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Teoria Jurídica da Liberdade
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E-book473 páginas5 horas

Teoria Jurídica da Liberdade

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Sobre este e-book

A Editora Contracorrente tem a satisfação de anunciar a segunda edição da obra "Teoria Jurídica da Liberdade" que, nas palavras do Prof. Tercio Sampaio Ferraz Junior, "(...)é um livro voltado para a dogmática jurídica, mas desafiante e instigante, sobretudo nas suas premissas filosóficas. Ricardo Marcondes Martins é, nesse sentido, não só um dos mais competentes administrativistas dentre os jovens juristas de nossos dias, como um pensador que não se furta refletir sobre os temas que aborda".

Diversas teses são desenvolvidas com profundidade do trabalho, tais como a redução da liberdade pela aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas; a absoluta incompatibilidade conceitual do exercício da função administrativa com a situação jurídica de liberdade; o asseguramento de uma esfera de "liberdade efetiva" a todos, independentemente da opinião da maioria parlamentar; a incompatibilidade entre a ideia de "subsidiariedade" e a prestação de "serviços públicos".

Em um cenário de fragilidade democrática, o autor acredita que, independentemente da posição ideológica, o leitor compreenderá a razão pela qual tanto socialistas como neoliberais consideram-se árduos defensores da "liberdade".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de dez. de 2023
ISBN9786553961548
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    Teoria Jurídica da Liberdade - Ricardo Marcondes Martins

    CAPÍTULO I

    ARQUÉTIPO OU DETERMINAÇÃO NORMATIVA?

    1 Introito

    O título deste estudo e os das seções que seguem foram propostos pelo ínclito Professor Dr. Sergio Ferraz. Aceita-se o desafio de enfrentar os temas propostos não apenas pela inestimável admiração que sua pessoa desperta, mas, principalmente, porque não se encontraram discrímen e denominação mais felizes dos tópicos que se pretende versar. Já no título do estudo proposto, o Professor sintetiza o principal problema conceitual da liberdade: é ela um arquétipo ou uma determinação normativa? O título exige explicação. Preliminarmente: a palavra arquétipo adveio do grego archétypon¹ e foi utilizada por Jung para denominar os conteúdos do inconsciente coletivo.² O próprio Jung, porém, reconhece que a palavra já era utilizada antes dele, para se referir ao ειδος platônico:³ na teoria platônica as ideias seriam imutáveis, inatas, de modo que cada coisa do mundo seria tão somente uma representação. Assim, por exemplo, a mesa feita por um artesão seria a representação da ideia de mesa.⁴ Os neoplatônicos chamaram essas ideias, esses modelos das coisas sensíveis, existentes na mente de Deus, como modelos das coisas criadas, de arquétipos.⁵ Posteriormente, Locke utilizou a palavra simplesmente como sinônima de modelo,⁶ e esse significado tornou-se corrente. Acredita-se que Sergio Ferraz não teve em mente o sentido junguiano ao propor o referido título, mas sim o sentido corrente de modelo ou padrão passível de ser reproduzido.⁷ Com essa explicação, torna-se clara a indagação: a liberdade é estabelecida pelo Direito ou há, antes das normas vigentes, uma liberdade como eidos a que o Direito simplesmente reproduz? Fora do mundo jurídico há uma liberdade, que se reflete no mundo normativo, ou ela é criação do Direito?

    2 Liberdade na Teoria Pura do Direito

    Para Hans Kelsen, liberdade é uma determinação normativa, absolutamente dissociada do livre-arbítrio. Era um assumido determinista: tudo, no mundo fenomênico, seria regido pela causalidade, incluídas as condutas. Uma ação humana não seria fruto apenas e tão somente da vontade, vale dizer, de uma decisão, da escolha entre duas ou mais alternativas, tendo em vista apenas o próprio desejo, a partir de uma deliberação subjetiva. Ao contrário: vários fatores, de difícil precisão, interfeririam no processo de decisão e condicionariam a escolha, inexistindo um ponto final da causalidade. A responsabilização jurídica não seria alicerçada na apuração de que determinado evento foi causado pela vontade; ao revés, decorreria tão somente da imputação.⁸ Consequentemente, a liberdade seria impossível na natureza;⁹ o Direito escolheria entre um dos vários fatores intervenientes no fluxo causal e imputaria a ele a responsabilidade pelo evento: o homem é livre porque sua conduta é o ponto final da imputação.¹⁰ No mundo fenomênico, a vontade não seria responsável pelo resultado, mas ela o seria no mundo jurídico, em decorrência da imputação normativa. Ao estabelecer a imputação, o Direito cria a liberdade.

