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Ecos De Voos E De Abismos
Ecos De Voos E De Abismos
Ecos De Voos E De Abismos
E-book1.259 páginas8 horas

Ecos De Voos E De Abismos

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Sobre este e-book

De 1981 a este 2023 publiquei praticamente todos os livros da renomada poeta Dolores Maggioni. Quase 20 obras ao longo de 42 anos de uma singularíssima jornada em Poesia. Sinto-me autorizado a falar da grandeza de cada verso seu, de cada emoção sua, tudo sempre transbordante. Por ser algo profundo, vulcânico. A sua situação de planície e lagoa vem pela harmonia de sua voz. Ecoa em mágicos sons produzidos pelas mãos ao piano; em audições públicas ou para ela mesma – seu modo de estar viva, sobrevivente. Sim, suas perdas familiares foram devastadoras. Porém sempre ela se salva pelo milagre da criação poética. Prática diária. Revigorante. Do alto de seu saber crítico-literário, Eduardo Jablonski afirma ser ela: A Mulher da Poesia, a Grande do Sul. E, com muito orgulho, assino abaixo! Rossyr Berny - jornalista, editor Academia Rio-Grandense de Letras
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de dez. de 2023
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    Pré-visualização do livro

    Ecos De Voos E De Abismos - Dolores Maggioni

    CADERNO 1

    1981 - Cantigas de um tempo intocável

    PARA UMA CANTIGA CONTINUADA

    Todos os poemas aqui reunidos vieram do fundo de uma caminhada, como um eco responde a um grito. Aqui a palavra é alimentada de amor e tempo, sem acrobacias, permanente intocável cantiga que se torna visível pela palavra vivida com muita emoção, sem a contabilização da pressa.

    As Cantigas de um tempo intocável mostram a dicção fluente de quem canta a vida, de quem vive a canção, de quem sente a beleza de um convite, bem como a nostalgia de uma ausência acrescentada de elegia.

    Na primeira parte – Cantigas de mim – a poeta, embora diga que seu desejo é esboçar uma canção sem palavras, escreve o que ocorre em seu mundo interior, trazendo de volta uma hora perdida. Sabe que o mundo tem a forma visível da rotina, entretanto, faz do amor este sonho incrível vestido com tinta, letras e riscos. Há muito de piano cantando em tom menor; até a inconfundível Traviata fala do amor que torna linda a vida, enquanto a vida passa. E ainda, ao ritmo de um coração apaziguado; a poeta amadurece como uma árvore que não apressa a sua seiva. A vida é chama, o amor é resposta, por isso as cantigas surgem tão espontâneas, como regatos solícitos entre os ponteiros das horas várias. Exuberantes e cheias de luzes, as cantigas são multiformes: amam, agradecem, temem, desejam, pulsam, fecundam e choram. E ficam povoadas de memórias, aconchegando uma a uma, iguais e incandescentes. E rezam: de repente, foi Deus em nossa boca e o céu à nossa frente.

    A parte intermediária – Elegias prematuras – apresenta não mais o sonho vivido, o espaço possível do amor, as alegrias de uma descoberta íntima, mas quase a revolta de quem grita em dor, no exílio; de quem chora o esvaziamento sofrido. Subitamente é inverno na natureza, é agosto no coração. E, com um coração submerso nesta dor que dói demais, o poema busca no silêncio intocável a imagem linda de um sonho, de uma lembrança permanente. As elegias, em tom dramático e maternal, revelam o peso de uma ausência inconformada. É dor que ensina, é o grito que se torna nevoento e frio, é a flor à espreita de um fruto prematuramente colhido. As elegias chegam e conferem sem máscaras e sem espanto de saber que a vida é passagem.

    E o livro conclui com uma série de poemas em prosa – Os trechos epistolares e outros temas – onde, nos trechos, a poeta quebra a forma de verso e busca na frase solta todo o potencial de uma intimidade disparada em torno de um milagre de amor. Por isso a nota que por toda a parte há restos de outros tempos. E sabe-se com as chaves rios limites: não peçamos ao mundo mais do que ele nos pode dar. Aqui a poeta revê tantas páginas possíveis da vida: resta uma parede vítrea através da qual tudo é visível. E nos outros temas acrescentados aos trechos epistolares, constata realmente no meio da única comemoração que jamais termina o amor que existe para realizar a comunhão e a participação em plenitude; O amor nos fez um só. E pacientemente conclui com o respeito de um repouso: tu simplesmente és – eu sou tua consequência.

    Este livro de Dolores Maggioni não foi escrito agora, mas abriga desde os primeiros versos, até os últimos poemas de hoje, e toda a trajetória íntima da palavra ancorada em cantigas, no tempo de quem sabe que a palavra é sempre intocável...

    Oscar Bertholdo

    Responso lírico ao túmulo do poeta Bertholdo

    Senhor, rogamos-te a paz da trégua das vazantes.

    Desvenda-nos a incógnita. Mostra-nos a face extinta.

    Para onde Tu levaste o canário cantador, cujo trinado era capaz de parir em cada coração mais sonhos do que o ovíparo mais fértil?

    Mostra-nos um minúsculo casulo, onde ainda se possa gestar uma esperança. Tira do mundo, Senhor, todas as nossas ruínas que, idênticas a Sodoma e Gomorra, corroem os seres que, na ganância, deterioram cotidianamente vidas. Não mais permite, te suplicamos, que irmãos nossos sejam entregues à febril idade de lobisomens, engravidando febres que não cabem na medida de nenhum termômetro. É preciso que se aprenda a lição de estacionar ardis nas profundidades serenas onde as ostras cospem pérolas.

    Faz-nos entender a metafísica esclarecedora na demarcação do mistério pelo denso limite da morte. Acalma esse nosso coração sobrevivente. Atenua a dor que nos corta o peito ao meio.

