de Dolores Maggioni não foi escrito agora, mas abriga desde os primeiros versos, até os últimos poemas de hoje, e toda a trajetória íntima da palavra ancorada em cantigas, no tempo de quem sabe que a palavra é sempre intocável...
Oscar Bertholdo
Responso lírico ao túmulo do poeta Bertholdo
Senhor, rogamos-te a paz da trégua das vazantes.
Desvenda-nos a incógnita. Mostra-nos a face extinta.
Para onde Tu levaste o canário cantador, cujo trinado era capaz de parir em cada coração mais sonhos do que o ovíparo mais fértil?
Mostra-nos um minúsculo casulo, onde ainda se possa gestar uma esperança. Tira do mundo, Senhor, todas as nossas ruínas que, idênticas a Sodoma e Gomorra, corroem os seres que, na ganância, deterioram cotidianamente vidas. Não mais permite, te suplicamos, que irmãos nossos sejam entregues à febril idade de lobisomens, engravidando febres que não cabem na medida de nenhum termômetro. É preciso que se aprenda a lição de estacionar ardis nas profundidades serenas onde as ostras cospem pérolas.
Faz-nos entender a metafísica esclarecedora na demarcação do mistério pelo denso limite da morte. Acalma esse nosso coração sobrevivente. Atenua a dor que nos corta o peito ao meio.
Responde-nos, Senhor. – Onde a voz cerzida de astros e poemas? Onde os versos, anjos equidistantes em orações inéditas? Onde o realejo oriundo do mistério, com sons de magnólias e gerânios? Onde as vogais, tão leves como pássaros, ajustadas, esvoaçantes nos jardins da Babilônia?
Arranca de nós, Senhor, esta incerteza sanguessuga. Por que o útero daquelas mãos amigas, assim tão sossegadas, já não gestam o embrião das metáforas tão cheias de encanto? Dá-nos, Senhor, a solução urgente para tantos naufrágios disponíveis que desorientam os destroços de uma tristeza uníssona.
Sabemos todos, Senhor. Não nos podes livrar destes andrajos de estranho desconforto, nem libertar a mortalha que tolhe aquele corpo inerte; mas ajuda-nos a decifrar o enigma com um breve consolo, capaz de emoldurar algumas esperanças no dorso deste mundo.
Derrama, Senhor, um véu de aleias por sobre a poesia que resta e que hoje sofre no fundo do lado de dentro, onde se engastam os sonhos dos infatigáveis sonhadores.
Calou-se a voz do menestrel absoluto. Cessou o gesto que dedilhava cítaras, no brinquedo incrível de juntar palavras e inventar quimeras.
Escolheste, Senhor, para o nosso poeta Bertholdo, o repouso absoluto do 7° dia, e lhe fechaste as pálpebras com a serenidade daquele que transita horas passivas, com a impune certeza de quem já decifrou o labirinto. O que é que aconteceu com o mundo, Senhor? Resta-nos à frente caminhos descalços de fantasmas sobressaltados e, mais, o susto das marés bíblicas aprimorando torturas cotidianas.
Calou-se a voz do vale. A poesia se entristeceu. E, como nebulosa dormida, seus ecos já não nos alcançam primaverando cada função do amor. Aquelas mãos poetas derramavam cântaros de luz nos corações sofridos e agora silenciaram os versos capazes de embriagar os girassóis na dança dos canteiros. Onde os informes carinhosos ensinando-nos a sobremesar estrelas? Inerte, Tu o fizeste, o nosso poeta, em espaço de açucenas e nós, os amigos hoje doentes, esperamos o inútil retorno em posição de concha para receber o coração que já não pulsa na ânsia de inventar palavras novas, que já não canta modinhas em vogais varridas de improviso, rebrilhando na garoa.
Desabotoa aquelas mãos, Senhor, para que o mundo possa de novo ler os versos que teciam. Acorda aquele par de olhos dormidos, para que irradiem as fulgurações das metamorfoses que só a verdadeira poesia sabe construir.
Sei, Senhor. Pedimos-te a volta do impossível. Mas só Tua Trágica Trindade pode esgotar nossa cota de dor.
Olha, Senhor. Há um circo armado no meio da vida. Não mais permite que os homens, aqueles que não passam de mamíferos vertebrados, firam e matem como búfalos ferozes calando aragens no recôncavo dos plátanos carregados de decassílabos de ternura. Sofre a poesia, Senhor. Os corações rastejam, como dor nos calabouços.
Pedimos-te clemência. Para o mal que nos espreita em cada esquina, e tudo que podemos ofertar em troca não vai além de uma face verônica, de um sudário carregado de tardia dissonância, idêntica à dor de se ter chegado tarde.
Impede, Senhor, que siga acontecendo este show que nunca teve encanto, este já viciado jogo de inconsequências que perfura o nosso coração, com balas e estiletes.
Estamos cansados de cansaço. O nosso pavor é um medo gêmeo. Confusos, vemos sucumbir as nossas forças e debatemo-nos perdidos como em dispersos voos de periquitos. Queríamos sentir de novo a paz dos canteiros vertendo girassóis e pontes de alfazemas, ligando corações.