    Quem consegue entender a teoria da liberdade kelseniana percebe a coerência da separação absoluta, na teoria pura, entre Direito e Justiça:¹¹ no mundo fenomênico um homicida não cometeu o crime porque quis, ele cometeu o crime por diversos fatores (um conjunto tão amplo de fatores, de difícil, senão impossível, constatação) que o constrangeram a tal. Sua conduta é fruto da lei da causalidade, foi determinada por esse infinito conjunto de fatores, sendo a vontade, quando muito, apenas um dentre os vários que levaram ao evento. O Direito recorta a realidade e escolhe dentre os diversos fatores aquele que deve ser considerado responsável pelo fato considerado juridicamente proibido, vale dizer, o Direito imputa à conduta a responsabilidade pelo evento criminoso e, ao fazê-lo, constitui a liberdade.¹²

    A teoria gera um grande desconforto: supondo-se um homicídio, no mundo fenomênico, sabe-se que a morte decorreu de inumeráveis fatores, foi fruto da causalidade, sendo que a vontade do homicida foi apenas um, se é que o foi, desses diversos fatores que levaram ao evento morte. No mundo jurídico, pela teoria kelseniana, isso é irrelevante: tudo se passa como se fosse possível, ao considerado responsável pelo crime de homicídio, escolher entre cometê-lo ou não, e ele, por sua vontade apenas – para quem considera essa ficção necessária – escolheu cometê-lo. Apesar de Kelsen acreditar na inexistência do livre-arbítrio, no mundo jurídico tudo se passa como se ele existisse. O célebre jurista contorna esse dilema negando relevância à ficção: para o Direito a questão do livre-arbítrio é irrelevante, o que é relevante é a imputação.¹³ Na teoria pura, a razão pela qual a imputação foi estabelecida não é uma questão jurídica e sim política, estranha ao Direito.

    Para quem não é partidário da teoria pura do Direito, a teoria kelseniana alicerça-se numa monumental hipocrisia. Como é possível, sem dissimulação, afirmar que inexiste liberdade na natureza e, ao mesmo tempo, afirmar sua existência no direito? De duas, uma: ou existe real possibilidade de escolha entre duas alternativas no mundo real e, por força dessa possibilidade, configura-se a liberdade no mundo jurídico, ou não existe possibilidade de escolha no mundo real, e a suposta liberdade no mundo jurídico é uma ficção, uma hipocrisia dos juristas. No segundo caso, a palavra é mal utilizada, ou melhor, é usada para camuflar a relação de poder que envolve o fenômeno jurídico: imputa-se a alguém certa consequência não porque esse alguém foi responsável por ela, mas porque o editor normativo assim o quis.

    O fato é que não se pode demonstrar racionalmente o livre-arbítrio.¹⁴ Sua existência permanece uma questão aberta a demandar um ato de fé: ou se acredita nele ou não se acredita.¹⁵ Sem prejuízo, discorda-se de Kelsen. Não se adota aqui uma posição determinista, ao menos não nesses termos. Crê-se no livre-arbítrio. A excessiva reverência à causalidade marcou o período histórico em que a teoria pura foi concebida. Vigoravam ainda os postulados da chamada física clássica ou newtoniana e se pensava a natureza como uma verdadeira máquina, similar a um relógio, em que tudo seria regido por leis; conhecendo-as, seria possível antever os fenômenos, pois todos decorreriam do influxo causal. Hoje, essa visão está pacificamente superada: a física moderna provou que o funcionamento da natureza não se alicerça na causalidade.¹⁶ O princípio da incerteza de Heisenberg é a demonstração mais veemente disso: segundo ele não é possível determinar simultaneamente a posição e o momento de uma partícula.¹⁷ E o revolucionário nessa descoberta é que não se trata de uma imprecisão dos aparelhos utilizados, a incerteza está na própria natureza.¹⁸ Surpreendentemente, mesmo após essas descobertas, Kelsen continuou a afirmar sua teoria da liberdade: não é possível tirar de uma situação da mecânica quântica nenhuma conclusão quanto à liberdade de arbítrio.¹⁹ De fato, a incerteza da natureza não prova o livre-arbítrio, mas certamente esmorece esse veemente apego à causalidade.