    Responde-nos, Senhor. – Onde a voz cerzida de astros e poemas? Onde os versos, anjos equidistantes em orações inéditas? Onde o realejo oriundo do mistério, com sons de magnólias e gerânios? Onde as vogais, tão leves como pássaros, ajustadas, esvoaçantes nos jardins da Babilônia?

    Arranca de nós, Senhor, esta incerteza sanguessuga. Por que o útero daquelas mãos amigas, assim tão sossegadas, já não gestam o embrião das metáforas tão cheias de encanto? Dá-nos, Senhor, a solução urgente para tantos naufrágios disponíveis que desorientam os destroços de uma tristeza uníssona.

    Sabemos todos, Senhor. Não nos podes livrar destes andrajos de estranho desconforto, nem libertar a mortalha que tolhe aquele corpo inerte; mas ajuda-nos a decifrar o enigma com um breve consolo, capaz de emoldurar algumas esperanças no dorso deste mundo.

    Derrama, Senhor, um véu de aleias por sobre a poesia que resta e que hoje sofre no fundo do lado de dentro, onde se engastam os sonhos dos infatigáveis sonhadores.

    Calou-se a voz do menestrel absoluto. Cessou o gesto que dedilhava cítaras, no brinquedo incrível de juntar palavras e inventar quimeras.

    Escolheste, Senhor, para o nosso poeta Bertholdo, o repouso absoluto do 7° dia, e lhe fechaste as pálpebras com a serenidade daquele que transita horas passivas, com a impune certeza de quem já decifrou o labirinto. O que é que aconteceu com o mundo, Senhor? Resta-nos à frente caminhos descalços de fantasmas sobressaltados e, mais, o susto das marés bíblicas aprimorando torturas cotidianas.

    Calou-se a voz do vale. A poesia se entristeceu. E, como nebulosa dormida, seus ecos já não nos alcançam primaverando cada função do amor. Aquelas mãos poetas derramavam cântaros de luz nos corações sofridos e agora silenciaram os versos capazes de embriagar os girassóis na dança dos canteiros. Onde os informes carinhosos ensinando-nos a sobremesar estrelas? Inerte, Tu o fizeste, o nosso poeta, em espaço de açucenas e nós, os amigos hoje doentes, esperamos o inútil retorno em posição de concha para receber o coração que já não pulsa na ânsia de inventar palavras novas, que já não canta modinhas em vogais varridas de improviso, rebrilhando na garoa.

    Desabotoa aquelas mãos, Senhor, para que o mundo possa de novo ler os versos que teciam. Acorda aquele par de olhos dormidos, para que irradiem as fulgurações das metamorfoses que só a verdadeira poesia sabe construir.

    Sei, Senhor. Pedimos-te a volta do impossível. Mas só Tua Trágica Trindade pode esgotar nossa cota de dor.

    Olha, Senhor. Há um circo armado no meio da vida. Não mais permite que os homens, aqueles que não passam de mamíferos vertebrados, firam e matem como búfalos ferozes calando aragens no recôncavo dos plátanos carregados de decassílabos de ternura. Sofre a poesia, Senhor. Os corações rastejam, como dor nos calabouços.

    Pedimos-te clemência. Para o mal que nos espreita em cada esquina, e tudo que podemos ofertar em troca não vai além de uma face verônica, de um sudário carregado de tardia dissonância, idêntica à dor de se ter chegado tarde.

    Impede, Senhor, que siga acontecendo este show que nunca teve encanto, este já viciado jogo de inconsequências que perfura o nosso coração, com balas e estiletes.

    Estamos cansados de cansaço. O nosso pavor é um medo gêmeo. Confusos, vemos sucumbir as nossas forças e debatemo-nos perdidos como em dispersos voos de periquitos. Queríamos sentir de novo a paz dos canteiros vertendo girassóis e pontes de alfazemas, ligando corações.

    Cessou a poesia, Senhor. Em cada esquina se encontra o riso alinhavado e, em cada dor, chora magoada uma dália escarlate. Contudo, sabemos que na Tua infinita sabedoria, o luzeiro do infinito vai noturnar, com seus pirilampos, as madrugadas que nos restam, não apenas com estrelas, mas, sobretudo, com versos iluminados de ternura, que nos ajudarão a preencher o espaço que ficou vazio.

    Perdoa-nos, Senhor, por tão doída súplica.

    Os versos que aqui já não ouvimos soarão, por certo, alegres como os céus de São João de nossa infância, em regiões amenas, onde os anjos não estão em crise.

    E, sabemos, permitirás que os seus ecos cheguem até nós carregados de palavras capazes de desnudar cantigas, ensinando-nos fórmulas mágicas de criançar, nem que para isso os Teus anjos precisem chorar e, através de suas lágrimas cristalinas, sejamos atingidos com carícias de asas de querubins, espalhando sobre a terra os versos que Bertholdo continuará a escrever nos céus.

    Senhor. Nosso anseio está exausto de tanto olhar o firmamento.

    No amplo saguão azul escuro, estrelas agrupadas nos acenam com gestos iluminados. Nossa alma se desfaz em lágrimas deslizantes em contas de rosário.

    Por último, Senhor. Perdoa-nos se te pedimos tanto e tão pouco temos para te ofertar além de nossas cruéis verdades embebidas em perfumes de magnólia à espera de Teu rubro derramar-se de milagres em forma de poemas, madurando o aroma para a memória difícil deste difícil consolo.

    Bertholdo, Senhor, está Contigo. Mas também continua em cada um de nós, da mesma forma que ele se expressou em uma de suas obras: Minh’alma ficou aberta. Ou, alguém, que já não sou eu, tem a chave. E esse alguém entra e sai, quando quer.