Cessou a poesia, Senhor. Em cada esquina se encontra o riso alinhavado e, em cada dor, chora magoada uma dália escarlate. Contudo, sabemos que na Tua infinita sabedoria, o luzeiro do infinito vai noturnar, com seus pirilampos, as madrugadas que nos restam, não apenas com estrelas, mas, sobretudo, com versos iluminados de ternura, que nos ajudarão a preencher o espaço que ficou vazio.
Perdoa-nos, Senhor, por tão doída súplica.
Os versos que aqui já não ouvimos soarão, por certo, alegres como os céus de São João de nossa infância, em regiões amenas, onde os anjos não estão em crise.
E, sabemos, permitirás que os seus ecos cheguem até nós carregados de palavras capazes de desnudar cantigas, ensinando-nos fórmulas mágicas de criançar, nem que para isso os Teus anjos precisem chorar e, através de suas lágrimas cristalinas, sejamos atingidos com carícias de asas de querubins, espalhando sobre a terra os versos que Bertholdo continuará a escrever nos céus.
Senhor. Nosso anseio está exausto de tanto olhar o firmamento.
No amplo saguão azul escuro, estrelas agrupadas nos acenam com gestos iluminados. Nossa alma se desfaz em lágrimas deslizantes em contas de rosário.
Por último, Senhor. Perdoa-nos se te pedimos tanto e tão pouco temos para te ofertar além de nossas cruéis verdades embebidas em perfumes de magnólia à espera de Teu rubro derramar-se de milagres em forma de poemas, madurando o aroma para a memória difícil deste difícil consolo.
Bertholdo, Senhor, está Contigo. Mas também continua em cada um de nós, da mesma forma que ele se expressou em uma de suas obras: Minh’alma ficou aberta. Ou, alguém, que já não sou eu, tem a chave. E esse alguém entra e sai, quando quer.
Dolores Maggioni
Cantigas de mim
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
A chuva parou
abre um ligeiro momento de luz
canção de um poeta vindouro
que diz de indizível prazer
amadureço com a árvore
que não apressa a sua seiva
meu sentimento a esmo
ganha madura compreensão
parto de uma nova claridade
projetada p’ra dentro
de mim mesmo
Ali moram meus motivos
guerra justa dos objetivos
do desejo não cumprido
Sou uma batalha constante
entre o que anseio
e o que me é reprimido
Noites de amor esquecidas
desejos estagnados nos braços
que abraçam cegamente
Firmemente
avanço inconvertível
ao óvulo aberto que me espera
é quase primavera
no meio da paisagem
não quero o amor selvagem
a volúpia malbaratada
dos momentos cansados da existência
eu quero a consistência
do homem e da mulher
libertos de sentimentos falsos
de restos casuais
se amando não como dois contrastes
mas como dois iguais
ALMA DESPIDA
Tantos desejos contidos
sonhos incompreendidos
às leis que os homens criaram
tantas linhas paralelas
conduzem tantos destinos
por onde os tristes andaram
tantos iguais pensamentos
são diferentes momentos
que não se podem juntar
tantos olhos se encontraram
tantas mãos se acariciaram
para depois se afastar
tantos jovens namorados
andando sempre afastados
buscando um do outro fugir
tantas cruéis despedidas
quantas vezes repetidas
sem nunca afinal conseguir
tantas frases nunca ditas
quantas ânsias infinitas
de uma entrega total
tantas presenças na ausência
tantos disfarces p’ra essência
do sentimento imortal.
Tantas lágrimas retidas
tantas noites mal dormidas
ocultando tanta dor
tantos versos de poemas
tentando vestir dilemas
com trajes de suave cor
Não é justo que se aceite
eu quero a alma despida
um microcosmo, uma vida
Todo este amor sem igual
Quero até a dor que exaspera
saber que é inútil a espera
mas quero ser eu, afinal.
QUIETUDE
Esta música de seda me embala na noite
desmerecem no escuro as pisadas na areia
no meu rosto tão triste, minha vida está quieta
inquieta estremeço
Reconheço
que no meio da onda pararam os remos
é um suspiro vazio, é um quase lamento
coisas não acontecidas
nossas mãos esquecidas
silhuetas de corpos desfeitas ao vento
Meu olhar olha o mundo
um olhar tão sem brilho
um andar tão sem pressa
um sabor tão sem gosto
um sonhar que começa...
O meu tempo esboça a canção sem palavras
Meu castelo é de instantes
todos eles de ausências
choro as insuficiências
a confusão dos enganos
os desacertos humanos
e suas consequências.
Penso em ti e pressinto o mistério que emanas
ora voo... sou penugem... poeira de brasas
com mais sonho e silêncio que dezenas de asas
no sossego da ausência das falas humanas
Eu te dou o que eu tenho
Aqui está minha vida – uma página clara
submersa num clima de quietude rara
teimosias de sonhar rendilhadas de encanto
até eu mesma me espanto
Aqui está minha voz a espargir pelo vento
os murmúrios de amor que renascem contigo
não os sei parecidos com riso ou gemido
sei-os frases libertas bailando ao relento
Eu te dou o que tenho – o que eu quero? Só o nada
vou brincando sozinha com o meu coração
eu me sinto serena como a madrugada
afagando teu rosto na concha das mãos
Eu queria te falar
bem assim, devagar
Meu caminho é estranho – sem marcos, suspenso
entre ninhos e astros – difusos clarões
e as imagens? – a mesma – só variam como as penso
elas têm a sua forma em mil variações.