    Como advertido, o livre-arbítrio exige um ato de fé, pois é insuscetível de demonstração racional. Mas a opinião sobre a existência ou não do livre-arbítrio é absolutamente irrelevante para a teoria jurídica da liberdade. O Direito pressupõe sua existência e quem pretende lidar com o Direito deve, necessariamente, pressupô-lo também. Após a Segunda Guerra Mundial, principalmente após o final do Nazismo,²⁰ a humanidade não aceita mais o que para Kelsen era fácil aceitar: a imputação sem justificativa plausível. Na teoria pura, o fundamento da imputação, em termos jurídicos, era a competência; tudo o mais era irrelevante ao jurista enquanto tal. No presente, essa concepção é inadmissível e surpreende que haja alguém que ainda tenha coragem de sustentá-la: toda imputação não justificada racionalmente é inadmissível e a racionalidade da justificação deve dar-se em termos materiais e não apenas formais, ou seja, na concretização valorativa e não apenas na competência estabelecida.

    Ao contrário do que supunha Kelsen, o Direito pressupõe uma pretensão de justiça (sublinhe-se: pretender a realização não significa, necessariamente, realizar). Direito que não pretende realizar a justiça não é Direito.²¹ Ora, negar o livre-arbítrio significa negar, de modo indubitável, a pretensão de justiça. Os conceitos são indissociáveis: ao pressupor a pretensão de justiça, o Direito exige pressupor a existência fenomênica do livre-arbítrio. Em relação à atitude em face do sistema normativo, Hart diferencia dois pontos de vista: o ponto de vista externo e o ponto de vista interno:²² ao adotar um ponto de vista externo, assume-se a perspectiva de um mero observador que se contenta apenas em constatar as regularidades de comportamentos observáveis; quem adota o ponto de vista interno assume a perspectiva de um participante, ou seja, considera que as normas estão a regular seu próprio comportamento. Por um ou por outro viés, o sistema normativo exige a pressuposição da existência real do livre-arbítrio. Quem não se considera inserido na situação comunicativa do sistema normativo²³ e encara-o como se fosse um estrangeiro a visitar um país que lhe é estranho, só compreende o funcionamento jurídico local se pressupor o livre-arbítrio. Da mesma forma, quem se insere no contexto jurídico local e considera que as normas incidem sobre seu próprio agir, só consegue compreendê-las pressupondo-o. A negação do livre-arbítrio juridicamente equivale a um anarquismo: negar o sistema normativo vigente, desconsiderando-o totalmente, seja como observador, seja como participante.

    Há que reconhecer: a fenomenologia da imputação numa perspectiva neopositivista é absolutamente incompatível com a teoria kelseniana da liberdade. Considere-se a tipificação de uma conduta como criminosa e a imputação de pena privativa de liberdade a quem violar a proibição. Não é o caso de explicar neste estudo em minúcias a teoria do delito;²⁴ o que segue é apenas o necessário para tornar claro que a imputação válida, ao contrário do que supunha Kelsen, não depende apenas da vontade do agente competente. Para que o legislador tipifique uma conduta como crime, deve identificar os valores constitucionais e ponderá-los. Só é justificada a proibição da conduta e a imputação de uma pena criminal se o peso (ou seja, a importância) dos valores concretizados por essa proibição (P1) justificarem a restrição do livre-arbítrio (P2). Esquematicamente: P1 > P2.