    Dolores Maggioni

    Cantigas de mim

    EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

    A chuva parou

    abre um ligeiro momento de luz

    canção de um poeta vindouro

    que diz de indizível prazer

    amadureço com a árvore

    que não apressa a sua seiva

    meu sentimento a esmo

    ganha madura compreensão

    parto de uma nova claridade

    projetada p’ra dentro

    de mim mesmo

    Ali moram meus motivos

    guerra justa dos objetivos

    do desejo não cumprido

    Sou uma batalha constante

    entre o que anseio

    e o que me é reprimido

    Noites de amor esquecidas

    desejos estagnados nos braços

    que abraçam cegamente

    Firmemente

    avanço inconvertível

    ao óvulo aberto que me espera

    é quase primavera

    no meio da paisagem

    não quero o amor selvagem

    a volúpia malbaratada

    dos momentos cansados da existência

    eu quero a consistência

    do homem e da mulher

    libertos de sentimentos falsos

    de restos casuais

    se amando não como dois contrastes

    mas como dois iguais

    ALMA DESPIDA

    Tantos desejos contidos

    sonhos incompreendidos

    às leis que os homens criaram

    tantas linhas paralelas

    conduzem tantos destinos

    por onde os tristes andaram

    tantos iguais pensamentos

    são diferentes momentos

    que não se podem juntar

    tantos olhos se encontraram

    tantas mãos se acariciaram

    para depois se afastar

    tantos jovens namorados

    andando sempre afastados

    buscando um do outro fugir

    tantas cruéis despedidas

    quantas vezes repetidas

    sem nunca afinal conseguir

    tantas frases nunca ditas

    quantas ânsias infinitas

    de uma entrega total

    tantas presenças na ausência

    tantos disfarces p’ra essência

    do sentimento imortal.

    Tantas lágrimas retidas

    tantas noites mal dormidas

    ocultando tanta dor

    tantos versos de poemas

    tentando vestir dilemas

    com trajes de suave cor

    Não é justo que se aceite

    eu quero a alma despida

    um microcosmo, uma vida

    Todo este amor sem igual

    Quero até a dor que exaspera

    saber que é inútil a espera

    mas quero ser eu, afinal.

    QUIETUDE

    Esta música de seda me embala na noite

    desmerecem no escuro as pisadas na areia

    no meu rosto tão triste, minha vida está quieta

    inquieta estremeço

    Reconheço

    que no meio da onda pararam os remos

    é um suspiro vazio, é um quase lamento

    coisas não acontecidas

    nossas mãos esquecidas

    silhuetas de corpos desfeitas ao vento

    Meu olhar olha o mundo

    um olhar tão sem brilho

    um andar tão sem pressa

    um sabor tão sem gosto

    um sonhar que começa...

    O meu tempo esboça a canção sem palavras

    Meu castelo é de instantes

    todos eles de ausências

    choro as insuficiências

    a confusão dos enganos

    os desacertos humanos

    e suas consequências.

    Penso em ti e pressinto o mistério que emanas

    ora voo... sou penugem... poeira de brasas

    com mais sonho e silêncio que dezenas de asas

    no sossego da ausência das falas humanas

    Eu te dou o que eu tenho

    Aqui está minha vida – uma página clara

    submersa num clima de quietude rara

    teimosias de sonhar rendilhadas de encanto

    até eu mesma me espanto

    Aqui está minha voz a espargir pelo vento

    os murmúrios de amor que renascem contigo

    não os sei parecidos com riso ou gemido

    sei-os frases libertas bailando ao relento

    Eu te dou o que tenho – o que eu quero? Só o nada

    vou brincando sozinha com o meu coração

    eu me sinto serena como a madrugada

    afagando teu rosto na concha das mãos

    Eu queria te falar

    bem assim, devagar

    Meu caminho é estranho – sem marcos, suspenso

    entre ninhos e astros – difusos clarões

    e as imagens? – a mesma – só variam como as penso

    elas têm a sua forma em mil variações.

    Desejei o infinito. O que eu tenho é só o mundo

    e o meu sonho profundo.

    Minha vida, uma barca delgada, desliza

    sem leme... sem rumo... sem vela... sem brisa

    no oceano de imagens – a tua mesma – repito

    meu dizer tão bendito.

    Minh’alma está quieta. Tal quietude me inquieta

    Não existe horizonte

    este embalo desliza

    devagar como um fumo que sobe no ar

    e esbarra contigo em todo o lugar.

    ... o passado agoniza...

    Toda terra é uma fresca e sonora garganta

    que canta e encanta

    Tu existes e basta! O passado em ruínas

    se desfez lentamente por entre neblinas

    Eu voltei a nascer. O que eu quero? – Sonhar

    o meu hálito queima, nem canto nem choro

    no olhar a esmeralda voltou a brilhar

    que da vida tu és

    tudo aquilo que adoro.

    EU QUISERA DEMAIS

    Eu quisera falar nesta hora tardia

    toda dor que tua falta me arranca aos sentidos

    eu quisera sentir nossos corpos unidos

    extirpando da alma a saudade doentia

    Eu quisera demais nossas mãos se juntando

    e encontrando na busca o calor de um afago

    eu quisera gritar que a angústia que eu trago

    aprendeu a calar, a seguir silenciada

    Eu quisera teu hálito morno em meu rosto

    sopro quente de vida a estrugir de paixão

    eu quisera esmagar junto ao meu coração

    a tua carne viril toda feita ao meu gosto

    Eu te juro, eu quisera nesta hora tardia

    orientar meu desrumo todo meu descompasso

    sossegar no teu colo todo esse cansaço

    e encher de ternura esta vida vazia

    Eu quisera tua voz murmurando baixinho

    eu quisera o roçar da tua boca sensual

    sorver toda a expressão desse olhar sem igual

    desmanchar teu cabelo em total desalinho

    Eu quisera escrever o que ocorre comigo

    no adiantado da noite do tempo do mundo

    minha vida parou, marca passa o segundo

    que começa e termina apenas contigo

    Minha mão que vacila transpira gelada

    seca a lágrima pura que rola no rosto

    nestas frases sofridas desenha o desgosto

    busca o afago da tua e se perde no nada.