Desejei o infinito. O que eu tenho é só o mundo
e o meu sonho profundo.
Minha vida, uma barca delgada, desliza
sem leme... sem rumo... sem vela... sem brisa
no oceano de imagens – a tua mesma – repito
meu dizer tão bendito.
Minh’alma está quieta. Tal quietude me inquieta
Não existe horizonte
este embalo desliza
devagar como um fumo que sobe no ar
e esbarra contigo em todo o lugar.
... o passado agoniza...
Toda terra é uma fresca e sonora garganta
que canta e encanta
Tu existes e basta! O passado em ruínas
se desfez lentamente por entre neblinas
Eu voltei a nascer. O que eu quero? – Sonhar
o meu hálito queima, nem canto nem choro
no olhar a esmeralda voltou a brilhar
que da vida tu és
tudo aquilo que adoro.
EU QUISERA DEMAIS
Eu quisera falar nesta hora tardia
toda dor que tua falta me arranca aos sentidos
eu quisera sentir nossos corpos unidos
extirpando da alma a saudade doentia
Eu quisera demais nossas mãos se juntando
e encontrando na busca o calor de um afago
eu quisera gritar que a angústia que eu trago
aprendeu a calar, a seguir silenciada
Eu quisera teu hálito morno em meu rosto
sopro quente de vida a estrugir de paixão
eu quisera esmagar junto ao meu coração
a tua carne viril toda feita ao meu gosto
Eu te juro, eu quisera nesta hora tardia
orientar meu desrumo todo meu descompasso
sossegar no teu colo todo esse cansaço
e encher de ternura esta vida vazia
Eu quisera tua voz murmurando baixinho
eu quisera o roçar da tua boca sensual
sorver toda a expressão desse olhar sem igual
desmanchar teu cabelo em total desalinho
Eu quisera escrever o que ocorre comigo
no adiantado da noite do tempo do mundo
minha vida parou, marca passa o segundo
que começa e termina apenas contigo
Minha mão que vacila transpira gelada
seca a lágrima pura que rola no rosto
nestas frases sofridas desenha o desgosto
busca o afago da tua e se perde no nada.
Eu quisera demais, como pouco se quer
descansar este grande, este imenso cansaço
dormitar se pudesse em teu másculo abraço,
Repetir que me fazes ser toda mulher
Eu quisera não ser sempre assim tão sozinha
eu quisera sonhar, mas sonhar sem motivo
aprender a separar o que eu sonho e o que vivo
no tumulto total que minh’alma caminha
Eu quisera não ser tanta desesperança
eu quisera gritar que este amor é loucura
que a paixão que me abraça é ainda mais pura
que a inocente expressão de um olhar de criança.
Eu quisera demais tua epiderme escaldante
junto ao meu coração numa entrega total
o meu peito arquejando de forma brutal
sucumbir, perecer de um amor tão amante
Eu quisera poder ser um pouco sensata
acalmar todo sonho que d’alma transborda
eu sou bem um boneco, um boneco de corda
que não pode deter a incoerência que mata
Eu quisera ser mais, a mulher mais querida
eu quisera dobrar a bainha do tempo
derramar a teus pés este meu sentimento
caminhar sós contigo o percurso da vida.
PARADOXAL
Ternura triste minha, que fazes nesta tarde
girante, errante tarde, já noite em pleno dia?
Lunar, solar, inquieta, tão quieta em seu alarde
paradoxal demais, nascente de agonia
Triste ternura minha, quietude alarmante
estás mais do que eu afeita a este tédio
a solidão que ocupas, pensante, soluçante
ampara e desampara o mal que é sem remédio.
Histórias de contar à boca do crepúsculo
Ternura triste minha, faminta inutilmente
calmamente, extasiante em cada nervo e músculo
paradoxal demais, confesso novamente.
Eu amo o que não tenho, triste ternura minha
por isso escrevo versos tão tristes esta tarde
alada, impregnada, minh’alma sós caminha
doente e exuberante, tão forte e tão covarde.
Oh! a cópula febril de esperança e fuga
com que nos enlaçamos e nos desesperamos
Ternura triste minha, rubricas cada ruga
co’a marca insinuante da farsa que ocultamos.
Ah! é tão curto o amor, tão demorada, a cura
Eu amo o que não tenho, ternura tão tristonha
girante, errante tarde, já acre de doçura
doente, insistente, incrível dor risonha.
Lirismo, misticismo, um frio repentino
povoa minha epiderme no curso da jornada
precisa, indecisa, qual louco peregrino
acerto ao desacerto na inútil caminhada.