    Na verdade, a competência do legislador para efetuar a tipificação é relevante nessa análise valorativa: ela possui um peso, uma importância própria. Daí a teoria dos princípios formais:²⁵ acresce-se ao peso de P1 o peso do princípio formal referente à competência legislativa PFl, donde: P1 + PFl > P2. Porém, um princípio formal, isoladamente considerado, não tem o condão de justificar uma imputação. Trata-se da chamada lei da conexão: os princípios formais podem prevalecer sobre princípios materiais somente quando estiverem ligados a outros princípios materiais.²⁶ Donde, a imputação de uma pena criminal a uma conduta não pode validamente alicerçar-se apenas e tão somente na vontade do agente competente, ao contrário do que supunha Kelsen. Se a imputação se justificar apenas na vontade do legislador, a norma será flagrantemente inválida e deverá ser invalidada pelos órgãos competentes. Ainda que a competência tenha um peso a ser considerado (PFl), a imputação deve fundamentar-se na ponderação dos valores constitucionais.

    Sempre que outros valores jurídicos se mostrarem mais pesados do que o peso do valor justificador da proibição e da competência exercida (P3 > P1 + PFl), incidirá uma excludente de antijuridicidade, afastando-se a imputação da punição. Se o legislador previu essa excludente, ela se apoiará numa regra jurídica, haverá uma excludente legal de antijuridicidade; se o legislador não a previu, ela se apoiará na ponderação de princípios, haverá uma excludente extralegal de antijuridicidade. Finalmente, sempre que ficar demonstrado que não havia como ter livre-arbítrio e, pois, escolher não realizar a conduta criminosa, haverá uma excludente de culpabilidade, vale dizer, não recairá sobre o agente um juízo de reprovação de sua conduta. Da mesma forma que ocorre com as excludentes de antijuridicidade, a excludente de culpabilidade pode ser ou não ser prevista pelo legislador: há excludentes legais e extralegais. Perceba-se: sem assumir como existente no mundo fenomênico o livre-arbítrio, é impossível entender a fenomenologia da imputação e da aplicação normativa.

    3 Ontologia da liberdade

    Posto isso, conclui-se: ao contrário do que defendeu Hans Kelsen a liberdade não é, apenas e tão somente, uma determinação normativa. Resta a segunda alternativa proposta: será um arquétipo, ou seja, algo existente no mundo fenomênico que se reflete no mundo jurídico? Ocorre que definir a liberdade no mundo fenomênico é uma tarefa inglória. Para demonstrar isso, invoca-se a famosa trilogia Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre. Como se infere do próprio nome da trilogia, a liberdade é o tema dos três romances: A idade da razão, Sursis e Com a morte na alma.²⁷ A partir das situações vivenciadas por vários personagens, em especial Mathieu, professor universitário a que se refere o título do primeiro volume, Sartre nos provoca sobre o que nos faz perder a liberdade: casar-se com a amante que ficou grávida, engajar-se em um trabalho, comprometer-se com determinada luta? Quanto mais o personagem Mathieu foge de situações que tirariam sua liberdade, mais ele se afasta dela. Só o final trágico poderia cessar a sucessão de frustrações que o aflige.

    A obra leva ao que pode ser denominado de paradoxo da liberdade: só se é livre quando se está preso a algo, inexiste liberdade sem engajamento. Se alguém, em busca de manter-se livre, não se vincular a relacionamentos nem a projetos, enfim, não trabalhar, nem se casar, a pretexto de não comprometer sua liberdade, logo se verá aprisionado pelo seu vazio. Paradoxalmente é o relacionar-se com alguém, é o envolver-se num trabalho, é o engajar-se em algo que nos liberta. Na obra O ser e o nada, Sartre concluiu que estamos condenados a ser livres e, por consequência, somos oprimidos com a responsabilidade que isso nos acarreta.²⁸ Estar condenado a ser livre também importa um paradoxo. É o que basta para justificar a assertiva: não é possível precisar com clareza o significado da liberdade no mundo fenomênico. A ontologia da liberdade nos é, indiscutivelmente, obscura. Quem afirma que sabe o que é ser livre corre o risco de se ver aprisionado às próprias convicções.