    Eu quisera demais, como pouco se quer

    descansar este grande, este imenso cansaço

    dormitar se pudesse em teu másculo abraço,

    Repetir que me fazes ser toda mulher

    Eu quisera não ser sempre assim tão sozinha

    eu quisera sonhar, mas sonhar sem motivo

    aprender a separar o que eu sonho e o que vivo

    no tumulto total que minh’alma caminha

    Eu quisera não ser tanta desesperança

    eu quisera gritar que este amor é loucura

    que a paixão que me abraça é ainda mais pura

    que a inocente expressão de um olhar de criança.

    Eu quisera demais tua epiderme escaldante

    junto ao meu coração numa entrega total

    o meu peito arquejando de forma brutal

    sucumbir, perecer de um amor tão amante

    Eu quisera poder ser um pouco sensata

    acalmar todo sonho que d’alma transborda

    eu sou bem um boneco, um boneco de corda

    que não pode deter a incoerência que mata

    Eu quisera ser mais, a mulher mais querida

    eu quisera dobrar a bainha do tempo

    derramar a teus pés este meu sentimento

    caminhar sós contigo o percurso da vida.

    PARADOXAL

    Ternura triste minha, que fazes nesta tarde

    girante, errante tarde, já noite em pleno dia?

    Lunar, solar, inquieta, tão quieta em seu alarde

    paradoxal demais, nascente de agonia

    Triste ternura minha, quietude alarmante

    estás mais do que eu afeita a este tédio

    a solidão que ocupas, pensante, soluçante

    ampara e desampara o mal que é sem remédio.

    Histórias de contar à boca do crepúsculo

    Ternura triste minha, faminta inutilmente

    calmamente, extasiante em cada nervo e músculo

    paradoxal demais, confesso novamente.

    Eu amo o que não tenho, triste ternura minha

    por isso escrevo versos tão tristes esta tarde

    alada, impregnada, minh’alma sós caminha

    doente e exuberante, tão forte e tão covarde.

    Oh! a cópula febril de esperança e fuga

    com que nos enlaçamos e nos desesperamos

    Ternura triste minha, rubricas cada ruga

    co’a marca insinuante da farsa que ocultamos.

    Ah! é tão curto o amor, tão demorada, a cura

    Eu amo o que não tenho, ternura tão tristonha

    girante, errante tarde, já acre de doçura

    doente, insistente, incrível dor risonha.

    Lirismo, misticismo, um frio repentino

    povoa minha epiderme no curso da jornada

    precisa, indecisa, qual louco peregrino

    acerto ao desacerto na inútil caminhada.

    Oh! a cópula febril da súplica e do adeus

    que junta num brinquedo a vida de nós dois

    corrói, destrói, constrói em todos sonhos meus

    o agora cambaleante que espera por depois

    Caminho, descaminho, ternura insistente

    eu amo o que não tenho – paradoxal procura

    se cansa esta ternura faminta inutilmente

    Ah! é tão curto o amor, tão demorada a cura.

    MENSAGEM

    Eu estive sonhando desperta na vida

    durante a corrida veloz deste mundo

    e o sonho fluía de um jeito fecundo

    trazendo de volta uma hora perdida

    uma hora esperada, passada, vivida

    um minuto especial com um gosto de afago

    um momento sumido que agora, tão vago

    une as pontas distantes da rota partida

    Eu estive sonhando de olhos abertos

    e a imagem fluía de um olhar marejado

    um olhar quase cego, envolvido, molhado

    embalando suave os sentidos despertos

    Eu estive sonhando um sonho de espera

    desta espera confusa que a voz me sufoca

    um sufoco doentio que na alma provoca

    a vulcânica dor que a explosão dilacera

    Eu estive sonhando, eu minto, ainda sonho

    nesta hora que avança alheia ao que sinto

    e ao sonhar sem saber se desperta eu pressinto

    que esta vida é melhor no acalanto do sonho

    Eu estive sonhando e a exaustão desse sonho

    me mostrou que sem ti tudo está terminado

    abandono de mim, tudo desconcertado

    na coerência da ordem que a mim mesma imponho

    Eu estive, eu estou, eu estarei a sonhar

    o meu sonho de amor no meu modo de ser

    eu só quero que o sonho que eu vivo a embalar

    vista a vida da forma que entendo o viver

    HORAS TERNAS

    Aquela música

    embriagava o espaço

    um corpo aconchegado e protegido

    na morna proteção de um outro abraço

    Um piano cantando em tom menor

    uma voz, que de humana tinha tudo

    envolvia de Chopin o quarto mudo

    Uma fascinação satânica

    envolvente

    com algo de ansiedade

    e algo de tristonho

    fazia ser real o encanto do meu sonho

    Vinha pelo ar no piano de Chopin

    um perfume de amor, lascivo como um beijo

    o contato sensual

    o fremir que se adianta

    o gemido de amor que morre na garganta

    a alma que se aquece

    a doação total, a entrega que parece

    do mundo a estuar numa única verdade

    o passado o presente

    o desejo a saudade

    – Horas ternas

    penso nelas e revejo

    tua imagem recostada e pensativa

    a expressão quase feliz

    que me cativa

    o cigarro queimando lentamente

    a espiral de fumaça levemente

    rabiscando desenhos pelo ar

    tão incertos como as cismas que a esmo

    deixavas sair de dentro de ti mesmo.

    Falamos tantas coisas

    do mundo em que vivemos

    das coisas que queremos

    das coisas que não temos

    Chopin rodava ainda

    e a música dolente

    punha êxtase maior

    no coração da gente

    Cheguei... sentei-me aqui

    a relembrar sozinha

    a agonizar no vácuo da saudade

    que é tão minha

    Trêmula, minha mão

    ao escrever falseia

    como num ébrio que estivesse

    a pisar sobre a areia

    Eu volto a recordar

    te sinto e novamente

    a existência exulta e refloresce

    a lágrima que brota fluente

    e estremece

    a alma onde para o amor

    já não há mais remédio

    enquanto molha o rosto

    extirpa da alma o tédio.