Oh! a cópula febril da súplica e do adeus
que junta num brinquedo a vida de nós dois
corrói, destrói, constrói em todos sonhos meus
o agora cambaleante que espera por depois
Caminho, descaminho, ternura insistente
eu amo o que não tenho – paradoxal procura
se cansa esta ternura faminta inutilmente
Ah! é tão curto o amor, tão demorada a cura.
MENSAGEM
Eu estive sonhando desperta na vida
durante a corrida veloz deste mundo
e o sonho fluía de um jeito fecundo
trazendo de volta uma hora perdida
uma hora esperada, passada, vivida
um minuto especial com um gosto de afago
um momento sumido que agora, tão vago
une as pontas distantes da rota partida
Eu estive sonhando de olhos abertos
e a imagem fluía de um olhar marejado
um olhar quase cego, envolvido, molhado
embalando suave os sentidos despertos
Eu estive sonhando um sonho de espera
desta espera confusa que a voz me sufoca
um sufoco doentio que na alma provoca
a vulcânica dor que a explosão dilacera
Eu estive sonhando, eu minto, ainda sonho
nesta hora que avança alheia ao que sinto
e ao sonhar sem saber se desperta eu pressinto
que esta vida é melhor no acalanto do sonho
Eu estive sonhando e a exaustão desse sonho
me mostrou que sem ti tudo está terminado
abandono de mim, tudo desconcertado
na coerência da ordem que a mim mesma imponho
Eu estive, eu estou, eu estarei a sonhar
o meu sonho de amor no meu modo de ser
eu só quero que o sonho que eu vivo a embalar
vista a vida da forma que entendo o viver
HORAS TERNAS
Aquela música
embriagava o espaço
um corpo aconchegado e protegido
na morna proteção de um outro abraço
Um piano cantando em tom menor
uma voz, que de humana tinha tudo
envolvia de Chopin o quarto mudo
Uma fascinação satânica
envolvente
com algo de ansiedade
e algo de tristonho
fazia ser real o encanto do meu sonho
Vinha pelo ar no piano de Chopin
um perfume de amor, lascivo como um beijo
o contato sensual
o fremir que se adianta
o gemido de amor que morre na garganta
a alma que se aquece
a doação total, a entrega que parece
do mundo a estuar numa única verdade
o passado o presente
o desejo a saudade
– Horas ternas
penso nelas e revejo
tua imagem recostada e pensativa
a expressão quase feliz
que me cativa
o cigarro queimando lentamente
a espiral de fumaça levemente
rabiscando desenhos pelo ar
tão incertos como as cismas que a esmo
deixavas sair de dentro de ti mesmo.
Falamos tantas coisas
do mundo em que vivemos
das coisas que queremos
das coisas que não temos
Chopin rodava ainda
e a música dolente
punha êxtase maior
no coração da gente
Cheguei... sentei-me aqui
a relembrar sozinha
a agonizar no vácuo da saudade
que é tão minha
Trêmula, minha mão
ao escrever falseia
como num ébrio que estivesse
a pisar sobre a areia
Eu volto a recordar
te sinto e novamente
a existência exulta e refloresce
a lágrima que brota fluente
e estremece
a alma onde para o amor
já não há mais remédio
enquanto molha o rosto
extirpa da alma o tédio.
Chopin agora chora
no ar espiritualizado
sem restos de volúpia
no peito sossegado
Horas ternas
antes não era assim
minh’alma ardente e inquieta
apenas te ofertava um coração poeta
e o amor que em mim crescia
de um jeito tão estranho
trazia à tua vida
a oferta do meu sonho
A vida é singular
o ardor que enlouquece
e abrasa sem cessar
renasce num desejo
e morre num espasmo
Mas fica a sensação
que nunca mais se esquece
O QUE SERÁ AMANHÃ
A resposta é o silêncio... a dúvida... a incerteza
Talvez resida nisto a imensa sutileza
Do grande e doce amor que em nosso peito pousa.
Uma ternura vasta o nosso sonho quer
E ao transformar em um, o homem e a mulher
Repete a mesma frase e diz a mesma coisa.
Se perde no entretanto, se encontra numa cisma
Explode de esperança o corpo que se abisma
De amar de uma maneira que é quase invulgar...
Se foge de um encontro, um outro já prepara
Espera noite a dentro e nem sequer repara
Que, do percurso andado, não pode retomar.
Se a fronte nos enruga e o nosso olhar mareja
Ao mesmo tempo vibra porque o amor enseja
O aceno muito azul de uma manhã sublime
Se somos a verdade e somos a mentira
O amor que nós sentimos à alma nos atira
A sensação de um bem que tem gosto de crime.
O que será amanhã se o amor p’ra nós consiste
Em adorar aquilo que no outro existe
E que é exatamente o que a alma procura
Se não devemos ver-nos e nós disso o sabemos
Buscamos ver-nos mais e pomos o que temos
Para arrastar mais longe ainda esta loucura.