    Após o chamado giro linguístico,²⁹ a ideia platônica de que existe uma realidade ontológica fora da linguagem foi duramente criticada. Não existiria uma ideia de casa no mundo ideal, a qual se pretende no mundo real alcançar. Os signos são arbitrários, como diz Saussure:³⁰ o que une a palavra casa ao objeto a que ela se refere é uma convenção arbitrária dos utentes da língua e não uma relação ontológica entre eles. Outrossim, a linguagem constitui nossa realidade, como diz Wittgenstein.³¹ O acerto dessa assertiva é comprovado pelo simples exemplo de Louis Hjelmslev: os esquimós possuem cinco substantivos diferentes para o que nas línguas europeias se pode traduzir apenas por neve.³² Com efeito: não existem, simplesmente, essas cinco realidades no Brasil, mas apenas uma, a neve, pois no português não possuímos palavras para constituírem as cinco realidades constituídas pelos esquimós. Para quem acolhe as premissas do giro linguístico,³³ não faz sentido buscar, como pretendia Platão, uma ideia de liberdade no mundo ideal. O que se pode buscar é o significado que a palavra possui em determinada língua.

    4 Ser e dever-ser

    Haja uma essência, haja apenas um significado linguístico, o fato é que inexiste um conceito extrajurídico de liberdade incontroverso, de fácil delimitação. A liberdade, fora do Direito, nos termos expostos, envolve juízos paradoxais. Será que o Direito tenta reproduzir esse objeto de difícil precisão no mundo fenomênico, identificado pela palavra liberdade? Esta aparece no Direito como um reflexo do que ela é na realidade ou com o significado que ela possui na língua comum ou natural?³⁴ Crê-se que não. A controvérsia sobre o significado ontológico da liberdade é totalmente irrelevante para o Direito, o qual estabelece seus próprios conceitos.

    O Direito consiste numa linguagem técnica e nessa linguagem as palavras não são, necessariamente, utilizadas no seu significado comum ou natural.³⁵ Na explicação de Karl Engisch, a hipótese normativa é recortada da realidade pelo agente normativo e posta como pressuposto de determinada regulamentação jurídica.³⁶ Ao estabelecer a hipótese, o agente normativo pode valer-se de específicos pontos de vista jurídicos, de modo a dar à hipótese jurídica contornos diferentes do fato sociológico.³⁷ Não há que confundir, por exemplo, diz Engisch, o parentesco sociológico com o parentesco jurídico: ao estabelecer a disciplina sobre o parentesco, o legislador atribui um significado próprio à palavra, não necessariamente coincidente com o significado que a palavra tem no âmbito social.³⁸ Daí a feliz expressão de Alfredo Augusto Becker: o agente normativo possui uma liberdade de deformação, vale dizer, a prerrogativa de deformar os fenômenos da realidade social.³⁹ Esse justamente é o caráter formal do Direito: ele constitui sua própria realidade.⁴⁰

    A propósito, conforme explicado em outra oportunidade, toda palavra utilizada num texto normativo sofre em maior ou menor medida uma mutação de significado: deve ser compreendida a partir do influxo que o sistema exerce sobre ela.⁴¹ Os agentes normativos, em suma, ao disciplinar a realidade, dão um significado próprio às palavras que utilizam. A linguagem jurídica possui especificidade própria, que a distingue sensivelmente da linguagem comum ou natural. Posto isso, os conceitos jurídicos devem ser compreendidos a partir do mundo jurídico e não do mundo fenomênico.

    Pois bem: liberdade não é criação jurídica, mas também não é arquétipo. Não é, ao contrário do que defendeu Kelsen, algo criado pelo Direito, mas também não é algo da realidade que o direito se limita a refletir, sem nenhuma força criadora. Haveria nisso uma contradição? Deve-se aqui superar outro equívoco da teoria kelseniana: a radical separação entre o ser e o dever ser.⁴² Não são dois mundos incomunicáveis ou comunicáveis apenas pontualmente.⁴³ O Direito é instrumental: as normas são editadas tendo em vista o mundo do ser, são estabelecidas para resolver conflitos intersubjetivos. Quem edita normas não o faz com a mesma pretensão de quem filosofa: as normas são editadas tendo em vista os conflitos intersubjetivos. Apesar de nitidamente positivista, Alfredo Augusto Becker reconheceu isso de modo lapidar: o Direito positivo não é uma realidade metafísica existindo em si e por si; a regra jurídica não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de convivência social.⁴⁴ Para, em seguida, concluir, também com pena de ouro: a regra jurídica somente existe (com natureza jurídica) na medida de sua praticabilidade.⁴⁵

    De fato, o Direito é estabelecido para o mundo do ser e, por isso, não pode ser compreendido sem levá-lo em consideração. Em consonância com o aqui exposto, a sabendas Martin Kriele propõe-nos "diferenciar o fático e o normativo sem os separar".⁴⁶ E, na mais prazível das harmonias, manifesta-se Reinhold Zippelius: pelo seu conteúdo, o direito é amplamente determinado pelas situações naturais e sociais que regula ou a que se refere a sua regulação.⁴⁷ Eis a premissa fundamental: como o direito volta-se para o ser, a compreensão de suas normas é densamente influenciada pelo ser. Com a consagração dessa premissa, a separação entre o ser e o dever ser, difundida por Kelsen, tornou-se, mais e mais, esmorecida.