    Chopin agora chora

    no ar espiritualizado

    sem restos de volúpia

    no peito sossegado

    Horas ternas

    antes não era assim

    minh’alma ardente e inquieta

    apenas te ofertava um coração poeta

    e o amor que em mim crescia

    de um jeito tão estranho

    trazia à tua vida

    a oferta do meu sonho

    A vida é singular

    o ardor que enlouquece

    e abrasa sem cessar

    renasce num desejo

    e morre num espasmo

    Mas fica a sensação

    que nunca mais se esquece

    O QUE SERÁ AMANHÃ

    A resposta é o silêncio... a dúvida... a incerteza

    Talvez resida nisto a imensa sutileza

    Do grande e doce amor que em nosso peito pousa.

    Uma ternura vasta o nosso sonho quer

    E ao transformar em um, o homem e a mulher

    Repete a mesma frase e diz a mesma coisa.

    Se perde no entretanto, se encontra numa cisma

    Explode de esperança o corpo que se abisma

    De amar de uma maneira que é quase invulgar...

    Se foge de um encontro, um outro já prepara

    Espera noite a dentro e nem sequer repara

    Que, do percurso andado, não pode retomar.

    Se a fronte nos enruga e o nosso olhar mareja

    Ao mesmo tempo vibra porque o amor enseja

    O aceno muito azul de uma manhã sublime

    Se somos a verdade e somos a mentira

    O amor que nós sentimos à alma nos atira

    A sensação de um bem que tem gosto de crime.

    O que será amanhã se o amor p’ra nós consiste

    Em adorar aquilo que no outro existe

    E que é exatamente o que a alma procura

    Se não devemos ver-nos e nós disso o sabemos

    Buscamos ver-nos mais e pomos o que temos

    Para arrastar mais longe ainda esta loucura.

    Se os nossos sentimentos assim tão proibidos

    Resumem a exaltação de todos os sentidos

    E a exaltação maior da nossa própria alma

    Se tanto já tentamos truncar nossos caminhos

    Seguir rumos opostos, caminhar sozinhos

    Buscar em outro ombro a compreensão e a calma

    Voltamos todas vezes ansiosos nossos braços

    Trazendo nossas vidas desfeitas em pedaços

    P’ra novamente uni-las no mais lindo sonho

    A falta que sentimos em cada despedida

    Blasfema contra tudo e nos transforma a vida

    na suprema eclosão de um tédio medonho.

    O que será amanhã, se a trama que tecemos

    Envolve-nos assim de afeições e extremos

    De um elo de saudade que a cada hora cresce

    Porque o nosso amor é um desses amores

    Tão cheios de contrastes e tão abrasadores

    Que a gente, em toda a vida, nunca mais esquece.

    Pergunto o que será... a prova já tivemos

    Nós juntos não podemos e longe não queremos

    Deixar que o tempo atroz desate o nosso laço

    Se às vezes nós estamos saciados e felizes

    Tu amas o que eu digo, adoro o que tu dizes

    A vida cabe inteira no ninho de um abraço.

    O que será amanhã... pergunto novamente

    Questiono a mim mesma, imploro a tanta gente

    Ninguém responde nada... nada existe igual

    A dúvida e a incerteza são tudo o que dispomos

    O mais radiante sonho – é isso o que nós somos

    E o sonho que sonhamos, não pode ser real.

    Se as lágrimas um dia molharam nosso rosto

    Se a espera já nos fez a marca do desgosto

    Se a volta nos deu mais – voltamos a viver

    Se a cada fuga nossa, partimos descontentes

    Eu vejo o que eu sinto e sinto o que sentes

    Por mais que a gente queira, não podemos esquecer.

    O que será amanhã... o nosso amor é estranho

    É fuga e reencontro, um renunciar tamanho

    Que nos confere o cunho de sermos quase iguais.

    Por quanto que afastemos p’ra longe as nossas vidas

    Por mais que as separemos, as vemos reunidas

    Por mais que esqueçamos, lembramos sempre mais!

    DESEJO

    Ebriedade

    Intranquilidade

    preconceitos e vaidades

    com que o homem deformou o amor

    atmosfera de museus

    plenitude de passados

    exumados e conservados

    grandes silêncios dos longes

    capuzes de tristes monges

    torpor

    Eu quero a concentração

    interior para as alturas

    Forma silenciosa de amor

    Consenso mil vezes repetido

    Não quero só esta grande

    recordação anciã

    restos casuais de outras épocas

    reminiscências herdadas

    de seres e gerações

    amontoadas, emaranhadas

    entre teias, nos porões

    Quero matar a sede de desconhecido

    a fome daquilo que não vejo exposto

    quero a alma a brincar

    na pele do meu rosto

    ÉBRIA ENTRANHA

    Estou a escrever

    sentindo a alma em estio

    o corpo em rio

    formas diversas da mesma saudade

    doçuras, profundezas e forças

    nós que se juntam à noite

    e se entrelaçam no baloiçar da esperança

    acontecimentos inexprimíveis

    no espaço que palavra alguma alcança

    Reforçada personalidade

    alargada solidão

    eventos em constelação

    momentos estéreis

    loucura

    esta infinita ternura

    fio delicado

    entre cem outros que o sustentam

    fixado

    Estou a escrever sentindo a alma em estio

    o corpo em rio

    Ritmos violentos jorrando da montanha

    ébria entranha

    eclosão, omissão, dualidade

    formas diversas da mesma saudade.

    PAZ

    Apagam-se as luzes das portas vizinhas

    a tímida claridade do abajur

    reflete jatos de ausência

    vazio e solidão

    tão nítida sensação

    tem cor, gosto e consistência

    A estranha paz escura não consegue varar

    a porta que se fecha devagar

    O cabelo em desalinho

    desenha arabescos

    barrocos principescos

    de mistura à estampa do travesseiro

    Meu coração, celeiro

    Estou liberta, nova, forte

    Minha montanha russa

    se encontra na altitude

    impregnada estou

    de súbita quietude

    a gente aprende o jeito

    acerta o passo

    acha o equilíbrio p’ra saudade em descompasso.