Se os nossos sentimentos assim tão proibidos
Resumem a exaltação de todos os sentidos
E a exaltação maior da nossa própria alma
Se tanto já tentamos truncar nossos caminhos
Seguir rumos opostos, caminhar sozinhos
Buscar em outro ombro a compreensão e a calma
Voltamos todas vezes ansiosos nossos braços
Trazendo nossas vidas desfeitas em pedaços
P’ra novamente uni-las no mais lindo sonho
A falta que sentimos em cada despedida
Blasfema contra tudo e nos transforma a vida
na suprema eclosão de um tédio medonho.
O que será amanhã, se a trama que tecemos
Envolve-nos assim de afeições e extremos
De um elo de saudade que a cada hora cresce
Porque o nosso amor é um desses amores
Tão cheios de contrastes e tão abrasadores
Que a gente, em toda a vida, nunca mais esquece.
Pergunto o que será... a prova já tivemos
Nós juntos não podemos e longe não queremos
Deixar que o tempo atroz desate o nosso laço
Se às vezes nós estamos saciados e felizes
Tu amas o que eu digo, adoro o que tu dizes
A vida cabe inteira no ninho de um abraço.
O que será amanhã... pergunto novamente
Questiono a mim mesma, imploro a tanta gente
Ninguém responde nada... nada existe igual
A dúvida e a incerteza são tudo o que dispomos
O mais radiante sonho – é isso o que nós somos
E o sonho que sonhamos, não pode ser real.
Se as lágrimas um dia molharam nosso rosto
Se a espera já nos fez a marca do desgosto
Se a volta nos deu mais – voltamos a viver
Se a cada fuga nossa, partimos descontentes
Eu vejo o que eu sinto e sinto o que sentes
Por mais que a gente queira, não podemos esquecer.
O que será amanhã... o nosso amor é estranho
É fuga e reencontro, um renunciar tamanho
Que nos confere o cunho de sermos quase iguais.
Por quanto que afastemos p’ra longe as nossas vidas
Por mais que as separemos, as vemos reunidas
Por mais que esqueçamos, lembramos sempre mais!
DESEJO
Ebriedade
Intranquilidade
preconceitos e vaidades
com que o homem deformou o amor
atmosfera de museus
plenitude de passados
exumados e conservados
grandes silêncios dos longes
capuzes de tristes monges
torpor
Eu quero a concentração
interior para as alturas
Forma silenciosa de amor
Consenso mil vezes repetido
Não quero só esta grande
recordação anciã
restos casuais de outras épocas
reminiscências herdadas
de seres e gerações
amontoadas, emaranhadas
entre teias, nos porões
Quero matar a sede de desconhecido
a fome daquilo que não vejo exposto
quero a alma a brincar
na pele do meu rosto
ÉBRIA ENTRANHA
Estou a escrever
sentindo a alma em estio
o corpo em rio
formas diversas da mesma saudade
doçuras, profundezas e forças
nós que se juntam à noite
e se entrelaçam no baloiçar da esperança
acontecimentos inexprimíveis
no espaço que palavra alguma alcança
Reforçada personalidade
alargada solidão
eventos em constelação
momentos estéreis
loucura
esta infinita ternura
fio delicado
entre cem outros que o sustentam
fixado
Estou a escrever sentindo a alma em estio
o corpo em rio
Ritmos violentos jorrando da montanha
ébria entranha
eclosão, omissão, dualidade
formas diversas da mesma saudade.
PAZ
Apagam-se as luzes das portas vizinhas
a tímida claridade do abajur
reflete jatos de ausência
vazio e solidão
tão nítida sensação
tem cor, gosto e consistência
A estranha paz escura não consegue varar
a porta que se fecha devagar
O cabelo em desalinho
desenha arabescos
barrocos principescos
de mistura à estampa do travesseiro
Meu coração, celeiro
Estou liberta, nova, forte
Minha montanha russa
se encontra na altitude
impregnada estou
de súbita quietude
a gente aprende o jeito
acerta o passo
acha o equilíbrio p’ra saudade em descompasso.
Rodam os sóis
Rodam as noites
quebram-se selos de encantamento
renascem emoções
vozes mornas ao relento
dizem formas de canções
cenas nossas
caminhos de volta
novo começo
pedaços de cidade que eu quase desconheço
para dentro dos jardins
... para aquém das venezianas
de um jeito sossegado
os ponteiros param tontos
ao ritmo de um coração apaziguado.
QUANDO AGOSTO
DESOLADAMENTE FEZ-SE
O dia acordou cinzento, encolhido pelo inverno.
A manhã trouxe aos meus olhos geada silenciosa,
à alma trouxe o medo terrífico do inferno.
Quando agosto desoladamente fez-se
feriu os pés e a alma, feriu a carne e o sonho,
levou-te sem consulta ao sabor dos ventos lentos
deixando este vazio imperdoável e medonho.
Epitáfio mal calcado no horizonte do sol posto
fez-se um silêncio enorme de voo decepado
pelas cinco da tarde, nevoento e mascarado
foi sinistro desenhando pegadas de desgosto.
Prepotente dinossauro de mutiladas formas
foi destilando em poros as mais sinistras normas.
Determinou que te pusessem
à entrada das cavernas
plantou negros espectros de nauseado medo
foi-se dando o direito do ceifar tão cedo
e da amarga decisão de lágrimas eternas
.