    Assumida essa premissa, consagraram-se os chamados métodos concretistas,⁴⁸ caracterizados pela densa valorização dos aspectos reais na interpretação e aplicação normativa. Dentre esses métodos, destaca-se a metódica estruturante de Friedrich Müller, na qual a normatividade designa a qualidade dinâmica de uma norma, assim compreendida tanto a qualidade de ordenar a realidade que lhe subjaz, chamada por Müller de normatividade concreta, como a qualidade de ser condicionada e estruturada por essa realidade, chamada de normatividade materialmente determinada.⁴⁹

    Finalmente, essa influência do ser sobre o dever ser também é frisada por Zagrebelsky, que a denomina de natureza prática do direito, ao descrever o direito atual, por ele chamado de dúctil.⁵⁰ Assim, o Direito estabelece seus próprios conceitos, mas não o faz com os olhos fechados para a realidade social; os conceitos jurídicos são compreendidos à luz do mundo fenomênico. À guisa do exposto, as particularidades do mundo do ser interferem na significação dos termos normativos; daí inexistir contradição nas conclusões até aqui alcançadas.

    5 Liberdade jurídica

    As considerações precedentes impõem duas conclusões sobre a liberdade jurídica: ela não é apenas uma determinação normativa, mas também não é um arquétipo.

    Primeiro: a liberdade não é uma criação do Direito nos termos kelsenianos, pois ela pressupõe o livre-arbítrio. Depende de algo que se encontra no mundo do ser: a possibilidade de escolha entre duas alternativas apenas e tão somente com base na vontade do sujeito que escolhe. Liberdade jurídica exige decisão ditada pela vontade. Não é, portanto, algo integralmente constituído pelo Direito, sem base no mundo fenomênico. Ela, ao exigir o livre-arbítrio, ao exigir algo existente no mundo fenomênico, não decorre única e exclusivamente do estabelecimento da imputação.

    Segundo: liberdade, em termos jurídicos, não é um arquétipo, um mero reflexo de algo que existe no mundo real. A liberdade no Direito é estabelecida pelas normas jurídicas, a partir da pressuposição do livre-arbítrio; ao versarem sobre a liberdade, as normas dão-lhe um colorido próprio, uma conotação jurídica. Dessarte: a disciplina jurídica da liberdade, por ser jurídica, tem conotação própria, específica; não há um mero reflexo de algo que existe no mundo fenomênico, uma imitação ou representação de um objeto real.

    Não há, noutra perspectiva, a assimilação do significado de outra língua, da língua natural ou comum. O mundo jurídico, formado pelas normas extraídas dos textos normativos, consiste numa linguagem própria e nela as palavras têm um significado próprio; por conseguinte, os conceitos jurídicos não possuem identidade com os conceitos filosóficos, sociológicos, religiosos. Conclui-se: na linguagem jurídica a liberdade possui conotação própria, apesar de pressupor o livre-arbítrio, algo do mundo fenomênico que lhe dê arrimo.

    Feitos esses esclarecimentos, faz-se necessário precisar qual é essa conotação jurídica peculiar, esse significado próprio da palavra liberdade na linguagem jurídica. Torna-se finalmente possível enfrentar as questões propostas: qual é o significado da liberdade no Direito brasileiro e quais são suas principais implicações dogmáticas? O enfrentamento delas dar-se-á pela análise de oito temas, seguindo a proposta do Professor Sergio Ferraz: i) sentido do espaço privado; ii) soberania nacional; iii) liberdade social; iv) liberdade política; v) liberdade econômica; vi) subsidiariedade; vii) liberdade e a valorização das liberdades; viii) direita e esquerda. Espera-se ao final, por meio da análise desses oito tópicos, apresentar uma completa teoria jurídica da liberdade, sem olvidar dos riscos dantes aludidos.