    Rodam os sóis

    Rodam as noites

    quebram-se selos de encantamento

    renascem emoções

    vozes mornas ao relento

    dizem formas de canções

    cenas nossas

    caminhos de volta

    novo começo

    pedaços de cidade que eu quase desconheço

    para dentro dos jardins

    ... para aquém das venezianas

    de um jeito sossegado

    os ponteiros param tontos

    ao ritmo de um coração apaziguado.

    QUANDO AGOSTO

    DESOLADAMENTE FEZ-SE

    O dia acordou cinzento, encolhido pelo inverno.

    A manhã trouxe aos meus olhos geada silenciosa,

    à alma trouxe o medo terrífico do inferno.

    Quando agosto desoladamente fez-se

    feriu os pés e a alma, feriu a carne e o sonho,

    levou-te sem consulta ao sabor dos ventos lentos

    deixando este vazio imperdoável e medonho.

    Epitáfio mal calcado no horizonte do sol posto

    fez-se um silêncio enorme de voo decepado

    pelas cinco da tarde, nevoento e mascarado

    foi sinistro desenhando pegadas de desgosto.

    Prepotente dinossauro de mutiladas formas

    foi destilando em poros as mais sinistras normas.

    Determinou que te pusessem

    à entrada das cavernas

    plantou negros espectros de nauseado medo

    foi-se dando o direito do ceifar tão cedo

    e da amarga decisão de lágrimas eternas.

    Tu, inerte e sem defesa, assim indiferente

    ao desespero súplice de súplices horrores

    deixaste mergulhar teu corpo, de repente

    no reino onde o silêncio é a epígrafe dos temores.

    Teu relicário exposto, sem proteção nenhuma,

    um rosa crisântemo às garras da neblina.

    Tão meiga e tão entregue, sem resistência alguma,

    à rígida geada, teu corpo de menina.

    Quando agosto desoladamente fez-se

    e tua viagem teve início ao sabor dos ventos lentos

    eu nada compreendia, nem nada acreditava.

    Convalescença, achava... vestida só de rosas

    co’a breve duração de alguns breves momentos.

    Engano.

    Desde agosto fez-se forma este silêncio mudo,

    fantasmas cavalgando à exaustão de tudo.

    Teus lábios tão calados a ancestrais necessidades

    Teus olhos semiabertos perdidos na inconsciência,

    paisagem prematura e severa da experiência.

    Dói tanto se chegar à véspera de outro agosto...

    Nada desculpa a falta de sermos tão distantes.

    – Onde a chave abre o cárcere dos sonhos?

    – Onde os fios escafandros, severos comandantes

    a permitir o êxodo de sustos tão medonhos

    Meu sonho é um agônico cavalo de corrida

    bebendo nas escórias inúteis da tua falta,

    abrigando-se em sudário carregado de ti mesma

    do ruidoso trovejar que quebrou minha vidraça

    e estilhaçou de cacos esta tristeza esma...

    Já não existe o íntimo preparo de uma véspera

    colorida ingenuidade de te ver chegando linda

    ... só este agosto que repete meu grito de socorro

    e a inútil dor sarcófaga por tanta posse finda.

    DO JEITO QUE EU TE QUERO

    Dizer é invulgar é usar um termo vago

    que para definir o que na alma eu trago

    não bastam as palavras que a literatura tem

    as frases formuladas para esta tentativa

    transformam este intento em nula iniciativa

    porque o meu sentimento nem nome próprio tem.

    Dizer que é sublime é um falar banal

    o termo que eu preciso é um termo original

    que o pensamento humano ainda não criou.

    Não é um querer passivo é um querer consciente

    que sabe o momento de ser um ser ausente

    e quer dizer de um jeito que ainda ninguém falou

    é uma insistência louca, o modo que eu espero

    de traduzir a forma, o jeito que eu te quero

    que já tentei buscá-la em todo dicionário.

    Inútil tentativa, ninguém, por mais pensante

    criou o adjetivo ou algo semelhante

    que me servisse assim, de um vocabulário

    tão simples e tão rico, tão terno e tão severo

    com forma e conteúdo, com substância e essência

    que fosse, por si só, capaz de em sã consciência

    conter toda a expressão do jeito que eu te quero.

    Dizer que eu te amo é muito repetido

    meu modo de querer tem muito mais sentido

    do que o amor maior que une as criaturas

    é feito de ternura e de desesperança

    é um querer adulto e é um querer criança

    que põe os pés na terra e a alma nas alturas.

    Como é que eu vou dizer o jeito que eu te quero

    é assim, de um modo raro,

    que apenas eu compreendo

    o alcance da linguagem não pode, eu entendo

    dizer-nos seus limites, o que é ilimitado.

    Dizer que ele é triste é um falar tristonho

    dizer que é real eu minto, é também sonho

    é ausência de promessa e é contradição

    é fé, ternura imensa, e é felicidade

    é dor, é riso e pranto, é início e é saudade

    é um misto para o qual não acho a tradução.

    Dizer que ele é renúncia é um falar sincero

    renunciar é a forma do jeito que eu te quero

    do jeito, pelo menos, que eu devo te querer

    se luto contra isso me torno incoerente

    porque este sentimento é o mal mais inocente

    é vida que mistura um pouco de morrer.

    Falar do meu enlevo, calar na minha busca

    dizer que a luz que encerra a algo que me ofusca

    que me aproxima sempre que pode aproximar

    que me tira a noção do certo ou do errado

    que sabe me afastar tristonha do teu lado

    na hora que se faz preciso eu me afastar.

    Repito, não existe um termo de linguagem

    que encerre o simbolismo e apreenda a imagem

    capaz de conferir a este sentimento

    o significado, a essência, o conteúdo,

    a forma, a matéria, o tempo, o espaço, o tudo

    que enche cada dia, desde o menor momento.