Tu, inerte e sem defesa, assim indiferente
ao desespero súplice de súplices horrores
deixaste mergulhar teu corpo, de repente
no reino onde o silêncio é a epígrafe dos temores.
Teu relicário exposto, sem proteção nenhuma,
um rosa crisântemo às garras da neblina.
Tão meiga e tão entregue, sem resistência alguma,
à rígida geada, teu corpo de menina.
Quando agosto desoladamente fez-se
e tua viagem teve início ao sabor dos ventos lentos
eu nada compreendia, nem nada acreditava.
Convalescença, achava... vestida só de rosas
co’a breve duração de alguns breves momentos.
Engano.
Desde agosto fez-se forma este silêncio mudo,
fantasmas cavalgando à exaustão de tudo.
Teus lábios tão calados a ancestrais necessidades
Teus olhos semiabertos perdidos na inconsciência,
paisagem prematura e severa da experiência.
Dói tanto se chegar à véspera de outro agosto...
Nada desculpa a falta de sermos tão distantes.
– Onde a chave abre o cárcere dos sonhos?
– Onde os fios escafandros, severos comandantes
a permitir o êxodo de sustos tão medonhos
Meu sonho é um agônico cavalo de corrida
bebendo nas escórias inúteis da tua falta,
abrigando-se em sudário carregado de ti mesma
do ruidoso trovejar que quebrou minha vidraça
e estilhaçou de cacos esta tristeza esma...
Já não existe o íntimo preparo de uma véspera
colorida ingenuidade de te ver chegando linda
... só este agosto que repete meu grito de socorro
e a inútil dor sarcófaga por tanta posse finda.
DO JEITO QUE EU TE QUERO
Dizer é invulgar é usar um termo vago
que para definir o que na alma eu trago
não bastam as palavras que a literatura tem
as frases formuladas para esta tentativa
transformam este intento em nula iniciativa
porque o meu sentimento nem nome próprio tem.
Dizer que é sublime é um falar banal
o termo que eu preciso é um termo original
que o pensamento humano ainda não criou.
Não é um querer passivo é um querer consciente
que sabe o momento de ser um ser ausente
e quer dizer de um jeito que ainda ninguém falou
é uma insistência louca, o modo que eu espero
de traduzir a forma, o jeito que eu te quero
que já tentei buscá-la em todo dicionário.
Inútil tentativa, ninguém, por mais pensante
criou o adjetivo ou algo semelhante
que me servisse assim, de um vocabulário
tão simples e tão rico, tão terno e tão severo
com forma e conteúdo, com substância e essência
que fosse, por si só, capaz de em sã consciência
conter toda a expressão do jeito que eu te quero.
Dizer que eu te amo é muito repetido
meu modo de querer tem muito mais sentido
do que o amor maior que une as criaturas
é feito de ternura e de desesperança
é um querer adulto e é um querer criança
que põe os pés na terra e a alma nas alturas.
Como é que eu vou dizer o jeito que eu te quero
é assim, de um modo raro,
que apenas eu compreendo
o alcance da linguagem não pode, eu entendo
dizer-nos seus limites, o que é ilimitado.
Dizer que ele é triste é um falar tristonho
dizer que é real eu minto, é também sonho
é ausência de promessa e é contradição
é fé, ternura imensa, e é felicidade
é dor, é riso e pranto, é início e é saudade
é um misto para o qual não acho a tradução.
Dizer que ele é renúncia é um falar sincero
renunciar é a forma do jeito que eu te quero
do jeito, pelo menos, que eu devo te querer
se luto contra isso me torno incoerente
porque este sentimento é o mal mais inocente
é vida que mistura um pouco de morrer.
Falar do meu enlevo, calar na minha busca
dizer que a luz que encerra a algo que me ofusca
que me aproxima sempre que pode aproximar
que me tira a noção do certo ou do errado
que sabe me afastar tristonha do teu lado
na hora que se faz preciso eu me afastar.
Repito, não existe um termo de linguagem
que encerre o simbolismo e apreenda a imagem
capaz de conferir a este sentimento
o significado, a essência, o conteúdo,
a forma, a matéria, o tempo, o espaço, o tudo
que enche cada dia, desde o menor momento.
O jeito que eu te quero é um jeito sem medida
é um morrer que nasce em cada despedida
é um viver que morre a cada despertar
é uma dor alegre e uma alegria triste
já disse, não consigo, não posso, não existe
o termo que sozinho consiga expressar
o que me aconteceu, o que me resta agora
a sombra que sou hoje do que já fui outrora
o misticismo louco que anda a me abrasar.
O jeito que eu te quero é uma filosofia
que rompe os estatutos, que fere e crucia
mas que hoje, para sempre, tomou conta de mim.
Se não achei o termo, a frase, a sentença
eu sinto que tu sabes que é tua presença
que faz brotar do peito querer estranho assim.
Não vou continuar – não faz menor sentido
ficar falando nisso – meu ser introvertido
desiste de buscar o termo que eu espero.