    1 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. 2ª ed. 17ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 69.

    2 JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luiza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 16.

    3 JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luiza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 16.

    4 A teoria do conhecimento de Platão é sintetizada no Livro X da República (PLATÃO. Diálogos III – A República. Trad. Leonel Vallandro. Rio de Janeiro: Ediouro, [19- ], pp. 217 e ss.).

    5 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 80.

    6 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

    7 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles (Coord.). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 293.

    8 Diz o notável jusfilósofo: Quando, porém, um determinado evento é efeito de uma causa, e esta causa, como sempre acontece, tem por seu turno também uma causa, também esta é – como causa remota – uma causa do evento em questão. Este é referido não só à sua causa imediata, mas também a todas as suas causas mediatas: é interpretado como efeito de todas estas causas, que formam uma série interminável. Decisivo é que a conduta que constituiu o ponto terminal da imputação – que, de acordo com uma ordem moral ou jurídica, apenas representa a responsabilidade segunda essa ordem existente –, de acordo com a causalidade da ordem da natureza não é, nem como causa nem como efeito, um ponto terminal, mas apenas um elo numa série sem fim. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984, cap. III, § 23, p. 141). E pouco adiante: "Por vezes não se nega que a vontade do homem seja efetivamente determinada por via causal, como todo o acontecer, mas afirma-se que, para tornar possível a imputação ético-jurídica, se deve considerar o homem como se a sua vontade fosse livre. Quer dizer: crê-se que se tem de manter a liberdade da vontade, a sua não determinação causal, como uma ficção necessária. Só que, quando a imputação é reconhecida como uma ligação de factos diversa da causalidade, mas sem estar de forma alguma em contradição com ela, esta ligação é desnecessária – revela-se inteiramente supérflua". (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984, pp. 143/144, grifo nosso). Perceba-se: admitir o livre-arbítrio, para Kelsen, é uma ficção.

    9 Nas palavras dele: Dizer que o homem, como parte da natureza, não é livre, significa que a sua conduta, considerada como facto natural, é, por força de uma lei da natureza, causada por outros factos, isto é, tem de ser vista como efeito destes factos e, portanto, como determinada por eles. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984, p. 139).

    10 KELSEN, Hans. Causalidade e imputação. In: KELSEN, Hans. O que é a Justiça? Trad. Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 334.

    11 Tratamos da relação entre o Direito e a Justiça, em forte oposição a Kelsen em: MARTINS, Ricardo Marcondes. Direito e justiça. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo Marcondes. Um diálogo sobre a justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp. 43-91.

    12 Não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas, ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984, Cap. III, § 23, p. 148).

    13 Com argúcia, ele argumenta: em muitas situações, embora se conheçam as causas que determinaram a conduta (e, pois, sabe-se que ela não foi fruto da vontade), não se renuncia à imputação; tal conduta não é de modo algum desculpada. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984, p. 147). Para que a conduta seja desculpada, é necessária outra norma.

    14 Regis Jolivet conceitua o livre-arbítrio nestes termos: o poder que possui a vontade de se determinar a si mesma e, por si mesma, a agir ou a não agir, sem ser a isto coagida por nenhuma força, nem exterior nem interior. (JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. Trad. Eduardo Prado de Mendonça. 16ª ed. São Paulo: Agir, 1986, p. 213). Ao contrário do defendido acima, para Jolivet o livre-arbítrio é demonstrado a partir de quatro provas: a) prova pela consciência: a consciência experimenta por experiência direta a liberdade do querer; b) prova moral: o sentimento de obrigação e de responsabilidade seriam provas indiretas do livre-arbítrio; c) prova pela consciência social: a sanção e o contrato só têm sentido se houver liberdade; d) prova metafísica: o livre-arbítrio seria uma consequência necessária da razão (JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. Trad. Eduardo Prado de Mendonça. 16ª ed. São Paulo: Agir, 1986, pp. 213-216). Sem desprestigiar o notável filósofo, discorda-se: inexiste prova; as quatro consistem, por um jogo de palavras, em meras reafirmações da existência do

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