    O jeito que eu te quero é um jeito sem medida

    é um morrer que nasce em cada despedida

    é um viver que morre a cada despertar

    é uma dor alegre e uma alegria triste

    já disse, não consigo, não posso, não existe

    o termo que sozinho consiga expressar

    o que me aconteceu, o que me resta agora

    a sombra que sou hoje do que já fui outrora

    o misticismo louco que anda a me abrasar.

    O jeito que eu te quero é uma filosofia

    que rompe os estatutos, que fere e crucia

    mas que hoje, para sempre, tomou conta de mim.

    Se não achei o termo, a frase, a sentença

    eu sinto que tu sabes que é tua presença

    que faz brotar do peito querer estranho assim.

    Não vou continuar – não faz menor sentido

    ficar falando nisso – meu ser introvertido

    desiste de buscar o termo que eu espero.

    O pensamento gasto para a literatura

    falhou em não achar a sutileza pura

    de um termo que expresse o jeito que eu te quero.

    VIM, PARA QUE PERDOES

    A noite que retoma tua ausência

    aquém do abismo de cada desamparo.

    Eu vim, em versos, trazer-te um sonho raro

    com acompanhamento involuntário

    de tanto esquecimento.

    Vim no poema que disfarça

    a dor de todas as demoras.

    Trazer-te a lágrima por demais lágrima

    que desnuda o meu cansaço

    e desnuda a cordilheira dos sonhos em degelo.

    Na torrente resvalada de ternura

    do teu antigo abraço

    Eu vim para trazer-te o habituado

    úmido apelo

    e as falhas que afinal

    já não ofertam esperança alguma.

    Um sistema metafísico assim original

    mascara a face costumeira submissa como um cão

    de um corpo inteiro e intelectual.

    O escravo coração

    matemático de ser a renovada espera

    antiga e obsoleta

    colhe a lágrima por demais lágrima

    da consciência de reter

    que a assumida larva

    jamais verá nascer

    seu dia de borboleta.

    A face da lagoa tão lisa como o espelho

    crispou-se, de repente, de acontecidas iras...

    irregulares arredores de um novo desamparo...

    No caudal vertiginoso dos já desfeitos planos

    eu tonta, em vão me agarro.

    Pedaços de esperanças jogadas ao descuido...

    a dor em avalanche

    derretendo a mágoa

    de úmidos sonhos nossos

    desfeitos tristemente

    como o gelo em água.

    Somos pontos cardeais e andamos em desrumo

    nos caminhos que a vida,

    com marcas de madura,

    por erro sucedeu o tempo de criança.

    O que sobrou aquém do pouco de esperança?

    – a mesmíssima solidão em que te encontro

    a refletir o susto inteiro das renúncias repetidas

    o exercício dos desejos por baixo dos silêncios

    das noites mal dormidas.

    O que existe está conosco.

    Não precisa dizer nada.

    A lágrima por demais lágrima

    que escorre angustiada,

    que afaga o rosto triste

    em sinistro acalanto

    é o semblante de nós dois

    de todo o desencanto

    e a falta que tecemos.

    Os sonhos que um por um

    fingimos que não temos

    são constelações de estrelas de brilho amontoado

    iguais a mil ovelhas

    de um rebanho contornado

    a caminho do fatídico

    matadouro que não vemos.

    Eu vim, tal qual eu resultei

    ao fim de tanto apego

    trazer-te a rendição, o fim do esforço

    que as demoras transmudaram em sossego.

    Vim para que perdoes

    a noite que retoma tua ausência

    aquém do abismo de cada desamparo

    de irreversível dor

    na súplica doente que pede que perdoes

    meu modo assim tão raro

    de sucumbir de amor.

    DOIS ANDAMENTOS

    Ouço a Traviata...

    o ar que dela cheio

    parte em dois o coração ao meio

    me diz tudo de ti

    da ausência que carrego

    do obscuro vazio ao qual me entrego

    na manhã cor de cinza

    que o buril da natureza

    enfraquece ainda mais

    o matiz dessa fraqueza

    esmaece e definha o perfil que delira

    no esboço da vida um contorno de mentira.

    A harmonia me confunde

    e a aparente menina

    que se doa inteira a um sentimento gigante

    vê o tumulto do inferno a crescer cada instante

    vê a ternura do céu que suave a domina.

    Se eu pudesse explicar…

    se entender tu pudesses…

    o que eu quero dizer e dizer não consigo

    todo o louco carinho que eu trago comigo

    toda a louca ternura que tu me mereces.

    Não preciso falar

    Tu tão bem me conheces

    sabes tudo de mim,

    cada palmo de tez

    todo o incrível fascínio que a vida me fez

    o momento perfeito

    em que toda me amasso

    escondendo meu corpo no calor do teu braço

    Eu sou toda uma entrega

    uma entrega bendita

    que da entrega resulta numa paz infinita.

    No teu corpo eu encontro

    uma estrada encantada

    e me deixo por ti, ser por ela levada

    até o ponto final...

    o momento perfeito

    em que os dois corações se misturam no peito.

    Se eu pudesse falar...

    mas não é necessário

    sabes tudo de mim,

    minhas mãos, meu cansaço,

    minha história, meus erros,

    os apelos e abraços,

    os meus sonhos, a loucura de esperar sem poder

    o engano maior de querer te querer.

    Eu me sinto doente

    me abandona o entusiasmo

    minh’alma tristonha

    sucumbe no espasmo

    de entender que, da vida, a vida me deu

    o amor mais amigo que um dia nasceu.

    E nasceu bem de mim,

    da maneira de eu ser

    de entender a verdade que insisto em não ver.

    Mas eu olho o horizonte...

    o cinzento do espaço

    representa um contorno,

    silhueta de aço

    do amor mais amante que eu pude sentir.