O pensamento gasto para a literatura
falhou em não achar a sutileza pura
de um termo que expresse o jeito que eu te quero.
VIM, PARA QUE PERDOES
A noite que retoma tua ausência
aquém do abismo de cada desamparo.
Eu vim, em versos, trazer-te um sonho raro
com acompanhamento involuntário
de tanto esquecimento.
Vim no poema que disfarça
a dor de todas as demoras.
Trazer-te a lágrima por demais lágrima
que desnuda o meu cansaço
e desnuda a cordilheira dos sonhos em degelo.
Na torrente resvalada de ternura
do teu antigo abraço
Eu vim para trazer-te o habituado
úmido apelo
e as falhas que afinal
já não ofertam esperança alguma.
Um sistema metafísico assim original
mascara a face costumeira submissa como um cão
de um corpo inteiro e intelectual.
O escravo coração
matemático de ser a renovada espera
antiga e obsoleta
colhe a lágrima por demais lágrima
da consciência de reter
que a assumida larva
jamais verá nascer
seu dia de borboleta.
A face da lagoa tão lisa como o espelho
crispou-se, de repente, de acontecidas iras...
irregulares arredores de um novo desamparo...
No caudal vertiginoso dos já desfeitos planos
eu tonta, em vão me agarro.
Pedaços de esperanças jogadas ao descuido...
a dor em avalanche
derretendo a mágoa
de úmidos sonhos nossos
desfeitos tristemente
como o gelo em água.
Somos pontos cardeais e andamos em desrumo
nos caminhos que a vida,
com marcas de madura,
por erro sucedeu o tempo de criança.
O que sobrou aquém do pouco de esperança?
– a mesmíssima solidão em que te encontro
a refletir o susto inteiro das renúncias repetidas
o exercício dos desejos por baixo dos silêncios
das noites mal dormidas.
O que existe está conosco.
Não precisa dizer nada.
A lágrima por demais lágrima
que escorre angustiada,
que afaga o rosto triste
em sinistro acalanto
é o semblante de nós dois
de todo o desencanto
e a falta que tecemos.
Os sonhos que um por um
fingimos que não temos
são constelações de estrelas de brilho amontoado
iguais a mil ovelhas
de um rebanho contornado
a caminho do fatídico
matadouro que não vemos.
Eu vim, tal qual eu resultei
ao fim de tanto apego
trazer-te a rendição, o fim do esforço
que as demoras transmudaram em sossego.
Vim para que perdoes
a noite que retoma tua ausência
aquém do abismo de cada desamparo
de irreversível dor
na súplica doente que pede que perdoes
meu modo assim tão raro
de sucumbir de amor.
DOIS ANDAMENTOS
Ouço a Traviata...
o ar que dela cheio
parte em dois o coração ao meio
me diz tudo de ti
da ausência que carrego
do obscuro vazio ao qual me entrego
na manhã cor de cinza
que o buril da natureza
enfraquece ainda mais
o matiz dessa fraqueza
esmaece e definha o perfil que delira
no esboço da vida um contorno de mentira.
A harmonia me confunde
e a aparente menina
que se doa inteira a um sentimento gigante
vê o tumulto do inferno a crescer cada instante
vê a ternura do céu que suave a domina.
Se eu pudesse explicar…
se entender tu pudesses…
o que eu quero dizer e dizer não consigo
todo o louco carinho que eu trago comigo
toda a louca ternura que tu me mereces.
Não preciso falar
Tu tão bem me conheces
sabes tudo de mim,
cada palmo de tez
todo o incrível fascínio que a vida me fez
o momento perfeito
em que toda me amasso
escondendo meu corpo no calor do teu braço
Eu sou toda uma entrega
uma entrega bendita
que da entrega resulta numa paz infinita.
No teu corpo eu encontro
uma estrada encantada
e me deixo por ti, ser por ela levada
até o ponto final...
o momento perfeito
em que os dois corações se misturam no peito.
Se eu pudesse falar...
mas não é necessário
sabes tudo de mim,
minhas mãos, meu cansaço,
minha história, meus erros,
os apelos e abraços,
os meus sonhos, a loucura de esperar sem poder
o engano maior de querer te querer.
Eu me sinto doente
me abandona o entusiasmo
minh’alma tristonha
sucumbe no espasmo
de entender que, da vida, a vida me deu
o amor mais amigo que um dia nasceu.
E nasceu bem de mim,
da maneira de eu ser
de entender a verdade que insisto em não ver.
Mas eu olho o horizonte...
o cinzento do espaço
representa um contorno,
silhueta de aço
do amor mais amante que eu pude sentir.
Se ele fere e fulmina
é também meu escudo
se descobre uma chaga
é também o meu tudo
o amor que p’ra sempre eu desejo sentir.
Não o estimo perfeito
perfeição não desejo
Eu te quero de forma sincera que eu vejo
ser possível a gente esperar por alguém
aceitar tantas falhas, revezes, temores,
tantas bênçãos e luzes, espinhos e flores
que eu te juro, jamais quero amar mais ninguém.
QUASE UM VOO
A tarde está brilhando um brilho diferente
Nas ruas ensolaradas da tarde colorida
Sentada aqui sozinha estou quase vencida
Por esta sonolência que cresce lentamente
Um pensamento solto esboça esta ternura
Que nasce, se avoluma e toda me domina
Um som que vem de longe de mim se aproxima
Faz renascer a ânsia que em tudo te procura
A aragem brinca solta na fresta da vidraça
No frasco do licor, no telefone mudo
No silêncio ruidoso que teima em dizer tudo
Aquilo que escondo na farsa que me abraça.
Estou pensando em ti, tu que me deste tanto
Nas nossas fantasias, nas horas de carinho
Nas mil dificuldades que vimos no caminho
E ao serem tão difíceis somaram tanto encanto
A aragem brinca solta na fresta da vidraça
E roça na epiderme igual a uma carícia
Meu Deus, pensar em ti é mesmo uma delícia
Que torna linda a vida, enquanto a vida passa.
SONHO DESFEITO
A noite está molhada, um sonho está desfeito
O hoje de há pouquinho agora é passado
De novo o mesmo disco, um riso disfarçado
Um cheiro de tristeza rescende a amor perfeito
Um vestido de seda estampado sobre a cama
Na colcha uma sandália e um broche de cristal
Um grampo no cabelo, a data é especial
O pranto escorregando um festival de drama
Um esperado hoje, um amanhã magoado
Um ontem esquecido nas brumas do improviso
Um passo que rasteja com jeito indeciso
Um sulco de desgosto no rosto maquiado
A noite está molhada. Um sonho está desfeito.
Me envolve uma ternura macia como cetim
Eu mesma não compreendo
o que de novo há em mim
Que faz nascer a mágoa
que explode no meu peito
O ontem jaz perdido nas brumas do improviso
Desenha todo o escombro que passa na retina
O cérebro cansado nem mesmo raciocina
Um palco sem cenário por um gesto indeciso
Meu Deus, esta loucura abranda, por piedade
Acalma esta ansiedade, sossega esta tortura
A noite está molhada... um sonho está desfeito
O hoje de há pouquinho agora é passado
A noite agoniza um contorno acinzentado
E um sonho desgraçado agoniza no meu peito.
DOIS IMPROVISOS
IMPROVISO I
Nada te posso ofertar além de tudo o que tenho
nada mais tenho a tirar
do caminho de onde eu venho...
Estive contigo há pouquinho
cruzei contigo na rua
e esta alma que é só tua
arrebentou de mansinho
quebrando devagarinho
a frialdade da rua
onde eu cruzei teu caminho.
Caminhamos lado a lado
por entre o bulício da gente
e eu senti, simplesmente,
como se houvesse parado
a rotação desta terra
quis falar... quase não pude...
que o dizer é quase rude
se o silêncio tudo encerra.
Falaram nossos olhares
Tudo o que os lábios calaram
eles não dissimularam
o que se busca esconder.
Depois tu te foste embora
e eu imersa na magia
tentando fazer poesia
que traduza este querer...
Como se fosse possível
em forma de alguns rabiscos
vestir este sonho incrível
com tinta, letras e riscos,
se é feito toda de vida
se é mais que oração...
É uma forma construída
com fibras de coração.
IMPROVISO II
Ontem fiquei a esperar
Uma espera indefinida
tão sincera, tão sentida
que não veio a acontecer
e a falta que me fizeste
só juntou ao que me deste
um pouco mais de querer.
Eu sozinha, ao desalento
ansiei pelo momento
que te traria para mim
mas a hora desejada
sentidamente esperada
não te trouxe e assim...
Os minutos se arrastaram
as companhias tocaram
nenhuma tocou aqui
e a espera indefinida
interminável, sentida
só esperava por ti
Um drink, um outro, um cigarro
um esperar tão bizarro
o andar pela sala escura
um disco, outro disco, um poema
não encontrei qualquer tema
que expressasse a ternura
daquela espera tão pura
não virias, eu pressenti
mas a espera insistente
de um jeito impertinente
ainda esperava por ti
um retoque no cabelo
um pouquinho de fragrância
nada mais continha a ânsia
de te poder abraçar.
O braço ficou vazio
e o sentimento doentio
de esperar sem esperança
faz-me chorar qual criança
que quer demais um brinquedo
e de querê-lo tem medo
de o não poder alcançar.
E eu novamente tentei
voltar a brincar de poetisa
jogar esta espera exaustiva
em letras sobre o papel
tirá-la de dentro do peito
organizá-la de um jeito
menos amargo que o fel
e se possível me fosse,
fazê-la ficar tão doce
como a doçura do mel
que faz o pólen da flor
porque não pode a amargura
vestir tamanha ternura
externar o meu amor.
Esperei-te inutilmente...
toda a noite simplesmente
aguardei o teu chegar
tu não vieste e a espera
tão sincera, tão sentida
deu-me uma noite indormida
viu comigo o despertar
da aurora de um novo dia
que traz consigo a agonia
de novo te esperar.
UM AGOSTO DIFERENTE
21 de agosto de 1978
A manhã chegou tão fria
Fui