    Se ele fere e fulmina

    é também meu escudo

    se descobre uma chaga

    é também o meu tudo

    o amor que p’ra sempre eu desejo sentir.

    Não o estimo perfeito

    perfeição não desejo

    Eu te quero de forma sincera que eu vejo

    ser possível a gente esperar por alguém

    aceitar tantas falhas, revezes, temores,

    tantas bênçãos e luzes, espinhos e flores

    que eu te juro, jamais quero amar mais ninguém.

    QUASE UM VOO

    A tarde está brilhando um brilho diferente

    Nas ruas ensolaradas da tarde colorida

    Sentada aqui sozinha estou quase vencida

    Por esta sonolência que cresce lentamente

    Um pensamento solto esboça esta ternura

    Que nasce, se avoluma e toda me domina

    Um som que vem de longe de mim se aproxima

    Faz renascer a ânsia que em tudo te procura

    A aragem brinca solta na fresta da vidraça

    No frasco do licor, no telefone mudo

    No silêncio ruidoso que teima em dizer tudo

    Aquilo que escondo na farsa que me abraça.

    Estou pensando em ti, tu que me deste tanto

    Nas nossas fantasias, nas horas de carinho

    Nas mil dificuldades que vimos no caminho

    E ao serem tão difíceis somaram tanto encanto

    A aragem brinca solta na fresta da vidraça

    E roça na epiderme igual a uma carícia

    Meu Deus, pensar em ti é mesmo uma delícia

    Que torna linda a vida, enquanto a vida passa.

    SONHO DESFEITO

    A noite está molhada, um sonho está desfeito

    O hoje de há pouquinho agora é passado

    De novo o mesmo disco, um riso disfarçado

    Um cheiro de tristeza rescende a amor perfeito

    Um vestido de seda estampado sobre a cama

    Na colcha uma sandália e um broche de cristal

    Um grampo no cabelo, a data é especial

    O pranto escorregando um festival de drama

    Um esperado hoje, um amanhã magoado

    Um ontem esquecido nas brumas do improviso

    Um passo que rasteja com jeito indeciso

    Um sulco de desgosto no rosto maquiado

    A noite está molhada. Um sonho está desfeito.

    Me envolve uma ternura macia como cetim

    Eu mesma não compreendo

    o que de novo há em mim

    Que faz nascer a mágoa

    que explode no meu peito

    O ontem jaz perdido nas brumas do improviso

    Desenha todo o escombro que passa na retina

    O cérebro cansado nem mesmo raciocina

    Um palco sem cenário por um gesto indeciso

    Meu Deus, esta loucura abranda, por piedade

    Acalma esta ansiedade, sossega esta tortura

    A noite está molhada... um sonho está desfeito

    O hoje de há pouquinho agora é passado

    A noite agoniza um contorno acinzentado

    E um sonho desgraçado agoniza no meu peito.

    DOIS IMPROVISOS

    IMPROVISO I

    Nada te posso ofertar além de tudo o que tenho

    nada mais tenho a tirar

    do caminho de onde eu venho...

    Estive contigo há pouquinho

    cruzei contigo na rua

    e esta alma que é só tua

    arrebentou de mansinho

    quebrando devagarinho

    a frialdade da rua

    onde eu cruzei teu caminho.

    Caminhamos lado a lado

    por entre o bulício da gente

    e eu senti, simplesmente,

    como se houvesse parado

    a rotação desta terra

    quis falar... quase não pude...

    que o dizer é quase rude

    se o silêncio tudo encerra.

    Falaram nossos olhares

    Tudo o que os lábios calaram

    eles não dissimularam

    o que se busca esconder.

    Depois tu te foste embora

    e eu imersa na magia

    tentando fazer poesia

    que traduza este querer...

    Como se fosse possível

    em forma de alguns rabiscos

    vestir este sonho incrível

    com tinta, letras e riscos,

    se é feito toda de vida

    se é mais que oração...

    É uma forma construída

    com fibras de coração.

    IMPROVISO II

    Ontem fiquei a esperar

    Uma espera indefinida

    tão sincera, tão sentida

    que não veio a acontecer

    e a falta que me fizeste

    só juntou ao que me deste

    um pouco mais de querer.

    Eu sozinha, ao desalento

    ansiei pelo momento

    que te traria para mim

    mas a hora desejada

    sentidamente esperada

    não te trouxe e assim...

    Os minutos se arrastaram

    as companhias tocaram

    nenhuma tocou aqui

    e a espera indefinida

    interminável, sentida

    só esperava por ti

    Um drink, um outro, um cigarro

    um esperar tão bizarro

    o andar pela sala escura

    um disco, outro disco, um poema

    não encontrei qualquer tema

    que expressasse a ternura

    daquela espera tão pura

    não virias, eu pressenti

    mas a espera insistente

    de um jeito impertinente

    ainda esperava por ti

    um retoque no cabelo

    um pouquinho de fragrância

    nada mais continha a ânsia

    de te poder abraçar.

    O braço ficou vazio

    e o sentimento doentio

    de esperar sem esperança

    faz-me chorar qual criança

    que quer demais um brinquedo

    e de querê-lo tem medo

    de o não poder alcançar.

    E eu novamente tentei

    voltar a brincar de poetisa

    jogar esta espera exaustiva

    em letras sobre o papel

    tirá-la de dentro do peito

    organizá-la de um jeito

    menos amargo que o fel

    e se possível me fosse,

    fazê-la ficar tão doce

    como a doçura do mel

    que faz o pólen da flor

    porque não pode a amargura

    vestir tamanha ternura

    externar o meu amor.

    Esperei-te inutilmente...

    toda a noite simplesmente

    aguardei o teu chegar

    tu não vieste e a espera

    tão sincera, tão sentida

    deu-me uma noite indormida

    viu comigo o despertar

    da aurora de um novo dia

    que traz consigo a agonia

    de novo te esperar.

    UM AGOSTO DIFERENTE

    21 de agosto de 1978

    A manhã chegou tão fria

    Fui

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